segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Criança: objeto a liberado?


Criança: objeto a liberado?

Glaucineia Gomes de Lima
Psicanalista; Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e Professora do Curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: glaucigomes@uol.com.br

Qual o lugar que a criança ocupa no "mal-estar" da civilização atual? Para abordar o tema em questão, partirei da afirmação de Lacan, em seu texto "Radiofonia" (1970, p. 411), em que ele se refere à ascensão ao zênite social do objeto a: "Para isso, bastaria a ascensão do objeto a, pelo efeito de angústia provocado pelo esvaziamento com que nosso discurso o produz, por faltar à sua produção". O movimento de ascensão se iniciou há bastante tempo, tendo em vista que o zênite é o grau mais elevado e Lacan se referia a um efeito particular do mestre contemporâneo, o capitalista, que produz o objeto a cavando a falta da mais-valia.

Lacan (2008) refere-se à passagem em que o capitalista não consegue deixar de rir, ao propor o contrato de trabalho. A apropriação da mais-valia é encoberta, inscrevendo-se no bolso do capitalista como valor excedente. Ele se apóia em Marx, que demonstra que o trabalho é comprado pelo capitalista pelo preço de mercado, o que produz um resto, uma parte suplementar que não é jamais paga. A produção de tal quantidade suplementar que não é paga ao trabalhador é chamada por Marx de mais-valia. Para Lacan (1970, p. 434), a mais-valia

É a causa do desejo, do qual uma economia faz o seu princípio: o da produção excessiva, insaciável, da falta-a-gozar. Esta se acumula, por um lado, para aumentar os meios desta produção como capital. Por outro lado, amplia o consumo, sem o qual essa produção seria inútil, justamente por sua inépcia em proporcionar um gozo com que possa tornar-se mais lenta.

Na teoria marxista, a mais-valia é extraída do trabalho, uma parte não-paga e jamais recuperada. Há um ganho do lado do capitalista e, em conseqüência, do lado do trabalhador se instaura uma perda. Os direitos do sujeito, o trabalhador, dos quais ela é extraída, são instantaneamente excluídos, pois o mercado opera tal subtração.

A homenagem que Lacan presta a Marx deve-se à invenção do sintoma e da mais-valia. O valor do trabalho que nunca é pago ao trabalhador é resultado da subtração do valor de uso do valor de troca. Ao embolsar a mais-valia, há um excedente produzido e jamais recuperado. Há uma perda de gozo definitiva. Na formulação lacaniana, a construção do objeto a é homóloga à mais-valia. Aflalo (2008, p. 83-84) explicita:

O objeto a é uma falta primeira que engendra uma incessante recuperação de gozo, pois a defasagem não é reabsorvida. O sujeito é empresário do seu próprio desejo, e a renúncia pulsional, necessária ao estabelecimento do discurso nutre o supereu. A gula do supereu é estrutural, não é um efeito da civilização. Um mesmo circuito econômico vale no capitalismo e na pulsão: perda e retorno de gozo sintomático.

Laurent (2007) afirma que o conceito lacaniano de objeto a refere-se a uma parte de gozo que sobra como resto de uma operação de extração. O objeto também está em ruptura com o Outro, no que este tem de universal, mas, diferentemente do sujeito, localiza-se com relação a algo prévio ao Outro.

Desde meados do século XX, o mundo assiste a uma inflação do consumo, em uma sociedade que não cessa de produzir objetos. O avanço da ciência e da tecnologia convive, paradoxalmente, com um mundo que parece se descompor, progressivamente. A produção incessante de objetos elevados ao lugar mais alto do mercado - o zênite - de modo insaciável e o seu destino inexorável, o de dejetos. A serviço do consumo, a ciência e a tecnologia não cessam de produzir o apagamento da subjetividade, como aponta Monique Amirault (2008, p. 22):

