terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Adaptação: o fim de cinco mitos

Para acabar de vez com velhas crenças sobre os primeiros dias dos pequenos na escola
Gustavo Heidrich

Crianças chorando e pais ansiosos. Esse é o cenário que se vê todo início de ano nas portas de creches e pré-escolas. O momento é tenso para eles e também para o professor, que, sem a exata compreensão sobre o que se passa com os pequenos, tenta a qualquer custo fazer com que eles se sintam à vontade no novo ambiente.

Para o coordenador pedagógico, as últimas semanas do ano ou a primeira antes do início das aulas são momentos ideais para ajudar a equipe a se preparar para essas situações. Um bom caminho é, nas reuniões de formação, promover discussões para derrubar alguns mitos que rondam o período de adaptação. Por isso, elegemos cinco ideias que caíram no senso comum e certamente estão na cabeça dos professores para que se tornem pauta dos encontros. Com as informações sobre os mitos que estão a seguir, será possível desconstruí-los, mostrando o que acontece com as crianças. Dessa forma, os professores terão mais segurança ao agir e certamente terão mais sucesso na integração da criança à escola sem traumas.

Débora Rana, coordenadora pedagógica da Escola Projeto Vida, em São Paulo, explica que, ao sair do ambiente familiar, a criança aos poucos deixa a fase de anomia, que é o desconhecimento das regras sociais, e passa para a heteronomia, ou seja, começa a reconhecer as normas de convívio, mas ainda não as incorpora. A adaptação, portanto, nada mais é do que uma passagem bem marcada da primeira para a segunda fase. "O processo é demorado e somente ao longo da vida ela chega à autonomia, tornando-se responsável pelos seus atos."

Já para os pais, o momento é mesmo de nervosismo e apreensão: "Eles ainda não têm total confiança na escola e precisam de informações para se sentirem seguros", afirma Cisele Ortiz, formadora do Instituto Avisa Lá, em São Paulo. É preciso saber lidar com os familiares, pois eles são importantes no processo de aprendizagem. Cabe ao coordenador pedagógico intermediar a relação entre a escola e os pais, suprindo-os com os dados necessários sobre a rotina e a interação dos filhos com as propostas pedagógicas.

Mito 1
Criança que não compartilha brinquedos não está adaptada

Ilustrações: Guazzelli

"Você tem de dividir o brinquedo com seu amiguinho." "Isso não é seu, empreste para ele." Frases como essas são comuns em uma sala de Educação Infantil. Para a criança, muitas vezes, elas podem soar como uma ordem, uma obrigação, causando choro e recusa. "Aos olhos dos adultos, a negação da criança em dividir é vista como egoísmo", esclarece Débora Rana. Criar uma situação ameaçadora, aumentando o tom de voz ou sugerindo uma punição caso a criança não divida ou colabore com um colega, não é o caminho.

O que acontece

Nos primeiros anos de vida, a criança encontra-se num momento autocentrado do seu desenvolvimento e desconhece as regras de convivência social. A compreensão do sentido e do prazer de compartilhar virá posteriormente, depois de um processo mais amplo de reconhecimento do outro.

Como orientar os professores

Nas reuniões de formação, leve referências teóricas sobre as fases de desenvolvimento das crianças e seus comportamentos, como os estudos do educador francês Jean Piaget (1896-1980). O trabalho com estratégias de partilha e colaboração pode ser facilitado se o professor for orientado a montar em sala grupos menores, com duas ou três crianças, e a promover combinados - como o de que a criança pode ficar com um brinquedo por certo tempo, mas que depois deve cedê-lo ao colega. Agir de maneira firme e ao mesmo tempo acolhedora, a fim de mediar os conflitos e não negá-los ou resolvê-los de forma impositiva, é outra dica. Na hora do impasse, o ideal é expor o conflito e descrever para a criança as consequências de querer o objeto só para ela. Além disso, incentivar que elas verbalizem o que estão sentindo e encontrem soluções em conjunto ajuda no processo de mudança de atitude.

Como orientar os professores
Nas reuniões de formação, leve referências teóricas sobre as fases de desenvolvimento das crianças e seus comportamentos, como os estudos do educador francês Jean Piaget (1896-1980). O trabalho com estratégias de partilha e colaboração pode ser facilitado se o professor for orientado a montar em sala grupos menores, com duas ou três crianças, e a promover combinados - como o de que a criança pode ficar com um brinquedo por certo tempo, mas que depois deve cedê-lo ao colega. Agir de maneira firme e ao mesmo tempo acolhedora, a fim de mediar os conflitos e não negá-los ou resolvê-los de forma impositiva, é outra dica. Na hora do impasse, o ideal é expor o conflito e descrever para a criança as consequências de querer o objeto só para ela. Além disso, incentivar que elas verbalizem o que estão sentindo e encontrem soluções em conjunto ajuda no processo de mudança de atitude.

Mito 2
Criança adaptada é extrovertida e participativa

Durante uma brincadeira de roda, a turma está toda junta, cantando. Apenas uma criança olha para o teto, cantarola baixinho alguns versos e não interage com as outras. A professora chama a atenção: "Cante mais alto! Você está triste? Por que nunca participa?" Certamente, quem age assim pensa que está incentivando a interação. Contudo, pode ocorrer o efeito contrário. "O mais adequado é se perguntar qual estratégia seria melhor para que a criança responda às atividades", diz Ana Paula Yasbek, coordenadora pedagógica do Espaço da Vila, em São Paulo. Elogiar apenas os alunos mais participativos aprofunda o sentimento de não-pertencimento.

O que acontece

Existem as crianças extrovertidas, como também as tímidas. O respeito à personalidade de cada uma é essencial para o processo de adaptação e o direito à timidez precisa ser assegurado.

Como orientar os professores

As estratégias para integrar as crianças devem ser procuradas pelo conjunto de educadores - e, certamente, com a ajuda dos pais. Para tanto, uma entrevista do coordenador pedagógico com os familiares sobre as preferências dos filhos é fundamental. Esse material será cruzado, durante a formação, com os registros de classe, relatórios de adaptação e portfólios. O que está sendo proposto atende às necessidades da criança? É possível também fazer visitas à sala ou gravar vídeos para perceber as práticas que funcionam melhor para cada criança e para o grupo.

Mito 3
Na Educação Infantil, todos precisam ser amigos

"Que coisa feia! Dá a mão para o seu colega." Fazer com que as crianças se tornem amigas não é tarefa da escola, mas ensinar a conviver é um conteúdo imprescindível na Educação Infantil. Nem crianças nem adultos são amigos de todas as pessoas que conhecem e não por isso a convivência pessoal ou profissional é inviável. O papel do professor é incentivar e valorizar o que as crianças têm em comum. A escolha sobre com quem elas desejam ter uma relação mais próxima é absolutamente dela.

O que acontece

No período de adaptação, primeiro há a criação do vínculo para que o trabalho escolar aconteça. Ele deve estar baseado no respeito entre as crianças e entre elas e os professores. Aos poucos - e naturalmente -, a afetividade vai sendo construída baseada nas afinidades dentro do grupo.

Como orientar os professores

Os educadores devem intervir apenas quando a amizade prejudica a participação nas atividades (por exemplo, quando uma criança só quer ficar com alguns colegas e se isola do coletivo). A professora precisa ser orientada a desenvolver um olhar atento sobre as situações ideais para explorar os gostos comuns em favor da aprendizagem. Nos encontros de formação, invista na criação de oportunidades para que os pequenos se apresentem e falem dos seus objetos preferidos e discuta as situações reais que acontecem em sala.

Mito 4
Quando estão integrados ao grupo, os pequenos não choram mais

Basta chegar à escola que as lágrimas aparecem. Se a mãe vai embora, elas aumentam. Na hora de brincar, de comer, de ler, choro. Muitos professores ficam desesperados e tentam distrair a criança mostrando imagens ou arrastando-a para um canto com brinquedos. Um engano, pois essa atitude pode atingir o objetivo imediato - que é acabar com o choro -, mas não resolve o problema.

O que acontece

"Essa manifestação é apenas um sintoma do desconforto da criança", afirma Débora Rana. Interpretar esse e outros sinais - como inapetência e doenças constantes - é fundamental durante a adaptação. O que eles significam? Por outro lado, a ausência do choro não quer dizer que a criança está necessariamente se sentindo bem: o silêncio absoluto pode ser um indicador de sofrimento.

Como orientar os professores

Uma criança que passa longos períodos chorando necessita de acompanhamento mais próximo. Na falta de auxiliares, ele pode ser feito pelo próprio coordenador até a criança se sentir mais segura. Ajuda também ter um plano para receber bem as crianças na primeira semana de aula. O uso de tintas, água e brincadeiras coletivas variadas é um exemplo de práticas atraentes que ajudam os pequenos a se interessar pelo novo espaço. Fazer com os professores uma orientação programada para que as crianças tragam objetos de casa - como fraldas, panos e brinquedos, que vão sendo retirados paulatinamente - auxilia a reduzir a insegurança.

Mito 5
A presença dos pais nos primeiros dias só atrapalha a adaptação


Na porta da sala, uma dezena de pais se acotovela querendo ver os filhos em atividade. A cena, pesadelo para muitos professores de Educação Infantil, que não sabem se dão atenção às crianças ou aos adultos, é representativa de um elemento essencial para que a adaptação aconteça bem: a boa integração entre a família e a escola, que deve acontecer desde o começo do relacionamento.

O que acontece

Nem todo pai ou mãe conhece as fases de desenvolvimento da criança e as estratégias pedagógicas usadas durante a adaptação. Eles têm direito de ser informados e essa troca é fundamental na transição dos pequenos do ambiente doméstico para o escolar. A ansiedade dos pais vai diminuir à medida que a confiança na escola aumenta - e isso só acontece quando há informações precisas sobre a trajetória dos pequenos.

Como ajudar os professores

É função do coordenador pedagógico acolher as famílias, fazer entrevistas para conhecer a rotina da criança e explicar o funcionamento e a proposta pedagógica da escola, além de estabelecer um combinado sobre a permanência dos pais na unidade durante a adaptação. Criar juntamente com os professores um guia de orientação para eles com dicas simples - como conversar com a criança sobre a ida à escola, a importância de levá-la até a sala e de chegar cedo para evitar tumulto - pode evitar problemas. Além disso, desenvolver um relatório de distribuição periódica, com informações sobre os progressos na aprendizagem e na socialização das crianças ajuda a aplacar a ansiedade dos pais.

