A importância das narrativas no aprendizado e na elaboração do autoconhecimento: uma visão junguiana, sua linguagem simbólica e o arquétipo do herói
Por Vera Márcia Gonçalves da Silva Pina
Por Vera Márcia Gonçalves da Silva Pina
Basta sentarmos diante de um grupo, crianças ou adultos, e começarmos com, “Era uma vez...” que rapidamente o silêncio se faz presente, os olhos atentos brilham e os ouvidos apuradíssimos não nos dão nenhum indício de qualquer “Deficit de Atenção”. Isso porque, por meio de reis, rainhas, anões, gigantes, ogros, bruxas ou dragões, saímos do nosso mundo real e entramos num mundo onde tudo é possível.
Neste mundo mágico o que aprendemos não é o saber da sala de aula, o conhecimento teórico, intelectual, mas sim, o saber que nos ensina a lutar contra forças invencíveis, superar nossos medos, buscar nosso conhecimento, enfrentar os desafios, nunca desistir e, dentre tantos outros saberes, a identificar qual a hora certa para agir. Um verdadeiro alimento para nossa alma!
Os contos com suas figuras fantásticas evocam imagens internas em crianças ou adultos; isso porque elas transcendem o campo de visão e o que ela reconhece, nas imagens de mamãe ou papai por exemplo, é seu valor simbólico como: colo, carinho, proteção, segurança, alimento, abandono, frustração etc.
“Assim, ao contarmos um conto é como se estabelecêssemos uma ponte entre as imagens do conto, as nossas de contador e as do mundo interior da criança.” Jette Bonaventure. Por essa razão, cada vez que contamos um conto para nossas crianças é como se déssemos a elas e a nós mesmos um presente, pois, nesse momento, bem diferente da agitação do dia-a-dia, podemos praticar a vivência de nosso mundo interior.
Jung e a interpretação dos contos
O grande psiquiatra Dr. Carl Gustav Jung observou que certos “temas típicos” que apareciam nos sonhos e nas fantasias de seus pacientes eram repetições de mitos ou de contos de fadas, sem que houvesse qualquer influência cultural exterior causadora de seu aparecimento.
Procurou compreender esses temas oníricos usando o conhecimento da mitologia e assim propôs que essas imagens seriam reações independentes de qualquer tradição cultural e que dessa forma se deveria admitir a existência de elementos mitológicos no psiquismo inconsciente; a esses elementos Jung chamou de arquétipos.
Arquétipos seriam uma disposição estrutural básica presente em todos os seres humanos, como uma forma à espera de complementos que formariam as subestruturas de sentimentos, emoções, fantasias e ações. Segundo Dr. Jung esses temas ou motivos, os arquétipos, são esquemas básicos da psique humana e se encontram no “inconsciente coletivo” – a camada profunda do inconsciente.
Esses temas ou motivos que aparecem nos sonhos, presentes nos contos e mitos e se repetem em todos os tempos e culturas são: a grande Mãe, o Pai, a Criação do Mundo, Nascimento, Herói, Morte, Abandono etc.
Os arquétipos se manifestam por meio das imagens dos contos, sonhos ou mitos, sendo chamadas por Jung de Imagens Arquetípicas. É por meio delas que podemos entrar em contato com os conteúdos do inconsciente e como disse Jung “restabelecer a conexão consciente e inconsciente”, sendo que dessa experiência arquetípica é que ocorre a verdadeira cura da alma. Para que isso aconteça o arquétipo da grande mãe, por exemplo, ao aparecer num conto ou mito como imagem arquetípica tem que ser visto não apenas como um pensamento padrão, mais sim como uma experiência emocional daquele que o ouve ou lê.
Segundo Marie-Louise V. Franz, “só se essa imagem tiver um valor emocional e afetivo para o indivíduo ela poderá ter vida e significação”. Assim, segundo Jung, podem se compilar todas as grandes mães do mundo, que não significará absolutamente nada, caso se deixe de lado a experiência afetiva do indivíduo.
