terça-feira, 28 de junho de 2022

Socioeducação e direito à fabulação: Dos sentidos sociais do rap




Socio-Education and the Right to Fabulation: The Social Senses of Rap

Patrícia da Silva SantosNelissa Peralta

RESUMO

Este artigo apresenta a experiência de um projeto de extensão promovido junto a adolescentes privados de liberdade. O projeto consistiu na promoção de oficinas de rap como auxílio às medidas socioeducativas. A partir da análise das letras produzidas durante essas oficinas, buscamos compreender o seu teor social, mobilizando estratégias da sociologia da literatura e ressaltando a relação entre desigualdade social e cerceamento do imaginário, o nexo entre instituições totais e mutilação do eu e a contribuição da fabulação por meio do rap para o restabelecimento do espaço simbólico necessário para restituir o direito ao imaginário.

Palavras-chave:
socioeducação; direito à fabulação; desigualdade social; rap; imaginário

ABSTRACT

Socio-Education and the Right to Fabulation: The Social Senses of Rap presents an analysis of the experiences of an outreach project developed with adolescents sentenced by the state with deprivation of liberty. The project carried out pedagogical workshops using rap to provide support to correctional measures. Mobilizing strategies from the sociology of literature, we analyzed lyrics produced by adolescents during these workshops to understand their social content. Results highlight the relationship between social inequality and the restriction of imaginary, the nexus between total institutions and the mutilation of the self, the contribution of fabulation through rap to the reestablishment of the symbolic space necessary to restore the right to the imaginary.

Keywords:
correctional measures; right to fabulation; social inequality; rap; imagery

Introdução



Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso:



faz de conta que estou sonhando.



- Carolina Maria de Jesus

O rap tem sido apontado como uma manifestação cultural socialmente territorializada, enraizada no imaginário das periferias urbanas (GIMENO, 2009; SANTOS, 2017). De uma perspectiva geral, sua principal função como fenômeno estético está em internalizar e expor, em um código específico, mensagens que incorporam o elemento externo ou social inerente a determinados grupos sociais - nos termos da análise estética de Antonio Candido (2009). Essas duas características - vinculação territorial à periferia e função estética - tornam o rap, especialmente no caso da juventude periférica, um mecanismo poderoso de restituição de um dos direitos mais fundamentais para a garantia da “integridade espiritual” dos seres humanos, qual seja: o direito à fabulação (CANDIDO, 2004a). Essas prerrogativas básicas guiaram a atividade de extensão desenvolvida em uma unidade de atendimento socioeducativo no estado do Pará para adolescentes do sexo masculino e que serve de base empírica para o presente artigo. Tomando como referencial essa experiência, este texto apresenta uma discussão acerca de categorias como criminalização da juventude periférica, socioeducação e direito à fabulação.

O projeto de extensão1 em pauta nasceu com o objetivo de estabelecer um diálogo entre a universidade e a rede de socioatendimento e promover uma reflexão sobre as condições sociais que produzem atos desviantes e a respectiva criminalização social entre os grupos. Como ferramentas de diálogo entre os grupos público-alvo do projeto, realizamos oficinas de hip-hop com os adolescentes em conflito com a lei. O projeto teve início em março de 2018, envolvendo duas professoras e dois discentes do curso de ciências sociais da Universidade Federal do Pará (UFPA) e dois artistas da cena de hip-hop. Esses artistas são rappers que moram na periferia de Belém e têm histórico de períodos vividos em privação de liberdade.

Esse último ponto é relevante, pois é justamente essa experiência anterior dos rappers que garante uma empatia maior em relação aos adolescentes cumprindo medida socioeducativa de restrição da liberdade. Bourdieu (2011) argumenta que a compreensão implica a capacidade de um pesquisador pensar que se estivesse no lugar do sujeito que é seu objeto de estudo, “ele seria e pensaria, sem dúvida, como ele” (p. 713). Transpondo essa reflexão para a posição dos rappers em relação aos adolescentes, é possível notar que as suas trajetórias anteriores os dotam dessa capacidade.
Projeto de extensão ‘Imaginação sociológica junto a adolescentes privados de liberdade’

O projeto de extensão2 em questão foi pautado na visão de Paulo Freire (2013), que trata a extensão como um processo de “comunicação”, não de “transmissão”. O projeto baseia-se na premissa de que a universidade pública precisa estabelecer pontes e redes de diálogo para contribuir para o debate sobre as medidas socioeducativas, cumprindo seu papel de suscitar reflexão acadêmica sobre as políticas sociais. Escolhemos o título “Imaginação sociológica junto a adolescentes privados de liberdade” a partir do trabalho de Charles Wright Mills (1980), que define imaginação sociológica como



uma qualidade de espírito que ajuda a usar a informação e a desenvolver a razão, a fim de perceber, com lucidez, o que está ocorrendo no mundo e o que pode estar acontecendo dentro deles mesmo (...) cujo fruto é a ideia de que o indivíduo só pode compreender sua própria experiência e avaliar seu próprio destino localizando-se dentro de seu período; só pode conhecer suas possibilidades na vida tomando-se cônscio das possibilidades de todas as pessoas, nas mesmas circunstâncias em que ele (Ibid., pp. 11-12).

Munidas dessa expectativa de que “a imaginação sociológica nos permite compreender a história e a biografia e as relações entre ambas dentro da sociedade” (Ibid., p. 12) e de que, por meio dela, os socioeducandos poderiam perceber o que está acontecendo no mundo e compreender o que está acontecendo com eles, usamos o hip-hop como dispositivo pedagógico para desenvolvê-la.

Pautadas nessas premissas, iniciamos o projeto estabelecendo um diálogo com o Juizado da Infância e Juventude do município de Ananindeua. Após inúmeras visitas técnicas, conseguimos a permissão para entrar em uma unidade de atendimento socioeducativo daquele município, em princípio para observar e conhecer melhor a realidade da socioeducação. Essa primeira experiência de aproximação demonstrou que à época, em 2018, o sistema socioeducativo oficialmente passava por uma transformação de paradigma, movendo-se de um sistema punitivo para uma visão da medida socioeducativa como uma ação pedagógica.

Entretanto, essa transformação depende muito das práticas dos profissionais da rede de socioatendimento. Como nos relatou uma interlocutora técnica da rede: “Ainda é muito difícil garantir os direitos de quem viola direitos”. Para a técnica, os adolescentes são estigmatizados pela sociedade - que “não consegue olhar para além do ato” e clama por mais medidas punitivas, mas também prefere se distanciar das unidades de socioatendimento, optando por “afastar os indesejáveis” para fora do seu campo de visão. Os próprios servidores se sentem estigmatizados pela sociedade por trabalharem com adolescentes considerados indesejáveis.

Agentes da rede, principalmente aqueles cuja formação não está voltada para o entendimento das estruturas sociais, também estigmatizam os adolescentes em conflito com a lei. Um entrave ainda presente, mencionado por muitos servidores, é o fato de o ambiente do socioatendimento ainda ser embrutecido e a medida ainda ser vista como punitiva por muitos funcionários da rede, seja no Ministério Público, nos juizados ou na rede de execução das medidas. Isso pode ser resultado da estrita culpabilização do indivíduo pelo ato, enxergando o ato infracional como uma falha moral que deve ser punida e tratada por meio da internação.

Além disso, ao concentrar o atendimento no indivíduo, e não nas condições sociais, o Estado acaba por diminuir sua responsabilidade de transformar essas condições, que afetam a vida do adolescente, e de investir em suas potencialidades. Ou seja, romper com a cultura do cárcere enraizada na sociedade e em grande parte dos operadores de direito, conforme prevê o Plano Decenal de Atendimento Socioeducativo do Estado do Pará (GOVERNO DO ESTADO DO PARÁ e FASEPA, 2013), ainda é uma meta a ser atingida. Mas existem avanços na rede, como a presença de uma escola dentro da unidade e de um centro de cultura e lazer anexo. Os adolescentes que não podem deixar as dependências da unidade (por medida protetiva à sua própria segurança) podem realizar atividades culturais, de esporte e lazer.

Após seis meses de tratativas com as organizações da rede de socioatendimento, demos início à execução do projeto. O planejamento das atividades contou com a participação de dois bolsistas de extensão, graduandos do curso de ciências sociais da UFPA. Um deles atuava no movimento cultural hip-hop promovendo batalhas de rap no campus do Guamá da universidade. A ocupação cultural Batalha da Beira era promovida por jovens universitários e artistas locais, com a participação de MCs3 da comunidade belenense no espaço comum às margens do rio Guamá. A experiência derivada dessa ocupação cultural e os estudos que sugerem que o hip-hop pode ser uma ferramenta poderosa para envolver os jovens em processos educativos, para compreender as realidades dos educandos e desenvolver vínculos (TOMASELLO, 2006; KIM e PULIDO, 2015), nos incentivaram a usar o hip-hop como ferramenta educativa. Por meio do envolvimento desses artistas ligados à cena hip-hop de Belém, realizamos primeiramente as oficinas de grafite e, por fim, nos concentramos nas oficinas de rap.

A cultura hip-hop tem sido construída e usada por grupos oprimidos e marginalizados para resistir e desafiar as ideologias, práticas e estruturas de opressão e subordinação (TOMASELLO, 2006, p. 59). Esses grupos usam os elementos do hip-hop para visibilizar e denunciar a desigualdade social e as barreiras econômicas, sociais e políticas que impedem acesso a recursos para o desenvolvimento social de suas comunidades. O hip-hop consiste em modos criativos de compartilhamento dessas visões de mundo e de sociedade. Sua cultura reúne os quatro elementos principais dessas expressões artísticas: break, grafite, dj-ing e rap (LAND e STOVALL, 2009).

O rap chega ao Brasil no final dos anos 1980, com seus principais expoentes denunciando a precariedade da vida nas periferias, a violência policial e a criminalidade (VIEIRA, HIPOLITO e VIEIRA, 2020). Segundo Tomasello (2006), com o rap, jovens narram suas experiências de vida e o cotidiano de suas comunidades, provocando processo de empatia, identificação e pertencimento entre aqueles que compartilham essa mesma realidade: negação de direitos, exclusão social e econômica, preconceito racial. Pautando-nos nessa experiência do autor, que indica que no caso de jovens em contexto de exclusão e marginalidade faz-se necessário utilizar sua linguagem para estabelecer diálogo e acesso a seu universo particular, decidimos realizar as oficinas de hip-hop com os adolescentes privados de liberdade.

O formato de oficina foi escolhido com base no entendimento de que ela é uma prática de intervenção centrada em uma questão que o grupo se propõe a elaborar, em um determinado contexto social. Busca-se nesse tipo de intervenção três níveis de experiência: pensar, sentir e agir (AFONSO, 2006). Essa estratégia didática nos permitiu aprender com o encontro com os outros. Os objetivos das oficinas eram promover uma reflexão coletiva sobre as trajetórias dos sujeitos e novas formas de expressão do “eu” (PERALTA, 2019) por meio do rap e desenvolver práticas de criação e expressão artística. As oficinas tornaram-se um dispositivo pedagógico para incentivar o protagonismo da juventude em privação de liberdade, atuar na autoestima e autonomia dos adolescentes e promover ações de formação política e cultural para a juventude por meio da apropriação de elementos da cultura hip-hop.

