A LINGUAGEM NA ESCOLA: UM OLHAR SOB A PERSPECTIVA DA ECONOMIA DAS TROCAS LINGÜÍSTICAS
Maria Celeste Said S. Marques
Professora de Análise do Discurso
marques@enter-net.com.br
Maria Celeste Said S. Marques
Professora de Análise do Discurso
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A Sociolingüística ao explicar a covariação entre os fenômenos lingüísticos e os fenômenos sociais, revela as diferenças de dialetos determinadas pela classe social do falante. Hoje, na escola brasileira, essas diferenças geram antagonismos acentuados por estarem presentes classes sociais que historicamente dela estiveram ausentes.
Os professores, quase sempre de classe média, não percebem que muitos alunos nem entendem o vocabulário mais elaborado usado na escola. Por vezes, nem compreendem muitas palavras usadas pelas crianças; nem percebem que tais palavras fazem parte da rica herança cultural do grupo social a que pertencem.
Grande parte das pesquisas e estudos feitos a respeito das causa do fracasso escolar, principalmente entre crianças vindas de ambientes mais pobres, demonstram que uma das dificuldades está na área da Linguagem.
A perspectiva de Bourdieu sobre a economia das trocas lingüísticas é muito produtiva para se compreender os problemas de linguagem que ocorrem na escola pelo fato de ter deslocado o ângulo de análise da caracterização da linguagem para a caracterização das condições sociais onde ocorre.
Para o autor, na sociedade capitalista, os bens materiais (como a força de trabalho, as mercadorias, os serviços) e os bens simbólicos (como os conhecimentos, as obras de arte, a música, a linguagem etc) circulam em relações de trocas desiguais. As relações de forças materiais separam os dominantes dos dominados através da posse dos meios materiais e as relações de força simbólicas através dos meios simbólicos. Dessa forma, segundo o referido autor, “não se deve esquecer que as trocas lingüísticas – relações de comunicação por excelência – são também relações de poder simbólico onde se atualizam as relações de força entre os locutores ou seus respectivos grupos” (p.24).
Conforme Bourdieu, o modelo de produção e circulação lingüística é uma relação entre os habitus lingüísticos (as disposições, socialmente modeladas) e os mercados lingüísticos nos quais eles oferecem seus produtos. A sua análise da economia das trocas lingüísticas oferece instrumentos para se compreender fenômenos relativos à produção, distribuição e consumo da linguagem inscritos nas relações sociais, dentre elas, a escolar.
Escola: um mercado lingüístico
Na escola, os locutores (sobretudo, professores e alunos) instauram relações de comunicação lingüística em condições sociais concretas que, segundo Bourdieu, funciona como um mercado lingüístico.
Desde os primeiros anos de escola, a criança (sobretudo das camadas populares) começa a prender uma língua estranha, que raramente é a sua ou de seus pais: trata-se da língua escolar padrão, a única reconhecida pela escola como correta.
Toda a maneira espontânea de falar da criança (expressões, frases, pronúncia, etc.), que não correspondem às normas da língua escolar, é constantemente corrigida, reprimida, penalizada pelo professor para que, de correção em correção, todas as crianças falem a língua exigida pela escola.
Se a criança demonstra não saber exprimir o que deseja, se não consegue entender direito as explicações da professora, nem consegue fixar instruções um pouco longas, ou se tem vergonha de falar na escola, muitas vezes a dificuldade é entendida como tendo origem na criança e que ela deve ser corrigida. Entretanto, em sua casa, essa criança consegue se comunicar perfeitamente, de falar a língua portuguesa com desembaraço em várias circunstâncias de sua vida. Segundo Bourdieu (1998:32),
“A língua oficial está enredada com o Estado, tanto em sua gênese como em seus usos sociais. É no processo de constituição do Estado que se criam as condições da constituição de um mercado lingüístico unificado e dominado pela língua oficial: obrigatória em ocasiões e espaços oficiais (escolas, entidades públicas, instituições políticas etc.), esta língua de Estado torna-se a norma teórica pela qual todas as práticas lingüísticas são objetivamente medidas. Ninguém pode ignorar a lei lingüística que dispõe de seu corpo de juristas (os gramáticos) e de seus agentes de imposição e controle (os professores), investidos do poder de submeter universalmente ao exame e à sanção jurídica do título escolar o desempenho lingüístico dos sujeitos falantes”.
