A Educação nos anos de chumbo: a Política Educacional ambicionada pela “Utopia Autoritária” (1964-1975)(Parte 2)
por Thiago Pelegrini e Mário Luiz Neves de Azevedo
O CICLO DE REFORMAS EDUCACIONAIS PROPOSTO PELA “UTOPIA AUTORITÁRIA” (LEIS Nº. 5540/68 e 5692/71)
No tocante a educação o governo militar orquestrou uma série de ações que buscavam, em síntese, adequar a política e a organização educacional às determinações econômicas. Assim, o conjunto de medidas tomadas no período refletiu a intenção velada de criar um instrumento de controle e de disciplina sobre a comunidade estudantil e o operariado, possíveis opositores ao regime, a fim de garantir a ampliação da gestão de capital dos grupos hegemônicos que constituíram o apoio civil ao golpe, nomeadamente alguns setores da burguesia nacional e grupos estrangeiros.
Nesse contexto, a atitude inicial foi a inviabilização das iniciativas gestadas pelo impasse da política nacional desenvolvimentista, em especial o projeto de Reforma Universitária, o Plano Nacional de Alfabetização e os núcleos de educação popular (RIBEIRO, 1993). Por conseguinte procurou-se a formulação de um novo ordenamento legal, cujo referencial foi a absorção do discurso economicista na educação, ou seja, a “Teoria do Capital Humano”, a subordinação das estruturas de ensino aos interesses dos círculos conservadores responsáveis pelo golpe atrelados aos da burguesia internacional e o arrefecimento do movimento estudantil (FRIGOTTO, 1999).
Nesse contexto, os acordos MEC-USAID concentraram as acepções essenciais que posteriormente informaram os caminhos que deveriam ser seguidos pelos responsáveis pela formulação da política educacional nacional para o ensino superior: a racionalização do ensino, a prioridade na formação técnica, o desprezo as Ciências Sociais e Humanas, a inspiração no modelo empresarial e o estabelecimento de um vínculo estreito entre formação acadêmica e produção industrial (ROMANELLI, 1987).
Em resumo, propunha-se a sujeição cultural necessária aos anseios de dominação ideológica contidos na política imperialista norte-americana do período pós-segunda guerra, através da imputação dos “ideais empresariais do “american way of life”, em todas as instâncias educacionais dos países periféricos” (SANTOS E AZEVEDO, 2003, p.4). O direcionamento referido foi incorporado quase que integralmente ao texto da Lei 5540/68, conhecida como Lei da Reforma Universitária.
Entretanto, as ações imediatas que motivaram a implementação da Lei foram originadas pelo acúmulo de pressões, essencialmente das camadas médias, a favor da ampliação das possibilidades de acesso à Universidade. Os anseios pela formação universitária foram consubstanciados pelo processo de afunilamento dos canais de ascensão social desencadeado pela concentração de renda, propriedade, mercado e capital associada ao desenvolvimento dependente, transformando a escolarização na via central de elevação social.
Nesse sentido, as mobilizações estudantis orientadas pela ideologia nacional-desenvolvimentista que se confrontava diretamente com o modelo político-econômico adotado, constituindo-se em um foco de resistência organizada ao regime. A eclosão de protestos e passeatas estudantis nos anos de 1966 e 1967, ancorados na denúncia dos acordos MEC-USAID e do caráter elitista da universidade brasileira, potencializou a intenção saneadora que revestia os discursos do regime desde meados de 1964 (PELEGRINI, 1998).
Em face da aparente crise instalada e em coerência com o seu projeto societário conservador, o governo militar optou por provocar a ruptura necessária no âmbito educacional, à manutenção da ordem sócio-econômica.
No texto da referida lei a incorporação da tônica discursiva identificada com o economicismo educativo, sobressalta-se nas recomendações que orientam a organização universitária dispostas no artigo 11º. De tal modo, que na alínea b propõe-se estruturação em departamentos e nas alíneas d e f, expõe-se a racionalização da organização e a flexibilização de métodos e critérios:
(...) b) estrutura orgânica com base em departamentos reunidos ou não em unidades mais amplas; (...) d) racionalidade de organização, com plena utilização dos recursos materiais e humanos; (...)f) flexibilidade de métodos e critérios, com vistas às diferenças individuais dos alunos, às peculiaridades regionais e às possibilidades de combinação dos conhecimentos para novos cursos e programas de pesquisa (BRASIL, 1968).
