quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O QUE A ARTE PODE TOCAR NO PROCESSO EDUCATIVO?

Espaço inventado: o teatro pós-dramático na escola

Carminda Mendes André

UNESP
Doutora pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - USP. Integra-se ao quadro docente do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – UNESP – São Paulo, Brasil. E-mail:
carminda.stenio@uol.com.br



O QUE A ARTE PODE TOCAR NO PROCESSO EDUCATIVO?

Ao repensar Nietzsche, Foucault (2005) defende o conhecimento como uma atividade de invenção humana e desmistifica a idéia de um instinto para o conhecimento. Em tal perspectiva, o indivíduo não vai em busca do conhecimento como impulso de uma natureza inclinada para o esclarecimento, para a curiosidade do saber, sem que algum interesse de ordem política o leve a isso. O conhecimento torna-se uma das estratégias que os homens adotam diante de algo que quer e que precisa dominar; o desejo por conhecimento é motivado pela busca de algo de que temos necessidade e que nos falta.

Ao aproximar tais interpretações da realidade da escola, a educação amplia sua função de divulgadora dos resultados dos projetos científicos ou, no caso do teatro, para além da alfabetização do indivíduo na linguagem da cena produzida por profissionais. Desse modo, a educação adquire a qualidade de se tornar um lugar de invenções, um lugar para se pensar estrategicamente, levando os sujeitos do processo de ensino/aprendizagem a conhecer modos de apropriação das coisas e, quiçá, provocando-os a inventar táticas ou, dizendo de outro modo, "maneiras de fazer" para alcançar aquilo que lhes é vital e que lhes falta.

Nessa perspectiva educativa, não há sentido em ensinar o "como se faz", "técnicas do fazer" teatro; ao contrário, suas formas afloram no bojo das necessidades e da falta de algo que surge entre os sujeitos no processo de ensino/aprendizagem. Sabe-se que tais necessidades não aparecem ao acaso, mas que precisam ser provocadas para sair do silêncio. Isso quer dizer que o modo e a maneira de atuar do professor são de fundamental importância. A ação de sua docência é aquilo que provoca, pois é ela que funcionará, em primeira instância, como "interrupção".

A compreensão de que o conhecimento colhido – as formas artísticas estudadas e produzidas pelo grupo – é resposta às suas provocações é dado fundamental para a orientação do professor. Se ele apresentar aos alunos as problemáticas de um mundo colonial, os conhecimentos gerados provavelmente girarão em torno desse tema. Porém, se ele apresentar contradições que envolvam os sujeitos na atualidade, o conhecimento produzido aproximar-se-á do mundo em que essas formas são geradas. Assim, o educador que conheça as problemáticas que envolvem as produções culturais do ensino e da arte da atualidade terá melhores condições de inventar estratégias que funcionem como "interrupções", produzindo estranhamentos nas imagens de realidade que daí emergem.

Para ilustrar a noção de ação educativa de tipo estratégico, apresenta-se a seguir uma historieta da cultura zen, de autoria anônima, intitulada "A arte da luta":

Havia uma família que tinha um pequeno sítio. O pai trabalhava de sol a sol para garantir que a propriedade ficasse para seus dois filhos quando morresse. Um dia, o pai ficou doente e, antes de morrer, repartiu a propriedade em duas metades iguais, pedindo que os irmãos prestassem ajuda mútua para torná-la cada vez mais produtiva.

E assim aconteceu até que o filho mais velho, casado, insuflado pela mulher, achou que, por ser casado, teria mais necessidades que o irmão mais novo, solteiro. E assim exigiu do irmão, à força, que lhe fosse entregue mais terra. Acuado, o irmão solteiro deixou seu irmão casado ocupar mais espaço de sua terra. Mas a mulher do outro, não satisfeita, convence o marido a conseguir toda a propriedade. O mais novo, não aceitando, acaba por ser expulso de suas terras, posto que o mais velho era muito mais forte.