O efeito causado pelos contos é sempre muito positivo; toda magia do conto cria um momento especial de cumplicidade entre as pessoas. Os contos nos dão verdadeiras lições de como resolver problemas complexos da vida. Não é necessário acreditar nos feitos heróicos presentes neles, pois certamente isso não passaria pelo crivo da razão, no entanto isso não impede que atinjam outras camadas, para além do inconsciente.
As histórias falam “da realidade do ser humano, de sua busca, de seus traumas e difi- culdades para lidar com papai e mamãe, de seus desejos de ser herói, dos monstros que às vezes sente que tem que combater durante sua vida...” Jette Bonaventure. Mitos e contos, segundo Jung, “dão expressão a processos inconscientes e sua narração provoca a revitalização desses processos restabelecendo assim a conexão entre consciente e inconsciente”.
HÁ MILHARES DE ANOS...
Para entender por que os contos e mitos encantam a todos, geração após geração, é preciso compreender do que tratam essas imagens e o que elas realmente representam.
Como em Chapeuzinho Vermelho, os animais representam tendências humanas arquetípicas
Muitos se dedicaram ao estudo e interpretação da linguagem simbólica dos contos de fada e mitos; uma grande especialista no tema é a Dra. Marie Louise Von Franz, discípula e colaboradora de Jung, a quem muitos outros seguem dentro da escola de Psicologia Analítica. Além dela cito Erich Neumann e, aqui no Brasil, a Dra. Jette Bonaventure, licenciada em Filologia Românica em Copenhague, Psicopedagogia e Psicologia pela Sorbonne, revisora técnica da tradução da obra completa de C.G. Jung, para o português, de quem sigo os passos.
Diversas são as formas e linhas de interpretação dos contos e mitos. Neste artigo apresento o olhar psicopedagógico que, além de reconhecer a importância do simbolismo das imagens, também reconhece nos contos e mitos inúmeras possibilidades para a educação, estabelecendo, assim, a parceria afeto-cognição. Também usarei a visão junguiana de interpretação, sem com isso desmerecer qualquer outra forma de olhar.
Os contos nos falam das diferentes situações da vida, o relacionamento das pessoas, entre si e com a sociedade, com a natureza, com o Divino, com as famílias etc. A maneira como o homem vem lidando com esses problemas durante todas as épocas e culturas não difere muito.
O tema em todos os contos e mitos é “o ser humano em busca de si mesmo e em busca do sentido da sua vida” (Jette Bonaventure). Não seria este o tema da vida de todos nós?
Podemos dizer que ao ler ou ouvir um conto “nós somos a personagem principal e tudo a nossa volta são os nossos arquétipos, bichos que falam, árvores, fadas, bruxas...”
OS CONTOS E MITOS NAS TERAPIAS
Ao utilizar os contos podemos falar de algo aparentemente inexistente, mágico, que para muitos é puro faz-de-conta, apenas histórias para fazer crianças dormirem; no entanto, o que não se percebe é que como os contos falam de temas universais, evocam imagens inconscientes no indivíduo e, quando aproveitadas, nos ajudam a dar muito mais sentido a nossas vidas. Modificando olhares e atitudes, sem que o ser humano se dê conta, estará falando de si mesmo por meio do conto.
O terapeuta deve conhecer muitos contos e mitos para assim utilizar-se precisamente daquele que está mais relacionado com os problemas específicos de seu paciente.
Conhecendo o que realmente “conta um conto”, ou seja, seu valor simbólico e psicológico, o terapeuta poderá ajudar crianças e adultos aliviando os problemas que parecem sem solução. Ao entrar em contato com bruxas, feras, dragões, ogros ou vizires que nunca estão satisfeitos (como muitos papais), os pacientes acabam percebendo que apesar de essas forças darem impressão de indestrutíveis, uma personagem de aparência frágil é capaz de derrotá-los, mostrando ser ela dotada de um grande poder.
