segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A criança é um ser de cultura

A criança é um ser de cultura
A favor de um trabalho integrado na educação infantil, Elvira Souza Lima diz que a criança está empobrecida e defende um pacto entre adultos pela nova geração

Juliana Holanda


Elvira: A neurociência revelou a importância do papel do adulto. (Foto: Gustavo Morita)

Difícil definir a linha teórica de Elvira Souza Lima. Antropóloga, psicóloga, com formação em música, especialista em neurociências, a pesquisadora em desenvolvimento humano tem se dedicado à pesquisa aplicada nas áreas de educação, mídia e cultura. A intersecção de conhecimentos resulta em uma leitura do universo infantil que integra o desenvolvimento biológico com a cultura. Elvira admite que, para ela mesma, foi uma revolução entender que a criança é um ser de cultura. Preocupada em criar instrumentos para o professor trabalhar com as crianças, ela lançou uma coleção de DVDs para trazer "uma experiência mais humana" na formação docente (http://livros107.blogspot.com). Eles foram desenvolvidos a partir de cada uma das 17 áreas mobilizadas pelo cérebro para a leitura: ritmo, rima, semântica, sintaxe, memória auditiva... a ideia é incentivar práticas culturais que levem a desenvolver essas áreas na criança da educação infantil. "Que é o que eles não fazem, já põem a criança para começar a escrever", diz Elvira nesta entrevista concedida à Educação Infantil, série especial da revista Educação.

A senhora é uma estudiosa do processamento da imagem no cérebro humano. Como isso pode ser trabalhado na educação infantil?
A criança da educação infantil está cada vez mais empobrecida. Ela não brinca por causa da condição urbana; não desenvolve música, e sabemos da importância disso do ponto de vista da neurociência. Entender a criança como ser de cultura é a coisa mais difícil para um adulto hoje. A criança ficou muito marcada pela psicologia, por essa psicologização da educação infantil. Então, a ideia é trabalhar numa perspectiva integrada, da cultura e do biológico, do desenvolvimento que é da espécie, aproveitando esse avanço enorme que a neurociência tem trazido em relação ao conhecimento dos processos internos e também sobre o papel do adulto. Quanto mais avança a neurociência, mais fica claro que nessa infância o papel do adulto é muito grande.

Diante dessa importância do adulto, qual a posição do professor? O professor tem de ter um repertório teórico, mas ao mesmo tempo entender em que fase de desenvolvimento a criança está?
Entender o desenvolvimento da criança não está tão disponibilizado para o professor. São dois lados: um é o conhecimento do desenvolvimento infantil, que esse realmente nós temos. Mas a riqueza, a diversidade, ou a importância desse período de desenvolvimento, e por outro lado a importância do adulto, essa visão da criança como um ser de cultura, é o que está faltando hoje. Porque ficou muito voltado para desenvolver a criança naquela ideia de que quanto mais antecipar os conhecimentos, mais inteligente ela fica.

Quer dizer, não é preciso hiperestimular a criança. O importante é o professor perceber se ela está bem desenvolvida para a fase em que se encontra?
Exatamente. Você pode até fazer contextos ricos, mas ela tem de desenvolver a imaginação, desenvolver acervos de memória. E ficou muito cognitivo, ler e escrever o nome virou uma marca de inteligência e isso sacrifica o próprio desenvolvimento simbólico da criança. Para esse desenvolvimento infantil, é preciso o desenvolvimento cultural do próprio professor. O repertório do adulto não tem de ser só "o que eu vou fazer com a criança". Tem de ser o de uma pessoa que cuide da própria sensibilidade. A própria criança tem comportamentos de imitação, os neurônios-espelhos. Ela tira dos contextos em que está uma série de coisas que vão para a memória dela, então os acervos de memória são fundamentais.

O que são os neurônios-espelho?
São neurônios descobertos recentemente pela neurociência. Por exemplo, você está fazendo esse movimento e para isso você está mexendo alguns neurônios na sua cabeça. Enquanto te observo, eu não estou mexendo com o córtex visual, mas estou movimentando na minha cabeça os neurônios motores que fazem esse movimento. Por isso, temos cada vez mais a noção da importância desse adulto que interage com a criança. O papel do adulto hoje não é um papel só de adulto educador. Do ponto de vista antropológico estamos falando da "geração de adultos" que é responsável por formar as novas gerações.

