A certeza da incerteza educa
José Leão da Cunha Filho
Em O Banquete, Platão situa o filósofo está entre o ignorante e o sábio. No texto “Conhecer – a busca da certeza sempre incerta”, insistimos em que o ato de filosofar torna-se possível ao admitir a ignorância como condição para saber e o saber como consciência da ignorância. É essa a condição da atitude filosofante em sua origem.
Mas o empreendimento do conhecimento desejou a certeza. E perseguimos esse sonho ao longo desse empreendimento. Por vezes até anunciamos o procedimento para atingi-la. O positivismo ilustra bem essa perspectiva. Entre seus críticos, alternativas determinísticas flertaram com a certeza. De modo que podemos admitir sem reservas que o sonho da certeza inconteste nos perseguiu e ainda persegue.
No século passado, contudo, o sonho da certeza inconteste foi abalado. De um lado, estudiosos da ciência revelaram as fragilidades desse empreendimento e demonstraram o caráter engajado da investigação científica. De outro, resultados obtidos na investigação da matéria e da história concorreram para que a incerteza fosse finalmente admitida como “ambiente metodológico” (DEMO, 2000:10) necessário ao ato de conhecer.
A consciência da incerteza inevitável inaugura uma nova possibilidade para a prática da ciência e de sua contribuição para a humanidade. A incerteza inevitável pode nos educar para a humildade e para a solidariedade.
Maturana e Morin – a lanterna na mão
Diógenes de Sinope (412/403 – 324/321 a. C.) ficou conhecido como o “filósofo da lanterna”, por haver circulado em plena luz do dia com uma lanterna na mão a procura de um homem. Diógenes investia contra as falsas evidências, os diferentes tipos de máscaras, as convenções sociais etc.
De certo modo, é isso que fazem autores contemporâneos como Maturana e Morin. Diante da tendência ainda dominante da certeza inconteste, a metáfora da lanterna aplica-se bem ao trabalho desses autores, incansáveis na busca do reconhecimento da incerteza inevitável. Morin (2000:55) chega a afirmar que “A MAIOR CONTRIBUIÇÃO de conhecimento do século XX foi o conhecimento dos limites do conhecimento. A maior certeza que nos foi dada é a indestrutibilidade das incertezas, não somente na ação, mas também no conhecimento” (grifo do autor).
Maturana nos traz duas contribuições importantes. Em primeiro lugar, rejeita a concepção de inteligência como atributo individual independente. Inteligência não é uma capacidade individual, mas relacional. Nossa ação, na malha das relações sociais, revela nosso comportamento inteligente. O comportamento inteligente é contextual. manifesta-se no contexto. O comportamento inteligente manifesta-se na relação com o outro – “domínio consensual” – e com o meio ambiente – “adaptação ontogênica”. Realiza-se, portanto, através da flexibilidade e da consensualidade:
“...os processos que geram o comportamento inteligente são aqueles que participam no estabelecimento ou ampliação de qualquer domínio de acoplamento estrutural ontogênico e aqueles que participam no operar dos organismos envolvidos em tal domínio” (MATURANA, 1998:14)
Em segundo lugar, para Maturana (2001:32), “todo fazer é um conhecer e todo conhecer é um fazer” e “tudo que é dito é dito por alguém”. Há uma circularidade entre ação e experiência. O que conhecemos é uma perspectiva de conhecimento, entre outras. E ainda assim, conhecimento limitado pelas circunstâncias concretas nas quais foi gerado. Uma vez consolidada, a experiência de conhecer pode revelar e, ao mesmo tempo, ocultar. Por essa razão, é preciso evitar o “hábito de cair na tentação da certeza” (2001:22). Manter-se vigilante é o caminho. A humildade que decorre dessa necessidade nos obriga à convivência de pontos de vistas diferentes; obriga-nos à convivência com o outro. É essa condição que nos compromete: “Não é o conhecimento, mas sim o conhecimento do conhecimento, que cria o comprometimento” (2001:270).
Núcleo de Fotografia
Na mesma perspectiva, Morin adverte que é necessário, na experiência da condição humana, admitir a lição de humildade e de solidariedade que decorre do reconhecimento de que “Conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza” (2000:59).
Maturana e Morin advertem para a urgência de se enfrentar a fragmentação do saber. É ela que impede o conhecimento das relações mútuas e das influências recíprocas existentes entre as partes e o todo.