As oficinas costumam durar entre três e quatro horas e, em média, a direção da unidade de socioeducação permite a participação de quatro ou cinco adolescentes. Na prática, elas se iniciam com uma roda de conversa sobre o movimento hip-hop. Para quebra do gelo e aproximação inicial dos socioeducandos, os artistas apresentam suas composições originais, bem como videoclipes de seus trabalhos musicais. Muitas vezes, há também apresentação de documentários, entrevistas e exibição de videoclipes de rappers famosos nacionalmente, como Djonga, Mano Brown, Criolo e Eduardo, que se destacam por tratar de temas importantes como desigualdade, relações raciais e violência. Mas esses rappers também são representantes de “um tipo de discurso recortado por referências da cultura negra, cultura africana e da leitura intelectualizada do processo diaspórico que confronta a memória oficial e hegemônica sobre relações raciais” (VIEIRA, HIPOLITO e VIEIRA, 2020, p. 117).

Em seguida, dá-se a escolha de um tema gerador para a criação da rima. Em alguns casos, a escolha do tema é gerada por acontecimentos que impactam o imaginário dos socioeducandos, como foi o caso de uma chacina ocorrida no bairro do Guamá, em Belém, em maio de 2019. Outros temas geradores escolhidos foram: a juventude, profissões, futuro, família e racismo. Em seguida, os mediadores se dividem entre os adolescentes, formando duplas para ajudá-los na elaboração dos versos. Depois de todos produzirem seus versos, eles são integrados em uma só letra de rap. Então, os artistas ensaiam as técnicas de rima com os beats (as batidas), musicalizando os raps selecionados. Depois de algumas práticas, o grupo todo canta o rap em conjunto e essa apresentação é gravada em vídeo e depois reproduzida na televisão.

A gravação do rap em vídeo é sempre o ponto alto da oficina, quando os socioeducandos performam para a câmera e expressam sua mensagem por meio dos movimentos do corpo, por vezes tentando imitar as posturas e gestualidade dos artistas. Ao assistirem a si próprios nas telas, os adolescentes mostram-se contentes e até surpresos. Recebem elogios e dicas dos artistas e, eventualmente, dos próprios monitores, que, ao buscá-los para retornarem aos quartos-cela, também assistem ao videoclipe dos socioeducandos. Consideramos esse momento importante porque, como discutiremos a seguir, provoca uma forma de resistir ao processo de “mortificação do eu” (GOFFMAN, 2015, p. 24), vislumbrando outra representação de si, diferente daquela pré-construída e associada a eles na instituição.

Neste texto, reproduzimos trechos de algumas das letras desenvolvidas nas oficinas e as analisamos a partir de uma metodologia inerente à sociologia da literatura, buscando compreender o seu teor social com base em uma interpretação formal (CANDIDO, 2009; ADORNO, 2003) e seu potencial como forma de exercício do direito à fabulação (CANDIDO, 2004a). A argumentação recorrerá aos seguintes aspectos: a relação entre desigualdade social e cerceamento do imaginário; a leitura das unidades de socioatendimento como instituições totais e suas consequências para os adolescentes; e a contribuição que a fabulação por meio do rap pode dar para o restabelecimento do “equilíbrio social” (Ibid., p. 175)4. Nesse sentido, as letras produzidas durante as oficinas serão interpretadas como manifestações artísticas simbólicas portadoras de notícias sobre o social. Não se trata exatamente de uma análise do discurso, pois o filtro estético do rap também será considerado na análise. Antes, buscaremos compreender como a fabulação praticada nas oficinas reduz estruturalmente (Idem, 2004b) as experiências dos adolescentes, conformando-as em narrativas simbólicas, significativas também do ponto de vista sociológico.

Pretendemos expor alguns resultados dessa experiência sob a perspectiva de que as medidas socioeducativas só poderão cumprir seu objetivo se incorporarem uma justiça capaz de restituir o direito ao imaginário, dado que é nesse âmbito que é possível conceber a possibilidade de uma trajetória distante da criminalidade - ainda que, obviamente, essa justiça intangível só seja factível se for complementar a tantas outras justiças sociais de cunho mais material.
Desigualdade social e prisão do imaginário

A desigualdade social tem aspectos muito evidentes de injustiças e criação de assimetrias sociais: falta de bens materiais, de condições adequadas de moradia, transporte, saneamento, educação, saúde, cultura, segurança pública e outros. No caso brasileiro, essas desigualdades de cunho material estão atravessadas fatidicamente pelas desigualdades raciais5. De todo modo, é preciso pensar a desigualdade também sob perspectivas menos concretas, materiais e estruturais. Há um impacto um tanto intangível no âmbito das assimetrias sociais, que consiste em sofrimentos subjetivos menos evidenciáveis quantitativamente. Vergonha, solidão, desamor, estigmas, rotulações negativas e humilhação são expressões do sofrimento social (CARRETEIRO, 2003). Trata-se de sentimentos que se intensificam quando os mecanismos psíquicos para os elaborar estão também parcialmente cerceados. Grosso modo, esses mecanismos passam necessariamente pela simbolização, conforme concebido tanto por teóricos ligados à psicanálise como por algumas vertentes da teoria social (FREUD, 1914; ADORNO, 1995) - daí a importância do imaginário.

Quando analisamos as trajetórias de adolescentes privados de liberdade, fica evidente que as inúmeras formas de exclusão social às quais estão sujeitos têm uma consequência nem sempre ressaltada: eles não apenas estão sujeitos ao sofrimento social intensificado pelas estruturas sociais desiguais, como ainda são afetados por uma prisão nada concreta, mas extremamente limitadora: a prisão do imaginário.

Entendemos por imaginário o conjunto de memórias, representações e referenciais simbólicos que conformam as identidades subjetivas, que configuram uma “imagem de si, para si e para os outros” (POLLAK, 1992, p. 5). Quando as memórias repousam em experiências de privação, violência, preconceito e déficit de afetividade, o arsenal simbólico ou o imaginário de que os sujeitos dispõem para lidar com o mundo e outros indivíduos também é afetado, constituindo o que Goffman (2017) chama de “identidade deteriorada”.

A prisão do imaginário dos adolescentes privados de liberdade tem múltiplas grades, a começar pelo fato de muitos não saberem ler e escrever ou terem muita dificuldade para fazê-lo. A ausência ou precariedade da educação formal tem consequências muito deletérias em uma sociedade em que o imaginário está amplamente repousado na palavra escrita e no discurso linguisticamente bem formulado. O histórico de exclusão escolar precoce é elemento extremamente cerceador e bastante comum entre as narrativas dos sujeitos desta pesquisa. Entre os socioeducandos com quem trabalhamos, todos chegaram à unidade sem o ensino fundamental completo e, aos 17 anos, uma parte nem era alfabetizada. Em algumas narrativas, a escola ocupa o lugar da violência, do estigma e da humilhação. Em linguagem simples e direta, um adolescente formulou o caráter classista da educação brasileira no trecho de uma letra de rap concebido durante as oficinas: “Muita educação/Só pra família de patrão”.

Além disso, os problemas apontados em relação à formação subjetiva dos adolescentes ao longo de suas histórias também se apresentam quando eles se projetam no futuro. Por isso, o imaginário relativo ao projeto de vida também é bastante excludente. Conforme argumenta Gilberto Velho (2003), os indivíduos valem-se de memórias passadas para conceber projetos futuros, de acordo com o campo de possibilidades disponível. Assim, ainda conforme o autor, o potencial de metamorfose, ou seja, as possibilidades de alteração de projetos individuais ao longo da vida, depende não só de aspectos individuais, mas de uma negociação com a realidade.

No caso dos adolescentes privados de liberdade, essas possibilidades estão prejudicadas, tanto por conta das difíceis experiências subjetivas passadas, como em razão de contingências mais objetivas. Muitas vezes, a única alternativa é a formação do que Alba Zaluar (2014, p. 33) chamou de “etos guerreiro”, ou seja, uma masculinidade baseada na violência, incluindo a criminalidade como principal meio para obtenção de bens materiais e mesmo de certo prestígio no âmbito dos grupos de pertencimento. O desvio que levou tais adolescentes à prisão deve ser compreendido no âmbito desse cerceamento de alternativas.Mulher e filho em casa O que é que o cara pensa? Dinheiro fácil, favelado liso É armadilha do sistema Só Deus sabe quanto suor Derramei nessa estrada Quantas vezes eu não dormi Estudando à noite (...) É estranho lembrar que um Tempo atrás minha vida era Estilo homem na estrada Diziam que estudar Era pra rico E que meu sonho de doutor Ia dar em nada6

Resta impedida a possibilidade de ser de outra forma, de projetar o futuro, de imaginar outra existência, sonhar e, não menos importante, elaborar os sofrimentos e os compreender a partir dos seus determinantes sociais. O estigma decorrente do desvio imprime nos adolescentes uma marcação que está, como sugere Goffman (2017), entre o atributo e o estereótipo, e que tem o poder de reduzir “suas chances de vida” (p. 15). Do ponto de vista do que chamamos aqui de imaginário, em alguma medida, resta constrangido aquele processo de humanização que



confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor (CANDIDO, 2004a, p. 180).

Para a realização desse processo de humanização e dos mecanismos de compreensão de seus aspectos sociais, o imaginário também é fundamental, pois é ele que oferece as ferramentas para estabelecer as conexões entre a biografia individual e a situação estrutural de desigualdades da sociedade (WRIGHT MILLS, 1980). E como bem formularam os adolescentes, narrar é parte indissociável de qualquer “recomeço”:Nem que seja só por hoje Tô narrando o recomeço E não o meu final Quero os jovens se formando Cansei de ver corpos no canal Você acha que é livre Mas o sistema te prende Não dá nem pra desconfiar Aí você se fode Tenta arrumar emprego E de novo, preso Morando no gueto Refém do medo, sem oportunidade Vendo seu filho roubar E o do patrão na universidade7
Unidades de atendimento socioeducativo como instituições totais

O encarceramento tem sido a forma mais adotada pelo Estado para lidar com a pobreza e a miséria, como constata Wacquant (2011). O caso específico do Pará não é diferente. Um estudo (SOUZA, 2019) mostrou um aumento de 56% nas medidas de internação de adolescentes em conflito com a lei entre 2013 e 2017 no estado, com um crescimento médio anual de 12%. A lógica repressiva na aplicação demasiada da internação como medida socioeducativa pode estar associada a um ponto de vista que assenta sobre o indivíduo adolescente a inteira culpabilidade por seus atos infracionais, mas não minimiza nem atribui responsabilidade ao tipo de socialização ou à vulnerabilidade que produz as condições para o delito.

A forma como o Estado se apresenta nas periferias da cidade aparece muito bem expressa no trecho formulado por um adolescente durante as oficinas:Se eu não mudar Só haverá Túmulo, sangue, sirene e perícia.8

É em todo seu potencial de violência que o Estado costuma ser reconhecido pelos adolescentes, portanto, em sua faceta de necropolítica (MBEMBE, 2016). As imagens evocadas no rap (túmulo, sangue, sirene, perícia) expressam, por meio de uma simplicidade lacerante, a condição de existências sujeitas a um estado permanente de guerra, à ocorrência iminente da morte.