Os contos também ajudam a despotencializar a carga emocional presente nas pessoas, por deixarem de olhar seus problemas de forma tão individual.
Para as crianças não é preciso nenhuma interpretação intelectual; elas não estão preocupadas com racionalizações, apenas entram na história de corpo e alma e são elas mesmas o “João e a Maria” entrando e ficando perdidos na floresta escura, tendo que descobrir recursos internos que irão ajudá-las a vencer as forças do mal. É bem verdade que para isso muitas vezes são ajudadas pelos bichos da floresta, que cuidam das tarefas psicopedagógicas como separar sementes, selecionar coisas, classificar, eleger, nomear, fazer descobertas junto às pistas, o que as crianças e os adolescentes adoram; para processar esse aprendizado precisam de muito pouca ajuda do terapeuta.
Os contos falam de temas universais, evocam imagens inconscientes no indivíduo e nos ajudam a dar muito mais sentido a nossas vidas
Difícil é convencer as mentes apenas intelectuais que por meio dos contos aprendemos tanto. Nem bem entramos na escola e já começamos a ser treinados para usar nossa mente objetiva, reprimindo tanto quanto possível nossas reações pessoais e emocionais. A justificativa para isso é sempre o discurso: “um vestibular muito em breve”.
Os Tipos Psicológicos
Uma das grandes contribuições de Jung para a Educação foi sua teoria dos Tipos Psicológicos que é muito respeitada quando usamos os contos na terapia; isso porque, segundo esta teoria, existem quatro “Tipos Psicológicos”. Cada indivíduo apresenta um deles como predominante, sendo que, é por meio desse seu jeito de ser que ele fará seus aprendizados na vida, inclusive na escola. Todos nós possuímos as quatro funções, mas sempre uma delas se apresenta mais desenvolvida e mais consciente que as outras três. Utilizando aquela que lhe é mais favorável o aprendizado será muito mais facilitado obtendo-se, assim, melhores resultados.
Tipo perceptivo sensorial: a sensação me diz algo; não exprime o que é, nem qualquer outra particularidade do que está em questão. É a função dos sentidos, todas as minhas percepções dos fatos externos que chegam até mim pelos sentidos.
Tipo pensamento: na sua forma mais simples exprime o que uma coisa é. O indivíduo a nomeia, vai conceituá-la, pois pensar é perceber e julgar; classificando e discriminando- a, o indivíduo se mantém firme nos seus objetivos mantendo- se distante do estado emocional para não se influenciar.
Tipo sentimento: o sentimento exprime o valor atribuído a uma coisa e nos informa por meio da carga emocional esse valor; ele nos diz se algo é aceitável, se isso nos agrada ou não. Ele também julga e pensa, mas a sua lógica é a do “coração”.
Tipo intuitivo: é uma percepção via inconsciente, uma espécie de faculdade mágica pela qual se antevê algo; é vislumbrar possibilidades ainda não conhecidas pela consciência, um tipo de percepção que não passa pelos sentidos, mas que nos coloca em contato com o que não podemos perceber, pensar ou sentir devido a uma não manifestação concreta. Registra-se ao nível inconsciente e não busca a lógica.
Tarefa difícil para o psicopedagogo que acredita que para educar não se pode desconsiderar o fator sentimento, sendo a base de seu trabalho o enfoque afetivo-cognitivo.
Em O Pequeno Polegar, a figura do grande ogro malvado se contrapõe ao arquétipo da criança
Ao utilizar contos e mitos como ferramenta psicopedagógica conseguimos contemplar todos os tipos psicológicos, pois qualquer que seja a forma de entrar em contato com as imagens dos contos será sempre a melhor, além do fato de que utilizando os contos para a intervenção psicopedagógica, favorecemos e ao mesmo tempo estimulamos todas as funções tipológicas.