Quer saber mais?

BIBLIOGRAFIA
A Construção do Real na Criança, Jean Piaget, 392 págs., Ed. Ática, tel. (11) 3990-1777
Os Fazeres na Educação Infantil, Maria Rosseti e outros, 208 págs., Ed. Cortez, tel. (11) 3611-9616
Manual de Educação Infantil, Anna Bondioli e Suzanna Mantovani, 356 págs., Ed. Artmed, tel. (51) 3027-7000

Revista Nova Escola

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A Dialogicidade e a Formação


A Dialogicidade e a Formação
Maria Clara C. M. Gimenes1
Resumo:
O presente trabalho aponta uma questão importante dentro da formação dos educadores que é a relação entre educadores e educandos e os diferentes saberes construídos. Não deixa de lado a modalidade “treinamento”, amparada por uma teoria, como fazendo parte desta formação.
Menciona a modalidade “inteligência e conhecimento” como importantes no processo de formação. E acrescenta a questão da dialogicidade que, muitas vezes, passa desapercebida mas que é fundamental para a formação deste educador e do educando. É que é através deste diálogo
professor/aluno que haverá uma real formação.
Palavras-Chave: Formação, Dialogicidade, Complexidade.


Introdução
Ao se iniciar uma discussão sobre o processo de formação de professores, torna-se necessário dar sentido a palavra formação. Em se tratando da educação formal, esse termo, quando utilizado para caracterizar a "capacitação de pessoas para a atuar no âmbito educacional", sempre esteve vinculado a vários outros, tais como, "capacitação", "treinamento", "reciclagem", etc.. Destaca-se o texto da autora Marin (1995) que procura esclarecer as diferenças entre os vários termos que designam a formação continuada no âmbito da educação. Em sua discussão chama a atenção a forma como ela localiza o termo treinamento. Para a autora, este termo tem como referente o tornar apto, capaz de realizar tarefas, onde o foco principal se refere a modelagem de comportamentos. E rejeitando esta postura, a autora afirma:
“Penso que, em se tratando de profissionais de educação, há inadequação em tratarmos os processos de educação continuada como treinamento quando desencadearem apenas ações com finalidades meramente mecânicas. Tais inadequações são tanto maiores quanto mais as ações forem distantes das manifestações inteligentes, pois não estamos, de modo geral, meramente modelando comportamentos ou esperando reações padronizadas; estamos educando pessoas que exercem funções pautadas pelo uso da inteligência e nunca apenas pelo uso de seus olhos, seus passos ou gestos”. (Marin, 1995, p. 15)
Compreende-se o termo treinamento como o que tem a professora Marin. No entanto, entende-se que o treinamento é uma modalidade de formação e que está também nas práticas de formação inicial dos professores. Tanto em uma como em outra esferas de formação, inicial ou contínua, há uma certa ênfase no que diz respeito ao domínio das técnicas, das ferramentas, das
estratégias de ensino; embasado em teorias científicas comprovadas. Em outras palavras, este tipo de formação - o treinamento – encontra-se tanto no saber (conhecimento) quanto no saber-fazer (prática), que em alguns momentos caminham juntos, em outros, não. Na educação escolar, esta abordagem se reflete no processo de aprendizagem dos estudantes: da mesma forma em que o professor foi treinado a ministrar aulas - o aluno é treinado a ler, a escrever, a contar, a fazer contas, a memorizar.
Em sua opinião contra a utilização do termo treinamento para designar o trabalho de educação continuada, Marin aponta um elemento que a caracterizaria enquanto tal, qual seja, o uso da inteligência, o que pressupõe uma educação pautada na razão. Finalizando seu texto, ela localiza o conhecimento como o centro tanto da formação inicial ou básica como da formação continuada. Segundo ela:
"É o conhecimento, ainda, estabelecido como fulcro das novas dinâmicas interacionistas das instituições para a valorização da educação e a superação de seus problemas e dificuldades." (Marin, 1995, p. 18).
Apesar de considerada uma dimensão importante para esse tipo de formação, ela - exclusivamente - não contempla a complexidade do fenômeno em pauta. Entende-se que nos processos de formação - inicial e contínuo - as preocupações devem estar voltadas também a um
saber-ser, onde a experiência e o vivido que perpassam a relação devem ter grande relevância. É
uma perspectiva com grandes possibilidades de trocas e que extrapolam a dimensão exclusivamente da razão: a relação em si mesma na dialogicidade, passa a ser o ponto de partida
para a compreensão dos processos inerentes à dinâmica da formação.
Não há, todavia, um abandono do aprimoramento teórico-didático, mas pretende-se, ao defendê-la (a dialogicidade) , caracterizar o saber-fazer a partir de outras dimensões, dando-lhe um novo significado, enfatizando-o como um espaço para a emergência da diferença, dos ritmos próprios, dos processos particulares daqueles que nele estão envolvidos.


A educação: saber, saber-fazer e saber-ser
A educação será entendida aqui como o conjunto das estratégias culturais que se estruturam nas sociedades e que tem por objetivo assegurar sua continuidade material e sociocultural. Assim, para a consecução deste objetivo são criadas várias instituições, tais como a família, a escola, a igreja, etc.
E Ardoino (1995) nos esclarece que a “educação aparenta, hoje, como uma função social global, intimamente associada à idéia de cultura, presa dentro de sua acepção antropológica mais ampla, visando desenvolver a transformação e o progresso social, (...), mais que a adaptação e a integração, (...) exercidas por numerosas e variadas instâncias. Porque ela é aculturação, através da tradição de conhecimentos e da aquisição de um saber-fazer e de um saber-ser; e ela expressa, o que é mais fundamental ainda, "visões de mundo", uma "cosmogonia" ... (Ardoino, 1998a).
A educação, no plano macro-social, vincula-se à sucessão histórica das culturas, à sua continuidade. Mas, pelo fato da educação situar-se no âmbito da transmissão , onde implicam pelo menos duas pessoas, ela também se encontra na plano das micro-relações; e estas colocam em jogo aspectos da convivência humana - os elementos que dizem respeito às vontades, aos desejos, e se inscrevem na ordem do inconsciente.
A escola, enquanto uma instituição que se propõe transmitir um saber e um saber fazer, tem como modelo dominante a idéia de universalidade do conhecimento. Este modelo, no entanto, se vê confrontado quando aproxima-se à formação profissional. Neste domínio não localiza-se mais sob a idéia universalidade, mas da particularidade e da singularidade, a medida que estes "alunos/profissionais" trazem já uma experiência prévia e valores estabelecidos.
Esta aproximação promove mudanças importantes no âmbito da educação escolar pois educadores, teóricos da educação, etc., se vêem às voltas com questões relativas às dimensões temporal e histórica, dimensões estas que passam a ser consideradas como intrínsecas ao processo educacional. Trata-se de uma "duração", de um tempo vivido, do ritmo próprio de cada um.

Tempo esse que se estabelece a partir de preconceitos, de prismas, e da temporalidade própria. A escola, todavia, geralmente atua "como se isso não existisse.” (Ardoino, 1998).
Assim, há o reconhecimento de que o processo educativo é algo inacabado, pois, tanto educador como educando, encontram-se vinculados na atividade educacional ocupando, obviamente, lugares diferentes, mas, numa mesma situação de relação, onde os efeitos, eles mesmos, a alteram, isto é, há mudanças promovidas pelo próprio jogo dessas interações. Pensar a educação sob essa ótica, pressupõe um redirecionamento, principalmente no que tange às intencionalidades das práticas educativas.

É importante salientar que as relações estabelecidas no âmbito da educação sob a perspectiva exclusiva de um saber e/ou saber-fazer estão estruturadas a partir dos pressupostos do que se denominou na literatura de "educação tradicional" (Mizukami, 1986). Apesar das mudanças curriculares, das novas teorias sobre o ensino, dos novos esclarecimentos psicológicos sobre o processo de conhecimento, etc., ainda encontramos em nossas salas de aula uma relação que se estrutura verticalmente, onde o professor detém o poder do conhecimento e o aluno é aquele que
recebe e incorpora tal conteúdo.
Além disso, as relações que se estabelecem no âmbito da escola privilegiam as metodologias, os conteúdos, as grades curriculares, a organização burocrática etc.
desconsiderando-se aspectos não lógicos, irracionais, como os afetos, a emoção, as expressões do
inconsciente, etc..
Os professores não estabelecem uma relação mais profunda com seus alunos pois não há um reconhecimento, por parte destes professores, dos elementos citados anteriormente dentro da relação educativa. E os professores se afastam quando os alunos apresentam dificuldades em sua
vida acadêmica (geralmente acompanhadas por problemas comportamentais).
As relações no âmbito escolar obedecem critérios lógicos (o da inclusão/exclusão, o da aprovação/reprovação, etc.), o envolvimento profissional que contempla outras dimensões (geralmente definidas como "não lógicas"), as expressões do inconsciente, etc. - necessário para o
processo de formação do indivíduo - fica desqualificado, pois o subjetivo é localizado na ordem do "não confiável", do "não mensurável".
O que se quer dizer com isso é que a educação deve se subsidiar não mais na “... tradição dum 'saber' ou dum 'saber-fazer, mas da comunicação duma 'experiência', da aquisição dum 'saber viver' ou dum 'saber-ser'. A ação formativa [deve] produzir aqui um 'conhecimento experimental', dos problemas, que se pode opor ao conhecimento intelectual..” (Ardoino, 1971, p. 70)

Conclusão
E assim finalizando, entende-se que esse "saber ser", "saber viver", como pressupõe Ardoino, implica necessariamente a presença de um outro. É através do outro que o indivíduo chega a saber ser, a saber tornar-se. É na interação, portanto, que o indivíduo "sabe-se sendo", é na troca, no vivido que aprende "saber-ser": eis aqui o principal fundamento da formação de educadores (dialogicidade).
Isso significa dizer que há, por parte do professor e do aluno, um “... engajamento pessoal e coletivo ... em função de sua história familiar e libidinal, de suas posições passadas e atual nas relações de produção e de classe, e de seu projeto sócio-político em ato, de tal modo que o investimento que resulte inevitavelmente de tudo isso seja parte integrante e dinâmica de toda atividade”. (Barbier, 1985, p. 120).
Essa idéia sugere que o processo educacional coloca em ação vários elementos geralmente desconsiderados nos processos de formação de educadores, quais sejam: as motivações mais profundas dos envolvidos no processo (muitas vezes inconscientes), os seus desejos, as suas projeções pessoais, as suas identificações, suas experiências pessoais, etc.
Deve-se compreender que há um processo de "negociação" e que não se estabelece entre adversários, ele se dá entre "parceiros", pois quando alguém se envolve numa negociação necessita de um "outro" para poder negociar (Ardoino, 1998a). Há o que chama-se de complemento.