Viver sob a ocupação contemporânea é experimentar uma condição permanente de “viver na dor”: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites do anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras; crianças cegadas por balas de borracha; pais humilhados e espancados na frente de suas famílias (Ibid., p. 146).

De qualquer forma, a letra de rap mencionada condiciona a possibilidade de evitar o desfecho trágico de sua existência à mudança ou à ressocialização durante a medida socioeducativa.Sei que mudar Só depende de mim Apesar de quererem meu fim9

A oportunidade de mudança de conduta oferecida pelas unidades de socioeducação, porém, é limitada, pois elas consistem em instituições totais que, muitas vezes, se assemelham bastante às instituições prisionais para adultos, funcionando mais como estratégia punitiva que como medida protetiva (SCISLESKI, 2015).

Somado ao imaginário cerceado que faz parte da vida pregressa dos adolescentes condenados a cumprir medidas socioeducativa, as unidades de socioeducação, como instituições totais, não somente aprisionam o corpo desses sujeitos, mas também contribuem para o trabalho de “mutilação do eu” (GOFFMAN, 2015, p. 27). Goffman elabora esse aspecto de maneira bastante detida e pertinente para o problema em questão. Instituições totais são lugares, a exemplo de prisões, conventos e manicômios, “onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” (Ibid., p. 11). Trata-se de “estufas” para “mudar pessoas” - “cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu” (Ibid., p. 22).

O “eu” é justamente esse elemento mutilado, mortificado, deformado, desfigurado pelas instituições totais. Elas agem diretamente na identidade dos indivíduos submetidos a seus domínios, o que tem consequências bastante danosas para o imaginário. Horários e regras rígidas, espaços de confinamento, despersonalização e estigmatização são alguns dos mecanismos empregados para isso.

Foucault (2014, p. 228), ao lidar com as prisões, fala em “instituições completas” que instituem um aparelho disciplinar exaustivo, encarregado por todos os aspectos do indivíduo - por isso, é “onidisciplinar” -, sem cessar e de modo despótico. De modo análogo a Goffman (2015), embora partindo de referências epistemológicas distintas, o pensador francês classifica as prisões como reformatórios integrais que atuam diretamente sobre os corpos dos condenados.

É justamente por essas características que a instituição total materializada pela unidade de atendimento socioeducativo configura-se como um dos aspectos mais recorrentes nas letras produzidas pelos adolescentes durante as oficinas. No lugar da palavra “estufa”, entra a palavra “mofo”, para designar os quartos-celas. Trata-se de lugares insalubres, pouco ventilados e escuros. No clima amazônico, esses espaços estão ainda mais distantes do direito preconizado no item X do artigo 124 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990): “Habitar alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade”.Vou te falar o que é o mofo É onde o filho chora e a mãe Não vê, pode crer Isso não passa na TV10

Nesse trecho, a conexão entre o “mofo”, a solidão e a invisibilidade das condições precárias desses espaços é elaborada de maneira cristalina. Não por acaso, a figura da mãe - recorrente nas letras - é evocada: ela representa o cuidado, o consolo ao qual não se tem acesso.

Em outra ocasião, a instituição total foi associada ao sofrimento subjetivo da seguinte forma:Internado aqui dentro Passando agonia11

Muitos dos versos demonstram o caráter desolador de uma instituição total para o interno. É comum ouvir dos socioeducandos palavras como “perturbador”, “pesadelo” e “agonia” para descrever suas estadias em uma unidade de socioeducação. Trata-se de um imaginário povoado de sofrimentos difíceis de traduzir em símbolos linguísticos, também porque ele precisa ser elaborado a partir de um eu que é constantemente mutilado pela forma como se organiza a instituição total, ao suprimir das pessoas objetos capazes de conceder identidade, as sujeitar ao contágio por conta de insalubridade e lhes tolher a autonomia de ação por meio da vigilância e do controle constante (GOFFMAN, 2015).Mano, nós tamos aqui nesse sofrimento Mas logo logo vai acabar esse tormento Aqui quem tá falando é mais um detento E olha aí, mano, vou te passar a visão A vida na prisão não é mole, meu irmão12

Paradoxalmente, para alguns adolescentes a internação na unidade, embora repleta de “sofrimentos” e “agonias”, representa também a garantia de sobrevivência sob a tutela do Estado. Esses adolescentes, ameaçados de morte por conta de atos infracionais, às vezes contra agentes do próprio Estado, reconhecem que fora dali não haveria possibilidade de manterem-se vivos.Teve um tempo que eu quase morri Os milícia procurando por mim13

De todo modo, mesmo essas letras carregadas de sentimentos negativos acabam servindo para nomear as sensações dos adolescentes, expor aquilo que não aparece no debate público, que “não passa na TV”. Assim, acabam servindo como um espaço de simbolização - tão necessário para a restituição mínima de um equilíbrio psíquico e social -, passo que buscaremos elaborar a seguir.
Ritmo e poesia como auxílios para reestabelecer o ‘equilíbrio social’

Tanto por conta dos aspectos mais estruturais ligados à trajetória pregressa como em função da vivência em uma instituição total, os adolescentes privados de liberdade são também fortemente privados de um direito poeticamente caracterizado por Antonio Candido (2004a) como direito à fabulação.



Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável deste universo, independente da nossa vontade. E durante a vigília, a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito - como anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance.



Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito (Ibid., pp. 174-175).

Esse universo fabulado estaria entre aqueles bens compressíveis - portanto, ao lado da alimentação, vestuário, saúde, moradia e outros - justamente porque ele é necessário para manter a “integridade espiritual” (Ibid., p. 174) dos indivíduos. Ele corresponderia a necessidades que, se não satisfeitas, provocam “desorganização pessoal” ou “frustração mutiladora” (Idem). Antonio Candido elabora especificamente a questão da literatura, mas naquele sentido amplo, presente na citação. Ele a concebe como uma “necessidade universal” (Ibid., p. 186) e é enfático ao afirmar que “assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura” (Ibid., p. 175).

As oficinas de rap promovidas durante o projeto foram pensadas amplamente em conformidade com essa perspectiva. Não diretamente como uma forma de educação formal, mas como uma maneira de tornar acessível o universo fabulado a adolescentes que, muitas vezes, sequer dominam a palavra escrita. Porém, a palavra cantada aparece como uma forma de empoderamento, de restituição da capacidade de se expressar e como ferramenta de elaboração dos estigmas que provocam vergonha, ódio de si e autodepreciação (GOFFMANN, 2017). Por meio do rap, os jovens narram suas experiências de vida e o cotidiano violento e excludente de suas comunidades, gerando, a partir dessa expressão cultural, processo de empatia, identificação e pertencimento entre sujeitos que compartilham uma mesma realidade de negação de direitos, exclusão social e econômica, preconceito (TOMASELLO, 2006). É muito comum que o reconhecimento desse processo apareça nas letras formuladas:Papel e caneta me tiram do mofo Onde acabam os Sonhos do poeta morto Papel e caneta me tiram do mofo Prenderam o meu corpo E não a minha mente O sistema só te usa E te envolve no jogo O papo é se fortalecer E caminhar pra frente14

O “poeta morto” revigora-se por meio das oficinas. “Papel e caneta” aparecem como espécies de armas reversas, que, em vez de matar, ressuscitam. De maneira mais imediata, as oficinas também são geralmente vistas como essa oportunidade de sair do “mofo” - e, nesse sentido, como estratégias para driblar o caráter onipresente da instituição total (GOFFMAN, 2015). Elas são realizadas em salas limpas e refrigeradas, o que contrasta com o ambiente insalubre dos quartos-celas. Outro adolescente registra:Monitor me chama Já penso que é a liberdade que canta15

A “liberdade que canta” expressa uma associação subjetiva que o adolescente passou a fazer em torno das oficinas de rap. Ele as conecta com essa perspectiva de liberdade. É certo que se trata dessa liberdade bastante limitada, que dura poucas horas. Porém, o fato de que a imagem da liberdade apareça a ele como algo cantado já enuncia as potencialidades que a atividade oferece como espaço de elaboração dos sofrimentos sociais aos quais está sujeito.

Os adolescentes constantemente associam as oficinas justamente a essa potencialidade. O rap é lido como alimento mental - daí sua relevância como forma de manutenção mínima da “integridade espiritual” (CANDIDO, 2004a).Por enquanto continuo com o rap Buscando conhecimento Alimentando a minha mente Hip-hop me traz alforria Mesmo estando atrás das grades Caneta e papel Rima e autoestima É o que me traz a liberdade16

Porém, como forma de expressão, o rap também carrega sentidos sociais menos nobres, que expressam experiências de habitantes de territórios segregados e pautados pela ausência do Estado como ente de proteção social - embora seja inegável sua presença constante como ente de repressão (SILVA, 2014). Para Gabriel Feltran (2013), por meio do desenvolvimento do rap como uma das principais formas de expressão da juventude periférica, seria possível perceber o quanto o crime passou a ocupar as vezes do Estado nesses territórios, especialmente a partir dos anos 1970.

Nas oficinas de rap realizadas durante o projeto de extensão, há sempre a orientação para que não seja inserida nenhuma referência a organizações criminosas - orientação que vem, inclusive, dos gestores da unidade. Por outro lado, as ponderações críticas em relação ao Estado e às consequências da desigualdade social são elementos recorrentes nas letras concebidas e contribuem para uma elaboração acerca dos fatores por detrás da criminalidade. As reflexões coletivas realizadas durante as oficinas a partir das biografias dos sujeitos revelam entendimento de que são os jovens que têm mais a perder nessa guerra entre o Estado e as organizações do crime, vistos por eles como elementos do mesmo sistema. Trata-se de um sistema cujas vítimas são os adolescentes que acabam recrutados, encarcerados ou mortos.Eu paro e penso como manter Vivo o jovem no Brasil Onde era pra ter educação Distribuíram drogas e fuzil17

No exemplo, a preocupação com a maneira como se pode “manter vivo o jovem no Brasil” expressa, de maneira extremamente direta, a presença cotidiana da necropolítica entre esses jovens. Antes de educação, saúde, cultura e direitos políticos, aparece a preocupação elementar em relação a como manter a vida. Preocupação fundamentada, se olharmos as estatísticas da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) do Pará, que mostram que entre 2013 e 2017 ocorreram 1.019 homicídios de adolescentes de 13 a 17 anos na Região Metropolitana de Belém (RMB) - entre esses homicídios, 71% foram perpetrados com arma de fogo. O perfil das vítimas corresponde a adolescentes do sexo masculino (90%), predominantemente na faixa de 17 anos (46%) e com ensino fundamental incompleto (82%) (SOUZA, 2019).