Ao definir os tipos, Jung deixa claro que não foi para colocar rótulos nas pessoas, mas apenas por uma necessidade de criar uma ordem que compreendesse e explicasse os comportamentos.
Ao conhecer os vários tipos, reconhecemos também a necessidade de se ter formas diferentes de ensinar, para não cairmos no erro de privilegiar apenas um dos tipos em particular, por exemplo, o pensamento que é uma tendência da nossa Educação.
São nossas imagens internas que serão colocadas nas imagens do conto, com nossa carga de sentimentos e emoções
Para o terapeuta que deseja interpretar contos é fundamental reconhecer sua própria tipologia, mas isso não basta, pois o mais importante é conseguir transitar pelas quatro funções. “Quanto mais diferenciadas forem as quatro funções numa pessoa, tanto melhor será sua interpretação porque interpretar um conto é, ao mesmo tempo, uma arte, uma profissão e um artesanato”, discorreu Leon Bonaventure, em palestra proferida na PUC – SP, 1967.
O SIMBOLISMO DOS CONTOS DE FADA
É preciso dizer que o essencial não é a interpretação e compreensão das fantasias ou conteúdo dos contos, mas sim, a possibilidade de reviver plenamente esses conteúdos.
Para Jung, compreender intelectualmente um sentimento negativo, ou reconhecer sua falsidade, não é suficiente para eliminá-lo. Os sentimentos não podem ser atacados pelo intelecto porque não têm base intelectual.
É exatamente o que os contos nos ajudam a fazer: reviver sentimentos escondidos ou viver desconhecidos. Os contos falam diretamente à alma do ser humano; sozinhos eles causam raiva, dor, insegurança, indignação, orgulho, força. Isso porque somos nós a personagem principal e são nossas imagens internas que serão colocadas nas imagens do conto, com nossa carga de sentimentos e emoções, pois eles são desprovidos disso.
As imagens e figuras arquetípicas que estão presentes nos contos e mitos nos fornecem material simbólico que nos permite trabalhar em todos os estágios da vida lidando com muitos arquétipos, principalmente com a sombra, o lado escuro da personalidade, em que se encontram os aspectos desconhecidos e geralmente desprezados por nós, como a raiva, inveja, ciúmes etc.
As crianças se identificam com as personagens dos contos e assim conseguem vivenciar seus sentimentos de abandono, rejeição, nascimento de irmãos, ciúme, o fato de ser a(o) filha(o) preterida(o) ou a(o) mais querida(o) etc. com essas personagens; com elas são submetidas às mais terríveis provas, com a vantagem de poderem pedir ajuda para seres fantásticos ou animaizinhos humanizados. Esses animais representam tendências humanas arquetípicas. Não representam os verdadeiros instintos dos animais, mas também nossos instintos animais, isto é, se o tigre representa na história a agressividade ou a avidez não é aquela característica realmente do tigre, mas a nossa própria agressividade ou avidez. Os animais são portadores da projeção de fatores psíquicos humanos.
É cumprindo toda essa trajetória, a chamada “jornada do herói” que nossas crianças podem, de maneira simbólica, atingir a maturidade representada pelo encontro do “diamante perdido” ou pelo “resgate do parceiro” que estava em terras distantes.
Com as personagens dos contos, crianças, adolescentes e adultos provarão seu verdadeiro valor de herói ou heroína, superando seus medos, inseguranças e dificuldades.
As fadas geralmente representam o lado positivo do arquétipo da grande mãe, bem como as bruxas o seu aspecto mais terrível, porém, tão fundamental para impulsionar nosso crescimento – imaginem as histórias sem bruxas ou gigantes...nada aconteceria!
Quer saber mais sobre o assunto?