Referências Bibliográficas
ARDOINO, J. (1971). Psicologia da educação: na universidade e na empresa. São Paulo: Herder:
Edusp.
ARDOINO, J. (1998). Abordagem multirreferencial (plural) das situações educativas e
formativas. In J. G. Barbosa (coord.), Multirreferencialidade nas ciências e na educação (pp. 24-
41). São Carlos: Editora da UFSCar.
ARDOINO, J. (1998a). A formação do educador e a perspectiva multirreferencial. Mini-Curso
ministrado na Universidade Federal de São Carlos - Departamento de Educação - Programa de
Pós-Graduação em Educação, no período de 15 a 16.10.
BARBIER, R. (1985). A pesquisa-ação na instituição educativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
FREITAS, L. C. (1992). Em direção a uma política para a formação de professores. Em Aberto.
54:3-22..
MARIN, A. J. (1995). Educação continuada: introdução a uma análise de termos e concepções.
Cadernos Cedes. 36:13-20.
MIZUKAMI, M. G. N. (1986). Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: EPU.

1 Graduada em Pedagogia pela FE-UnB. Professora na Fundação Educacional do Distrito Federal. E-mail:
mclara33@hotmail.com


Revista de Pedagogia - UNB

O Ensino da História nos primeiros ciclos do Ensino Fundamental: Breves Considerações

O Ensino da História nos primeiros ciclos do Ensino Fundamental: Breves Considerações

Ana Paula de Matos Oliveira1
Resumo:
A disciplina história, ministrada nos primeiros ciclos do Ensino Fundamental, tem como, principal, desafio para os alunos: refletir, analisar e problematizar a história enquanto parte integrante da vida de cada aluno, de forma a possibilitá-los uma compreensão sistemática e crítica da realidade. Esse artigo abordará algumas problematizações nesse percurso.
Palavras-Chave: História, Ensino, Séries Iniciais.

“(...) A tomada de consciência da perspectiva
histórica introduz um conhecimento absolutamente
importante para as gerações jovens: aprende-se que o
presente – o aqui e agora, que habitualmente é visto
como o único importante e decisivo – é algo
momentâneo e passageiro(...).”(Função Pedagógica
da História)

A disciplina história, ministrada nos primeiros ciclos do Ensino Fundamental, tem como, principal, desafio para os alunos: Refletir, analisar e problematizar a história enquanto parte integrante da vida de cada aluno, de forma a possibilitá-los uma compreensão sistemática e crítica da realidade.
Considerando a história como uma disciplina viva e elaborada a partir do presente, faz-se necessário re-pensar o seu ensino no interior dos acontecimentos da atualidade, identificando e refletindo sobre novos valores, possibilitando, desta forma, que as crianças compreendam o seu próprio papel no mundo partindo do envolvimento e análise daquilo que estão vivenciando.
Isto porque, o ensino da história não é contextualizado nas salas de aula. Percebe-se que de uma forma ou de outra que a história é tida como algo distante da realidade dos alunos, parece que está estática no passado. No entanto, sem dúvida, a história está presente na vida de cada indivíduo seria impossível não precisar desta palavra e isto se dá pelo fato da história ser viva, dinâmica, atual, pode-se se considerar que seja inerente à vida de cada indivíduo.
Sabe-se que a história se compõe de fatos articulados pela razão, é uma narrativa com um sentido lógico, onde interliga e liga a razão. E sendo a história formada por esta tecitura de razões, almeja por uma teoria universal, capaz de explicar todos os fatos e evento do passado, do presente e aqueles que virão, em sua totalidade, seguindo em conformidade com o objetivo ambicionado pela razão, que é alcançar uma racionalidade pura e livre de imperfeições.
No entanto, o próprio homem que tenta a todo momento racionalizar o real, não é neutro, ao contrário, ele tem sua maneira própria e única de ver e interpretar aquilo que o cerca, é um indivíduo com anseios, emoções.
Esta idéia de uma razão universal foi defendida pelos iluministas, que procuravam a perfeição da luminosidade racional completa e acabada; eles buscava a razão em sua transparência perfeita e luminosidade irreversível, uma razão cuja luz não projeta sombras, ela as elimina. Mas este ideal de razão é atacado pelo filósofo Kant, que considera tal como absurdo e inexistente.
Segundo Kant a razão não pode extinguir de si mesma toda a sombra, pois se isso acontecesse ela
própria desaparecia.
Como uma ação conservadora à filosofia do Iluminismo, a Revolução Francesa e à ocupação Napoleônica, aparece no final do século XVIII e início do século XIX.
O historicismo é uma corrente conservadora e, ás vezes, francamente reacionária. Ele defende que os fatos e os eventos se explicam por si só, rejeita, assim, toda e qualquer forma de inovação ou mudança.
Desta forma, com esta maneira de conceber o real e de pensar sobre ele, “nasce” o positivismo, que pregava que o conhecimento, para ser válido tinha que ser científico, ou seja, o conhecimento puro, transparente e perfeito, só se era possível quando um determinado pesquisador apenas descreve os fatos e eventos como eles os são, sem analisá-los ou refletir sobre eles. O conhecimento só teria valor lógico e racional caso o pesquisador não postule sobre aquilo que descreve, ele deve se limitar a descrição precisa, o juízo de valor é abominado.
Em meados do século XX surge uma nova forma de se conceber a história a chamada Nouvelle Histoire, trazida pelos Annales, ela associa a história às ciências sociais. A Nouvelle
Histoire não se prende aos fatos e eventos passados, não mais vê-se a história como um captação
de dados prontos, mas sim, como uma revolução, progresso, evolução, tentando a todo momento
implantar o futuro no presente, ressaltando a idéia que o presente é uma constante novidade.
Contudo, percebe-se que de uma forma ou de outra a história sempre esteve presente na evolução da realidade. Sem dúvida seria impossível não precisar desta palavra e isto se dá pelo fato da história estar presente em cada indivíduo, pode-se se considerar que seja inerente à eles.
A história estuda as transformações sociais e as permanências, e seu objeto de estudo é sempre uma determinada sociedade, composta por indivíduos ímpares que a fazem funcionar, que a estruturam e lhe dão razão de ser. Estuda-se uma sociedade em constante mutação, onde a todo
momento o real se forma e desforma, ou seja, a todo momento o conhecimento ou os conhecimentos se constroem e desconstroem para construir um novo, que irá ser desconstruído e assim sucessivamente.
Isto, evidencia que a história é, antes de tudo, um processo vivo e presente aqui e agora. Não é algo que está apenas no livro ou em detrimento intelectual de alguém, ela existe em todos os locais, em todos os âmbitos, na memória, na ação, reação e no viver de cada pessoa.
Para se compreender como a história, enquanto disciplina, tem sido entendida hoje, faz-se necessário captar, refletir e analisar a forma de ensino que se oferece nas instituições públicas e
privadas de educação.
O que se percebe são escolas conservadoras, basiladas no tradicionalismo que tende a construir e transmitir uma história desconexa, porém dita “globalizante”, como se fosse possível tratar de toda História da humanidade em um rol de fragmentos (história geral; do Brasil; medieval entre outras) reduzindo a história a apenas estes dados já prescritos.
O fato exposto não diz respeito a uma extinção ou depreciação de tais áreas da história, o problema está em reduzir a história à elas, generalizando as informações como uma teia que não
pode ser corrompida.
Esta forma tradicional e conteúdista de se trabalhar a história tem sido contestada e debatida entre historiadores e estudantes. Os debates em torno do docente de história evidenciam a preocupação de se propiciar uma abordagem interdisciplinar, sem contanto que a história perca sua especificidade.
A revolução tecnológica e a midiatização deste século, trouxe novas exigências para a educação. Com isto, tem-se a implantação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996, implanta-se, também, os Parâmetros Curriculares Nacionais para todos os níveis do ensino.
Os Parâmetros Curriculares Nacional (PCN) para o ensino da história trazem a tona a
necessidade de uma postura mais pedagógica dos docentes de história. Os PCN expressam anecessidade de se integrar o ensino da história com o cotidiano do aluno, objetivando a educação
para a cidadania, inserindo a escola nos acontecimentos da sociedade.
Um ponto que merece destaque nos PCN é a questão da pesquisa ação, isto é, considerar a prática pedagógica como um momento importante de pesquisa, onde as atividades e avaliações realizadas possam projetar e desencadear novos propostas e caminhos inovadores para usa prática.
Percebe-se um comprometimento com o aluno como sujeito da educação. Pretende-se partir das experiências do aluno, para que o mesmo possa compreender e apreender os fatos, mas não de forma passiva, mas sim participativa, onde todos na sala de aula e na própria escola colaboram para a construção do conhecimento.
Os PCNs distinguem o Saber Histórico produzido nas Universidades, daquele produzido nas escolas. O saber histórico escolar elabora uma reflexão e análise sobre o saber histórico produzido nas Universidades, onde se tem o objetivo de acoplar às análises e as experiências vividas pelos alunos e professores, de forma a integrar estes dois saberes. A escolha de conteúdos
que expressem o tempo presente possuem materialidades e possibilidade de mentalidades que permitem os alunos compreenderem melhor a presença de outros tempos.
Desta forma, os PCNs, não desprezam o conteúdo da disciplina história, tão menos os livros didáticos, o que se pretende é utilizar as informações da atualidade para assim, possibilitar que o professor seja um mediador no processo de construção do conhecimento de seus alunos.
Em meio ao dilúvio de informações, que se tem no mundo moderno, juntamente com a incorporação das diferentes linguagens (televisão, rádio, cds, jornais, revistas, entre outros) ainda
persiste nas escolas a mania por aulas puramente livrescas, onde os professores “despejam” para
seus alunos uma série de informações, muitas vezes, desconectadas e acabadas e cabe o aluno, apenas, consumir tudo que lhe é transmitido passivamente. Muitas vezes, o que os professores de história transmitem a seus alunos são conteúdos já cristalizados dentro do ensino da história e
totalmente descontextualizada da vida do aluno.
Tais considerações, não pretendem afirmar que os livros didáticos não devem ser utilizados nas aulas de história, pelo contrário o que se discute é como se utilizar este livro em sala de aula com os alunos.
Quando um professor utiliza um livro didático como única fonte de dados verdadeiros e não permite questionamentos ou análises vindas por parte dos alunos, ele está excluindo este aluno da sua própria história, ou seja, o aluno fica impossibilitado de chegar a pensar ou questionar sobre sua própria história de vida. Para este aluno a história não passará de meros escritos de um livro, ele não se considerará um sujeito desta história, um agente histórico.
Pode-se perguntar: _ Mais o que interessa para a história, se não o que está nos livros?
O aluno deve ser conduzido pelo professor para que possa compreender o tempo histórico, as transformações e mutações da realidade. O professor deve ser um mediador, que ensinará o aluno a estudar de forma a poder vir a compreender a própria realidade que lhe cerca, a questionar o mundo a seu redor, a não ter preguiça de exercer o senso crítico.
O professor de história deve utilizar os livros sim, no entanto ele deve auxiliar os alunos e aguçá-los a fazer uma leitura diferente; deve estimular que os alunos questionem o que está escrito; deve utilizar outras fontes de dados e materiais como a TV, revistas, músicas para que, assim, permita um olhar diferente sobre aquela história.
A história deve ser vista e entendida como um processo dinâmico em constante mutação, onde cada indivíduo é parte integrante desta história, bem como co-responsável por ela. Tal conhecimento, permite as crianças questionarem a realidade em que vivem, organizarem seu pensamento quanto ao seu estar no mundo, sob as possibilidades de transformações, entre outros.
Cabe ao professor de história, planejar suas aulas de acordo com o que é vivido pelos alunos, deve contextualizar os acontecimento passados no presente, deve pensar em conjunto com seus alunos. Os alunos devem ser estimulados a utilizar questionamentos, Como? Porque? Para que?
Desta forma o ensino de história estará estimulando e ajudando o aluno a interagir com o mundo que o cerca, adquirindo uma capacidade de visualizar o que está em sua volta de uma nova forma, não sendo mais um receptor passivo de informações.
O ensino de história, e conseqüentemente, os professores, de história, deve combater o que Paulo Freire chama de “Educação Bancária” onde o conhecimento é colocado pronto e acabado dentro dos alunos.
Deve-se auxiliar a criança a construir o seu pensamento, seus argumentos. Acredito que desta forma teremos, futuramente, adultos ou posso dizer universitários mais críticos, mais conscientes do que se passa no mundo, em seu país, em sua cidade. Universitários que realmente se comprometam com a Universidade e com a sociedade, e mais ainda se comprometam com as pessoas que formam este todo que é realidade, saindo um pouco do individualismo e sendo mais solidários e humanos.