Apesar do bem que a ciência pode nos trazer, hoje ela está a serviço não mais do sujeito, que apaga, e sim do consumidor, que instrumenta. Mesmo assim, os objetos surgidos dessa ciência são desejados, levando a modos de gozar estandardizados, pela via de um mercantilismo do qual o homem é servo, embora lhe seja possível crer que aí encontra sua liberdade. Tudo lhe é oferecido para que ele "dê prazer a si mesmo". (Grifo da autora)

Na lógica do mercado, a criança aparece como consumidor privilegiado. Confrontada, muito cedo, às marcas, etiquetas, mensagens publicitárias, ela parece não poder viver sem os objetos comuns, chegando a quase desaparecer na massificação dos objetos. Nesse sentido, ela pode ser desembaraçada do seu valor de objeto precioso e ocupar o lugar de objeto a liberado, tornando-se mais um objeto entre a multiplicidade de objetos produzidos ao infinito no mercado. Amirault (2008) refere-se a um site que apresenta um bebê louro de olhos azuis para um banco de esperma dinamarquês Cryos e propõe pequenos vikings ao preço de 112 euros cada lâmina, com o slogan: "Parabéns, é um viking".

Lacan (1968), na "Nota sobre a criança", refere-se ao sintoma da criança como o que pode responder ao par familiar ou ao objeto do fantasma materno. Ele aponta que a criança tanto pode ser colocada no lugar de substituto fálico para os pais, quanto ser posta no lugar de objeto. Consumidor em potencial na sociedade de consumo, a criança é reduzida a objeto, esvaziada de subjetividade e condenada a sucumbir como objeto-dejeto da miséria da sociedade globalizada?

Segundo Brousse (2008), vive-se uma orientação para o desenvolvimento dos objetos, enunciados por Lacan pelo neologismo latusas. A produção em massa de objetos leva a empurrá-los para o destino de lixo, que tem seu lugar na contemporaneidade, não pelo fato de seres humanos serem tomados como objetos, pois eles sempre assim foram colocados. A novidade é o lugar de objetos/dejetos que passam a ser assumir. Em função do imperativo de gozar a qualquer custo do objeto, surge a idéia de que só pode haver satisfação no objeto, o que está em desacordo com a proposição da psicanálise de que as tentativas de saturar o desejo com o objeto estão condenadas a fracassar.

O IMPERATIVO DO CONSUMO NA SOCIEDADE GLOBALIZADA

É importante situar a psicanálise, em relação ao mundo contemporâneo. Há algum tempo, busca-se um suporte conceitual que dê legibilidade às transformações em que vivemos. Fala-se de Pós-modernidade (Lyotard), Hipermodernidade (Lipovetsky), Alta Modernidade (Guiddens) ou Modernidade Líqüida (Baumann).

O processo de globalização, na chamada modernidade tardia, originou um tipo de mudança estrutural que transformou a sociedade moderna, a partir da metade do século XX. Declinaram velhas identidades estabilizadas, o que fez surgir uma verdadeira crise de identidade, em função da multiplicidade dos sistemas de fragmentação e representações culturais. Representações foram dissolvidas, relações envelheceram, se desmancharam. As representações e as relações parecem se diluir, tal como preconizou Marx, ao afirmar: "Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas" (MARX; ENGELS, 1848, s/p.).

Segundo Hall (1998), o mundo denominado moderno é marcado pela fragmentação de velhas identidades estabilizadoras que declinaram. Deslocaram-se as estruturas e processos centrais das sociedades modernas que abalaram antigos quadros de referência. As transformações de tempo e espaço provocam indefinições e descontinuidades. A estrutura se viu deslocada e houve a substituição do centro para a pluralidade de espaços de poder. Tal política de fragmentação acabou por levar à pluralização das identidades. Para este autor, o processo no qual se projetam as identidades culturais tornou-se provisório, variável e problemático.

De acordo com Giddens (2003), vivemos uma era que caminha sob o impacto da ciência, da tecnologia e da racionalidade. Assiste-se ao mundo em descontrole cada vez maior. A inovação, cada vez mais freqüente, caminha junto ao risco e à incerteza. A idéia de risco refere-se aos infortúnios avaliados a partir das possibilidades futuras. Assim, viver no mundo globalizado significa enfrentar a diversidade de situações de risco.