Por Marie-Louise Von Franz (Editora Paulus, 248 páginas e 278 páginas), Marie-Louise Von Franz é autora dos livros A interpretação dos contos de fadas e A individuação nos contos de fadas. A primeira obra é um compêndio para quem deseja compreender mais profundamente a riqueza simbólica dos contos de fadas. Nos primeiros capítulos, a autora traça uma teoria psicológica dos contos, circunscrevendo as origens, estruturação e suas formas de interpretação. Em seguida, analisa alguns contos de fadas, ampliando seus simbolismos com outros contos, mitos, ritos etc. Já na segunda obra, a autora escolhe alguns contos interessantes que tratam da individuação como O papagaio Branco e Os Banhos de Bâdgerd. Com sua linguagem clara, instigante e bem humorada, ao mesmo tempo em que nos ensina a leitura interpretativa dos contos de fadas, nos encaminha para cantos da nossa própria alma e revela o seu encanto com a vida.
Mães excessivamente boas tendem a paralisar seus filhos impedindo seu desenvolvimento e autonomia. Quantas mamães chegam a impedir que seus filhos saiam de casa sozinhos, mesmo quando eles já têm idade e maturidade para isso. Para elas seus filhos nunca estarão suficientemente crescidos. É por essa razão que em muitos contos as mães boazinhas demais morrem no início deixando seus filhos e filhas sozinhos no mundo, ou melhor, nas mãos de uma madrasta terrível. Nesse momento do conto pode ser despertado nas crianças um pensar sobre “como me afastar de mamãe e descobrir minhas verdadeiras forças”, “quais são essas forças em mim?”, “é possível eu me virar sozinho?”. Lógico que nem sempre será tão consciente para elas esse pensar.
Os sentimentos não podem ser atacados pelo intelecto porque não têm base intelectual; os contos nos ajudam a reviver sentimentos escondidos ou desconhecidos
As mamães ao ouvirem o conto, quando tocadas por essa imagem, talvez entrem em contato com: “posso deixar morrer o meu lado superprotetor saindo um pouco de cena e permitindo que meus filhos enfrentem o mundo com seus próprios recursos?” ou “como é esse aspecto em mim?” ou ainda “existe um lado madrasta dentro de mim?”.
É assim que os contos e mitos nos ajudam a organizar nossos pensamentos e direcionar nossas ações de forma coerente e mais sábia, por nos permitir refletir sobre aspectos tão presentes em todos nós.
Os heróis dos contos representam os esforços que fazemos para cuidar do nosso crescimento e aprender a dialogar com os problemas que surgem o tempo todo. A figura do herói é o meio simbólico por meio do qual o ego emerge; para isso ele tem que olhar de frente para a sombra; assim, o herói, mesmo tendo que enfrentar um caminho de pedras, estará suficientemente preparado para vencer o dragão.
Para encerrar, escolhi um conto de Apuleio: Amor e Psiquê – interpretado por Erich Neumann que fez uma análise com enfoque junguiano, reconhecendo no seu simbolismo O Desenvolvimento da Alma da Mulher, o feminino no seu mais amplo sentido.
Amor e psique
Conta a lenda que a extraordinária beleza de Psiquê despertou o ciúme de Afrodite que encarregou seu filho Eros de atingir a linda jovem com suas flechas, fazendo-a amar o homem mais horrendo sobre a face da Terra. Amor ou Eros, de tão perturbado pela beleza de Psiquê, feriu- se com sua própria flecha e se apaixonou por ela. O deus ordenou então que o vento Zéfiro a transportasse para seu palácio e passou a relacionar-se com ela. Havia, porém, uma condição: Psiquê jamais poderia ver seu rosto ou saber seu nome, ou o perderia para sempre.
A jovem aceitou as condições e viveu feliz com seu amado até que suas irmãs, invejosas do romance, convenceram- na de que o amante misterioso era, na verdade, um monstro disfarçado que, cedo ou tarde, a mataria. Psiquê decidiu matá-lo; pegou um punhal para desferir o golpe, mas antes quis ver pela primeira vez a face do parceiro. Iluminou- a com uma lamparina, e só então descobriu que o objeto de seu desejo era o belo deus do amor. Embevecida, deixou cair no rosto dele um pouco de óleo quente da lâmpada. Eros despertou com fortes dores e, sentido-se traído em sua confiança, voou para longe, terminando o relacionamento.