Referências Bibliográficas
Educar para a Cidadania através do estudo da história – “Educando para a Cidadania – Os Direitos Humanos no Currículo Escolar” – (mimeo).
NADAI, Elza. O ensino de História e a “Pedagogia do Cidadão”. (mimeo)
NOVA, Cristiane. Vídeo, História e Educação. Oficina-Cinema-História: Núcleos de Pesquisa e
Produção de Vídeos Históricos. Departamento de Mestrado em História; Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas – UFBA.
Revista Nova Escola. O que as cidades tem a ensinar. Setembro, 2001.
RUIZ, Rafael. Função Pedagógica da História. Artigos CEVEH.
.
SOARES, Magda Becker. Livro Didático: uma história mal contada. Agosto, 1997.
.
Recebido em: 01.11.2002/ Aprovado em: 16.11.2002.
1 Graduanda em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB).

Revista de Pedagogia - UNB

domingo, 10 de janeiro de 2010

A certeza da incerteza educa


A certeza da incerteza educa

José Leão da Cunha Filho

Em O Banquete, Platão situa o filósofo está entre o ignorante e o sábio. No texto “Conhecer – a busca da certeza sempre incerta”, insistimos em que o ato de filosofar torna-se possível ao admitir a ignorância como condição para saber e o saber como consciência da ignorância. É essa a condição da atitude filosofante em sua origem.

Mas o empreendimento do conhecimento desejou a certeza. E perseguimos esse sonho ao longo desse empreendimento. Por vezes até anunciamos o procedimento para atingi-la. O positivismo ilustra bem essa perspectiva. Entre seus críticos, alternativas determinísticas flertaram com a certeza. De modo que podemos admitir sem reservas que o sonho da certeza inconteste nos perseguiu e ainda persegue.

No século passado, contudo, o sonho da certeza inconteste foi abalado. De um lado, estudiosos da ciência revelaram as fragilidades desse empreendimento e demonstraram o caráter engajado da investigação científica. De outro, resultados obtidos na investigação da matéria e da história concorreram para que a incerteza fosse finalmente admitida como “ambiente metodológico” (DEMO, 2000:10) necessário ao ato de conhecer.

A consciência da incerteza inevitável inaugura uma nova possibilidade para a prática da ciência e de sua contribuição para a humanidade. A incerteza inevitável pode nos educar para a humildade e para a solidariedade.

Maturana e Morin – a lanterna na mão

Diógenes de Sinope (412/403 – 324/321 a. C.) ficou conhecido como o “filósofo da lanterna”, por haver circulado em plena luz do dia com uma lanterna na mão a procura de um homem. Diógenes investia contra as falsas evidências, os diferentes tipos de máscaras, as convenções sociais etc.

De certo modo, é isso que fazem autores contemporâneos como Maturana e Morin. Diante da tendência ainda dominante da certeza inconteste, a metáfora da lanterna aplica-se bem ao trabalho desses autores, incansáveis na busca do reconhecimento da incerteza inevitável. Morin (2000:55) chega a afirmar que “A MAIOR CONTRIBUIÇÃO de conhecimento do século XX foi o conhecimento dos limites do conhecimento. A maior certeza que nos foi dada é a indestrutibilidade das incertezas, não somente na ação, mas também no conhecimento” (grifo do autor).

Maturana nos traz duas contribuições importantes. Em primeiro lugar, rejeita a concepção de inteligência como atributo individual independente. Inteligência não é uma capacidade individual, mas relacional. Nossa ação, na malha das relações sociais, revela nosso comportamento inteligente. O comportamento inteligente é contextual. manifesta-se no contexto. O comportamento inteligente manifesta-se na relação com o outro – “domínio consensual” – e com o meio ambiente – “adaptação ontogênica”. Realiza-se, portanto, através da flexibilidade e da consensualidade:

“...os processos que geram o comportamento inteligente são aqueles que participam no estabelecimento ou ampliação de qualquer domínio de acoplamento estrutural ontogênico e aqueles que participam no operar dos organismos envolvidos em tal domínio” (MATURANA, 1998:14)

Em segundo lugar, para Maturana (2001:32), “todo fazer é um conhecer e todo conhecer é um fazer” e “tudo que é dito é dito por alguém”. Há uma circularidade entre ação e experiência. O que conhecemos é uma perspectiva de conhecimento, entre outras. E ainda assim, conhecimento limitado pelas circuNegritonstâncias concretas nas quais foi gerado. Uma vez consolidada, a experiência de conhecer pode revelar e, ao mesmo tempo, ocultar. Por essa razão, é preciso evitar o “hábito de cair na tentação da certeza” (2001:22). Manter-se vigilante é o caminho. A humildade que decorre dessa necessidade nos obriga à convivência de pontos de vistas diferentes; obriga-nos à convivência com o outro. É essa condição que nos compromete: “Não é o conhecimento, mas sim o conhecimento do conhecimento, que cria o comprometimento” (2001:270).


Núcleo de Fotografia

Na mesma perspectiva, Morin adverte que é necessário, na experiência da condição humana, admitir a lição de humildade e de solidariedade que decorre do reconhecimento de que “Conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza” (2000:59).

Maturana e Morin advertem para a urgência de se enfrentar a fragmentação do saber. É ela que impede o conhecimento das relações mútuas e das influências recíprocas existentes entre as partes e o todo.

Preocupado com o risco do erro e da ilusão que o ato de conhecer comporta, Morin aponta para a necessidade de uma educação que realize a “iniciação à lucidez”. Para o autor (2000:20),

“Este conhecimento, ao mesmo tempo tradução e reconstrução, comporta a interpretação, o que introduz o risco do erro na subjetividade do conhecedor, de sua visão do mundo e de seus princípios de conhecimento”.

Entretanto, reconhecer o erro e a ilusão não é tarefa fácil. Maturana (2001:264) insiste que “não percebemos que ignoramos”. Morin (2000:19), por sua vez, lembra que “O reconhecimento do erro e da ilusão é ainda mais difícil, porque o erro e a ilusão não se reconhecem, em absoluto, como tais”. Essa condição oferece o combustível para a resistência à critica e a autocrítica, tanto na perspectiva individual quanto coletiva, isto é, da comunidade científica.

No fundo, a compreensão da condição humana, insiste Morin, prepara-nos para lidar com o inesperado. Significa reconhecer que as idéias e teorias funcionam, às vezes, como cobertores com os quais tentamos nos proteger do imprevisível, do que nos testa e contesta..

Maturana e Morin, ocupando-se dos limites do conhecimento colocados pela condição humana, fundamentam a convivência e a humildade como alternativas para dialogar com a incerteza inevitável. Não somos deuses nem somos tolos. Necessitamos da inquietude e do encontro com os outros.

Educar para o inesperado

Nenhum poder,
um pouco de saber,
um pouco de sabedoria,
e o máximo de sabor possível.
(Roland Barthes)

Quando falamos em aprender a desaprender estamos afirmando que muito do que sabemos funciona como impedimento a que saibamos mais e melhor.

A partir de Maturana, algo que precisamos desaprender é certamente a noção de inteligência como atributo individual e independente. Dizemos que as pessoas são mais ou menos inteligentes, como se fossem dotadas de capacidades maiores ou menos, como recursos individuais disponíveis. Essa perspectiva oferece elementos para discriminações de todo tipo. Na escola, tem contribuído para o sucesso de uns e o fracasso de outros. Se nossa inteligência manifesta-se no comportamento, somos inteligentes quando juntos experimentamos as diferenças que nos desafia e nos faz abrir-se para complementar e deixar-se complementar pelos outros. É preciso desaprender o interesse pelo ponto de vista unilateral e definitivo. É preciso desaprender o gosto pela certeza inconteste.