Muitas crianças, para não correm o risco de serem criticadas por falar “errado”, preferem calar a boca e reduzir o que tiverem de escrever ao mínimo possível, para não se expor às observações do tipo “pobreza de vocabulário”, “falta de sentido”, “erro ortográfico”, etc. Segundo a perspectiva de Bourdieu, as palavras são bens que são trocados, na escola. O falante (o aluno) coloca seus produtos nesse mercado lingüístico que é:
“estritamente sujeito aos veredictos dos guardiões da cultura legítima, o mercado escolar encontra-se estritamente dominado pelos produtos lingüísticos da classe dominante e tende a sancionar as diferenças de capital preexistentes. O efeito acumulado de um fraco capital escolar e de uma fraca propensão a aumentá-lo através do investimento escolar que lhe é inerente condena as classes mais destituídas às sanções negativas do mercado escolar, ou seja, à eliminação ou à auto-eliminação precoce acarretada por um êxito apagado. Os desvios iniciais tendem, portanto, a se reproduzir, pelo fato de que a duração da inculcação tende a variar tanto quanto seu rendimento, fazendo com que os menos inclinados e menos aptos a aceitar e a adotar a linguagem escolar sejam também os que se expõem menos tempo a essa linguagem, bem como aos controles e sansões escolares” (Bourdieu, 1998:50).
Com efeito, Bourdieu reflete sobre a relação professor-aluno, mostrando-a como tensa e não instaurada sobre a singularidade dos alunos. Caminhando nessa mesma direção de análise Alkmin et alii afirma que é necessário muito mais
“pensar a realidade social do que a realidade lingüística. Sabemos que a utilização da língua é regida por um conjunto de regras sociais que regulam a pertinência ou não, a adequação ou não dos comportamentos lingüísticos. Ou seja, tanto para a escrita como para a fala, existem restrições e assentimentos quanto ao seu uso: há punições previstas para quem infringe essas regras que vão desde estar exposto à galhofa até não ser aceito em empregos, por exemplo. Não podemos perder de vista que a hierarquização das formas lingüísticas é calçada em valores que refletem a estrutura de uma sociedade, no caso da nossa, a de uma sociedade de classes (grifo nosso).
No mercado lingüístico, por exemplo, o escolar, em que a modalidade de linguagem legítima domina e se impõe, o aluno aprende também as condições de sua aceitabilidade, que Bourdieu (1998) chama de aceitabilidade sociológica e não lingüisticamente como faz Chomsky; para ele, aceitabilidade não é apenas o uso da língua intuitivamente “gramatical” ou “normal” (como diz Chomsky), mas um uso da língua que engloba tanto as leis propriamente lingüísticas da gramaticalidade internalizadas pelo falante quanto a formação de preços característicos do mercado em questão. Isto significa que “as condições de recepção antecipadas fazem parte das condições de produção, e a antecipação das sanções do mercado contribui para determinar a produção do discurso” (Bourdieu, 1998:64).
Em suma, a escola é lugar onde a aquisição do capital cultural e do capital lingüístico pelo falante acontece de por meio de um processo formal e intencional de inculcação de regras explícitas. O mercado lingüístico escolar tem a especificidade de ser uma instância social a serviço do mercado cultural e lingüístico dominante para reproduzir e difundir a linguagem legítima que confere aceitabilidade. Dessa forma, é oportuno perguntar: como a escola trata das diferenças dialetais? É o que se discutirá a seguir.