Desesperada, Psiquê tentou o suicídio, mas foi salva pelo deus Pã. Segue em busca do amado até finalmente ter que recorrer à própria deusa do amor, a vingativa Afrodite, mãe de Eros, que prometeu facilitar a reaproximação com seu filho desde que a linda mortal cumprisse quatro tarefas praticamente impossíveis. Com a ajuda de seres mágicos Psiquê superou todas as provas.
A primeira tarefa era separar de um gigantesco monte de cereais as sementes de grão de bico, milho, etc., por espécie e durante uma única noite. Psiquê é ajudada pelas formigas, criaturas da terra.
A segunda tarefa era trazer para Afrodite flocos de lã de ouro que cobriam o dorso de carneiros selvagens ferozes. Nessa tarefa quem a ajuda é um caniço verde, que lhe murmura instruções.
A terceira tarefa é trazer uma jarra de cristal cheia da água da fonte que alimenta os rios Estige e o Cocito, ambos infernais; além disso, a montanha que teria que subir era guardada por serpentes terríveis. A ajuda nesse momento veio da Águia de Zeus.
Na quarta tarefa, Psiquê tem que descer ao mundo dos mortos e pegar a caixa com a beleza imortal de Perséfone, rainha dos infernos, para entregá-la a Afrodite; essa tarefa Psiquê cumpre sozinha apenas recebendo a orientação da Torre.
Ao voltar do mundo dos mortos ela não resistiu ao desejo de obter um pouco da beleza imortal e, curiosa, abriu a caixa. No mesmo instante caiu num sono mortal. Foi assim, desfalecida, que Eros a encontrou. O deus conseguiu despertá-la, conduziu-a ao Olimpo e suplicou a Zeus permissão para desposá-la. Comovido, o deus dos deuses autorizou a união, promoveu a reconciliação entre Afrodite e a jovem e ainda concedeu a Psiquê a imortalidade. Eros e sua amada viveram felizes para sempre e tiveram uma filha, Volúpia.
Nesse conto, encontramos alguns dos principais temas ou motivos presentes nos contos de fada mais conhecidos como Cinderela, Branca de Neve, Vasalisa, A Bela Adormecida: a disputa pelo poder feminino, a beleza invejada, a beleza como símbolo do poder, a madrasta, bruxa ou, como no mito, a deusa Afrodite, sogra terrível, as irmãs invejosas, as tarefas a cumprir e a curiosidade feminina.
A abordagem junguiana focaliza a trajetória da humanização do amor. Psiquê adquire consciência de suas forças enfrentando seus desafios com êxito. Ela representa o arquétipo feminino ou ânima, enquanto Eros ou Amor aparece como a representação do animus, a face masculina da mulher. Juntos, representam a integração harmoniosa dos opostos, que leva o ser humano a uma vivência amadurecida.
INTERPRETAÇÃO
Psiquê é castigada porque os homens lhe tributaram honras divinas e a consagraram a nova Afrodite por causa de sua beleza. Psiquê aceita seu castigo porque acredita ser a beleza a grande desgraça da sua vida.
Ao ler ou ouvir Cinderela, a garota experimenta ser a personagem principal e, como diz Jung, pode restabelecer conexão consciente e inconsciente
Por muito tempo a vida no castelo é o Paraíso; porém o preço é alto, o amor tem que ser vivido no escuro. Isso quer dizer de forma inconsciente, na verdade como são vividos tantos relacionamentos ainda hoje.
Os contos ajudam a tirar a carga emocional presente nas pessoas; eles deixam de olhar seus problemas de forma tão individual
A felicidade noturna não pode durar para sempre. As serpentes desse Paraíso – as irmãs – são o lado sombra de Psiquê e quem a leva a tomar consciência da sua situação. São elas que marcam todo o desenvolvimento para que nossa heroína se torne uma Psiquê feminina. São elas que levam a ação.