Atualmente, muito se fala em aprender a aprender. Que não se trate, porém, de compreendê-lo como um desafio individual. Importa aprender a aprender solidariamente. E isso só é possível quando nos colocamos a perspectiva da compreensão mútua, conforme adverte Morin. Aprender solidariamente significa colocar-se em vigília contra a sedução da certeza, bem como de distorções decorrentes.

Maturana e Morin fazem pensar somos apenas uma unidade de ignorância que sabe e de saber que ignora. Ninguém detém o saber, ninguém é somente ignorância, insistiu Paulo Freire. Sabemos e ignoramos juntos. O eu e o tu complementam-se na aventura de conhecer.

Saber que constituímos o mundo segundo nossa ação e as circunstâncias concretas em que ela se realiza, exige reconhecer que há diferentes mundos, conforme os diferentes sujeitos, diferentes contextos e diferentes modos de operar. Somos obrigados a reconhecer, entretanto, que a tendência ao que nos é familiar é própria do modo de vida prático-utilitário de que lançamos mão no cotidiano. Nele buscamos a segurança do que nos é comum. Somos apreciadores do confortável. No mundo da ciência, a disciplinarização do saber também favorece a busca do confortável. O próprio conceito de comunidade científica, conforme denunciou Thomas Kuhn, é uma organização por afinidades. De fato, buscamos evitar dificuldades. É o nosso modo mais comum de proceder. Entretanto, a busca do que nos é familiar é um sério obstáculo a desaprender, bem como a aprender solidariamente, pois nos protegemos contra o diferente e o divergente. Em geral, agimos no intuito de evitar as incertezas, quando o necessário é aprender a dialogar com elas. Contudo, as incertezas nos incomodam. Por isso fazemos uso do que sabemos não apenas para removê-las, mas também para ocultá-las.

Na escola, nós os professores, escondemos nossas incertezas nas mangas da autoridade imposta. Os alunos buscam esconder as suas no pacto que estabelecem com seus pares e com os próprios professores. Professores e alunos, via de regra, escondemos nossas incertezas no conforto alienado e alienante da sala de aula.

O uso das novas tecnologias na educação, especialmente o uso da Internet, é um importante golpe no conforto da sala de aula. As novas tecnologias nos obrigam a uma espécie de renascer para o mundo, para um mundo de fronteiras flexíveis, da imprevisibilidade e, sobretudo, da complementaridade. Somos jogados como barcos ao mar, cujo mapa de navegação deve resultar do encontro. Mas não de qualquer encontro. Trata-se, no entender de Morin, do encontro que procura responder a pergunta: que vida queremos viver? Essa condição exige repensar a concepção de diálogo, de conhecimento e de autoria. Com nos disse Paulo Freire, conhecemos mais e melhor quando conhecemos juntos.

É neste sentido que estamos falando em aprender a desaprender como condição para aprender a aprender solidariamente. Por outro lado, devemos considerar que há implicações de natureza política. Aprender solidariamente não significa renunciar a causa dos excluídos. Não devemos concluir pela negação do conflito. Equivaleria, finalmente, a admitir a ciência como braço inquestionável da recomposição da hegemonia dominante. Aprender solidariamente é colocar em pauta a vida nossa, de todos nós, especialmente daqueles de quem ela tem sido perversamente seqüestrada. Mas também a vida do planeta.

Educar é uma atividade voltada para o futuro. E o futuro nos parece cada vez mais marcado pela força do inesperado. A tarefa educativa, longe dos holofotes da certeza, é preparar para a consciência da certeza inevitável e, conseqüentemente, para a competência solidária em lidar com o imprevisível. Importa aprender a enfrentar com alegria a aventura de conhecer tendo a certeza da incerteza, como guia, como lanterna na mão em plena luz do dia.


Saiba mais

DEMO, Pedro. Certeza da incerteza: ambivalência do conhecimento e da vida. Brasília: Plano, 2000.

MATURANA, Humberto. Da Biologia à Psicologia. 3ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

______. A árvores do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma; reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

______. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2000.

Prof. MSc. José Leão da Cunha Filho é diretor do Centro de Ciências da Educação e Humanidades da Universidade Católica de Brasília.

Revista Humanitates

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A EDUCAÇÃO EM ÉMILE DURKHEIM


A EDUCAÇÃO EM ÉMILE DURKHEIM

Maria Inalva Galter e

Elenita Conegero Pastor Manchope[1]



Este estudo é o resultado de uma análise preliminar do livro Educação e Sociologia[2] de Émile Durkheim (1858-1917). Daremos destaque ao papel fundante que o autor atribui à educação, considerando-a do ponto de vista sociológico, como reguladora da vida social. Pretendemos mostrar que a sua preocupação com a problemática educacional expressa a busca de “soluções” para o contexto de crise da sociedade burguesa nas décadas finais do século XIX e iniciais deste século, que luta para continuar o processo de reprodução de suas relações.

Émile Durkheim é considerado um dos pensadores mais expressivos e que mais contribuiu para a consolidação da Sociologia como ciência empírica e disciplina acadêmica. Pesquisador metódico e criativo foi o primeiro professor universitário de Sociologia[3] e deixou um número considerável de seguidores. Durkheim viveu numa Europa conturbada por guerras e em processo de modernização, sua produção intelectual reflete a tensão entre valores e instituições que estavam desmoronando e formas emergentes, que ainda estavam se delineando.

O pensamento de Durkheim pode ser balizado, de um lado, pela Revolução Francesa e a Revolução Industrial e, de outro, pelo conjunto de idéias que, sobre esses mesmos acontecimentos, vinha sendo formulado por autores como Saint-Simon (1760- 1825) e Auguste Comte (1798- 1857), que passariam a ocupar posição de destaque na história da Sociologia.

Entre os pressupostos que constituíram a teoria de Durkheim, destaca-se a crença de que a humanidade evolui no sentido de um gradual aperfeiçoamento, impulsionada pela lei do progresso. Esse princípio, herdado do pensamento Iluminista, influenciou toda a vida intelectual do século XIX. Aflorava-se, assim, a consciência de que as idéias e os valores da velha ordem social (feudal), da qual ainda restavam elementos remanescentes, foram destruídos pela Revolução e que, portanto, era necessário criar um novo sistema científico e moral que caminhasse em sintonia com a ordem industrial instaurada. Por outro lado, disseminava-se a crença de que a vida coletiva não era apenas um somatório da vida dos indivíduos, mas, apresentava-se mais distinta e mais complexa. Certamente, é esse o objeto das Ciências Sociais e seu estudo demandava a utilização do método positivo, apoiado na observação, indução e experimentação, semelhante, porém, mais adequado as particularidades dos fatos sociais, ao que vinha sendo feito pelos cientistas naturais. Dessa maneira, as ciências da sociedade deviam aspirar à formulação de leis que estabelecessem relações constantes entre os fenômenos.

Assim, tendo vivido no interior de um ambiente bastante conturbado pelas transformações sociais e observado de maneira particular a sociedade francesa[4] a preocupação de Durkheim foi com a ordem social. Ele afirmava que a raiz de todos os males da sociedade de seu tempo era uma certa fragilidade da moral contemporânea. Na busca de resposta a essa questão, propôs a formulação de novas idéias morais capazes de guiar a conduta dos indivíduos, aos quais a ciência, através de suas investigações, poderia indicar os caminhos e as soluções, pois os valores morais constituíam um dos elementos mais eficazes para neutralizar as crises econômicas e políticas.

O olhar sociológico que determinou o método pelo qual Durkheim investigou a sociedade da sua época predominou também na maneira como ele encarou a educação. Essa questão pode ser evidenciada em Paul Fauconnet (1874- ?), na parte introdutória do livro Educação e Sociologia, observou que é por seu aspecto social que Durkheim abordou a educação, e, ainda, que a sua doutrina de educação é elemento essencial de sua sociologia. Durkheim, citado por Fauconnet, expôs que:



Como sociólogo, (...) será sobretudo dentro da sociologia que vos falarei de educação. Aliás, assim procedendo, não haverá perigo em mostrar a realidade educativa, por aspecto que a deforme; estou convencido, ao contrário, de que não há melhor processo para salientar a verdadeira natureza da educação. Ela é fenômeno eminente social. (Fauconnet, In: Durkheim, 1975, p. 5)



No livro As Regras do Método Sociológico, Durkheim já havia exposto a importância atribuída à educação, considerando-a como reguladora dos tipos de conduta ou de pensamentos que são, tanto externos ao indivíduo, como, também, dotado dum poder coercitivo em virtude do qual se lhe impõe.

Em Educação e Sociologia, o autor, realizou uma sistemática análise crítica das concepções acerca dos sistemas de educação, formuladas principalmente por pensadores e filósofos modernos. Critica, às vezes, a abrangência das propostas, noutros casos, o pouco alcance ou o caráter subjetivo das formulações. A crítica do autor, centra-se em negar o caráter individual da educação (especialmente quanto às suas finalidades), bem como, negar a natureza supostamente fixa e imutável do indivíduo.

O autor citou, por exemplo, as formulações feitas por Stuart Mill, Kant e James Mill (Fauconnet, In: Durkheim, 1975, p. 33-4), aventando que as definições propostas por esses autores partem do postulado de que há uma educação ideal, perfeita, apropriada a todos os homens, indistintamente. A esse respeito, observou que é a "educação universal a única que o teorista se esforça por defender. Mas, se antes de o fazer, ele considerasse a história, não encontraria nada em que apoiasse tal hipótese (ibidem, p. 35)”.

Acerca desse seu posicionamento, Durkheim fez um questionamento afirmando que poderiam objetá-lo dizendo que isso não representa o ideal e que se a educação tem variado, tem sido pelo desconhecimento do que deveria ser, considerou tal argumento insuficiente:



O postulado tão contestável de uma educação ideal conduz a erro ainda maior. Se se começa por indagar qual deve ser a educação ideal, abstração feita das condições de tempo e lugar é porque se admite, implicitamente, que os sistemas educativos nada têm de real em si mesmos. Não se vê neles um conjunto de atividades e de instituições sociais, que a educação exprime ou reflete, instituições essas, por conseqüência, que não podem ser mudadas à vontade, mas só com a estrutura mesma da sociedade. (ibidem., p. 36)



Para o autor, cada sociedade, considerada em momento determinado de seu desenvolvimento, possui um sistema de educação que se impunha aos indivíduos de modo geralmente irresistível. Assim, haveria em cada sociedade um tipo regulador de educação.