Preocupado com o risco do erro e da ilusão que o ato de conhecer comporta, Morin aponta para a necessidade de uma educação que realize a “iniciação à lucidez”. Para o autor (2000:20),
“Este conhecimento, ao mesmo tempo tradução e reconstrução, comporta a interpretação, o que introduz o risco do erro na subjetividade do conhecedor, de sua visão do mundo e de seus princípios de conhecimento”.
Entretanto, reconhecer o erro e a ilusão não é tarefa fácil. Maturana (2001:264) insiste que “não percebemos que ignoramos”. Morin (2000:19), por sua vez, lembra que “O reconhecimento do erro e da ilusão é ainda mais difícil, porque o erro e a ilusão não se reconhecem, em absoluto, como tais”. Essa condição oferece o combustível para a resistência à critica e a autocrítica, tanto na perspectiva individual quanto coletiva, isto é, da comunidade científica.
No fundo, a compreensão da condição humana, insiste Morin, prepara-nos para lidar com o inesperado. Significa reconhecer que as idéias e teorias funcionam, às vezes, como cobertores com os quais tentamos nos proteger do imprevisível, do que nos testa e contesta..
Maturana e Morin, ocupando-se dos limites do conhecimento colocados pela condição humana, fundamentam a convivência e a humildade como alternativas para dialogar com a incerteza inevitável. Não somos deuses nem somos tolos. Necessitamos da inquietude e do encontro com os outros.
Educar para o inesperado
Nenhum poder,
um pouco de saber,
um pouco de sabedoria,
e o máximo de sabor possível.
(Roland Barthes)
Quando falamos em aprender a desaprender estamos afirmando que muito do que sabemos funciona como impedimento a que saibamos mais e melhor.
A partir de Maturana, algo que precisamos desaprender é certamente a noção de inteligência como atributo individual e independente. Dizemos que as pessoas são mais ou menos inteligentes, como se fossem dotadas de capacidades maiores ou menos, como recursos individuais disponíveis. Essa perspectiva oferece elementos para discriminações de todo tipo. Na escola, tem contribuído para o sucesso de uns e o fracasso de outros. Se nossa inteligência manifesta-se no comportamento, somos inteligentes quando juntos experimentamos as diferenças que nos desafia e nos faz abrir-se para complementar e deixar-se complementar pelos outros. É preciso desaprender o interesse pelo ponto de vista unilateral e definitivo. É preciso desaprender o gosto pela certeza inconteste.
Atualmente, muito se fala em aprender a aprender. Que não se trate, porém, de compreendê-lo como um desafio individual. Importa aprender a aprender solidariamente. E isso só é possível quando nos colocamos a perspectiva da compreensão mútua, conforme adverte Morin. Aprender solidariamente significa colocar-se em vigília contra a sedução da certeza, bem como de distorções decorrentes.
Maturana e Morin fazem pensar somos apenas uma unidade de ignorância que sabe e de saber que ignora. Ninguém detém o saber, ninguém é somente ignorância, insistiu Paulo Freire. Sabemos e ignoramos juntos. O eu e o tu complementam-se na aventura de conhecer.
Saber que constituímos o mundo segundo nossa ação e as circunstâncias concretas em que ela se realiza, exige reconhecer que há diferentes mundos, conforme os diferentes sujeitos, diferentes contextos e diferentes modos de operar. Somos obrigados a reconhecer, entretanto, que a tendência ao que nos é familiar é própria do modo de vida prático-utilitário de que lançamos mão no cotidiano. Nele buscamos a segurança do que nos é comum. Somos apreciadores do confortável. No mundo da ciência, a disciplinarização do saber também favorece a busca do confortável. O próprio conceito de comunidade científica, conforme denunciou Thomas Kuhn, é uma organização por afinidades. De fato, buscamos evitar dificuldades. É o nosso modo mais comum de proceder. Entretanto, a busca do que nos é familiar é um sério obstáculo a desaprender, bem como a aprender solidariamente, pois nos protegemos contra o diferente e o divergente. Em geral, agimos no intuito de evitar as incertezas, quando o necessário é aprender a dialogar com elas. Contudo, as incertezas nos incomodam. Por isso fazemos uso do que sabemos não apenas para removê-las, mas também para ocultá-las.
Na escola, nós os professores, escondemos nossas incertezas nas mangas da autoridade imposta. Os alunos buscam esconder as suas no pacto que estabelecem com seus pares e com os próprios professores. Professores e alunos, via de regra, escondemos nossas incertezas no conforto alienado e alienante da sala de aula.