A letra do rap expressa essa necessidade diária dos adolescentes de lidar com o cotidiano de violência, em que os bens distribuídos não são aqueles que aparecem na Constituição Federal como direitos básicos, como a educação, mas sim os bens mais diretamente associados à morte, como drogas e fuzis. Mais que o biopoder, que preconiza, conforme Foucault (1999), o direito de fazer viver e deixar morrer, o trecho indica a presença cotidiana do necropoder, que, conforme Mbembe (2016), expressa a simbiose entre política e morte. É muito sintomática a recorrência dessa dimensão nas letras formuladas pelos adolescentes privados de liberdade durante as oficinas. Em certo sentido, é como se o substrato de suas formulações poéticas ou de sua atividade fabuladora não pudesse renunciar à presença constante da morte em suas existências precarizadas.Ser jovem no Brasil? Paz, justiça e liberdade Não me deram educação e oportunidades Só drogas, armas e grades18

Nesse trecho, aparece novamente uma elaboração sempre muito direta e simples que, no entanto, não deixa de conter em sua forma a complexidade própria ao substrato social que a fomenta. Vale ressaltar que “paz, justiça e liberdade” é precisamente o lema da organização criminosa conhecida como Primeiro Comando da Capital (PCC) (BIONDI e MARQUES, 2010) - inadvertidamente, a referência acabou tomando lugar na letra. De qualquer forma, há nela a ideia de que ser jovem no Brasil, no imaginário desses adolescentes, está muito conectado com a possibilidade de ser recrutado por uma facção criminosa, de quem recebem “drogas” e “armas”. Do Estado, por sua vez, não se recebe “educação e oportunidades”, mas sim “grades”. Dessa forma, ocorre a negação a esses jovens do “status de parceiro integral” (FRASER, 2013, p. 176) e o consequente impedimento de que participem “como um igual na vida social” (Idem).Liberdade, justiça e paz Ordem e progresso não vemos Meninos e meninas, moças e rapazes Nem se formam homens e mulheres Cadáveres de pobres é que eles querem Um pobre inteligente não é o que eles querem19

Nessa letra, vemos novamente a presença de elementos, mencionados anteriormente, que se relacionam à necropolítica exercida sobre a vida dos pobres - necropolítica essa que tolhe inclusive a possibilidade de alcançarem a vida adulta. Também é notável no trecho a ideia de ausência de aspectos preconizados pelo Estado moderno, pois não há “ordem” nem “progresso” no âmbito da existência desses jovens. “Liberdade, justiça e paz” - novamente a ocorrência do lema do PCC - já não são ideais coletivos de uma sociedade justa, mas sim uma aproximação maior da morte em decorrência do recrutamento por uma facção criminosa.

Durante seu processo histórico de formação, o Brasil não alcançou uma figuração social capaz de conter a violência a partir de mecanismos de sociogênese e psicogênese: nem o Estado conseguiu instituir-se como detentor do monopólio da violência física - disso dependeriam as ideias de ordem e progresso -, nem se configurou um autocontrole nas estruturas de personalidade capaz de conter os impulsos de agressividade. Essas são as duas facetas do que Norbert Elias (1993) destacou como desenvolvimentos próprios ao processo civilizatório ocidental. Porém, complementando a teoria figuracional de Elias (1993), a desigualdade social é um elemento central para a compreensão desses déficits da sociedade brasileira. A última frase da letra acima - “Um pobre inteligente não é o que eles querem” - expressa justamente o paradoxo da “penalidade neoliberal”, que “pretende remediar com um ‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva” (WACQUANT, 2011, p. 9).

Para que medidas socioeducativas sejam menos parte da estratégia de exclusão de “indesejáveis” (Ibid., p. 61) e mais parte de verdadeira política de reintegração de sujeitos marginalizados ao seio da sociedade, o tipo de socialização que produz as condições para o delito, ou seja, as condições sociais de coculpabilidade (COUTINHO, 2009), também deve ser levado em consideração, tanto durante a decisão pela adoção da medida como na sua execução. Tudo isso demanda uma “imaginação sociológica”, processo descrito por Wright Mills (1980) como a compreensão das relações entre a experiência do indivíduo, as instituições sociais e seu lugar no processo histórico. Com o desenvolvimento dessa habilidade, haveria possibilidade de deslocar a atenção dos indivíduos desviantes para as condições sociais em que se encontram, e que lhes negam direitos fundamentais.

E é contra essa estrutura de negação de direitos que os adolescentes procuram insurgir por meio do exercício fabulado propiciado pelo rap. Para isso, buscam compreender aspectos da sociabilidade violenta na qual estão inseridos, tornando-se “pobre[s] inteligente[s]”.

Durante as oficinas, a promoção dessas percepções a respeito das desigualdades nas formas de distribuição e reconhecimento no Brasil é importante também para uma elaboração mais complexa por parte dos jovens a respeito do seu envolvimento com a criminalidade. Não se trata simplesmente de os isentar de responsabilidade, mas de promover a percepção de suas respectivas posições sociais, pois só uma compreensão do caráter sócio-histórico dos fenômenos pode viabilizar mudanças de conduta e buscas de alternativas para o futuro distantes do crime. Tal objetivo de promoção da reflexão complementa a luta necessária “contra a pobreza e a desigualdade (...) contra a insegurança social que, em todo lugar, impele ao crime e normatiza a economia informal de predação que alimenta a violência” (WACQUANT, 2011, p. 14). Essa compreensão também possibilita, de certa maneira, que os adolescentes sejam convencidos de que sua trajetória não é meramente decorrente de uma suposta “falha de caráter”. Desnaturalizar para si mesmo o estigma tem o potencial de fortalecer as resoluções para a construção de novos caminhos.Hoje reconheço que o crime Não é para ninguém Não vou cantar vitória Apertando o dedo Eu apertei e por isso estou aqui dentro Sei que um dia vou sair E uma nova história construir E aqui dentro comecei a pensar Que minha vida não era nesse lugar Então eu permaneço e não me esqueço Que eu mereço e reconheço Que tenho que sair desse pesadelo No meu subconsciente E ser o que eu não fui, uma pessoa diferente Então vê se entende Eu sei que pra isso eu tenho que ser inteligente Eu sei que nos meus passos eu tenho que moderar Então vê se entende20

A letra condensa toda uma biografia passada e futura, assumindo os erros que levaram o adolescente à condenação, mas também buscando projetar uma “nova história”. No cuidado um pouco mais acurado com a musicalidade, expresso por meio do emprego da sequência “Então eu permaneço e não me esqueço/Que eu mereço e reconheço”, há também esse movimento de parar, rememorar, assumir e elaborar, próprio de alguém que procura superar um grave erro - nesse caso, um homicídio. Também é notória a formulação que se refere à saída do pesadelo no seu subconsciente, como se o adolescente tivesse plena consciência da deterioração que os estigmas promovem em sua identidade subjetiva (GOFFMAN, 2017). Ao mesmo tempo, ele toma para si a responsabilidade de ser de outra forma, de “moderar” os seus passos. Por vezes, a narrativa formulada pelos adolescentes prende-se a essa autoculpabilização e a uma visão ainda muito individual em torno dos desvios cometidos. Porém, como vimos em outras letras, ocorre também a percepção dos nexos sociais causais que resultaram nos atos desviantes.

Um aspecto também digno de registro nessa experiência do projeto de extensão é a gratidão e a identificação que se estabelecem entre os socioeducandos e os dois artistas do projeto. Se a “gratidão é a memória moral da humanidade” (SIMMEL, 1992, p. 662), esse sentimento por parte dos adolescentes pode constituir um forte impulso no compromisso com a mudança que costumam professar durante as oficinas.Só o 2kp21 que vem aqui Fazer nós sorrir Tirar nós do mofo Aqui é uma fuleragem22 Mas é só uma passagem23
Considerações finais

Antonio Candido (2004b, p. 9) explica que, na literatura, a “redução estrutural” consiste no “processo por cujo intermédio a realidade do mundo e do ser se torna, na narrativa ficcional, componente de uma estrutura literária, permitindo que esta seja estudada em si mesma, como algo autônomo”. A experiência do projeto de extensão contribui para a percepção de que o rap é uma linguagem poética capaz de transformar “materiais não literários” (Idem) muito distantes da lírica tradicional em formas de expressão narrativa. “Fuzis”, “balas”, “cadáveres”, “sirenes”, “sangue”, “perícias”, “túmulos”, “drogas”, “grades” e “crimes” são materiais brutos recorrentes nas existências dos adolescentes pobres das periferias de Belém e adjacências. Tais materiais provocam, inexoravelmente, “choro”, “pesadelo”, “tormento”, “agonia”. Em certo sentido, o rap se oferece como forma de restabelecer o espaço simbólico para a elaboração desses sofrimentos sociais. É certo que as oficinas de rap não são capazes de sozinhas alterarem a dinâmica social bárbara daqueles “materiais não literários” (Idem). Elas são apenas um paliativo, um alívio momentâneo para os adolescentes que precisarão voltar para o “mofo”.

Entretanto, o potencial do imaginário na reconstituição do campo de possibilidades (VELHO, 2003) dos adolescentes não pode ser descartado. Notamos, por exemplo, que ao longo dos meses as letras dos adolescentes se transformam, passando de narrativas que culpabilizam a si mesmos e identificam os delitos como falhas morais - “Sei que só depende de mim” - a formulações sobre as condições sócio-históricas que os expuseram à violência e à criminalidade - “Não nos deram educação, nem oportunidades, só drogas, armas e grades”. Esse aprendizado foi se apresentando gradativamente também para nós, professoras, discentes e artistas participantes.

Inicialmente, havia a perspectiva de estabelecer discussões e debates mais orientados para a informação sobre temas como o ECA, desigualdades raciais e estrutura familiar. Porém, percebemos que o caráter lúdico das atividades era imprescindível para prender a atenção dos adolescentes e tornar sua participação mais ativa. Assim, com esse caráter mais lúdico, as oficinas logram contribuir para a restituição do direito à fabulação, que, conforme já elaborado, é um direito universal, um direito de qualquer sociedade, “desde o índio que canta suas proezas de caça ou evoca dançando a lua cheia, até o mais requintado erudito que procura captar com sábias redes os sentidos flutuantes de um poema hermético” (CANDIDO, 2004a, p. 180).Não sou perfeito Mas sou do gueto Não tenho castelo Mas meus pais são meus reis Mas eu nunca esquecerei De tudo que passei enfrentei24

Como se observa nesse último exemplo, nessa atividade fabulada, há também um processo bastante incipiente de reconstituição do “eu” que a vida no “gueto”, configurado pelas periferias de Belém e muitas outras cidades brasileiras e, além disso, em uma instituição total, contribui para desfigurar. Para processar sua “redução estrutural” (Ibid., p. 9), os adolescentes precisam rememorar eventos traumáticos e pensar em formas de comunicá-los por meio de uma linguagem poética. Esse processo já é uma maneira de traduzir elementos que pertencem à dinâmica brutal das periferias de onde eles vieram e da vida no cárcere para uma linguagem capaz de decantar tais elementos, ainda que provisoriamente. Logra-se tal decantação porque se trata de uma linguagem que transforma em símbolos (ou sonhos) uma realidade permeada pelo indizível da violência.