É uma ilusão acreditar que podemos educar nossos filhos como queremos. Há costumes com relação aos quais somos obrigados a nos conformar; se os desrespeitamos, muito gravemente, eles se vingarão em nossos filhos. Estes, uma vez adultos, não estarão em estado de viver no meio de seus contemporâneos, com os quais não encontrarão harmonia. (...) Há, pois, a cada momento, um tipo regulador de educação, do qual não podemos separar sem vivas resistências, e que restringem as veleidades dos dissidentes. (ibidem., p. 36-7)



Considerou, ainda, que os costumes e as idéias que determinam o tipo de educação necessária à sociedade, não é criado individualmente. Inclusive, em sua maior parte é obra das gerações passadas. Para ele, todo o passado da humanidade contribuiu para estabelecer um conjunto de princípios que governam a educação do homem no presente.

Como conhecer a educação necessária a cada sociedade? Para o autor, somente o entendimento histórico, isto é, quando se estuda a maneira pela qual se formaram e se desenvolveram os sistemas de educação, “inseridos no conjunto de outros fenômenos sociais como a religião, a organização política, o grau do desenvolvimento das ciências, do estado das indústrias, etc (ibidem., p. 37)”. Afirmava que separadas dessas causas históricas, os sistemas de educação tornam-se incompreensíveis (Ibidem, p. 37). Nenhum indivíduo pode construir pelo esforço próprio aquilo que não é obra do pensamento individual. Afinal, ele não se encontra em face de uma tábula rasa, sobre a qual poderia construir o que quisesse, mas diante de realidades que não podem ser criadas, destruídas ou transformadas à vontade.

Nesse sentido, o autor questionou aqueles que buscavam fixar fins certos à tarefa de educar, afirmando que somente a observação permitiria dizer se a educação tem uma finalidade ou outra. Não há meios de se saber a priori. Enfatizou que o importante seria dizer em que consiste a tarefa de educar, a que tende, a que necessidades humanas corresponde. Para responder a essas indagações e constituir a noção preliminar de educação, reafirmou o autor: “para determinar a coisa a que damos esse nome, a observação histórica parece-nos indispensável (ibidem, p. 38)”.

Na verdade, haveria de se considerar os sistemas de educação existentes, ou que tenham existido, compará-los e apreender deles os caracteres comuns. Que caracteres comuns são esses? A existência de gerações de adultos e de crianças, bem como a ação da primeira, sobre a segunda. Partindo desses postulados, Durkheim procurou definir a natureza específica dessa ação (de gerações adultas sobre gerações de crianças).

Para essa tarefa, o autor, partiu do entendimento de que cada sociedade apresenta sistemas de educação especiais. Esses sistemas apresentam dois aspectos: múltiplo e uno ao mesmo tempo. Múltiplo, pois há tantas espécies de educação, em determinada sociedade, quantos meios diversos nela existirem.

A necessária diversidade pedagógica em dada sociedade, decorre do grau de especialização existente em cada sociedade. Cada profissão constitui um meio sui generis, que reclama aptidões particulares e conhecimentos especiais, meio que é regido por certas idéias, certos usos, certas maneiras de ver as coisas; e como a criança deve ser preparada em vista de certa função, a que será chamada a preencher, a educação não pode ser a mesma, desde certa idade, para todo e qualquer indivíduo.

Durkheim afirma que quanto ao aspecto uno, "Não há povo em que não exista certo número de idéias, sentimentos e práticas que a educação deve inculcar a todas as crianças, indistintamente, seja qual for a categoria social a que pertençam (Ibidem., p. 40)”.

Portanto, para Durkheim qualquer que seja a importância dos sistemas especiais de educação, não constituem eles toda a educação. O aspecto múltiplo e o aspecto uno, divergem até certo ponto, para além do qual se confundem. Assentam assim numa base comum. Em outras palavras, cada sociedade constrói, para seu uso, certo ideal de homem, tanto do ponto de vista intelectual, quanto o físico e moral. Esse ideal é que constitui o eixo educativo.



No decurso da história, constitui-se todo um conjunto de idéias acerca da natureza humana, sobre a importância respectivas de nossas diversas faculdades, sobre o direito e sobre o dever, a sociedade, o indivíduo, o progresso, a ciência, a arte, etc., idéias essas que são a base mesma do espirito nacional; toda e qualquer educação, a do rico e a do pobre, a que conduz às carreiras liberais, como a que prepara para funções industriais tem por objeto fixar essas idéias na consciência dos educandos. Resulta desses fatos que cada sociedade faz do homem certo ideal, tanto do ponto de vista intelectual, quanto do físico e moral; que esse ideal é, até certo ponto, o mesmo para todos os cidadãos; que a partir desse ponto ele se diferencia, porém, segundo os meios particulares que toda sociedade encerra em sua complexidade. Esse ideal, ao mesmo tempo, uno e diverso, é que constitui a parte básica da educação. (ibidem., p. 40)



Esse ideal tem por função suscitar na criança: um certo número de estados físicos e mentais que a sociedade a que pertença, considere como indispensáveis a todos os seus membros; certos estados físicos e mentais, que o grupo social particular (casta, classe, profissão) considere igualmente indispensáveis a todos quanto o formem.

Assim, o autor sintetiza o seu entendimento da educação como sendo:


[...] a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine. (ibidem, p. 41)


Como conseqüência dessa definição, Durkheim, diferenciou no indivíduo, dois seres (duas consciências): um, constituído de todos os estados mentais que não se relacionam senão conosco mesmo e com os acontecimentos de nossa vida pessoal; aquele que poderia se chamar de ser individual. O outro, um sistema de idéias, sentimentos e hábitos, que exprimem em nós, não a nossa individualidade, mas o grupo ou os grupos diferentes de que fazemos parte; tais são as crenças religiosas e as práticas morais, as tradições nacionais ou profissionais, as opiniões coletivas de toda espécie. Seu conjunto forma o ser social. Aí melhor se revela a importância e a fecundidade do trabalho educativo. Seu fim, portanto, é organizar e constituir o ser social em cada um de nós.

Expôs o autor que esse ser social não nasce com o homem, não se apresenta na constituição humana primitiva, assim como não resulta de nenhum desenvolvimento espontâneo. Em suas palavras:



Espontaneamente, o homem não se submeteria à nenhuma autoridade política; não respeitaria a disciplina moral, não se devotaria, não se sacrificaria. Nada há em nossa natureza congênita que nos predisponha a tornar-nos, necessariamente, servidores de divindades, ou de emblemas simbólicos da sociedade, que nos leve a render-lhes culto, a nos privarmos em seu proveito ou em sua honra. Foi a própria sociedade, na medida de sua formação e consolidação, que tirou de seu próprio seio essas grandes forças morais, diante das quais o homem sente a sua fraqueza e inferioridade. (ibidem, p. 42)



Para Durkheim, é a sociedade a grande entidade moral. É ela a responsável pela conservação e pelo acréscimo do legado de cada geração, ligando uma a outra. É a moral de uma dada sociedade que obriga as pessoas a considerarem interesses que não os seus próprios, que ensina a dominar as paixões, os instintos, constituindo leis, ensinando o sacrifício, a privação e a subordinação dos fins individuais aos fins sociais.

A moral, na abordagem do autor, é um sistema de normas de conduta que prescrevem como o sujeito deve conduzir-se em determinadas circunstâncias. Ela envolve uma noção de dever, constitui uma obrigação, possui um respeito especial, são sentidas como desejáveis e, para cumpri-las, somos capazes de ultrapassar nossa natureza individual.

Para ele, as normas morais têm uma finalidade desejável e desejada para aqueles a quem se destinam. Elas não são uma mera ordem: experimentamos um prazer sui generis em cumprir com nosso dever porque é nosso dever. A noção de bem penetra a noção de dever. Junto ao conceito de autoridade desenvolve o de liberdade, a "filha da autoridade bem compreendida. Porque ser livre não é fazer o que se queira; é ser-se senhor de si, saber agir pela razão, praticando o dever (Ibidem., p. 54). Cada povo, em certo momento de sua história, possui uma moral. É com base nela que a opinião pública e os tribunais julgam. Negá-la é negar a sociedade e, embora possam haver consciências que não se ajustem à moralidade de seu tempo, existe uma moral comum e geral àqueles que pertencem a uma coletividade e uma infinidade de consciências morais particulares que a expressem de modo diferenciado. Por exemplo, se o educador tem uma ascendência moral sobre seus alunos é porque é uma autoridade legítima diante deles, a qual não se dá através do temor que ele possa inspirar, mas da própria crença na missão que desempenha. O mesmo se pode dizer do sacerdote que fala em nome de uma divindade. Ambos são órgãos de entidades morais: um da sociedade e das grandes idéias morais de seu tempo, outro, de seu Deus. Mas é a sociedade a autoridade moral, é ela que confere às normas morais seu caráter obrigatório. Fora dessa moral comum, existe uma diversidade de outras moralidades, expressas pelas diferentes individualidades. No entanto, o valor moral dos atos deve-se a que visam a motivos superiores aos dos indivíduos, seu fim é a sociedade.

Na verdade, todo o sistema de representação que mantém em nós a idéia e sentimento da lei, da disciplina interna ou externa, é instituído pela sociedade (Ibidem, p. 45). Como a cada nova geração, a sociedade encontra-se em face de uma tabula rasa, sendo necessário construir quase tudo, pois ao nascer a criança traz apenas a sua natureza de indivíduo, cabe à educação agregar ao ser egoísta e associal, uma natureza capaz de vida moral e social. Essa é a obra da educação. Portanto, essa virtude criadora de constituir no homem um novo ser, é o atributo peculiar da educação.

Por defender de maneira contundente a natureza social da educação, Durkheim foi acusado, por muitos pensadores da sua época, de antagonizar indivíduo e sociedade. Em resposta, afirmou que esse suposto antagonismo não correspondia à realidade dos fatos, pois: "longe de estarem em oposição, ou de poderem desenvolver-se em sentido inverso, um do outro - sociedade e indivíduo são idéias dependentes uma da outra. Desejando melhorar a sociedade, o indivíduo deseja melhorar a si próprio (ibidem., p. 46).