Essas medidas inscritas no ideário economicista atendiam, mesmo que precariamente, a necessidade de expansão universitária e acréscimo de vagas, diminuindo temporariamente as pressões exercidas pelas reivindicações estudantis à ampliação de vagas na universidade. Esse mecanismo foi complementado pela adoção do vestibular unificado e classificatório que “eliminou” artificialmente os candidatos excedentes.
Em referência ao exposto, nota-se que o texto de lei formulado ao combinar os princípios de racionalização e contenção alcança êxito parcial na dissolução dos problemas que receavam os tecnocratas e liberais ligados às determinações educacionais oficiais. Em outras palavras, conseguiu-se “diminuir a pressão sobre a universidade, absorvendo o máximo de candidatos e disciplinando-os posteriormente, alegando medidas de racionalização dos recursos” (FREITAG, 1986, p.84).
Em complemento aos mecanismos mencionados buscou-se refrear o afluxo à universidade sob duas ações: a retenção do aluno antes de chegar ao 3º nível de ensino e a legitimação de sua expulsão. A primeira foi efetivada pela Lei 5692/71 que regularizou o ensino profissionalizante, a segunda foi solucionada pela imposição de uma média mínima e pelo “jubilamento” (SAVIANI, 1982).
Não obstante, o texto da Lei 5540/68 revestiu-se também do caráter autoritário e desmobilizador que caracterizou a quase totalidade dos atos do regime militar. De tal modo que além de enfatizar no art. 16, parágrafo 4º “a manutenção da ordem e disciplina”, demonstra-se uma preocupação saneadora, ainda pouco sistematizada, pelo oferecimento de formação cívica e física aos estudantes (BRASIL, 1968). Atividades que posteriormente catalisariam os impulsos doutrinários do regime militar[1].
A própria reforma estrutural serviu aos interesses de contenção dos protestos dos estudantes e professores universitários. Como bem observa Saviani,
(...) ao instituir a departamentalização e a matrícula por disciplina com o seu corolário, o regime de créditos, a lei teve, observando o seu significado político, o objetivo de desmobilizar a ação estudantil que ficava impossibilitada de constituir grupos reivindicatórios, pois os estudantes não permaneciam em turmas coesas durante o curso (1987, p.95).
Em suma, a política educacional instituída precisou adaptar o sistema educacional ao atendimento dos interesses da estrutura de poder edificada, propagando seu ideário, reprimindo seus opositores e reestruturando uma tripla função: a reprodução da força de trabalho, a conservação das relações de classes e a eliminação de um dos principais focos de dissenso político.
A lei nº 5692/71 completa o ciclo de reformas educacionais geradas com o intuito de efetuar o ajustamento necessário da educação nacional à ruptura política orquestrada pelo movimento de 64. Com a nuance de efetivar-se em uma conjuntura política caracterizada pelo ápice da ideologia do “Brasil-potência”, no qual o regime militar havia se consolidado, eliminando as resistências mais significativas, e adquirido um discurso magnificente na exaltação do sucesso do seu projeto de manutenção do poder.
Nesse sentido, o enunciado contido no texto de lei não só continha um tom triunfante, como demonstrava a intenção de manutenção do status quo no âmbito educacional, necessário a perpetuação do “bem-sucedido” modelo sócio-econômico.
Dessa forma, foi preciso realizar uma alteração na estrutura e funcionamento do sistema educacional, dando nova roupagem à pretensão liberal contida no texto da Lei nº. 4024/61[2], assumindo uma tendência tecnicista como referencial para a organização escolar brasileira.
A “nova” orientação dada à educação representava a preocupação com o aprimoramento técnico e o incremento da eficiência e maximização dos resultados e tinha como decorrência a adoção de um ideário que se configurava pela ênfase no aspecto quantitativo, nos meios e técnicas educacionais, na formação profissional e na adaptação do ensino as demandas da produção industrial.