Para Bauman (2005), na globalização, o Estado não tem mais o poder ou o desejo de manter uma união sólida com a nação. O que é da nação está aberto ao capital global e são derrubadas as barreiras ao fluxo das finanças internacionais. Ao transferir o capital aos mercados globais, há menos necessidade de reserva e fervor patriótico. O patriotismo foi transferido para as forças do mercado, o direito econômico ficou fora das mãos do Estado, os direitos políticos foram limitados e circunscritos ao pensamento do livre mercado neoliberal desregulado. Quanto aos direitos sociais, foram substituídos pelo dever do cuidado consigo mesmo. Como conseqüência, flutua-se em um espaço pouco definido, no qual a fase sólida da modernidade foi substituída pela fase fluida. O ambiente fluido leva ao não-saber o que esperar e vive-se num mundo esvaziado de valores, que se finge serem duradouros.

A civilização, na era da globalização, apresenta-se fragmentada, dispersa, não-localizada. Na era do capitalismo globalizado, estamos na ilusão da conquista virtual pretensamente ilimitada, espaço de desregulações em que reina a incerteza e não se encontra certeza, os mercados comuns parecem procurar um significante mestre e não o encontram.

Enquanto as sociedades ditas modernas, em sua fase inicial, eram caracterizadas por centrar-se na produção, engajando seus membros como produtores, nas sociedades denominadas supra-modernas, pós-modernas ou hipermodernas, engajam-se os seus membros na condição de consumidores. A transformação da sociedade moderna de produtores para a sociedade de consumo faz com que os sujeitos sejam transformados, ao mesmo tempo, em produtores de mercadorias e nas próprias mercadorias, passando a ser comandados pela lógica do "mercado" (BAUMAN, 1999; 2008).

Bauman (2008) salienta, ainda, que a sociedade de consumidores distingue-se pela reconstrução das relações à semelhança das relações entre os consumidores e os produtos a serem consumidos. O mundo fica dividido entre o sujeito consumidor e o objeto a ser consumido, com a transformação do consumidor em mercadoria a ser consumida. A coisificação do consumidor promove sua dissolução enquanto o sujeito, o que leva Bauman a falar de fetichismo da subjetividade.

a "subjetividade" dos consumidores é feita de opções de compra - opções assumidas pelo sujeito e seus potenciais compradores; sua descrição adquire a forma de uma lista de compras. O que se supõe ser a materialização da verdade interior do self é uma idealização dos traços imateriais - "objetificados" - das escolhas do consumidor. (BAUMAN, 2008, p. 24. Grifo do autor)

A ascensão dos objetos de consumo passou a regular as relações entre os semelhantes. As relações se coisificaram e os humanos foram reduzidos aos objetos. A produção maciça de objetos e sua constante desvalorização levam a uma estratégia de empuxo ao hiperconsumo e a uma conseqüente fabricação de lixos, de dejetos. Ao opor consumidores em potencial aos não-consumidores, coloca-se estes últimos na condição de inúteis, não porque estejam desempregados, mas porque não podem consumir. Deles nada se poderá esperar ou precisar, pois são indesejáveis e excluídos das sociedades humanas, puro lixo, meros dejetos, rebotalho da sociedade de consumo, como argumenta Bauman (2008).

Segundo Laurent (2007), depois do fim da Primeira Guerra Mundial, o mundo do pensamento foi tomado pelo sentimento de inutilidade da civilização. Se o sujeito tratava sua angústia antes da Segunda Guerra Mundial com sonhos de restauração totalitários, no pós-Segunda Guerra Mundial, o sujeito tratou de se abrigar dos novos significantes mestres que emergiram. Com a ascensão do mercado comum, houve a crença na extensão do universal autorizado pelo tratamento científico da civilização. Tal crença, segundo Laurent, negligenciou o retorno do gozo, o que não deixou de ter efeitos de práticas segregacionistas.