O uso das novas tecnologias na educação, especialmente o uso da Internet, é um importante golpe no conforto da sala de aula. As novas tecnologias nos obrigam a uma espécie de renascer para o mundo, para um mundo de fronteiras flexíveis, da imprevisibilidade e, sobretudo, da complementaridade. Somos jogados como barcos ao mar, cujo mapa de navegação deve resultar do encontro. Mas não de qualquer encontro. Trata-se, no entender de Morin, do encontro que procura responder a pergunta: que vida queremos viver? Essa condição exige repensar a concepção de diálogo, de conhecimento e de autoria. Com nos disse Paulo Freire, conhecemos mais e melhor quando conhecemos juntos.
É neste sentido que estamos falando em aprender a desaprender como condição para aprender a aprender solidariamente. Por outro lado, devemos considerar que há implicações de natureza política. Aprender solidariamente não significa renunciar a causa dos excluídos. Não devemos concluir pela negação do conflito. Equivaleria, finalmente, a admitir a ciência como braço inquestionável da recomposição da hegemonia dominante. Aprender solidariamente é colocar em pauta a vida nossa, de todos nós, especialmente daqueles de quem ela tem sido perversamente seqüestrada. Mas também a vida do planeta.
Educar é uma atividade voltada para o futuro. E o futuro nos parece cada vez mais marcado pela força do inesperado. A tarefa educativa, longe dos holofotes da certeza, é preparar para a consciência da certeza inevitável e, conseqüentemente, para a competência solidária em lidar com o imprevisível. Importa aprender a enfrentar com alegria a aventura de conhecer tendo a certeza da incerteza, como guia, como lanterna na mão em plena luz do dia.
Saiba mais
DEMO, Pedro. Certeza da incerteza: ambivalência do conhecimento e da vida. Brasília: Plano, 2000.
MATURANA, Humberto. Da Biologia à Psicologia. 3ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
______. A árvores do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma; reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
______. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2000.
Prof. MSc. José Leão da Cunha Filho é diretor do Centro de Ciências da Educação e Humanidades da Universidade Católica de Brasília.
Revista Humanitates
José Leão da Cunha Filho
Em O Banquete, Platão situa o filósofo está entre o ignorante e o sábio. No texto “Conhecer – a busca da certeza sempre incerta”, insistimos em que o ato de filosofar torna-se possível ao admitir a ignorância como condição para saber e o saber como consciência da ignorância. É essa a condição da atitude filosofante em sua origem.
Mas o empreendimento do conhecimento desejou a certeza. E perseguimos esse sonho ao longo desse empreendimento. Por vezes até anunciamos o procedimento para atingi-la. O positivismo ilustra bem essa perspectiva. Entre seus críticos, alternativas determinísticas flertaram com a certeza. De modo que podemos admitir sem reservas que o sonho da certeza inconteste nos perseguiu e ainda persegue.
No século passado, contudo, o sonho da certeza inconteste foi abalado. De um lado, estudiosos da ciência revelaram as fragilidades desse empreendimento e demonstraram o caráter engajado da investigação científica. De outro, resultados obtidos na investigação da matéria e da história concorreram para que a incerteza fosse finalmente admitida como “ambiente metodológico” (DEMO, 2000:10) necessário ao ato de conhecer.
A consciência da incerteza inevitável inaugura uma nova possibilidade para a prática da ciência e de sua contribuição para a humanidade. A incerteza inevitável pode nos educar para a humildade e para a solidariedade.
Maturana e Morin – a lanterna na mão
Diógenes de Sinope (412/403 – 324/321 a. C.) ficou conhecido como o “filósofo da lanterna”, por haver circulado em plena luz do dia com uma lanterna na mão a procura de um homem. Diógenes investia contra as falsas evidências, os diferentes tipos de máscaras, as convenções sociais etc.
De certo modo, é isso que fazem autores contemporâneos como Maturana e Morin. Diante da tendência ainda dominante da certeza inconteste, a metáfora da lanterna aplica-se bem ao trabalho desses autores, incansáveis na busca do reconhecimento da incerteza inevitável. Morin (2000:55) chega a afirmar que “A MAIOR CONTRIBUIÇÃO de conhecimento do século XX foi o conhecimento dos limites do conhecimento. A maior certeza que nos foi dada é a indestrutibilidade das incertezas, não somente na ação, mas também no conhecimento” (grifo do autor).