Os dois últimos aspectos mencionados são evidenciados pela leitura das alíneas a e b, do parágrafo 2º do artigo 5º:
(...) a) terá o objetivo de sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho, no ensino de 1º grau, e de habilitação profissional, no ensino de 2º grau; b) será fixada, quando se destina a iniciação e habilitação profissional, em consonância com as necessidades do mercado de trabalho local ou regional, à vista de levantamentos periódicamente renovados (BRASIL, 1971).
A profissionalização referida pela lei assenta-se sobre a intenção de estabelecer-se uma interação direta entre formação educacional e mercado de trabalho, admite-se inclusive no artigo 6º a co-participação das empresas para a concretização desse processo (BRASIL, 1971).
Articulava-se a essas características um princípio de flexibilização da legislação educacional que apesar de uma aparente “contrariedade” e “liberalização”, em essência, representava um instrumental valioso para a concretização dos desejos do poderio militar de impor suas determinações educacionais. A esse respeito Saviani (1987) salienta que
(...) pela flexibilidade as autoridades governamentais evitavam se sujeitar a definições legais mais precisas que necessariamente imporiam limites à sua ação, ficando livres para impor à nação os programas educacionais de interesse dos donos do poder. E com a vantagem de facilitar a busca de adesão e apoio daqueles mesmos sobre os quais eram impostos os referidos programas (p.131).
A preocupação com a disciplinarização do alunado demonstrada na Reforma Universitária (Lei nº 5692/71) também foi considerada e manifestou-se por meio do artigo 7º que regulamentou a obrigatoriedade das disciplinas de Educação Moral e Cívica e Educação Física nos ensino de 1º e 2º graus (BRASIL, 1971).
Em resumo, a Lei nº 5692/71 ao propor a universalização do ensino profissionalizante pautada pela relação de complementaridade entre ideologia tecnicista e controle tecnocrático almejou o esvaziamento da dimensão política da educação tratando-a como questão exclusivamente técnica, alcançando, ao mesmo passo, a contenção da prole trabalhadora em níveis inferiores de ensino e sua marginalização como expressão política e reivindicatória.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em face da argumentação apresentada no decorrer do artigo, pode-se concluir que a legislação educacional foi impregnada com os princípios de controle e harmonização social atrelados à formação com base no arquétipo empresarial contidos no bojo da política expansionista norte americana do pós-segunda guerra para a América Latina.
Nessa direção, as duas reformas arquitetadas no período tiveram como horizonte o combate aos principais focos de resistência ao regime e o atendimento das exigências do capital nacional associado. Dessa maneira, a Reforma Universitária (Lei nº 5540/68) cumpriu a dupla função de promover o abrandamento da resistência estudantil ao regime e do estabelecimento de uma junção entre produção e formação universitária.
Não obstante, a Reforma do ensino de 1º e 2º (Lei nº 5682/71) graus direcionou suas determinações a contenção do movimento operário e a institucionalização da formação profissionalizante necessária ao incremento da produção ambicionada pela burguesia industrial e ancorada na qualificação mínima dos trabalhadores industriais.
Por fim, destaca-se o imperativo de ampliar o já instituído debate crítico que contraria o processo histórico de ressignificação das teorias educacionais reacionárias incorporadas durante o regime militar no Brasil. Apresentando como contraponto essencial o conhecimento histórico de sua gênese e intuito, qual seja, o cerceamento dos movimentos reivindicatórios e a maximização dos interesses do capital nacional associado.
Referências
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[1] Ver Decreto Lei nº 68.065/71 (dispõe sobre a inclusão da Educação Moral e Cívica como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades dos sistemas de ensino no País, e dá outras providências) e 69.450/71 (regulamenta o artigo 22 da Lei número 4.024, de 20 de dezembro de 1961, e alínea do artigo 40 da Lei 5.540, de 28 de novembro de 1968 e dá outras providências).
[2] Lei promulgada em 20 de dezembro de 1961, fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Publicacao Historia e Historia - UNICAMP
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