Laurent (2007) argumenta, ainda, que, com a desqualificação dos antigos ideais, surgiu um verdadeiro colapso no campo das identificações. A civilização fragmentária, dispersa e inconsistente leva à lógica da não-totalização. Sem um Deus para acreditar, o sujeito busca o êxtase ou a overdose, na civilização da "entrega para a morte", desde o matar-se de trabalhar, correr riscos nos esportes radicais, em vários gêneros de apetite pela ou gozar da própria morte.

Lipovetsky (2005) discute o processo de individualismo contemporâneo, enfatizando o fascínio pelo nada, no qual as formas de aniquilação assumem dimensões a ponto de que o deserto é a paisagem geográfica que designa o vazio no qual estão imersos os sujeitos. Com o desmoronamento dos ideais, surgem a estética de objetividade e a frieza que permite a aceleração das experimentações propícias às inovações da era capitalista globalizada. Como conseqüência, tem-se a despolitização e o desinteresse pela res publica e um hiperinvestimento no espaço privado, com a substituição do homo politicus pelo homo psycologicus. A falta de engajamento nas questões coletivas, marca da era do vazio, convive com o narcisismo e o hedonismo exacerbados. No campo do dever, também surgiram mudanças, de acordo com Lipovetsky (2005). Na civilização consumista, o Bem se transforma em bem-estar. Há uma sobreposição da felicidade à moral, dos prazeres à proibição, da fascinação ao dever. O desejo, outrora refreado, proibido, é antes exacerbado ao extremo. Na era do "basta querer para ser feliz", as obrigações morais foram substituídas pelo dever de felicidade. São legitimados os prazeres, os excessos, o conforto: "A sedução tomou o lugar do dever, o bem-estar tornou-se Deus e a publicidade é seu profeta" (LIPOVETSKY, 2005, p. 31).

O dever que se escrevia em letras maiúsculas foi minimizado, que era severo e está organizado em shows recreativos, que ordenava submissão incondicional do desejo à lei foi reconciliado com o prazer. O dever cedeu lugar ao serás feliz, pois o declínio dos ideais foi acompanhado por exigências de gozo.

Para Eric Laurent (2007), no hedonismo de massa não há dificuldades para se manter nos limites do princípio do prazer, o que pode levar a subestimar a verdadeira natureza do supereu, sua exigência pulsional e poder ilimitado, num estado de civilização em que a pulsão revela ainda mais sua face mortal. A cultura assume aspectos superegóicos, o que impulsiona os sujeitos a se orientar em busca do gozo, um menos em relação aos ideais e um conseqüente mais de gozar, o que pode levar a fazer desaparecer a particularidade do sintoma. A visão hedonista do mundo apóia o império no acesso ao gozo para todos. Maximizar o gozo está ao alcance de cada um, mas o sujeito pode dizer não para o impulso a gozar que impede de emergir a particularidade do sintoma.

Se, em 1930, Freud acentuou a renúncia ao gozo com o trabalho, atualmente é com o excesso de trabalho que se pode obter os bens oferecidos pelo mercado. Para gozar dos bens materiais produzidos ao infinito, é imperativo se exceder no trabalho, até se matar de tanto trabalhar, pois é imperativo se submeter às exigências do mercado. O excesso de produção dos objetos de consumo exerce fascínio pela promessa de satisfação plena, de gozo generalizado.

EDUCAR PARA O CONSUMO?

Pode-se pensar nos efeitos dessas fragmentação, dispersão e fluidez na educação das crianças nas sociedades capitalistas. Com o desenvolvimento do capitalismo, o tempo das crianças e suas atividades foram colonizados em função da realidade social e econômica, fazendo com que elas se encaminhem para os seus novos locais de "trabalho".

Anny Cordiè (1996) assinala que, nas sociedades ocidentais, o dinheiro, a posse de bens e o poder acabam se constituindo em ideais e valores que todos devem almejar. Ancorados em ideais narcísicos, visam a manter a ilusão de completude, de júbilo e gozo. É nessa via que a idéia de sucesso escolar ocupa um lugar proeminente na vida de crianças, pais, professores e governantes. Ser bem-sucedido na escola, assim, ocupa a perspectiva do ter acesso irrestrito ao consumo de bens.