Assim, Psiquê entra em conflito; ao mesmo tempo ama e odeia o marido. Agora não pode mais ficar no mesmo estágio de inconsciência. O lado sombra faz com que agora veja seu casamento como a “prisão bem-aventurada”, mas sente falta de contato humano.
Pela primeira vez emerge do seu inconsciente a mulher. O amor como expressão da totalidade do feminino não acontece no escuro como um processo inconsciente, um encontro legítimo com o outro envolve a consciência.
Afrodite, a grande mãe, representa o amor material, deusa da atração mística entre os opostos. Psiquê traz o princípio do amor que associa conhecimento, crescimento de consciência e desenvolvimento psíquico. Surge com ela um novo princípio do feminino com o masculino que se processa com base na individuação.
PSIQUÊ E AS TAREFAS
■ 1ª tarefa: Usando a percepção sensorial - Sensação
Separar as sementes é usar nosso aspecto formiguinha, criaturas ágeis e mãe de todos. Elas são o contato com a terra, trabalho interno, incansável, colocando ordem onde há desordem; é o elemento ordenador em nós, símbolo dos instintos. O nosso lado formiga é o aspecto que nos permite selecionar, avaliar, diferenciar e assim encontrar o próprio rumo no meio da confusão de sentimentos e emoções.
Tal como em Pinóquio, o tema em todos os contos é o ser em busca de si mesmo e do sentido de sua vida
Separar é perguntar-se o que realmente procuramos e desejamos, é o exercício de discriminar os desejos, os sentidos, as nossas necessidades, o bem do mal, o prazer do desprazer, masculino do feminino, as diferentes funções - pensamento, sentimento, intuição e percepção.
É necessário diferenciar para selecionar, excluir, incluir, priorizar e reorganizar todos esses conteúdos. É o momento de seletividade e para isso precisamos de uma boa função perceptiva sensorial. A mistura no monte é o desorganizado, o caótico, a confusão, mas também é fecunda de talentos e possibilidades que estão disponíveis no feminino que só depois da organização é que se tornarão úteis.
Graças a Afrodite e às irmãs, forças malignas, mas muito bem-vindas, já que geram o crescimento, é que Psiquê sai da passividade para a ação.
■ 2ª tarefa – Usando o Sentimento
Retirar a lã de ouro, resgatar a sua força, tem que ser ao anoitecer, sem confronto destrutivo com os carneiros selvagens. Trabalho de espera, de paciência, de discriminar a hora certa, cuidar dos sentimentos de ansiedade, impulsividade, impotência, acalmar a própria angústia e impulso agressivo, buscar a flexibilidade do caniço das águas para se mover levemente a fim de atingir o seu objetivo.
Simbolicamente, Psiquê consegue despotencializar a carga masculina negativa representada pelos carneiros selvagens que destroem, incorporando apenas o necessário desse masculino para se fortalecer e não ser possuída por ele. Aprende a lidar com os sentimentos, não com a passividade, mas com a atenção consciente para não ser destruída pelo feroz.
■ 3ª tarefa – Usando a Intuição
Trazer o jarro de cristal contendo água da fonte que alimenta dois rios infernais não é tarefa para um humano; assim, a ajuda vem do alto, é a águia do próprio deus Zeus quem irá socorrê-la.
A água representa a nossa energia vital que se encontra no inconsciente e é eternamente fluida; se tentarmos contê-la de uma forma qualquer certamente será uma viagem sem volta. Por isso, a ajuda vem do alto. Simbolicamente é como se, utilizando seu aspecto águia, Psiquê estivesse mergulhada dentro de si mesma, indo em busca dessa energia vital tão necessária, energia essa que está dentro de cada um de nós.