Maturana nos traz duas contribuições importantes. Em primeiro lugar, rejeita a concepção de inteligência como atributo individual independente. Inteligência não é uma capacidade individual, mas relacional. Nossa ação, na malha das relações sociais, revela nosso comportamento inteligente. O comportamento inteligente é contextual. manifesta-se no contexto. O comportamento inteligente manifesta-se na relação com o outro – “domínio consensual” – e com o meio ambiente – “adaptação ontogênica”. Realiza-se, portanto, através da flexibilidade e da consensualidade:
“...os processos que geram o comportamento inteligente são aqueles que participam no estabelecimento ou ampliação de qualquer domínio de acoplamento estrutural ontogênico e aqueles que participam no operar dos organismos envolvidos em tal domínio” (MATURANA, 1998:14)
Em segundo lugar, para Maturana (2001:32), “todo fazer é um conhecer e todo conhecer é um fazer” e “tudo que é dito é dito por alguém”. Há uma circularidade entre ação e experiência. O que conhecemos é uma perspectiva de conhecimento, entre outras. E ainda assim, conhecimento limitado pelas circunstâncias concretas nas quais foi gerado. Uma vez consolidada, a experiência de conhecer pode revelar e, ao mesmo tempo, ocultar. Por essa razão, é preciso evitar o “hábito de cair na tentação da certeza” (2001:22). Manter-se vigilante é o caminho. A humildade que decorre dessa necessidade nos obriga à convivência de pontos de vistas diferentes; obriga-nos à convivência com o outro. É essa condição que nos compromete: “Não é o conhecimento, mas sim o conhecimento do conhecimento, que cria o comprometimento” (2001:270).
Núcleo de Fotografia
Na mesma perspectiva, Morin adverte que é necessário, na experiência da condição humana, admitir a lição de humildade e de solidariedade que decorre do reconhecimento de que “Conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza” (2000:59).
Maturana e Morin advertem para a urgência de se enfrentar a fragmentação do saber. É ela que impede o conhecimento das relações mútuas e das influências recíprocas existentes entre as partes e o todo.
Preocupado com o risco do erro e da ilusão que o ato de conhecer comporta, Morin aponta para a necessidade de uma educação que realize a “iniciação à lucidez”. Para o autor (2000:20),
“Este conhecimento, ao mesmo tempo tradução e reconstrução, comporta a interpretação, o que introduz o risco do erro na subjetividade do conhecedor, de sua visão do mundo e de seus princípios de conhecimento”.
Entretanto, reconhecer o erro e a ilusão não é tarefa fácil. Maturana (2001:264) insiste que “não percebemos que ignoramos”. Morin (2000:19), por sua vez, lembra que “O reconhecimento do erro e da ilusão é ainda mais difícil, porque o erro e a ilusão não se reconhecem, em absoluto, como tais”. Essa condição oferece o combustível para a resistência à critica e a autocrítica, tanto na perspectiva individual quanto coletiva, isto é, da comunidade científica.
No fundo, a compreensão da condição humana, insiste Morin, prepara-nos para lidar com o inesperado. Significa reconhecer que as idéias e teorias funcionam, às vezes, como cobertores com os quais tentamos nos proteger do imprevisível, do que nos testa e contesta..
Maturana e Morin, ocupando-se dos limites do conhecimento colocados pela condição humana, fundamentam a convivência e a humildade como alternativas para dialogar com a incerteza inevitável. Não somos deuses nem somos tolos. Necessitamos da inquietude e do encontro com os outros.
Educar para o inesperado
Nenhum poder,
um pouco de saber,
um pouco de sabedoria,
e o máximo de sabor possível.
(Roland Barthes)
Quando falamos em aprender a desaprender estamos afirmando que muito do que sabemos funciona como impedimento a que saibamos mais e melhor.
A partir de Maturana, algo que precisamos desaprender é certamente a noção de inteligência como atributo individual e independente. Dizemos que as pessoas são mais ou menos inteligentes, como se fossem dotadas de capacidades maiores ou menos, como recursos individuais disponíveis. Essa perspectiva oferece elementos para discriminações de todo tipo. Na escola, tem contribuído para o sucesso de uns e o fracasso de outros. Se nossa inteligência manifesta-se no comportamento, somos inteligentes quando juntos experimentamos as diferenças que nos desafia e nos faz abrir-se para complementar e deixar-se complementar pelos outros. É preciso desaprender o interesse pelo ponto de vista unilateral e definitivo. É preciso desaprender o gosto pela certeza inconteste.