Regido pela lógica do ter, o sujeito poderá ser considerado alguém, possuindo o poder e o dinheiro que indicam o alcance da felicidade absoluta, o acesso aos bens de consumo e bem-estar que ocupam o lugar do Bem supremo? A metamorfose do bem, nessa óptica, se situa entre o acesso aos bens de consumo e o ideal narcísico de bem-estar.

Crianças e adultos tornam-se parceiros na construção de mundo em que vivemos, mesmo que as primeiras estejam historicamente invisibilizadas pela definição social de que são "passivo" ou custo social. A infância legitima-se, assim, como posição de pouca importância da criança nas políticas públicas e repartição das riquezas socialmente geradas, por meio do processo cultural de menorização ou familiarização.

Segundo a lógica de produção capitalista, crianças são coadjuvantes dos adultos, se preparam, pelo trabalho escolar, para assumir seu lugar eventual de trabalhador e cidadão. Mudanças ocorrentes na consolidação do capitalismo introduzem nova relação entre produção e consumo e a preponderância entre valores de troca e valores de uso. Vê-se, portanto, numa era do consumo que se exacerba, um novo lugar para a infância, que passa a se situar em nova efetividade social.

Na lógica capitalista de todos iguais perante o consumo, a escola declina de lei educativa, impondo dessimetria entre educador e educando. A mestria ocupa outro lugar na transmissão do saber. A ética da globalização conecta homens por intermédio dos meios de comunicação e evidencia a solidão de cada um. A televisão transforma estranhos em figuras íntimas, elimina limites entre público e privado, promove a "banalização do mal", reduz a violência a espetáculo de luzes e efeitos especiais.

Hannah Arendt (2007) refere-se ao desaparecimento da autoridade, à perda da tradição e ao distanciamento do alicerce do passado. Quanto à crise na educação, destaca alguns pressupostos básicos: a crença em uma autonomia das crianças, a quem se deve permitir governar; a emancipação, por parte do professor, do saber competente na matéria ensinada; a substituição do saber pelo fazer. A perda da autoridade não deixa de ter conseqüências: "A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo no qual trouxeram as crianças" (ARENDT, 2007, p. 240).

A autora salienta também ser necessário compreender que a escola deve ensinar aos alunos sobre o mundo como ele é e não instruir sobre a arte de viver, não se deveria tratar crianças como se fossem adultos, não se deve educar sem ensinar, pois uma educação sem aprendizagem é vazia.

Ruth Cohen (2006) refere-se a Chomsky, que entende que o saber se vincula diretamente à busca de lucro e que os atuais governos, ditos democráticos, exercem política de proteção da propriedade privada em que a força de mercado globalizada, rege a vida dos cidadãos. A versão contemporânea da lógica do para todos, característica da globalização, leva a vários tipos de segregação. O poder tecnológico e científico empregado na transmissão de valores de uma sociedade é sempre desigual. Assim, democracia e capitalismo - em conexão com o saber globalizado - pressupõem um universal democrático, contraditório, que promove a segregação. Assim, pode-se pensar o fracasso escolar articulado aos ideais impostos pela sociedade do consumo, na sociedade atual.

Se o fracasso escolar surge como um dos sintomas do mal-estar na infância na contemporaneidade, pode-se pensar quais as conseqüências da educação que se baseia na suposta igualdade entre adultos e crianças, regidos pela ética do consumo. Negação da diferença, que, longe de garantir a igualdade, não faz mais do que garantir a exclusão. Ao ser difundida a promessa de um alcance do prazer a qualquer preço, em que tudo é permitido, qual o preço que se paga em relação ao além do princípio do prazer?