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1
Agradecemos à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Pará (UFPA) pela bolsa Pibex do edital de 2018 e pelos recursos concedidos no Prêmio Proex de Arte e Cultura do edital 2019.
2
A extensão é definida pelo Ministério da Educação (MEC) como “atividade que se integra à matriz curricular e à organização da pesquisa, constituindo-se em processo interdisciplinar, político, educacional, cultural, científico, tecnológico, que promove a interação transformadora entre as instituições de ensino superior e os outros setores da sociedade, por meio da produção e da aplicação do conhecimento, em articulação permanente com o ensino e pesquisa” (BRASIL, 2018). A resolução nº 7, de 18 de dezembro de 2018 determina que as atividades de extensão devem compor, no mínimo, 10% do total da carga horária curricular estudantil dos cursos de graduação (Idem).
3
O termo MC surgiu da sigla para “mestre de cerimônias”, aquele responsável por apresentar os artistas e animar o público durante as festas. A partir dos anos 1970, por seu papel na música e na cultura hip-hop, MC tornou-se um título alternativo para um cantor de rap, ou rapper. Pode ser usado para denotar um nível superior de habilidade e conexão com a cultura hip-hop.
4
A reflexão a respeito da relação entre equilíbrio social e fabulação está em consonância com as ideias de Antonio Candido, sob o mote de que, do mesmo modo que o sonho repõe o equilíbrio psíquico durante o sono, a literatura ou, dito de modo mais amplo, a atividade de fabulação repõe o equilíbrio social, por ser “o sonho acordado das civilizações” (CANDIDO, 2004a, p. 175).
5
Também no caso da unidade de socioeducação onde é realizado o projeto, os adolescentes atendidos são em sua grande maioria negros. Em duas ocasiões tentamos provocar o racismo como tema gerador, apresentando um documentário, mas verificamos resistência ao tema por parte dos adolescentes. Ao conversarmos sobre essa resistência em reunião dos integrantes do projeto, uma aluna, que faz parte do movimento negro em Belém, nos explicou como a autoidentificação do negro pode ser um processo doloroso para o adolescente, que muitas vezes sofre pressão para negar sua identidade. De todo modo, reconhecemos o problema racial como central no debate acerca da socioeducação. Temos sentido a necessidade de uma reflexão para a concepção de novas abordagens, introduzindo a questão não a partir de aspectos negativos do racismo, mas dos aspectos positivos da negritude. Uma das formas de promover esse debate foi a partir de vídeos, como Hat-Trick, de Djonga, uma obra visual poderosa e impactante que retrata a vida de um homem negro que se sujeita à pressão de negar-se e tentar tornar-se socialmente branco: “Pensa bem/Tira seus irmão da lama/Sua coroa larga o trampo/Ou tu vai ser mais um preto/Que passou a vida em branco?/Abram alas pro rei, ô/Abram alas pro rei, ô/Abram alas pro rei, ô/Me considero assim/Pois só ando entre reis e rainhas” (DJONGA, 2019).
6
Trecho de rap criado em uma das oficinas do projeto de extensão “Imaginação sociológica junto a adolescentes privados de liberdade”.
7
Idem.
8
Idem.
9
Idem.
10
Idem.
11
Idem.
12
Idem.
13
Idem.
14
Idem.
15
Idem.
16
Idem.
17
Idem.
18
Idem.
19
Idem.
20
Idem.
21
Nome artístico de um dos rappers participantes do projeto de extensão.
22
“Fuleragem” é gíria recorrente do Norte e do Nordeste do país que sugere bagunça, desordem, confusão.
23
Trecho de rap criado em uma das oficinas do projeto de extensão “Imaginação sociológica junto a adolescentes privados de liberdade”.
24
Idem.

Tecendo olhares sobre a gestão dos conflitos na escola




Weaving Perspectives on Conflict Management at School

Maria Cristiane Lopes da Silva
Rosemary de Oliveira Almeida
Sinara Mota Neves de Almeida

RESUMO

Os conflitos e as violências no espaço escolar são compreendidos neste artigo a partir de reflexões tecidas pelos olhares de docentes e estudantes. Nosso objetivo, nesse sentido, é refletir sobre o entendimento que os sujeitos escolares constroem em relação aos conflitos e violências no cotidiano escolar. Metodologicamente, optamos pela abordagem qualitativa, utilizando técnicas de observação direta, entrevista semiestruturada, grupo de discussão e diário de campo. Em síntese, os achados deste estudo são reflexões de olhares de sujeitos escolares, não exaurindo a complexidade da discussão, mas buscando contribuir para outros possíveis debates.

Palavras-chave:
educação; professor; estudante; conflitualidade; violências

ABSTRACT

Conflicts and violence in the school environment are understood in this article from reflections woven through the perspectives of teachers and students. In this sense, our aim inf Weaving Perspectives on Conflict Management at School is to reflect on the understanding that school subjects build in relation to conflicts and violence in school daily life. Methodologically, we have opted for a qualitative approach, using techniques of direct observation, semi structured interview, discussion group and field diary. In short, the findings of this study are reflections from the perspectives of school subjects, not exhausting the complexity of the discussion, but seeking to contribute to other possible debates.

Keywords:
education; teacher; student; conflict; violence

Introdução

Os conflitos e as manifestações de violências1 no espaço escolar são há muito tempo objeto de discussão, como se pode observar nos vários trabalhos pautados nesse sentido (ABRAMOVAY, 2006). Contudo, entendemos que suscitar reflexões a partir das narrativas dos sujeitos escolares pode ser uma forma de subsidiar o fazer pedagógico, no sentido de agregar elementos de debate para possíveis estratégias a serem adotadas no manejo dos conflitos e na prevenção das violências.

Lançar olhares sobre a escola é partir do pressuposto de que ela é um espaço dinâmico, um lugar sociocultural que abarca duas dimensões: por um lado, é uma instituição pautada por regras e normas que a tornam um sistema escolar; por outro, é constituída por sujeitos imersos em redes de relações, tramas sociais de acordos, confrontos e interesses, espaços de apropriação constante de práticas e saberes entre a instituição e os indivíduos. A escola é, portanto, um espaço sociocultural (DAYRELL, 2001).

Porém, ela nem sempre foi vista dessa maneira. Conforme Dayrell (Ibid.), somente a partir dos anos 1980 a escola passou a ser analisada considerando seus sujeitos como atores sociais no vínculo com a estrutura, observando-se uma relação constante de conflitos e negociações perante as condições determinantes do seu cotidiano. Assim, a escola, para além de sua institucionalização, passa a ser vista como formada por e formadora de docentes e discentes, sujeitos ativos e diversos social e culturalmente que constroem e desconstroem suas relações, aceitam e resistem diante das circunstâncias estabelecidas.

Portanto, uma análise educacional ampla evidencia, para além das estruturas formais, uma natureza socializadora da escola, um espaço de encontro que fortalece os vínculos e torna meninos e meninas, professores e professoras, em sua diversidade, sujeitos ainda mais participantes no contexto escolar. Tem-se, dessa forma, a percepção de que o velho se reconstrói e o novo se constrói sem que haja condições rigorosas e definitivas, mas sim uma busca por “processos reais, cotidianos, que ocorrem no interior da escola ao mesmo tempo em que resgata o papel ativo dos sujeitos, na vida social e escolar” (Ibid., p. 137). Nesse espaço com sujeitos ativos, inúmeros impasses surgem nas relações cotidianas; os conflitos se intensificam, as convergências e divergências de opiniões se constroem. Porém, vicissitudes também se apresentam nessa viva realidade escolar, como as violências, que são construídas e/ou oriundas de situações externas.

Entre os casos de violências que se embrenham no ambiente escolar, há, por exemplo, aqueles que ocorrem nos bairros e cidades esquadrinhados em territórios dominados por grupos rivais que disputam o tráfico de drogas. De acordo com um estudo realizado pelo Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA), em articulação com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alce) e o Governo do Estado do Ceará, mais de 70% das pessoas assassinadas em 2015 eram adolescentes que estavam fora da escola há pelo menos seis meses e sequer tinham concluído o ensino médio ou mesmo chegado a ele (CEARÁ, 2017). Nesse cenário, as violências geram e intensificam incertezas, impulsionam desgastes nas relações de convivência e as sufocam, sendo materializadas de várias formas, como agressões, insultos diversos, danos e depredações do patrimônio público. Quando não, os(as) estudantes se desmotivam, fazendo valer comportamentos que os(as) aterrorizam e os(as) maltratam, reverberando em atitudes que afastam a sociabilidade e comprometem o próprio processo de ensino-aprendizagem.

Com esse olhar, o objetivo deste artigo é refletir sobre o entendimento que os sujeitos escolares constroem em relação aos conflitos e violências no chão da escola. Em termos teóricos, o texto baseia-se na noção de escola construída por Bourdieu (2003), Dayrell (2001) e Freire (1996), na concepção de conflito de Simmel (1983) e na ideia de violências de Abramovay (2006, 2008, 2012), dialogando também com outros autores. Partindo desse arcabouço teórico e da trilha metodológica, buscamos suscitar reflexões a fim de ampliar o leque de discussões sobre conflitos e violências no contexto da escola pública.
A caminhada metodológica

O percurso metodológico pautou-se na abordagem qualitativa, que leva “em conta todos os componentes de uma situação em suas interações e influências recíprocas” (ANDRÉ, 1995, p. 17). Entendemos que a abordagem qualitativa da pesquisa possibilita compreender o fenômeno por meio das perspectivas dos sujeitos, considerando seus pontos de vista e percepções (GODOY, 1995).

Como recorte do campo, escolhemos uma escola pública de ensino médio da educação básica da rede estadual cearense que se dispôs a participar da pesquisa, considerando-se a aproximação das pesquisadoras com essa unidade escolar por conta de um estudo em andamento. Essa instituição localiza-se em Fortaleza, capital do Ceará, em uma área periférica conhecida no imaginário social como um território violento. Os sujeitos foram selecionados entre docentes e discentes da 1ª e 2ª séries do ensino médio diurno, valendo destacar que neste artigo eles receberam nomes fictícios2 para preservar a imagem e a confidencialidade das informações referentes à identificação da escola e dos participantes.

Para a inserção no campo, combinamos as técnicas de observação direta, entrevista semiestruturada, grupos de discussão e diário de campo. De acordo com Santos, Osterne e Almeida (2014), esse conjunto de coleta de dados viabiliza uma aproximação mais precisa do fenômeno para uma melhor interpretação das informações captadas. Cabe enfatizar, entre as técnicas escolhidas, que o grupo de discussão foi realizado somente com os(as) estudantes, por conta do desencontro de tempo com os(as) docentes. Além do mais, partimos do pressuposto de que o grupo de discussão constitui um espaço que permite uma melhor articulação e aproximação com os(as) jovens, fazendo-os(as) se colocarem de maneira espontânea com seus pares (WELLER, 2006).

As entrevistas foram realizadas por meio de questões semiestruturadas como forma de nortear as discussões - “o pesquisador organiza um conjunto de questões (roteiro) sobre o tema que está sendo estudado, mas permite, e às vezes até incentiva, que o entrevistado fale livremente” (GERHARDT e SILVEIRA, 2009, p. 72). Entrevistamos nove professores, sendo seis mulheres e três homens com idade entre 27 e 48 anos, e cinco estudantes, sendo três mulheres e dois homens com idade entre 15 e 18 anos. As perguntas foram relacionadas à percepção que eles tinham sobre os conflitos e a violência no contexto escolar, como: o que você entende por conflito? Como você percebe os conflitos na escola? O que é violência? Há violência na escola?