Essa energia nos desperta para além do concreto, pois subir a montanha com a águia de Zeus é nos permitir enxergar outras possibilidades até então não vistas; mas é preciso não perder o foco e, principalmente, permanecer atentos aos perigos da jornada.
A águia é nosso lado intuitivo que, se bem usado, leva-nos a mergulhar no inconsciente e voltar de lá com nosso vaso de cristal cheio de orientações e sabedoria.
■ 4ª tarefa – Usando o pensamento
Agora Psiquê não precisa mais da ajuda de forças do seu inconsciente. Basta a orientação objetiva da Torre, representante simbólica da cultura humana.
Descer aos infernos e retornar com um pouco da beleza eterna não é tarefa fácil, principalmente porque, para cumpri-la, são necessários direcionamento, assertividade, estabilidade e firmeza, um ego centrado, forte e concentrado em seu objetivo para não ficar perdido no submundo. Sem dúvida, qualidades muito masculinas que precisam estar bem integradas ao feminino para que Psiquê possa descer aos infernos e ao voltar à Terra ver as coisas num nível superior.
É justamente o que acontece no nosso conto, mas a pergunta que fica é:
Ao voltar o fato de Psiquê ter aberto a caixinha não seria um indicador de regressão e fracasso? A resposta é não. Apenas significa que, para derrotar o dragão, é preciso primeiro aceitá-lo. Foi o que Psiquê fez: ao usar o creme da beleza eterna, passa a aceitar o que antes considerava uma desgraça – sua própria beleza! Passa a aceitar o que realmente é!
Os heróis dos contos representam os esforços que fazemos para cuidar do nosso crescimento e aprender a dialogar com os problemas que surgem o tempo todo
Simbolicamente, o morrer de Psiquê ao abrir a caixa significa a morte de uma Psiquê ingênua, passiva, dispersa, imatura para deixar nascer outra muito mais consciente de suas forças e do seu feminino, finalmente capaz de conduzir sua própria vida.
É pelo seu ato que ocorre a grande transformação, tanto dela como do seu amado Eros. Até mesmo a grande mãe Afrodite, ou melhor, a grande sogra, é obrigada a renderse diante da vitória da pequena Psiquê.
E é assim que os contos continuam a nos encantar e certamente permanecerão por toda a eternidade.
REFERÊNCIAS :
BONAVENTURE, J. O que Conta um Conto. Ed. Paulus, 1992.
_____________. Variações do tema Mulher. Ed. Paulus, 2000.
VON FRANZ, M. L. A Interpretação dos contos de Fada. Ed. Paulus.
_____________. Individuação nos contos de Fada. Ed. Paulus.
JUNG, C.G. O homem e seus símbolos. Ed. Nova Fronteira, 1964.
________. Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Ed. Vozes, 2000.
HILLMAN, J.; VON FRANZ, M.L. A tipologia Junguiana. Ed Cultrix, 1971.
PINA, V. M. Textos retirados do curso A Interpretação dos contos e Mitos, uma visão junguiana. Ministrado no Instituto Sedes Sapientiae
Vera Márcia Gonçalves da Silva Pina
é psicopedagoga clínica e institucional, mestranda em
Distúrbios do Desenvolvimento na Universidade Mackenzie e
orientadora familiar. Docente dos cursos de Pós-graduação
em Psicopedagogia do Instituto Sedes Sapientiae e UniABC;
coordenadora do Departamento de Pós-graduação em
Psicopedagogia e do Instituto Sedes Sapientiae; coordenadora
e docente do curso A visão Junguiana dos Contos de Fada sua
Linguagem Simbólica e o Arquétipo do Herói; coordenadora de
grupos de estudo sobre o tema Contos e Mitos.
Revista Psique
Adorei o texto sou estudante de pedagogia e já penso em fazer pós em psicologia. Tenho pesquisado muito, e este foi um dos melhores artigo que já li sobre o tema, parabéns!!
ResponderExcluirEliana baliberdin