Segundo Cohen (2006), ao se identificar como o Outro do saber, o educador pode sustentar o imperativo capitalista como forma de guiar os seus alunos: "Estudar é forma de usufruir melhor os bens do futuro". Tal demanda é atendida por algumas escolas, pois instituições são procuradas como uma espécie de passaporte para a universidade, mesmo a preço muito alto a ser pago pelo aluno. Existem instituições privadas de ensino que obedecem à ética que promove políticas educacionais segregacionistas, convidando os alunos que não passam de ano a se retirar da escola. Assim, o fracasso escolar que expulsa a criança da escola gera a exclusão subjetiva, porque, como objeto, ela é posta fora do discurso da educação.

As promessas de um gozo ilimitado promovem a ilusão de que é possível ter tudo ao alcance de qualquer um. Tenta-se saturar o desejo com a promessa de possuir o saber como se fosse um objeto comum, à disposição no mercado. Cohen (2006) lembra também que a sobrecarga de informações provoca demanda de aceleração, que impõe a necessidade de nivelar os sujeitos pelo consumo, como se depreende da proliferação de projetos especiais destinados a torná-lo professor. Os professores, mal começam a aprender a lidar com um projeto, este já se torna obsoleto e o império da efemeridade, a lógica do gosto pela novidade, caracteriza a nossa líqüida civilização, invadindo a chamada "formação de professores". As causas do fracasso escolar estariam relacionadas à demanda do Outro contemporâneo, seja a escola, a família ou a política. As tensões inconscientes em jogo nos processos de aprendizagem podem ser entendidas como respostas às demandas do tecido social (representado por escola, família, Estado).

Se a lógica capitalista tende a igualar os sujeitos à mera condição de rebotalhos do tecido social, faz-se necessário ao educador se recusar a participar do imperativo do consumo que ordena o gozo absoluto, desmedido e insano que se impõe na educação regida pela lógica do mercado.

Cohen (2006) lembra também que o educador pode ser confrontado tanto com o não-saber dos seus alunos como com o excesso de saber. A criança pode ocupar o lugar de objeto para o professor, encarnando o resíduo recalcado da mestria situado sob o saber-fazer do Outro. Ao deixar a criança presa no lugar de um produto que serve de sustentação para o Outro, faz-se dela um excesso, um resto ou dejeto, sobre o qual a dinâmica capitalista nada quer saber.

Segundo a autora citada, a educação, ao vestir a máscara de saber totalizante, traduz-se em uma promessa de gozo, como se fosse algo que, um dia, livraria o aluno da impossibilidade de um saber "todo", por meio de imperativos do tipo "estude para gozar melhor o futuro". O professor pode encarnar o Outro absoluto do saber, identificado a um perigoso ideal, mostrando à criança um lugar de insuficiência e debilidade. O educador deve levar em conta a possibilidade de se tornar um agente de reprodução de neuroses, pois a criança pode estar submetida à economia e à política de um discurso pedagógico que a inscreve no lugar de objeto. O que pode ser observado em casos em que a política educacional, em nome do poder da ciência, usa e abusa de métodos educacionais arrojados que fazem das crianças cobaias de suas experimentações.

Se, de um lado, assiste-se à queda de ideais, por outro, há uma proliferação deles. A sobrecarga de ideais e de valores hedonistas, em que se postula uma ilusória ausência de mal-estar aumenta, a tendência à frustração e à decepção, como sustenta Lipovetsky (2007, p. 6):

Quando se põe em destaque um fantasioso conceito de "carência zero" generalizante, como é possível escapar do aumento da decepção? Quanto mais os imperativos do bem-estar e do bem-viver são fixados como meta imprescindível, mais intransitáveis se tornam as alamedas do desapontamento.

A queda dos ideais de outrora e as promessas totalizadoras de um futuro no qual, pretensamente, poder-se-ia abolir a falta localiza a "crise na educação" na ausência de autoridade, nos ideais de igualdade e negação das diferenças entre o adulto e a criança, na desqualificação do saber do educador e na imposição de gozo no campo educativo. Os efeitos segregativos do discurso da ciência e da tecnologia sustentados pelo discurso capitalista fazem-se sentir no campo da educação por meio da massificação do ensino, o que pode levar ao apagamento da subjetividade da criança e do adulto que por ela deveria se responsabilizar.