A pesquisa não contou com etapas separadas; o percurso foi traçado simultaneamente. No entanto, para efeito de compreensão, descrevemos os seguintes estágios: 1) reconhecimento e apropriação do arcabouço teórico; 2) entrada no campo de pesquisa para aproximação com os interlocutores e conhecimento do contexto; 3) realização das entrevistas e de dois grupos de discussão; e 4) análise dos dados coletados.

O diário de campo se apresenta nesta pesquisa como um instrumento que colaborou para a compreensão das impressões no momento de imersão na escola e nas entrevistas, dando suporte para o registro das primeiras percepções e questionamentos das pesquisadoras. Além disso, provocou um constante processo de análise, em que avaliávamos o que havia sido feito e planejávamos os passos seguintes da pesquisa. Zabalza (1994) aponta que a escrita no diário é o ato de escrever sobre as ações que ocorrem e dão mais clareza sobre os fatos pesquisados. Para o autor, o diário oferece perspectivas sincrônica e diacrônica, de forma a compreender o que acontece no dia a dia e como os eventos vão evoluindo ao longo dos registros. Ele cumpriu, assim, um duplo papel, permitindo construir um primeiro vínculo entre as pesquisadoras e o campo estudado e trabalhar dados que seriam perdidos ou omitidos sem essa ferramenta.
Olhares sobre a escola pública

Dayrell (2001) compreende a escola como um espaço sociocultural intensamente dinâmico, com sujeitos ativos diante do processo educativo interferindo e agindo diretamente nas tramas cotidianas. Tais características mobilizam vínculos e estabelecem relações diversas que geram impasses, conflitos e resistências. De acordo com Freire (1996), a escola é um espaço de relações e aprendizagens que despertam para a formação crítica. Trata-se, assim, de um ambiente pautado na cumplicidade entre educador e educando, em que pessoas se constroem coletivamente como formadoras e formandas no cenário educativo, ao mesmo tempo aprendendo e ensinando - uma escola baseada na “convivência amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e, ao mesmo tempo, provoca-os a se assumirem enquanto sujeitos sócio-histórico-culturais do ato de conhecer” (Ibid., p. 7).

Ao considerar a escola sob essa perspectiva, entendemos essa instituição como um tipo ideal3 (WEBER, 1991), sem a intenção de esgotar as possibilidades de interpretações cabíveis e possíveis de sua existência. Na perspectiva da sociologia compreensiva weberiana, essa análise é uma apreensão interpretativa de compreender a escola como parâmetro racional, mas que não tem, de maneira alguma, intenção de ser exaurida como modelo finito.

Conforme aponta Abramovay (2008), há escolas que excluem direta ou indiretamente os(as) estudantes, inviabilizando diálogos participativos e indo em desencontro a esse modelo destacado por Freire (1996); em outras palavras, encontra-se uma “escola que exclui os seus alunos, não respeita as diferenças, é elitista, baseada em um modelo de escola que durante muitos anos atendeu a elite brasileira” (ABRAMOVAY, 2008, p. 2). Os estudos de pesquisadores como Abramovay, Dayrell, Freire e tantos outros são críticos das configurações sociopolíticas no campo da educação que pressionam o sistema escolar a tomar rumos que atendam a determinadas demandas, mercadológicas ou meramente cotidianas das necessidades materiais, que a própria comunidade escolar passa a cobrar como necessárias, em detrimento de demandas do espírito do conhecimento crítico, da aprendizagem integral e libertadora.

De fato, a escola na modernidade surgiu com interesses que enaltecem a lógica capitalista, atendendo a objetivos de mercado. Na mesma congruência de pensamento, Saviani (2002) completa que, na medida em que a humanidade desenvolveu o processo dos meios de produção para a sua subsistência, a escola passou a servir a um interesse particular, ou seja, a ser institucionalizada para atender aos interesses da estrutura dominante na formação de mão de obra em benefício das necessidades do capital. Como argumentam Sposito e Galvão (2004), o processo de urbanização acelerado no Brasil pressionou a abertura da escola voltada para preparar os menos favorecidos para a demanda do mercado capitalista.

Todavia, cabe lembrar que diante dessa exigência exacerbada pela expansão da educação, também houve movimentos de pressão social que clamavam por uma abertura mais ampla para todos(as) na escola pública. Surgiram movimentos sociais pela educação no Brasil em uma dimensão mais abrangente, que passaram a fazer parte da realidade histórica, como as lutas pela garantia de acesso e permanência na escola para todas e todos, sem nenhuma distinção. Contudo, não bastava o crescimento da expansão do ensino; era necessária também a educação de qualidade, uma escola pública para além do discurso político. Desse modo, a escola passa a ser fonte de reivindicações e protestos, por meio de mobilizações, visando à qualidade do ensino, à luta por direitos e à construção da cidadania (GOHN, 2010).

Além da questão da qualidade, Bourdieu (2003) assevera que o papel de escola que objetiva fazer o indivíduo ascender social e culturalmente, como elemento quiçá de transformação da sociedade, perdeu a razão de ser. Ou seja, ela incorporou, sem dúvida, uma instituição que legitima e mantém as desigualdades e os privilégios sociais das classes favorecidas socialmente, desconsiderando a bagagem cultural dos(as) jovens das classes dominadas, tornando-se um ambiente sem atrativo ou sentido para eles(as).

Vale destacar que esse ambiente compromete a teia de relações entre os sujeitos que constroem um imaginário inconsciente de incertezas e/ou culpabilidades, sem saber ao certo o que fazer e o que seguir, abalando o processo de ensino-aprendizagem. Na acepção de Galvão et al. (2010, p. 427) isso significa que



[o]s alunos socialmente privilegiados se integram à cultura juvenil com os desafios à escola mantidos dentro de certos limites, ao passo que os alunos das classes populares reagem às experiências de fracasso pela via da afirmação pessoal, com rebeldia aberta contra a escola.

Esse pensamento reflete-se nas vozes dos(as) estudantes da escola pesquisada: “fico pensando, tia, [e] às vezes acho que a escola para pobre não faz sentido”, “me sinto culpada e ao mesmo tempo penso ‘pra que tô aqui, o que vou fazer com isso?’” (Grupo de discussão).

Por assim dizer, a situação da escola em estudo não é diferente, especialmente quando se observa a cultura da culpa, a falta de sentido, a necessidade de fazer algo e não saber o quê, a vida vivida sob tensões de conflitos e violências. Ou seja, um espaço “competitivo-conflitual” em que se confrontam culturas e saberes distintos (GALVÃO et al., 2010).
Breve olhar sobre os conflitos

Definir conflito não é uma tarefa simples. O conceito, muitas vezes, é traduzido sob uma perspectiva negativa, como no caso do Dicionário Houaiss (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 797), que traz a etimologia da palavra oriunda do latim conflictu, que quer dizer: “1 Embate de pessoas que lutam. 2 Alteração. 3 Barulho, desordem, tumulto. 4 Conjuntura, momento crítico. 5 Pendência. 6 Luta, oposição (...)”.

O olhar sobre o conflito, neste artigo, foge desse viés negativo e baseia-se fundamentalmente na concepção de Simmel (1983), que o entende como um fenômeno social comum presente nas relações sociais: “todas as formas sociais aparecem sob nova luz quando vistas pelo ângulo do caráter sociologicamente positivo do conflito” (p. 123). O conflito faz parte da vida social, alterando e provocando mudanças sociais necessárias como força integradora dos indivíduos, que move e dá vida ao processo relacional. A concepção do autor rompe com a visão do conflito como elemento meramente dissociativo e instaura a ideia de ele ser o fator necessário no processo de sociação. Para Simmel (Ibid.), esse processo significa que “toda interação entre os homens é uma sociação” (p. 122), constituída de impulsos, motivações e interesses em que o conflito é uma das formas mais presentes da relação, observado nessa complexa rede de relacionamentos que divergem e se dissociam, em que o conflito é o modo de conseguir a unidade, de resolver os dualismos entre os indivíduos. Desse modo, o conflito pode ser considerado benéfico para a vida social, em que, mesmo diante das inúmeras divergências e turbulências entre os indivíduos, os processos sociais permanecem (SIMMEL, 2005). Portanto, é nesse jogo de forças de atração e repulsão que há a configuração social necessária para a existência do conflito.

Consideramos interessante também enfatizar a contribuição dos clássicos para se pensar as diferentes concepções de conflito que se relacionam com as práticas sociais até hoje. O conflito como anomalia em Durkheim (2007), por exemplo, diverge do conceito simmeliano, ao compreender o conflito como uma anormalidade que causa desordem social, uma forma negativa que interfere na harmonia da sociedade e, por isso, precisa ser controlada para não desarmonizar o funcionamento social. Weber (1998), contrapondo-se à visão durkheimiana, percebe o conflito como uma ação cotidiana, excluindo a visão patológica a ele conferida por Durkheim, apesar de não ter deixado discussão mais profunda sobre a temática. Destarte, o conflito, por mais paradoxal que pareça, argumenta o autor, significa unidade dos contrários, pois não existe amor sem ódio, harmonia sem desarmonia, associação sem competição; pelo contrário, são as discordâncias que sedimentam a formação social e mantêm os indivíduos juntos. Essa unidade é entendida como consenso entre as pessoas que interagem, como a “síntese total do grupo de pessoas, de energias e de formas” (SIMMEL, 1983, p. 125).

Logo, tecendo o olhar sobre o conflito nessa concepção, não há motivos para restringi-lo ou evitá-lo, tendo ainda como outra característica o “fato de superar os ‘hiatos’ e os limites socialmente estabelecidos pelos intervalos dicotomizados” (ALCÂNTARA JÚNIOR, 2005, p. 9). Trata-se de uma força impulsora para as interações sociais, estando presente em quaisquer grupos ou instituições, como as escolares.
Dialogando sobre conflitos escolares e violências

A partir da concepção simmeliana do conflito como sociação, destacamos que a escola é um lugar privilegiado de interação que une e desagrega, constrói e desconstrói; trata-se de um ambiente propício para consenso e dissenso. Nesse sentido, é um espaço propício para diversos conflitos, “provenientes de ações próprias dos sistemas escolares ou oriundos das relações que envolvem os atores da comunidade educacional mais ampla” (CHRISPINO, 2007, p. 21), que também acontecem espontaneamente, em situações mais inesperadas.

Destarte, a escola pode ser vista como instituição privilegiada de formações, em que várias facetas do conflito vão se apresentando de maneira espontânea na convivência social e impulsionando divergências e incertezas. Contudo, isso pode tomar proporções que tornam os conflitos cada vez mais intersubjetivos, podendo se transformar em situações violentas de cunho negativo (ABRAMOVAY, 2012). Constatamos esse pensamento de Abramovay no relato de Alisso, um estudante na escola pesquisada, quando ele diz que muitas vezes a situação conflituosa começa com uma simples brincadeira na sala de aula e depois os ânimos ficam acirrados: “Um amigo quer fazer uma brincadeira e o outro não diz que não gosta, aí tem uma hora que perde a paciência e vai pra briga mesmo na sala”.

