O papel dos conhecimentos culturais primários na revitalização permanente do desenvolvimento humano
por Aziz Nacib Ab`Sáber
É sempre muito oportuno tecer considerações sobre a temática das relações entre a educação e o desenvolvimento cultural dos seres humanos. Nosso ponto de partida baseia-se em observações feitas pelo saudoso Roger Bastide (1898-1974).
Encarregado de um curso sobre sociologia educacional na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, mestre Bastide iniciou sua fala explicando que, ao ser indicado para o referido tema, vasculhou a pequena estante de livros de sua casa em São Paulo, à procura de uma obra especial, que servisse de apoio para preparar suas aulas. E, assim, pinçou da prateleira um dos trabalhos essenciais de Marcel Mauss, La sociologie des animaux.
Nesse trabalho o autor sublinhou que o homem é o único ser vivo do planeta capaz de retraçar a história da espécie, em tempos e espaços diferentes (e pode-se completar que a recuperação de fatos e valores culturais se adentra pela pré-história), enquanto os animais nunca puderam saber nada dos itinerários históricos de seus pares.
Roger Bastide nos explicava, com um ligeiro sorriso, que “as minhocas do Brasil não podem saber que existem parentes na África”... E que, apesar das atividades rotineiras e sociais de algumas espécies, “nunca houve a possibilidade de conhecer qualquer fato de seu desenvolvimento biológico e histórico”.
A partir dessas importantes constatações, abre-se a oportunidade de discutir o papel da educação na projeção dos conhecimentos culturais primários dirigidos para a revitalização permanente do desenvolvimento social e cultural dos seres humanos. A progressiva criação de palavras aplicadas a fatos da Natureza e das comunidades sociais foi o primeiro grande feito. Desde tempos imemoriais, em lugares e conjunturas socioambientais diferentes, o homem deu nomes próprios para a Natureza. Envolvendo um vocabulário descritivo e criativo de fácil propagação sobre árvores, frutos e plantinhas, pássaros, animais terrestres, peixes e frutos do mar. Além de palavras para indicar feições da Natureza regional, de um modo integrado entre as formas físicas e os revestimentos vegetais, como a presença de animais característicos. Em um padrão de conhecimento prévio e prático, aproximando-se muito da estrutura de ecossistemas (Darrel Posey). Tudo se complementando pelo organismo e metabolismo do corpo humano em cotejo com a constituição orgânica dos animais de todos os tipos, obtidos na caça. Conhecimentos sobre questões de gênero, incluindo potencialidades e reconhecimento de atividades mais adequadas. Em um processo evolutivo que ao longo de tempos imensos – em cada porção habitada do mundo – conduziu os agrupamentos humanos para um padrão notoriamente gregário, de onde emergiu o conceito de família. E um sistema integrado de educação para os filhos, sem qualquer viés de especialidade.
Existe uma unanimidade entre os antropólogos sobre o caráter rotineiro da transmissão dos conhecimentos para as crianças, desde tenra idade. Em uma convivência prazerosa e brincalhona aprende-se um pouco de tudo, a partir dos mais experientes. Valores tribais ancestrais, valores de uma tecnologia singela. Um processo educacional feito na gruta ou na oca, mas preferencialmente na clareira do terreno comunitário, na participação de eventos festivos, à beira do rio ou na ponta de praias, durante o banho. Crianças sorridentes, treinando o lançamento de flechas, esperando o seu dia de acompanhar os adultos nas trilhas pelas matas, territórios de caça e coleta. Conseguindo-se assim um conhecimento global de valores e princípios, destacados de imensa e inimitável originalidade, em uma longa época em que somente existia a oralidade, sem os impactos da linguagem escrita, conseqüência inusitada dos contatos entre grupos humanos para troca de alimentos, mercadorias e utensílios típicos de cada comunidade pré-histórica – fato que justificou a origem primeva de aldeias e pequenas cidades onde se realizava o escambo tradicional de homens procedentes de hábitats diferentes (Karl Marx).
O lento desenvolvimento da educação primária entre os seres humanos constituiu um tipo de pré história longa ocorrida desde que surgiram os Homo sapiens, até que emergiram as primeiras civilizações no Oriente Médio (sobretudo no Crescente Fértil), Egito e Ásia do sul e sudeste. O Brasil é um país privilegiado porque ainda possui grupos humanos remanescentes da pré-história. Fato que nos impõe uma imensa responsabilidade cultural e política na proteção dos que sobreviveram de uma longa história humana, designada simploriamente de pré-história.
Aziz Nacib Ab`Sáber é professor emérito da FFLCH/USP e professor honorário do Instituto de Estudos Avançados/USP.
Scientific American Brasil
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