O dialeto e língua legítima
Todo falante nativo usa sua língua de acordo com as regras específicas de seu dialeto, reflexo da comunidade lingüística a que pertence. Dessa forma, há diferenças entre as regras de um modo de falar de um dialeto e o de outro. Como afirma Alkmin et alii (19991:25), “[...] a língua é um complexo de variantes e não existe superioridade de uma variedade sobre a outra”. No entanto nem todos possuem o mesmo valor no mercado, visto que a presença de grupos hierarquizados é a condição para a instauração de relações de dominação lingüística. Como explica Bourdieu, no mercado lingüístico (e, neste ensaio, em particular o escolar), o valor dos produtos lingüísticos (seu preço) rende lucro para o falante, cujas características lingüísticas correspondam às posições econômicas e sociais privilegiadas. A linguagem legítima é aquela dos grupos dominantes. Ela se converte em capital lingüístico, favorecendo a obtenção de lucro por aqueles que o detêm. Com efeito, conforme Bourdieu (1998:41),
“ao privilegiar as constantes lingüisticamente pertinentes em detrimento das variações sociologicamente significativas para construir este artefato que é a língua 'comum', tudo se passa como se a capacidade de falar, mais ou menos universalmente difundida, fosse identificável à maneira socialmente condicionada de realizar esta capacidade natural, cujas variedades são tantas quanto as condições sociais de aquisição”.
Para Bourdieu, as diferenças lingüísticas de pessoas provenientes de diferentes regiões se encontram relegadas ao inferno dos regionalismos, das expressões viciosas e de erros de pronúncia que os professores corrigem. “Reduzidos ao estatuto de jargões idiomáticos ou vulgares, igualmente impróprios em ocasiões oficiais, os usos populares da língua oficial sofrem uma sistemática desvalorização” (p.40-1).
No mesmo mercado lingüístico, as pessoas podem ter a mesma competência lingüística. No entanto, o discurso depende da posição do falante do mercado lingüístico para poder ser reconhecido como linguagem legítima e assim se transformar em capital lingüístico. Em decorrência disso, Bourdieu critica o conceito de competência lingüística como formulado por Chomsky porque “escamoteia a questão das condições econômicas e sociais de aquisição da competência legítima e de constituição do mercado onde se estabelece e se impõe esta definição”. Contra a competência lingüística (abstrata) de Chomsky, sugere o conceito de capital lingüístico, que remete a competência necessária para falar a língua legítima, visto que esta tem um mercado lingüístico que confere autoridade, poder e dominação ao falante
A comunicação pedagógica no mercado escolar
O mercado cultural e lingüístico é socialmente dotado de critérios de avaliação que conferem legitimidade aos bens simbólicos, como a própria linguagem dos grupos dominantes econômica e socialmente. Com efeito, a cultura e a linguagem desses grupos são transformados em capital cultural e lingüístico e sua aquisição e domínio torna-se uma exigência no mercado dos bens simbólicos enquanto que a cultura e a linguagem dos grupos dominados são depreciados.
Uma das especificidades mais importantes da escola é ser um mercado lingüístico que usa e ensina a linguagem legítima por meio da comunicação pedagógica, que tem como característica distintiva a de ser uma relação de força simbólica no grupo constituído pelos professores e pelos alunos.
O papel do professor, na comunicação pedagógica, é o de inculcação da cultura (capital cultural) e da linguagem legítima (capital lingüístico). No entanto, essa comunicação pedagógica é fundamentada em bases desiguais.
Os alunos das classes dominantes ao chegarem a escola estão em condições de usar o capital cultural e o capital lingüístico escolarmente rentável, visto que estão familiarizados com eles em seu grupo social; já dominam, ou podem facilmente dominá-los.