Então estamos falando também da importância da família.
Estamos falando de comunidade, o que é uma questão fundamental. Porque você não secciona a criança que está na escola e a que está na comunidade. Essa parceria entre adultos nós não temos. Não estou nem falando da parceria escola e família, estou falando de adultos numa comunidade, que às vezes a gente vê em grupos indígenas, em que todos são responsáveis por aquele grupo de crianças. A escola é isso: um lugar especial para socializar para as novas gerações um conhecimento que não passa no cotidiano, porque, se passasse no cotidiano, não precisava da escola.

E qual o papel da escola nesse contexto? Que peso ela tem diante da formação da criança frente ao que está em volta?
É a questão simbólica, principalmente qualitativa. A idade que ela entra faz diferença, não é nem melhor nem pior, mas vai fazer diferença. Uma criança na creche no primeiro ano de vida, por exemplo, já se constitui como ser de cultura incluindo a escola. Se ela chega num terceiro ou quarto ano de vida é outra coisa, vem com certos padrões de comportamento formados e certo padrão de identidade cultural, mas isso não impede que ela os amplie. Tem muito a ver com a qualidade do que se faz em relação aos processos de desenvolvimento, porque esses não mudam, indo para a escola ou não. Na escola aprendemos coisas, mas o desenvolvimento humano tem parâmetros que são da própria espécie. Por exemplo: não precisa ir para a escola para aprender a desenhar, a criança vai fazer as figuras geométricas, indo ou não à escola. Então, o desenvolvimento da espécie é um referencial fundamental para a educação, porque a educação tem de se adequar a esse desenvolvimento, não forçar a criança no que achamos que ela tem de fazer.

Diante desse conhecimento quanto ao desenvolvimento da criança, quais são os períodos que o professor pode ter como referencial?
Existem marcas que são biológicas da espécie, marcas nos processos de atenção. O primeiro período é o do cérebro entrar em funcionamento. A criança nasce, algumas áreas estão funcionando e pouco a pouco vão entrando as outras. No terceiro ano de vida, ela vai ter todas as áreas funcionando como do adulto. Também nesse momento a criança tem o dobro da glicose circulando no cérebro, o dobro da sinapse em relação ao adulto, então ela tem uma energia enorme. Aí ela começa outro período no qual o grande eixo é a função simbólica. É o momento de construir essa base que caracteriza a espécie humana, trabalhar com símbolos, com representações que têm uma sintaxe, uma organização. Uma das mais importantes é a sintaxe visual, as imagens, percepção do corpo dela no espaço, da brincadeira de faz de conta, do desenvolvimento de narrativas que vão estar no desenho, na música. A criança tem essa capacidade de construir ou de desenvolver várias formas de comportamento e se adequar, mas ela precisa realizá-los. E um dos problemas hoje é que cada vez mais a criança pequena realiza menos: ela assiste a muita televisão, fica na internet, usa pouco o corpo, se movimenta pouco.

A construção da função simbólica se dá em qual faixa etária?
Mais ou menos dos 3 aos 6 anos seria um eixo fundamental para trabalhar os sentidos de várias formas. Essa é uma grande contribuição recente da neurociência. Pensávamos que as imagens mentais eram construídas a partir de coisas que você vê, mas construímos a partir de todos os sentidos. Por isso, faz toda a diferença a relação dela com o meio.

Qual o efeito, então, para a criança que fica diante da televisão e do videogame durante boa parte do dia?
Nesse caso, não é uma imagem tridimensional, geralmente é uma imagem bidimensional, em que ela desenvolve um padrão de atenção específico. Por isso, precisamos ter um currículo que diga que nós não vamos ficar fazendo apenas desenho geométrico. Aos 2 anos, é possível trabalhar com diferentes tamanhos de papel, texturas, ter essa diversidade para promover esse desenvolvimento.

Qual a importância do desenho nessa fase?
O desenho é um produto cultural da criança. A visão psicológica diria que a criança está se representando, mas na verdade não é a alma que se mostra no desenho, mas o mundo simbólico que está à sua volta. Então, vem a grande importância da educação infantil hoje. Olhar o desenho como um produto cultural é uma revolução.

E a imaginação, por que ela deve ser trabalhada na escola?
Hoje sabemos que, se você mentalizar, está desenvolvendo as redes neuronais. Então, a imaginação toma uma dimensão completamente outra. Entender o que é imaginação e trabalhar com o desenvolvimento da imaginação da criança seriam um eixo quase curricular.

Mas tem-se a ideia de que a imaginação da criança é algo quase natural.
Não, a imaginação tem de ser estimulada. Você cria acervos de memória e possibilidades. A imaginação é a possibilidade de trabalhar com acervos que você tem fazendo outras relações. Um dos grandes problemas é que as crianças não são educadas para isso. Crianças que trabalham a imaginação têm um acervo para lidar, uma educação dos sentidos.