Segundo o autor, a ação exercida pela sociedade, especialmente através da educação:



[...] não tem por objeto, ou por efeito, comprimir o indivíduo, amesquinhá-lo, desnaturá-lo, mas ao contrário engrandecê-lo e torná-lo criatura verdadeiramente humana. Sem dúvida, o indivíduo não pode engrandecer-se senão pelo próprio esforço. O poder do esforço constitui, precisamente, uma das características essenciais do homem. (Ibidem, p. 47)



Sendo a humanidade definida segundo as necessidades sociais, parece que a sociedade impõe aos homens insuportável tirania. Na realidade, adverte Durkheim, o próprio homem é interessado nessa tirania, pois o novo ser que a ação coletiva constrói, através da educação, é que constitui o que há de propriamente humano em nós.

Na sua perspectiva, a crescente diferenciação provocada pela divisão do trabalho levava os indivíduos a não ter praticamente nada em comum, a não ser a qualidade de ser homem. Portanto:



[...] nada mais resta que os homens possam amar e honrar em comum senão o próprio homem (...). E como cada um de nós encarna algo de humanidade, cada consciência individual encerra algo de divino e fica assim marcada por um caráter inviolável para os outros. (Durkheim, 1975, p. 244)


Dos muitos aspectos que compõem a abordagem sociológica de Émile Durkheim relativas à educação, o que mais se destaca é a consideração obrigatória de uma relação estreita entre as determinações individuais e as construções sociais, donde resulta, antes de tudo, uma clara ascendência dos aspectos sociais sobre os individuais.

Esse pensamento não é exclusivo de Durkheim, mas produto de uma época, da sociedade burguesa que, a partir do século XIX, empenhava para continuar reproduzindo suas relações. Num contexto marcado pelo acirramento das diferenças sociais, expresso nos embates entre as classes sociais (burguesia e proletariado), novas exigências foram sendo colocadas, obrigando a sociedade a rever seus velhos encaminhamentos. Dentre as várias exigências que estavam colocadas, foram àquelas referentes às questões de cunho social que se destacaram. Isso aconteceu porque a sociedade que se constituiu pautada na defesa do indivíduo (do burguês), a medida que se defrontou com possibilidades muito próximas de subversão do instituído (o caso da França é exemplar), precisou, para se manter, instituir novos valores, novas normas de convívio social. Na verdade, foi necessário empenhar-se para estabelecer uma nova moral social que regulasse a vida coletiva, objetivando conservar a ordem estabelecida.

Para ele, a educação tinha por objetivo suscitar e desenvolver, no indivíduo, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial no qual ele está inserido. Nesse sentido, podemos dizer que seu método na verdade expressou um caráter eminentemente educativo. Deduz-se daí o importante papel que o autor atribuiu a educação.





--------------------------------------------------------------------------------

[1] Docentes do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste.

[2] Esse livro reúne escritos de Durhheim cuja organização e publicação foi feita póstumamente por Paul Fouconnet. Todos os textos, que se transformaram nos capítulos (quatro ao todo) foram escritos no começo desse século, abrangendo o intervalo de 8 anos (1901- 1911). Os dois primeiros capítulos foram lições inaugurais na Sorborne; o terceiro é um texto publicado na Revue de Methaphysique et Morale, n. 11; e o quarto é a aula inaugural do curso sobre o ensino secundário na França. (Em Aberto, 1990, p. 36)

[3] Leclercq afirmou que Durkheim fora homem de pensamento mas também de ação, pois soube exercer nas esferas governamentais uma influência graças à qual a sociologia foi introduzida oficialmente não só nas universidades mas também nas escolas normais ( Leclercq, 1964, p. 62).

[4] Alguns acontecimentos que marcaram a vida dos franceses e de Durkheim, em particular, no final do século XIX: A 1º de setembro de l870, a derrota de Sedan; a 28 de janeiro de 1871, a capitulação diante das tropas alemãs; a insurreição da Comuna de Paris e a proclamação da III República; a votação da Constituição de l875 e a eleição de seu primeiro presidente; a aprovação do divórcio na França; a organização do ensino público laica. (Rodrigues, 1981, p. 9-10)





REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA



DIAS, Fernando Correia. Durkheim e a sociologia no Brasil. Em Aberto, Brasília, 9 (46): 33-48, abr./jun., 1990.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. In: Durkheim. 2ª ed. Trad. de Margarida Garrido Esteves. São Paulo, Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores)

DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. 10ª ed. Trad. de Lourenço Filho. São Paulo, Melhoramentos, 1975.

DURKHEIM, Émile. Sociologia e Ciências Sociais. Trad. Inês D. Ferreira. São Paulo, DIFEL, 1975.

JACQUES, Leclercq. Introdução à sociologia. Trad. Antônio Correia, 2ª ed. Coimbra, Editor: Sucessor, 1964.

RODRIGUES, José Albertino (org.). Durkheim (Sociologia). Trad. Laura Natal Rodrigues. 2ª ed. São Paulo, Ática, 1984. (Coleção grandes cientistas sociais).

HISTEDBR - UNICAMP

Concepções de linguagem alteram o que e como ensinar

Concepções de linguagem alteram o que e como ensinar

Entenda por que a prática diária da leitura e a escrita, em atividades mediadas pelo professor, são fundamentais quando se considera a linguagem como forma de interação social

Na década de 1970, uma transformação conceitual mudou as práticas escolares. A linguagem deixou de ser entendida apenas como a expressão do pensamento para ser vista também como um instrumento de comunicação, envolvendo um interlocutor e uma mensagem que precisa ser compreendida. Todos os gêneros passaram a ser vistos como importantes instrumentos de transmissão de mensagens: o aluno precisaria aprender as características de cada um deles para reproduzi-los na escrita e também para identificá-los nos textos lidos.

Ainda era essencial seguir um padrão preestabelecido, e qualquer anormalidade seria um ruído. Para contemplar a perspectiva, o acervo de obras estudadas acabou ampliado, já que o formato dos textos clássicos não servia de subsídio para a escrita de cartas, por exemplo.

Segundo a pedagoga especializada em linguística, Kátia Lomba Bräkling, nessa concepção, a língua é um código e escrever seria o exercício de combinar palavras e frases para formar um texto. Assim, o ensino precisava focar prioritariamente as estruturas – os substantivos, os verbos, os pronomes, etc. – que compõem a língua e seus usos corretos.

Em pouco tempo, no entanto, as correntes acadêmicas avançaram mais. Mikhail Bakhtin (1895-1975) apresentou uma nova concepção de linguagem, a enunciativo-discursiva, que considera o discurso uma prática social e uma forma de interação - tese que vigora até hoje. A relação interpessoal, o contexto de produção dos textos, as diferentes situações de comunicação, os gêneros, a interpretação e a intenção de quem o produz passaram a ser peças-chave.

A expressão não era mais vista como uma representação da realidade, mas o resultado das intenções de quem a produziu e o impacto que terá no receptor. O aluno passou a ser visto como sujeito ativo, e não um reprodutor de modelos, e atuante - em vez de ser passivo no momento de ler e escutar.

PAPEL DE ESCRIBA Eleger um jovem para escrever as produções orais incentiva a construção coletiva.

Foto: Drawlio JocaEssas ideias ganharam suporte das pesquisas que têm em comum as concepções de aprendizagem socioconstrutivistas, que consideram o conhecimento como sendo elaborado pelo sujeito, e não só transmitido pelo mestre. Entre os principais pensadores estão Lev Vygostsky (1896-1934) - que mostrou a importância da interação social e das trocas de saberes entre as crianças - e Jean Piaget (1896-1980) - pai da teoria construtivista.

Nos anos 1980, Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, autoras do livro Psicogênese da Língua Escrita, apresentaram resultados de suas pesquisas sobre a alfabetização, mostrando que o aluno constrói hipóteses sobre a escrita e também aprende ao reorganizar os dados que têm em sua mente. Em seguida, as pesquisas de didática da leitura e escrita produziram conhecimentos sobre o ensino e a aprendizagem desses conteúdos.

Hoje, a tendência propõe que certas atividades sejam feitas diariamente com os alunos de todos os anos para desenvolver habilidades leitoras e escritoras. Entre elas, estão a leitura e escrita feita pelos próprios estudantes e pelo professor para a turma (enquanto eles não compreendem o sistema de escrita), as práticas de comunicação oral para aprender os gêneros do discurso e as atividades de análise e reflexão sobre a língua.

A leitura, coletiva e individualmente, em voz alta ou baixa, precisa fazer parte do cotidiano na sala. "O mesmo acontece com a escrita, no convívio com diferentes gêneros e propostas diretivas do professor. O propósito maior deve ser ver a linguagem como uma interação", explica Francisca Maciel, diretora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), em Belo Horizonte.

O desenvolvimento da linguagem oral, por sua vez, apesar de ainda pouco priorizado na escola, precisa ser trabalhado com exposições sobre um conteúdo, debates e argumentações, explanação sobre um tema lido ou leituras de poesias. "O importante é oferecer oportunidades de fala, mostrando a adequação da língua a cada situação social de comunicação oral".

Trecho adaptado da reportagem O papel das letras na interação social.
Revista Nova Escola

A LINGUAGEM NA ESCOLA: UM OLHAR SOB A PERSPECTIVA DA ECONOMIA DAS TROCAS LINGÜÍSTICAS


A LINGUAGEM NA ESCOLA: UM OLHAR SOB A PERSPECTIVA DA ECONOMIA DAS TROCAS LINGÜÍSTICAS

Maria Celeste Said S. Marques
Professora de Análise do Discurso
marques@enter-net.com.br


A Sociolingüística ao explicar a covariação entre os fenômenos lingüísticos e os fenômenos sociais, revela as diferenças de dialetos determinadas pela classe social do falante. Hoje, na escola brasileira, essas diferenças geram antagonismos acentuados por estarem presentes classes sociais que historicamente dela estiveram ausentes.

Os professores, quase sempre de classe média, não percebem que muitos alunos nem entendem o vocabulário mais elaborado usado na escola. Por vezes, nem compreendem muitas palavras usadas pelas crianças; nem percebem que tais palavras fazem parte da rica herança cultural do grupo social a que pertencem.

Grande parte das pesquisas e estudos feitos a respeito das causa do fracasso escolar, principalmente entre crianças vindas de ambientes mais pobres, demonstram que uma das dificuldades está na área da Linguagem.

A perspectiva de Bourdieu sobre a economia das trocas lingüísticas é muito produtiva para se compreender os problemas de linguagem que ocorrem na escola pelo fato de ter deslocado o ângulo de análise da caracterização da linguagem para a caracterização das condições sociais onde ocorre.