Sem dinheiro, machucado, o jovem solteiro tornou-se um pedinte errante. Um dia, enquanto caminhava em um vilarejo, observou a presença de vários monges Shaolin comprando comida. Sabia que aqueles monges eram bons em artes marciais. Se pudesse aprender – pensou –, poderia expulsar seu irmão das terras. Seguiu-os, então, de perto e assim que chegaram ao templo pediu para ver o chefe. Contou para o chefe que sofrera uma grande injustiça, que seu irmão apoderara-se de suas terras e que gostaria de aprender a lutar para poder recuperá-las.

O chefe, que era um mestre na compreensão das necessidades humanas, ponderou por alguns instantes e disse:

- Se você estiver realmente decidido a enfrentar um treinamento duro e difícil, você será aceito como aluno aqui.

Aceitando o desafio, no dia seguinte, no amplo terreno do mosteiro, o jovem errante encontrou-se com o mestre, que carregava um bezerrinho no colo, em frente a um pequeno salgueiro, e disse ao aprendiz que, antes de aprender a arte da luta, ele deveria ficar forte. Para isso, o fez segurar nos braços o bezerrinho, instruindo-o a pular sobre o salgueiro 50 vezes de manhã e 50 vezes à tarde.

O aprendiz, obediente, executou a tarefa durante dias, meses e anos. O bezerro havia virado uma vaca e o pequeno salgueiro tornou-se uma grande árvore. Até que um dia o rapaz quis falar com o mestre:

- Mestre, há três anos eu pego a vaca nos braços e pulo sobre a árvore. O senhor não acha que eu já sou forte o suficiente par aprender a lutar?

- Você não precisa aprender mais nada. Seu treinamento na arte da luta já está completo. Agora você tem força suficiente para reconquistar o que deseja. Leve a vaca com você e utilize-a para cultivar a terra.

- Mas... eu não aprendi nada de arte marcial! O que devo fazer se meu irmão vier me bater?

- Não se preocupe. Se seu irmão vier lhe bater de novo, pegue a vaca no colo e corra em sua direção. Não haverá luta!

Desconfiado, o rapaz temeu estar sendo vítima de algum tipo de piada. Mesmo assim, puxou a vaca e deixou o templo Shaolin. Chegando em suas terras, começou a cultivá-las. O irmão mais velho, assim que soube da volta do irmão mais novo, decidiu quebrar-lhe os ossos para que nunca mais ouse voltar.

Enquanto o irmão mais novo cultivava a terra, viu seu irmão, espumando de ódio, correndo em sua direção com um imenso porrete. Imediatamente, lembrou-se do que o mestre havia dito e pegou a vaca no colo, correndo em direção ao seu irmão, que, assustando-se ao ver aquela cena inesperada e não sabendo que o irmão tivesse tanta força, amedrontado, saiu correndo e nunca mais incomodou o irmão mais novo.

Como se produz o conhecimento em tal historieta? Quais as motivações do aprendiz? O jovem está na mendicância e necessita reconquistar suas terras para sair dessa situação. Esse é seu contexto de crise. Para isso, deve aprender a enfrentar seu irmão mais forte. Nesse sentido, a busca do conhecimento não se origina de uma faculdade do saber ou da vocação para o conhecimento, e sim da necessidade de reconquistar algo. O que se quer reconquistar?

A ambição, expressa na voz da cunhada e realizada na atitude agressiva do irmão mais velho, é determinante para as mudanças. Criado o desamor e o ódio entre os irmãos, o contrato social é facilmente rompido. O que gera esse rompimento? Um mundo sem ordem, sem forma, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei. Portanto, é contra esse mundo desordenado que o irmão mais novo lutará. Assim, o que se quer reconquistar é o equilíbrio, a beleza, o saber, a harmonia, para que possam reescrever o contrato social.

Nesse sentido, conhecer não implica sanar o mal e restabelecer o amor entre as partes. Para obter as terras de volta e sair da mendicância, é preciso que o jovem se distancie do afeto que tem ao irmão mais velho e se torne tão ou mais agressivo que ele, que se torne um estranho. Diz Foucault que "é somente nessas relações de luta e de poder – na maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder – que compreendemos em que consiste o conhecimento." (FOUCAULT, 2005, p. 23). Diante disso, pode-se dizer que conhecer implica reconhecer aquilo que nos falta e marcar uma posição estratégica para a reconquista.