O que acontece nas escolas é resultado das múltiplas perspectivas que os sujeitos escolares (estudantes) constroem sobre as violências, definindo-as de acordo com suas percepções e significados, não esquecendo que isso se relaciona com a complexidade do sistema escolar, que produz a própria violência; ou seja, trata-se de um fenômeno produzido na escola e pela própria escola (Idem, 2006). Isso ocorre quando desavenças e desentendimentos são agravados por falta de diálogo ou por não serem levados em consideração, como se fossem comuns no espaço escolar. Em outras palavras, “os desentendimentos no ambiente escolar, agravados pela ausência de espaço adequado para a resolução de conflitos e, até mesmo, pela eventual naturalização dos problemas cotidianos das escolas, podem acarretar situações de extrema violência” (Idem, 2012, p. 36).

É preciso compreender que o ambiente escolar, com suas relações tensas e seus desafios, reproduz as violências presentes na sociedade, mas também produz suas próprias formas: “a violência na escola é um fenômeno com muitas facetas que assume determinados contornos em consequência das práticas que acontecem” (Idem, 2015, p. 9), práticas essas de diferentes ordens e tipos que se refletem no cotidiano, afetando as relações sociais.

Para Bourdieu (1989), a própria infraestrutura da organização escolar representa violência simbólica; a dinâmica da rotina do seu funcionamento, a disposição das salas de aula, os “sistemas simbólicos” construídos no sentido de incorporação por parte dos sujeitos sem que eles reconheçam essa imposição. Segundo o autor, essa é uma “violência suave, insensível, invisível a suas vítimas, que é exercida essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento” (BOURDIEU, 2003, pp. 7-8). A concepção de Bourdieu se materializa nos gestos sutis da comunidade escolar, com comportamentos discretos que não se explicitam declaradamente. De acordo com Silva e Silva (2018), isso acontece, de certa forma, porque o processo de ensino e aprendizagem desenrola-se em meio a tensões de caráter social, relacional e pedagógico, fazendo emergir diversos problemas e violências.

Portanto, violência e conflito estão presentes no processo civilizatório. Se a primeira é conceitualmente ambígua por não partir de um só ponto de vista - tem “sua utilidade e sua destrutividade simultaneamente” (MAFFESOLI, 1987, p. 32) -, é preciso não a confundir com o conflito. A violência, apesar de sua ambiguidade conceitual e polifônica, aparece como prática na constituição das relações sociais, sendo impossível conceituá-la a partir de uma única visão (FREITAS, 2003), pois há um alargamento de sentidos e significados mediados por diferentes usos e dualidades.
Análise dos resultados

A compreensão dos sujeitos da pesquisa sobre os conflitos e as violências no contexto da escola pesquisada é perpassada por diversos olhares e significados que se cruzam ou divergem entre si. Inicialmente, verifica-se o sentido do conflito em uma dimensão negativa, como algo que prejudica e atrapalha a sala de aula. Na entrevista com os(as) estudantes, um(a) deles(as) descreve:



- Aqui na escola eu particularmente percebo alguns conflitos, aqui na escola. Mas sim, eles existem. É, eu percebo na minha própria sala que existem conflitos que prejudicam até o professor dar aula, atrapalha a gente que quer estudar, virando uma bagunça que atrapalha, às vezes só por causa que um menino não gosta do que o outro falou. Esses conflitos, sabe, [são] coisas que são simples, mas chegam a atrapalhar.

Essa é uma percepção que também permeia os sentidos dos(as) professores(as): “A gente até evita conflitos [risos], porque a gente sofre muito”; “Os conflitos a gente tenta resolver, chama pra convites e tenta de todo jeito, assim”. São falas que manifestam significados destrutivos do conflito e esforços para evitá-los ou resolvê-los de qualquer maneira. Docentes demonstram uma grande preocupação, comumente relatando que os conflitos logo são resolvidos, que na escola se tem uma atenção demasiada quanto a isso. Quando não há a resolução dos conflitos, isso causa uma insatisfação enorme para a comunidade escolar.

Para os(as) professores(as), a situação já foi muito pior. Hoje consideram que muita coisa melhorou na escola pesquisada, mas ainda se lembram de situações que causaram preocupações:



- Sim, eu acho que aqui (...) já teve mais conflitos, bem mais conflitos. A gente tá em uma situação agora que eu diria que dá pra conduzir melhor o trabalho pedagógico, até porque já não tem tanta briga de posicionamento... A gente ainda tem, é claro. As pessoas sempre têm essa diferença e precisam soltar, né? Mas assim, eu acredito que agora a gente tenha um respeito maior pelo jeito de pensar do outro. (Professora Hortência)



- Teve épocas que os alunos deixaram de frequentar a escola porque ocorreu um assassinato bem em frente [à escola] e [havia] muito assalto, umas gangues assaltavam aqui (...). Esse ano não percebi nenhum assalto ou tentativa de furto de celular. Já teve uma época que teve um... não sei se era de gangue ou não, entrou aqui na escola [um homem] armado, querendo um celular que uma aluna havia comprado (...). Ele [o celular] era, sei lá, de última geração, está com uns oito anos mais ou menos... nove, pronto. Agora esse ano ficou tranquilo, não teve mais problema de assalto, de aluno deixar de ir na escola por medo. (Professor Narciso)

Esses relatos revelam que o contexto educativo não está isento de situações de conflito mais complexas. Por mais que reconheçam uma amenização na escola, os(as) professores (as) compartilham experiências das quais se lembram e que marcaram negativamente essa realidade. Contudo, Santos (2001) adverte que é necessário reconhecer o conflito escolar como algo positivo, dinâmico, para não convergir com a violência, vista como uma das “novas questões sociais mundiais”. Isso porque a escola não está fora dessa ordem social e seu ritmo é consequentemente afetado pelo horizonte globalizante que impacta e encadeia diferentes fenômenos sociais.

Observamos em algumas falas e episódios observados que os(as) professores(as) e os(as) estudantes confundem conflito e violência, como revelam estes trechos de entrevistas: “Quando acontece conflito há violência, né? Ela tá embutida” (Professora Rosa); “Acho que também ficar olhando pra pessoa, a outra pessoa pensa que você quer briga com ela, ou então tá falando dela pra outra pessoa. Temperamento, no caso, já é um conflito” (estudante em grupo de discussão). Esses relatos apontam significados semelhantes entre conflito e violência como se ambos fossem a mesma coisa, chegando até a inverter seus sentidos. No relato da professora, é evidente que ela equipara o conflito e violência: o fato de haver conflito implica haver violência. Essa concepção é ratificada na visão dos(as) discentes, uma vez que todos revelam um mal-estar no cotidiano escolar resumido em violências, anulando, por sua vez, outros sentidos dos conflitos. Para Abramovay (2006), isso representa a perda do sentido da violência: “se considerar que há violência cada vez que se encontra uma situação que causa mal-estar, que incomoda, frustra, machuca, ter-se-á de admitir que a vida toda é uma violência” (p. 18). Desse modo, tudo se resumirá à perspectiva das violências, fazendo irreflexivamente uma subtração dos conflitos.

Fazendo uma comparação das percepções dos sujeitos escolares com a concepção de Maffesoli (1987), os sentidos acima são compreensíveis, na medida em que o autor concebe que é muito delicado conceituar a violência, já que esta não se define em um único discurso, sendo um fenômeno paradoxal que representa certo papel na sociedade e, ao mesmo tempo, causa certa desordem. Portanto, violência e conflito fazem parte da vida social. De um lado, a violência assume sentido ambíguo de utilidade e destruição (Ibid., p. 32); de outro, o conflito, como afirma Simmel (1983), é elemento estruturante nas relações sociais, com aspectos positivos e negativos na constituição dos sujeitos, entendida na lógica da unidade e das mudanças, principalmente no instante em que se instauram novas configurações sociais no contexto escolar: com docentes com queixas de discentes e vice-versa, desmotivações diversas e dificuldades de os jovens se subjetivarem como estudantes (LEÃO, DAYRELL e REIS, 2011).

Simmel (1983) afirma que os conflitos promovem unidade na divergência, fazendo surgirem novas ideias para as mudanças. Percebe-se, segundo os achados da pesquisa, algumas narrativas de professores(as) afirmando que os conflitos existem e são constitutivos das interações sociais:



- Os conflitos, eles são inerentes da natureza humana, né? E até da forma como você trabalha os conflitos, é até saudável. (Professor Jacinto)



- A gente tem muito conflito, principalmente por causa das diferenças de opinião. A gente também tem conflito porque um aluno quer defender outro e se envolve em um conflito que inicialmente nem era dele. (Professora Clívia)

Em muitos relatos, é forte a percepção do conflito no sentido de não ser possível evitá-lo. Professores(as) mostram que não conseguem eliminar os conflitos no ambiente escolar: eles são “inerentes da natureza humana”, diz a professora Clívia, surgem por conta das contradições, das “diferenças de opiniões”. Essa posição é consoante com a visão simmeliana do conflito como força integradora do antagonismo existente no processo de sociação, sendo constitutivo do próprio processo de interação (SIMMEL, 1983). Segundo o autor (Ibid.), essa repulsão que surge da força dos contrários, das diferenças de opiniões, retratada pelos(as) professores(as), constitui os elementos que mantêm o grupo unificado.

Outra questão pertinente a essa discussão diz respeito aos sentidos e significados que tudo isso provoca nos(as) professores(as) e nos(as) estudantes:



- Temos até vontade de fazer mais alguma coisa, mas não dá. Ficamos muitas vezes perdidas nesse emaranhado de problemas, uma loucura que até amedronta, sem saber o que fazer e para onde correr, nem a quem recorrer. Apenas precisamos saber lidar com a situação. (Professora Hortência)



- Quando eles começam a aparecer, na verdade, eles começam a extinguir, aparecer realmente nas pessoas, elas começam a demonstrar com raiva, com encrencas, quando não gostam do outro colega. (Estudante Azaleia)

Nessas narrativas, fica claro que as questões de conflito que emergem no âmbito educacional revelam um mal-estar para os sujeitos, pois denotam a responsabilidade moral de tentar lidar com as situações, de cumprir um dever na tentativa de manter sem abalo os constitutivos relacionais, bem sabendo que tais conflitos são oriundos das relações e podem gerar um ganho pessoal e coletivo no sentido visto (Ibid.). Sobre a questão moral, é relevante entendê-la como constitutiva das relações sociais: “isso mostra que os seres humanos são orientados não só segundo seu proveito próprio e pessoal, mas também pela necessidade que sentem sempre de cumprir obrigações morais” (SOUZA, 2009, p. 284). Nesse raciocínio, compreende-se que as práticas morais são inerentes à vida de cada um desses sujeitos, muitas vezes sendo vistas como obrigações que fundamentam as ações cotidianas na escola, na construção dos vínculos, nas relações que se formam, sempre fazendo surgirem outros desafios para a escola e seus sujeitos.