E quando ela não tem a educação dos sentidos e tem um desenvolvimento simbólico pobre?
Se for fragmentado, vai ter problemas lá na frente.

De que tipo?
Problemas de aprendizagem de conhecimentos escolares, na apropriação da escrita. Estamos vivendo isso hoje no Brasil. Outras coisas que deixa de aprender, como o processo de tomada de decisão, que é aprendido nas brincadeiras. Se estamos trazendo a brincadeira para a escola porque não tem mais brincadeira de rua, os adultos têm de ter uma grande parceria. Mas é uma parceria entre a geração de adultos para criar bem a geração da infância. E hoje nós não temos isso. A criança precisa desse referencial do mundo dos adultos que a família extensa tinha. Nós temos que estabelecer de novo uma solidariedade, eu diria, um pacto pela infância.

Como isso se dá no momento da alfabetização?
A alfabetização está muito marcada pelo esperar ser ou "fazer isso para ser aquilo". Quando trabalhei na educação infantil na França, o currículo tinha uma carga de alfabetização para a criança de 4 anos. Hoje, são horas de poesia, música, movimento. A França é um país que realmente mexeu muito a partir dessas descobertas. Sabemos hoje que o sistema emocional modula as memórias, então a participação da emoção é o que dá possibilidade do desenvolvimento simbólico e da utilização desses símbolos de várias maneiras. Esse movimento da criança, esse fazer, é a matéria-prima que ela tem para se constituir como sujeito.

Ao mesmo tempo vemos a ansiedade pela alfabetização.
No Brasil está fortíssima.

Como a escola pode lidar com essa pressão?
É uma questão hoje do diálogo dos adultos. Tenho falado muito para os pais. Precisamos todos ser educados com relação à criança, é algo que não diminui ninguém, porque não tínhamos a amplitude de conhecimento que temos hoje sobre a criança pequena, tudo é muito recente. Esse é o momento para aprender a ser adulto na sociedade também.

E como fazer a transição entre essa fase e a escrita?
Nós identificamos escrita com o ato de escrever. Só que a alfabetização acontece internamente, é preciso o desenvolvimento da função simbólica para formar acervos de memória. Isso não se forma escrevendo no papel, mas trabalhando com narrativas, dramatização, desenho. O domínio da parte gráfica da escrita acontece a partir do sexto ano de vida, então antecipar o processo muitas vezes cria sentimentos de fracasso. Ou seja, a questão do desenvolvimento e da perícia do movimento tem de ser respeitada.

Esse sentimento de fracasso também pode vir pela comparação de desempenho das crianças. Como lidar com isso?
As pessoas também criam memórias do tipo "fulano nessa época fazia não sei o que" e isso é péssimo. O conhecimento tem de ser um trabalho coletivo, mas tem uma dimensão individual. É um cérebro que aprende. Nós estamos falando muito no Brasil da função social da escrita, mas a escrita tem um papel de desenvolvimento pessoal. Tem toda uma estrutura simbólica que é da pessoa e a escrita, nessa função individual, é fundamental, de comunicação consigo mesma, de esclarecimento do pensamento.

O desenvolvimento infantil é respeitado hoje?
Não, muito pouco. Mas não porque as pessoas são "do mal", mas porque há um desconhecimento enorme e porque estamos num momento de predomínio muito grande da psicologia na educação. Parece que a psicologia é pedagogia. Psicologia não é pedagogia. Temos uma desvalorização muito grande da docência e da escola, porque fica muito fácil ficar falando mal da escola, só que a escola é uma conquista cultural da humanidade, ela tem cinco mil anos e é bem-sucedida, até hoje conseguiu garantir a continuidade do conhecimento formal, que é um direito de todos. Agora, ensinar a todos é um desafio, nós não sabemos ensinar a todos. Tem fronteiras que não conhecemos e as possibilidades estão na espécie. Essa criança hoje é uma desconhecida.

E o que pode ser feito na prática para embasar a formação dos professores?
Pessoalmente, acho que as áreas de conhecimento que trabalham com o ser humano são fundamentais para o professor: neurociência, no sentido da memória, da percepção, do que é essa função simbólica, que ele trabalha o tempo todo e não sabe nada, nem da dele nem da infantil. Mas o que falta realmente é planejamento de método. E o professor que trabalha com infância tem de se alimentar na sua própria imaginação o tempo todo.

Revista Educação

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