Entretanto, os alunos das camadas populares familiarizadas com sua linguagem, que é considerada pelo mercado lingüístico como não-legítima - como diz Bourdieu, não reconhecida socialmente - ao chegarem a escola, em geral, fracassam, visto que a comunicação pedagógica não atinge o objetivo de fazê-los adquirir os bens simbólicos que constituem o capital cultural e lingüístico legítimos. O fato de não dominarem a linguagem da escola se torna difícil para compreenderem e se expressarem na comunicação pedagógica. E por não disporem do capital lingüístico escolarmente rentável, muitos alunos fracassam na escola.
A comunicação pedagógica envolve atividades que, em geral, caracterizam-se muito mais pelo reconhecimento da linguagem legítima do que seu conhecimento. O ensino da língua caracteriza-se pelo estudo da gramática da língua legítima, leitura de textos sempre escritos em língua legítima, correção da linguagem oral e escrita dos alunos conforme os padrões da língua legítima. Conseqüentemente, para os alunos das classes dominantes, o ensino constitui além de uma didática do reconhecimento que já possuem da língua legítima, um aperfeiçoamento da capacidade de produção e de consumo do conhecimento.
Todavia, para os alunos pertencentes às camadas populares, a escola possibilita, em geral, apenas o reconhecimento que existe uma maneira de falar e escrever considerada legítima e que é diferente daquela que conhecem e dominam. Tal reconhecimento se inscreve, para Bourdieu (1998:37-8), “em estado prático nas disposições insensivelmente inculcadas pelas sanções do mercado lingüístico [...]”. Com efeito, a escola não leva esses alunos a conhecer essa outra maneira, isto é, não os leva a produzi-la e consumi-la eficientemente, aumentando, assim, a distância entre a linguagem das classes populares e o capital lingüisticamente social e escolarmente rentável. Segundo Bourdieu (1998:50), “[...] os mecanismos sociais da transmissão tendem a garantir a reprodução da defasagem estrutural entre distribuição (bastante desigual) do conhecimento desta língua legítima e a distribuição (muito mais uniforme) do reconhecimento desta língua [...]”.
Dessa forma, os bens simbólicos das classes dominantes e a comunicação pedagógica legítima são instrumentos para o fracasso escolar das classes populares, contribuindo, assim, para a perpetuação dessas classes como dominadas e para perpetuação da estratificação social.
Retomando a discussão, cabe entender as implicações desse modo de ver a educação.A análise de Bourdieu fornece-nos importantes esclarecimentos a respeito do sistema educacional e dos processos de ensino e seleção, especialmente com relação à natureza “classista” desses processos.
Entretanto, do ponto de vista do desenvolvimento de uma sociolingüística alternativa para compreender a educação, há limitações. Substancialmente, uma educação vista à luz da linguagem como um mercado lingüístico não sugere uma disponibilidade para a mudança, na medida em que implica dispor o aluno numa relação estereotipada com a precariedade do próprio momento. Logo, não é possível pensar-se num processo educacional com fronteiras determinadas entre educação e o mercado lingüístico, sem o risco de alijar da escola o próprio processo constitutivo de sujeitos.
Nessa perspectiva, a escola não é o campo de luta contra o fracasso escolar das camadas populares e sim um instrumento e causa para a divisão da sociedade de classes. A solução dos problemas está na eliminação das discriminações e das desigualdades sociais e econômicas. É inegável a relação entre escola e sociedade, mas também é verdade que muitas “dificuldades e problemas do ensino de língua materna podem ser resolvidos no âmbito de discussões pedagógicas e didáticas” (Alkmin et alii, 1991:26).
Referências bibliográficas
ALKMIN, T M e outros. “A Lingüística e o Ensino da Língua Materna”. In: Geraldi, J.W. (Org.). O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel, Assoeste, 1991
BOURDIEU, P. “A Economia das Trocas Lingüísticas”. In: Bourdieu, P. (1998). A economia das trocas lingüísticas. São Paulo, Edusp, 1980
Primeira Versão - UFRO
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