Atualmente, muito se fala em aprender a aprender. Que não se trate, porém, de compreendê-lo como um desafio individual. Importa aprender a aprender solidariamente. E isso só é possível quando nos colocamos a perspectiva da compreensão mútua, conforme adverte Morin. Aprender solidariamente significa colocar-se em vigília contra a sedução da certeza, bem como de distorções decorrentes.
Maturana e Morin fazem pensar somos apenas uma unidade de ignorância que sabe e de saber que ignora. Ninguém detém o saber, ninguém é somente ignorância, insistiu Paulo Freire. Sabemos e ignoramos juntos. O eu e o tu complementam-se na aventura de conhecer.
Saber que constituímos o mundo segundo nossa ação e as circunstâncias concretas em que ela se realiza, exige reconhecer que há diferentes mundos, conforme os diferentes sujeitos, diferentes contextos e diferentes modos de operar. Somos obrigados a reconhecer, entretanto, que a tendência ao que nos é familiar é própria do modo de vida prático-utilitário de que lançamos mão no cotidiano. Nele buscamos a segurança do que nos é comum. Somos apreciadores do confortável. No mundo da ciência, a disciplinarização do saber também favorece a busca do confortável. O próprio conceito de comunidade científica, conforme denunciou Thomas Kuhn, é uma organização por afinidades. De fato, buscamos evitar dificuldades. É o nosso modo mais comum de proceder. Entretanto, a busca do que nos é familiar é um sério obstáculo a desaprender, bem como a aprender solidariamente, pois nos protegemos contra o diferente e o divergente. Em geral, agimos no intuito de evitar as incertezas, quando o necessário é aprender a dialogar com elas. Contudo, as incertezas nos incomodam. Por isso fazemos uso do que sabemos não apenas para removê-las, mas também para ocultá-las.
Na escola, nós os professores, escondemos nossas incertezas nas mangas da autoridade imposta. Os alunos buscam esconder as suas no pacto que estabelecem com seus pares e com os próprios professores. Professores e alunos, via de regra, escondemos nossas incertezas no conforto alienado e alienante da sala de aula.
O uso das novas tecnologias na educação, especialmente o uso da Internet, é um importante golpe no conforto da sala de aula. As novas tecnologias nos obrigam a uma espécie de renascer para o mundo, para um mundo de fronteiras flexíveis, da imprevisibilidade e, sobretudo, da complementaridade. Somos jogados como barcos ao mar, cujo mapa de navegação deve resultar do encontro. Mas não de qualquer encontro. Trata-se, no entender de Morin, do encontro que procura responder a pergunta: que vida queremos viver? Essa condição exige repensar a concepção de diálogo, de conhecimento e de autoria. Com nos disse Paulo Freire, conhecemos mais e melhor quando conhecemos juntos.
É neste sentido que estamos falando em aprender a desaprender como condição para aprender a aprender solidariamente. Por outro lado, devemos considerar que há implicações de natureza política. Aprender solidariamente não significa renunciar a causa dos excluídos. Não devemos concluir pela negação do conflito. Equivaleria, finalmente, a admitir a ciência como braço inquestionável da recomposição da hegemonia dominante. Aprender solidariamente é colocar em pauta a vida nossa, de todos nós, especialmente daqueles de quem ela tem sido perversamente seqüestrada. Mas também a vida do planeta.
Educar é uma atividade voltada para o futuro. E o futuro nos parece cada vez mais marcado pela força do inesperado. A tarefa educativa, longe dos holofotes da certeza, é preparar para a consciência da certeza inevitável e, conseqüentemente, para a competência solidária em lidar com o imprevisível. Importa aprender a enfrentar com alegria a aventura de conhecer tendo a certeza da incerteza, como guia, como lanterna na mão em plena luz do dia.
Saiba mais
DEMO, Pedro. Certeza da incerteza: ambivalência do conhecimento e da vida. Brasília: Plano, 2000.
MATURANA, Humberto. Da Biologia à Psicologia. 3ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
______. A árvores do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma; reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
______. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2000.
Prof. MSc. José Leão da Cunha Filho é diretor do Centro de Ciências da Educação e Humanidades da Universidade Católica de Brasília.
Revista Humanitates
Poética
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De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O oeste é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.
Em "Antologia Poética", 1954.