Para Barros (2008), a criança recebe a transmissão do legado da miséria dos adultos e, caso a miséria dos adultos não se refira à castração, essa transmissão é dificultada e pode levar a criança a sucumbir como objeto-dejeto. Nesse sentido, é necessário fazer entrar em jogo a lógica da castração como modo de recusa ao gozo generalizado ofertado pela lógica mercantilista da sociedade atual.

A INDIFERENÇA PURA NO DESERTO DO REAL ATUAL

Lipovetsky (2005) enfatiza não a angústia, mas o tédio e a indiferença em decorrência do desmoronamento dos ideais. O deserto de significações não se traduz pela revolta, o grito ou o desafio da comunicação. Diante do declínio da autoridade do educador, cuja palavra foi dessacralizada, tornando-se banal e em pé de igualdade com a palavra da mídia, o ensino se transformou em uma máquina neutralizada pela apatia escolar, feita de atenção dispersa e de ceticismo desenvolto em relação ao saber. Surgiu o desafeto pelo saber, que parece ser mais significativo que o tédio dos estudantes.

A escola assemelha-se ao deserto onde jovens vegetam sem motivação ou interesse. Assim, é preciso inovar a qualquer preço, cada vez mais liberalismo, participação, pesquisa pedagógica. Mas quanto mais a escola dá ouvidos aos alunos, mais eles abandonam esse lugar vazio. Desapareceram as greves após 1968, a escola transformou-se em um corpo mumificado e os professores compõem um corpo fatigado e incapaz de insuflar vida.

Freud (1910), no texto "Contribuições para uma discussão acerca do suicídio", coloca a escola no lugar traumático com que se confrontam os adolescentes. Alerta que a escola deveria não conseguir mais que impelir os alunos ao suicídio, promovendo-lhes o desejo de viver. Caso a escola não possa adjudicar-se o caráter de vida, ela não poderá barrar a pulsão de morte. Assim, o deserto em que se constitui a escola nos tempos atuais parece não barrar o gozo mortífero, e a acentuação das diferenças não cessa de produzir a indiferença ou o gozo autístico que impede o laço com o semelhante. O afeto do tédio surge diante do sem-sentido em que parece se constituir o espaço escolar, pois, diante da proliferação de sentidos, faz falta buscar um acesso possível ao saber.

O SOFRIMENTO NA INFÂNCIA - A CRIANÇA VÍTIMA GENERALIZADA

Na alocução sobre as psicoses na infância, Lacan decreta: "Havemos de destacar pelo termo criança generalizado a conseqüência disso" (1968, p. 367). E acrescenta: "Acabei acreditando, veja só, neste declínio da minha vida (...) que não existe gente grande" (ibidem, p. 367). Na denúncia lacaniana de que vivemos a era da infância generalizada, ele apontou não haver pessoas grandes, pessoas dispostas a cuidar das crianças, acolhendo com presteza as suas necessidades. Laurent (2007) destaca uma verdadeira epidemia de gozo mortífero, em que se delineia o estranho lugar ocupado pela criança vítima. Refere-se a atos de pedofilia, prostituição e práticas incestuosas cometidas contra as crianças pelos próprios pais.

De pretensa majestade, a criança ocupa o lugar de vítima e os comportamentos irracionais de quem deveria cuidar da criança provocam impotência na assistência social e na família. A epidemia de gozo mortífero que surge como expressão da pulsão de morte aponta para o fora-do-sentido. Para tentar verificar o lugar da criança vitimizada, faz-se necessário ouvir as crianças. Para Laurent, trata-se de vitimizar duplamente a criança.