Sposito (2003) expõe a perspectiva de Durkheim sobre a moral como essência e fundamento da vida social, que considera a escola como lugar que poderia ensinar os princípios morais para a vida em sociedade - isto é, uma visão durkheimiana da ação escolar como uma dimensão de “instituição em suas funções socializadoras mais amplas” (Ibid., p. 213). Evidencia-se, na escola pesquisada, esse agir pautado nos princípios e regras ali determinados. Entretanto, o corpo docente baliza uma distância entre as atitudes e os comportamentos dos(as) discentes e os princípios atribuídos como civilizatórios da organização escolar. Constitui-se um sentido divergente entre o que se espera do(a) educando(a) e o que a escola tem como compromisso moral, sendo este reforçado cotidianamente nos discursos, nas atividades rotineiras. Observa-se isso na escola, nas posturas e atitudes que lembram o dever de cumprir os princípios morais: “Aqui as pessoas, na verdade, se abrem, se relacionam de maneira cordial”; “A gente tem alguns conflitos também... a dificuldade que eles têm de acatar as ordens, as regras da escola”; “Conversando com os estudantes, orientando para não fazer as coisas erradas” (Professor Lírio).

De maneira até irreflexiva, esse discurso é compartilhado por muitas pessoas na escola pesquisada, que se orgulham estampando o slogan da instituição, “Educando por uma cultura de paz”, como algo assertivo para acentuar os valores considerados basilares para a harmonização do chão escolar. Isso pode ser observado neste relato de um professor: “A gente teve a feliz ideia de colocar esse slogan e se encaixou perfeitamente. A gente consegue realmente chamar as partes que estão envolvidas e, na grande maioria das vezes, a gente consegue resolver os conflitos” (Professor Lírio).

Interpreta-se que esse relato destaca o comportamento moldado nos(as) estudantes e nos demais sujeitos escolares, como os(as) funcionários(as), não significando dizer que são respeitadas e cumpridas as normas, como revela este trecho de fala: “Geralmente, [se pensa que] exatamente com o discurso de que a gente tem que ficar em paz e ser leve aí os conflitos são resolvidos, e não é bem assim” (Professor Cravo). Estudantes também expressam a mesma opinião: “(...) chama os pais, às vezes, conversa, né? E... não sei, mas acaba no final tudo resolvido, mais ou menos assim” (Estudante Violeta).

Tais narrativas convergem para o pensamento de Abramovay (2008), quando discute e afirma que as normas são impostas para manter a ordem social, por meio de medidas, a exemplo do slogan da escola, para lidar com as diversas situações heterogêneas do ambiente escolar, nem sempre conseguindo o ideal desejado, como afirma a autora: “tais medidas, para que possam surtir o efeito desejado, devem ser amplamente conhecidas, o que também não assegura que elas serão respeitadas e cumpridas” (p. 3).

Apesar de a escola buscar mecanismos normativos para manter a ordem, com um contingente amplo e heterogêneo dos sujeitos escolares, carregado por uma gama de repertórios de dilemas sociais, a questão moral, os conflitos e as contradições explicitam-se cotidianamente com mais fervor, tornando os percursos escolares mais desafiantes e complexos de serem analisados. Não que isso não seja natural. Pelo contrário, provoca mudanças significativas, sendo a grande questão, posta ainda por Abramovay (Ibid.), o fato de os estudantes não se reconhecerem dentro do espaço escolar - “assim os jovens não se sentem sujeitos do que acontece na escola” (pp. 3-4) -, consequentemente burlando o que se estabelece de uma maneira ou de outra.

Outro elemento relevante refere-se à violência simbólica, reproduzida em algumas práticas estabelecidas no contexto escolar. Na pesquisa de campo, identificamos que nem sempre os(as) estudantes podem cursar determinadas disciplinas optativas4, mesmo que tenham vontade. Eles(as) são induzidos a cursar certas disciplinas sob fortes argumentos de convencimento, como se observa nesta fala:



- Não, eu não continuei a disciplina optativa dos círculos. Eu só vim um dia como visitante mesmo, porque eu pedi autorização, porque eu tinha que variar a eletiva... Aí não tinha como, eu não podia ficar, por mais que eu quisesse, e eu queria, na verdade, ainda tá [cursando a disciplina]. De vez em quando eu peço permissão para participar, nos dias que eu tô mal, de mau humor, aí eles deixam. (Estudante Azaleia)

Desse modo, Bourdieu (2003) assevera que a violência simbólica se constitui sutilmente direcionada aos dominados; é uma “violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas” (Ibid., p. 7), sem que estas percebam que certas posturas são violências simbólicas que prejudicam tanto quanto a violência física. Trata-se de uma violência simbólica reproduzida quase inconscientemente por aqueles que a praticam e por quem a sofre, sem que se perceba de fato a violência praticada, aceitando o que acontece como se fosse algo espontâneo. Assim sendo, é notório nas vozes dos estudantes que, por mais que sintam vontade de participar de outras disciplinas, são sutilmente convencidos(as) a participar de algumas específicas. Nas palavras de uma estudante: “De qualquer forma você é incentivado para fazer outra eletiva, mesmo gostando de outra” (Grupo de discussão).

De acordo ainda com Abramovay (2015), há diversas formas de manifestação das violências na escola, entre as quais podem ser citadas a violência institucional expressa nos problemas de infraestrutura e na falta de docentes ou mesmo de funcionários, as regras e normas determinadas sem que sejam discutidas ou combinadas com a comunidade escolar, a “violência dura”5, manifestada nas agressões físicas, além de outras oriundas de fora do contexto das escolas, destacando-se as gangues, drogas e armas, entre outras.

Existem também as “microviolências”, aquelas que são despercebidas e até naturalizadas sem que haja uma preocupação acentuada a respeito, mas que impacta direta ou indiretamente o público escolar, causando uma convivência fragilizada e um clima inseguro. As microviolências se manifestam no espaço escolar com ofensas diversas, ridicularizações, insultos, apelidos, difamações e/ou palavrões, enfim, uma variedade de expressões que perturba o ambiente das escolas, sem contar as violências referentes às discriminações, como racismo, homofobia e outros preconceitos presentes no chão da escola (Ibid.). Isso se confirma nestes trechos de entrevistas:



- Violência no sentido mais cru da palavra [eu] não [percebo], mas percebo violências ainda piores, que são aquelas de um invadir o outro, né? De atravessar o espaço do outro, numa perspectiva mais sociológica. Então existe violência de negação, né? Dos colegas, assim, é violento, não é? Permitir que o professor de uma turma não participe de uma festa da qual ele faz parte. Isso aconteceu recentemente, e eu achei de uma violência tremenda. (Professor Cravo)



- Tipo, xingar, falar do pai e da mãe, né... E só ameaçar o outro, coisas mesmo bem complicadas. (Estudante Violeta)



- Tipo, violência física não, né? Verbal sim. É, física não, mas verbal eu já vi, existe e muito. Acho que daquela de racismo, né? De pele, de cabelo ou de onde você mora. (Grupo de discussão)

Em vista disso, percebe-se que há inúmeras manifestações das violências no campo escolar que são produzidas e/ou reproduzidas no próprio espaço institucional que geram “impacto direto na qualidade da educação, no modo como os professores e os estudantes desenvolvem seu trabalho em sala de aula, no ambiente escolar e no rendimento dos alunos” (ABRAMOVAY, 2015, p. 18). Por outro lado, também há práticas de enfrentamento dos conflitos e das violências, seja por meio de punições, com a aplicação de regras instituídas pela escola, ou por outros meios, como conversas aconselhadoras, busca de atividades diferentes, brincadeiras e jogos, enfim, tentativas de os sujeitos escolares cotidianamente buscarem construir uma narrativa escolar mais significativa.

A dimensão da luta por outras significações dos conflitos e das formas de enfrentamentos destes e da violência permanece desafiadora na escola. Por assim dizer, entende-se que os sujeitos escolares, nesta pesquisa, perguntavam-se por que não buscar práticas que os auxiliassem no dia a dia escolar para o manejo dos conflitos a partir do seu protagonismo e autonomia, sem ações punitivas e coercitivas que não trazem mudanças e nem significados propositivos.
Considerações finais

A escola pública, sendo um espaço dinâmico e intenso de relações, não se exime de conflitos, até porque estes são inerentes à sociabilidade, assegurando o processo de crescimento e transformação. Por outro lado, o contexto das escolas é afetado pelas manifestações das violências, sob diversas formas e sentidos, sejam elas simbólicas, físicas ou microviolências, interferindo substancialmente nas relações e convivências sociais e, por consequência, no processo de ensino-aprendizagem.

Nessa acepção, percebe-se que tudo isso não está isento dos olhares dos(as) professores(as) e dos(as) estudantes; pelo contrário, suas narrativas revelam inúmeros significados por eles construídos, desde o sentido negativo a respeito do conflito até a similaridade que formulam entre este e as violências. Em outras palavras, os achados deste estudo são baseados nas percepções desses sujeitos no contexto escolar, em suas subjetividades, não exaurindo a complexidade da discussão, mas buscando contribuir para outros debates.

Afinal, o ato de tecer olhares sobre a gestão dos conflitos na escola objetiva refletir sobre o fato de que os entendimentos, a partir dos sujeitos escolares, são bastante significativos, revelando que os conflitos são inevitáveis e que as violências também estão presentes como elementos desafiadores e passíveis de estratégias que possam corroborar seu manejo. Em resumo, tais reflexões são questões que não se esgotam e merecem outros raciocínios.

Referências
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1
Recorre-se ao conceito de violências, no plural, partindo-se da fundamentação de Abramovay (2015), que assim emprega esse vocábulo “para mostrar os diferentes significados da violência e como afetam a ordem, a motivação, a satisfação e as expectativas de todos os que frequentam a escola” (p. 7).
2
Optou-se por nomes de flores, pois simbolizam a beleza, a delicadeza e a diversidade, bem pertinente à fala de cada entrevistado: Alisso, Crisanto, Narciso, Hortência, Rosa, Jacinto, Clívia, Azaleia, Lírio, Cravo e Violeta.
3
Parte-se da concepção weberiana de tipo ideal: “acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isolados dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento” (WEBER, 1991, p. 106).
4
As disciplinas optativas fazem parte da base diversificada do currículo do ensino médio em escolas de tempo integral, contempladas no campo flexível de disciplinas eletivas. Foi instituída pela política de ensino médio em tempo integral da rede estadual de ensino do Ceará. Para mais informações, ver (on-line):https://belt.al.ce.gov.br/index.php/legislacao-do-ceara/organizacao-tematica/educacao/item/5883-lei-n-16-287-de-20-07-17-d-o-21-07-17
5
“O termo ‘violência dura’ se refere a atos e episódios que podem resultar em danos irreparáveis aos indivíduos e, por isso, exigem a intervenção estatal (...). Um exemplo de ‘violência dura’ que se encontra no código penal, as ameaças presentes em todas as escolas mostram-se sob várias formas e intensidades, podendo causar danos físicos e morais para as vítimas” (ABRAMOVAY, 2015, p. 14).
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