O restabelecimento da ordem no mundo da historieta não se faz na luta pela força, mas no efeito de certo modo de lutar que lembra brincadeiras infantis. Se há sapiência na luta é não causar outros desequilíbrios, respeitando a vida. Nesse caso, o conhecimento técnico deve funcionar como uma estratégia, a escolha de um lugar onde se possa ver o oponente e não ser surpreendido por ele; e a ação possa funcionar como tática capaz de surpreender o outro, invertendo as relações de força e sem causar maiores desequilíbrios, para que a situação possa ser estabilizada.

Uma das características instigantes dessa luta é que seu sucesso não se origina da força do guerreiro em posição desfavorável, apesar de estar relacionada a ela; nem em algo extraordinário encontrado no mundo como um presente divino dado ao injustiçado, apesar de tal estratégia estar relacionada ao acaso do encontro com o mestre Shaolin. O jovem injustiçado não é heroificado, pois não foi transformado em uma supernatureza humana potencializada à realização do bem. O conhecimento não depende das qualidades físicas e morais do aprendiz, não é uma faculdade sua, posto que o aprendiz é apenas um homem simples, injustiçado e necessitado. Do ponto de vista do ensino do teatro, esse processo desmistifica a idéia de "dom artístico". Assim, para se fazer teatro não é preciso uma mente diferenciada, mas apenas o sentimento de necessidade e falta de.

Por outro lado, o mestre não ensina nada de extraordinário, algo que não se saiba. Tornar o jovem um sujeito fisicamente forte e presenteá-lo com uma vaca é qualificar o lavrador que ele já é. Buscar uma tática não sangrenta para alcançar o equilíbrio de uma situação também é o óbvio. Mas buscar surpreender o oponente de maneira inusitada é lição básica para quem pretende fazer arte de vanguarda e não de um guerreiro comum. O mestre busca o efeito da surpresa do mesmo modo que o artista, pois sabe que é na surpresa, no choque, no vazio provocado pela "interrupção", que a experiência da transformação pode se dar. A orientação para a "cena da vaca" é motivada a partir de uma ação educativa do tipo estratégica.

Para as finalidades educativas do zen, a historieta termina com a conquista da estabilidade, sem qualquer derramamento de sangue. Nessa perspectiva, o ensinamento coincide com o que se quer dominar: o equilíbrio. Ensinar não é adaptar o sujeito às condições já encontradas, mas delas se utilizar a seu favor; nem é mostrar resultados de situações passadas, já dominadas; ensinar é agir nas necessidades imediatas do aprendiz, inventando estratégias para a luta em produzir o conhecimento que lhe permitirá adquirir o que lhe falta. Por essa via de análise, pode-se dizer que aprender, longe de ser informar-se, acumular ou formar alguém, é revelar necessidades e carências já existentes.

Conforme a historieta, diante do pedido do aprendiz, o mestre procura uma maneira de fazer com que ele retome seu ofício de lavrador. Ao nos apresentar certa maneira de aproximar "salgueiro", "vaca" e "força física" de uma cena de teatro, além de mostrar o hieróglifo da identidade do aprendiz, o mestre diferencia conhecimento técnico de saber. O movimento que faz o aprendiz é sair de si para voltar a si. Dessa maneira, o mestre mostra que seu alvo, o saber, não está na luta pela conquista da terra: o aprendiz padece de sua própria identidade e isso lhe turva a consciência de si, fato que somente poderá alcançar na experiência da luta pela própria identidade, caso isso seja possível, ou pela experiência da alteridade.

Por outro lado, a luta faz surgir um espaço, inventado, para fazer acontecer a apropriação desejada. A estratégia usada deve, no entanto, provocar o efeito surpresa, que se estende até o leitor, que ri. O momento do espanto, produzido pela historieta, é semelhante a uma cena de tragédia, pois é cômico e é trágico. No vazio que os sujeitos experimentam, conscientizam-se daquilo que os aterroriza: o medo da privação de, da ausência de.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982008000200007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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