Em seu entendimento, Laurent considera que o lugar da criança vitimizada é o inverso do estado dado à subjetividade, que é a de ser um sujeito que corre riscos. Cada risco é apresentado como uma espécie de cálculo e sem sentido sob um nível estrito de igualdade, mas o risco generalizado e as vítimas que ele engendra apagam a dimensão da responsabilidade em nome do risco, que acaba se constituindo em vetor de subjetividade vazia e, no lugar da questão, o risco. A posição da psicanálise, pelo contrário, é buscar, a partir de uma vítima, a chance de criar um sujeito responsável por seu gozo.

É nesse sentido que se pode retomar a posição da criança como objeto a liberado, produzido. No texto "Nota sobre a criança", Lacan (1969) afirma que a criança pode realizar a presença de objeto na fantasia materna, o que a deixaria exposta a todas as capturas fantasísticas. Ao se tornar o objeto da mãe, não teria outra função senão a de revelar a verdade desse objeto.

Entender a criança como objeto é entendê-la de outro modo que não como revestida por uma significação fálica. Na perspectiva freudiana, a criança era vista como substituto do falo e, no lugar do ideal do eu parental, o lugar de sua Majestade, o bebê, revivescência do narcisismo parental. Na perspectiva dos psicanalistas que se ocuparam da psicanálise de crianças, iniciou-se uma teorização sobre o lugar de objeto (parcial, transicional) ocupado pela criança. Ao entendê-la como objeto, enfatiza-se o lugar que a criança ocupa em relação ao gozo, à satisfação pulsional. A ênfase não é a criança capturada como ideal, mas como objeto do qual se pode gozar.

No seminário "De um Outro ao outro", Lacan (1968-9) denuncia a criança como objeto a liberado, produzido. Nesse sentido, ele aponta a criança não só como objeto a da fantasia materna, mas como objeto de gozo da família, da civilização, o que não é sem conseqüências para a subjetividade da criança.

Na era do hedonismo mortífero, em que se trata de gozar a qualquer custo, as famílias, que deveriam se ocupar da educação das crianças, não se apoiando na falta que causa o desejo, não oferecem a transmissão irredutível apoiada na relação com um desejo não anônimo. Ao expor a criança às capturas fantasísticas pela impossibilidade de oferecer uma identificação ideal, sem mediação da falta materna e da Lei do desejo do pai, não resta outra saída senão manter a criança como vítima do gozo mortífero da infância generalizada que responde ao imperativo hedonista da sociedade de consumo.

Se o que está em jogo no drama das famílias é a liberação do objeto a, cabe indagar como oferecer à criança outro lugar que não o de objeto do gozo mortífero. Para Laurent (2007), o sintoma depende da civilização. Ele alerta que foi necessário o declínio do pai para que o parricídio deixasse de interessar e para que a criança maltratada tomasse a frente da cena. Com o declínio da imago paterna, o crime atual não é mais o parricídio, mas o abuso, a pedofilia, o infanticídio, a vitimização da criança. Se há um resto não-contabilizável na produção da mais-valia, esse retorno de gozo mortífero que vitimiza a criança é sintoma do mal-estar na civilização do consumo globalizado. Se é proibido proibir, se é imperativo o prazer, como permitir um freio ao gozo que possibilite o desejo?

ESCUTAR O SINTOMA

Num mundo tão permissivo, o que caberia à psicanálise? Pode-se dizer, com Lacan (1968), que é próprio da formação humana pôr um freio ao gozo. Pode-se dizer não ao impulso ao hedonismo generalizado, não permitindo que o "pronto para gozar generalizado" possa impedir de escutar a particularidade do sintoma. Assim, pode-se intervir nos lugares em que os sintomas contemporâneos são recolhidos.

Para Laurent (2007), o analista cidadão pode intervir na polis com o seu dizer silencioso, que implica tomar partido de maneira ativa, silenciar a dinâmica de grupo que rodeia a organização social. O analista deve ser sensível às formas de segregação, contribuindo para que não se esqueça a particularidade de cada um, seja em nome da universalidade ou de qualquer outro universal.

Concluo com uma indicação preciosa de Hanna Arendt (2007, p. 247) que aponta a saída pelo amor à criança, um modo de o gozo condescender ao desejo:

A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.

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