Para o autor, na sociedade capitalista, os bens materiais (como a força de trabalho, as mercadorias, os serviços) e os bens simbólicos (como os conhecimentos, as obras de arte, a música, a linguagem etc) circulam em relações de trocas desiguais. As relações de forças materiais separam os dominantes dos dominados através da posse dos meios materiais e as relações de força simbólicas através dos meios simbólicos. Dessa forma, segundo o referido autor, “não se deve esquecer que as trocas lingüísticas – relações de comunicação por excelência – são também relações de poder simbólico onde se atualizam as relações de força entre os locutores ou seus respectivos grupos” (p.24).

Conforme Bourdieu, o modelo de produção e circulação lingüística é uma relação entre os habitus lingüísticos (as disposições, socialmente modeladas) e os mercados lingüísticos nos quais eles oferecem seus produtos. A sua análise da economia das trocas lingüísticas oferece instrumentos para se compreender fenômenos relativos à produção, distribuição e consumo da linguagem inscritos nas relações sociais, dentre elas, a escolar.


Escola: um mercado lingüístico


Na escola, os locutores (sobretudo, professores e alunos) instauram relações de comunicação lingüística em condições sociais concretas que, segundo Bourdieu, funciona como um mercado lingüístico.

Desde os primeiros anos de escola, a criança (sobretudo das camadas populares) começa a prender uma língua estranha, que raramente é a sua ou de seus pais: trata-se da língua escolar padrão, a única reconhecida pela escola como correta.

Toda a maneira espontânea de falar da criança (expressões, frases, pronúncia, etc.), que não correspondem às normas da língua escolar, é constantemente corrigida, reprimida, penalizada pelo professor para que, de correção em correção, todas as crianças falem a língua exigida pela escola.

Se a criança demonstra não saber exprimir o que deseja, se não consegue entender direito as explicações da professora, nem consegue fixar instruções um pouco longas, ou se tem vergonha de falar na escola, muitas vezes a dificuldade é entendida como tendo origem na criança e que ela deve ser corrigida. Entretanto, em sua casa, essa criança consegue se comunicar perfeitamente, de falar a língua portuguesa com desembaraço em várias circunstâncias de sua vida. Segundo Bourdieu (1998:32),

“A língua oficial está enredada com o Estado, tanto em sua gênese como em seus usos sociais. É no processo de constituição do Estado que se criam as condições da constituição de um mercado lingüístico unificado e dominado pela língua oficial: obrigatória em ocasiões e espaços oficiais (escolas, entidades públicas, instituições políticas etc.), esta língua de Estado torna-se a norma teórica pela qual todas as práticas lingüísticas são objetivamente medidas. Ninguém pode ignorar a lei lingüística que dispõe de seu corpo de juristas (os gramáticos) e de seus agentes de imposição e controle (os professores), investidos do poder de submeter universalmente ao exame e à sanção jurídica do título escolar o desempenho lingüístico dos sujeitos falantes”.

Muitas crianças, para não correm o risco de serem criticadas por falar “errado”, preferem calar a boca e reduzir o que tiverem de escrever ao mínimo possível, para não se expor às observações do tipo “pobreza de vocabulário”, “falta de sentido”, “erro ortográfico”, etc. Segundo a perspectiva de Bourdieu, as palavras são bens que são trocados, na escola. O falante (o aluno) coloca seus produtos nesse mercado lingüístico que é:

“estritamente sujeito aos veredictos dos guardiões da cultura legítima, o mercado escolar encontra-se estritamente dominado pelos produtos lingüísticos da classe dominante e tende a sancionar as diferenças de capital preexistentes. O efeito acumulado de um fraco capital escolar e de uma fraca propensão a aumentá-lo através do investimento escolar que lhe é inerente condena as classes mais destituídas às sanções negativas do mercado escolar, ou seja, à eliminação ou à auto-eliminação precoce acarretada por um êxito apagado. Os desvios iniciais tendem, portanto, a se reproduzir, pelo fato de que a duração da inculcação tende a variar tanto quanto seu rendimento, fazendo com que os menos inclinados e menos aptos a aceitar e a adotar a linguagem escolar sejam também os que se expõem menos tempo a essa linguagem, bem como aos controles e sansões escolares” (Bourdieu, 1998:50).

Com efeito, Bourdieu reflete sobre a relação professor-aluno, mostrando-a como tensa e não instaurada sobre a singularidade dos alunos. Caminhando nessa mesma direção de análise Alkmin et alii afirma que é necessário muito mais

“pensar a realidade social do que a realidade lingüística. Sabemos que a utilização da língua é regida por um conjunto de regras sociais que regulam a pertinência ou não, a adequação ou não dos comportamentos lingüísticos. Ou seja, tanto para a escrita como para a fala, existem restrições e assentimentos quanto ao seu uso: há punições previstas para quem infringe essas regras que vão desde estar exposto à galhofa até não ser aceito em empregos, por exemplo. Não podemos perder de vista que a hierarquização das formas lingüísticas é calçada em valores que refletem a estrutura de uma sociedade, no caso da nossa, a de uma sociedade de classes (grifo nosso).

No mercado lingüístico, por exemplo, o escolar, em que a modalidade de linguagem legítima domina e se impõe, o aluno aprende também as condições de sua aceitabilidade, que Bourdieu (1998) chama de aceitabilidade sociológica e não lingüisticamente como faz Chomsky; para ele, aceitabilidade não é apenas o uso da língua intuitivamente “gramatical” ou “normal” (como diz Chomsky), mas um uso da língua que engloba tanto as leis propriamente lingüísticas da gramaticalidade internalizadas pelo falante quanto a formação de preços característicos do mercado em questão. Isto significa que “as condições de recepção antecipadas fazem parte das condições de produção, e a antecipação das sanções do mercado contribui para determinar a produção do discurso” (Bourdieu, 1998:64).

Em suma, a escola é lugar onde a aquisição do capital cultural e do capital lingüístico pelo falante acontece de por meio de um processo formal e intencional de inculcação de regras explícitas. O mercado lingüístico escolar tem a especificidade de ser uma instância social a serviço do mercado cultural e lingüístico dominante para reproduzir e difundir a linguagem legítima que confere aceitabilidade. Dessa forma, é oportuno perguntar: como a escola trata das diferenças dialetais? É o que se discutirá a seguir.


O dialeto e língua legítima


Todo falante nativo usa sua língua de acordo com as regras específicas de seu dialeto, reflexo da comunidade lingüística a que pertence. Dessa forma, há diferenças entre as regras de um modo de falar de um dialeto e o de outro. Como afirma Alkmin et alii (19991:25), “[...] a língua é um complexo de variantes e não existe superioridade de uma variedade sobre a outra”. No entanto nem todos possuem o mesmo valor no mercado, visto que a presença de grupos hierarquizados é a condição para a instauração de relações de dominação lingüística. Como explica Bourdieu, no mercado lingüístico (e, neste ensaio, em particular o escolar), o valor dos produtos lingüísticos (seu preço) rende lucro para o falante, cujas características lingüísticas correspondam às posições econômicas e sociais privilegiadas. A linguagem legítima é aquela dos grupos dominantes. Ela se converte em capital lingüístico, favorecendo a obtenção de lucro por aqueles que o detêm. Com efeito, conforme Bourdieu (1998:41),

“ao privilegiar as constantes lingüisticamente pertinentes em detrimento das variações sociologicamente significativas para construir este artefato que é a língua 'comum', tudo se passa como se a capacidade de falar, mais ou menos universalmente difundida, fosse identificável à maneira socialmente condicionada de realizar esta capacidade natural, cujas variedades são tantas quanto as condições sociais de aquisição”.
Para Bourdieu, as diferenças lingüísticas de pessoas provenientes de diferentes regiões se encontram relegadas ao inferno dos regionalismos, das expressões viciosas e de erros de pronúncia que os professores corrigem. “Reduzidos ao estatuto de jargões idiomáticos ou vulgares, igualmente impróprios em ocasiões oficiais, os usos populares da língua oficial sofrem uma sistemática desvalorização” (p.40-1).

No mesmo mercado lingüístico, as pessoas podem ter a mesma competência lingüística. No entanto, o discurso depende da posição do falante do mercado lingüístico para poder ser reconhecido como linguagem legítima e assim se transformar em capital lingüístico. Em decorrência disso, Bourdieu critica o conceito de competência lingüística como formulado por Chomsky porque “escamoteia a questão das condições econômicas e sociais de aquisição da competência legítima e de constituição do mercado onde se estabelece e se impõe esta definição”. Contra a competência lingüística (abstrata) de Chomsky, sugere o conceito de capital lingüístico, que remete a competência necessária para falar a língua legítima, visto que esta tem um mercado lingüístico que confere autoridade, poder e dominação ao falante


A comunicação pedagógica no mercado escolar


O mercado cultural e lingüístico é socialmente dotado de critérios de avaliação que conferem legitimidade aos bens simbólicos, como a própria linguagem dos grupos dominantes econômica e socialmente. Com efeito, a cultura e a linguagem desses grupos são transformados em capital cultural e lingüístico e sua aquisição e domínio torna-se uma exigência no mercado dos bens simbólicos enquanto que a cultura e a linguagem dos grupos dominados são depreciados.

Uma das especificidades mais importantes da escola é ser um mercado lingüístico que usa e ensina a linguagem legítima por meio da comunicação pedagógica, que tem como característica distintiva a de ser uma relação de força simbólica no grupo constituído pelos professores e pelos alunos.

O papel do professor, na comunicação pedagógica, é o de inculcação da cultura (capital cultural) e da linguagem legítima (capital lingüístico). No entanto, essa comunicação pedagógica é fundamentada em bases desiguais.

Os alunos das classes dominantes ao chegarem a escola estão em condições de usar o capital cultural e o capital lingüístico escolarmente rentável, visto que estão familiarizados com eles em seu grupo social; já dominam, ou podem facilmente dominá-los.

Entretanto, os alunos das camadas populares familiarizadas com sua linguagem, que é considerada pelo mercado lingüístico como não-legítima - como diz Bourdieu, não reconhecida socialmente - ao chegarem a escola, em geral, fracassam, visto que a comunicação pedagógica não atinge o objetivo de fazê-los adquirir os bens simbólicos que constituem o capital cultural e lingüístico legítimos. O fato de não dominarem a linguagem da escola se torna difícil para compreenderem e se expressarem na comunicação pedagógica. E por não disporem do capital lingüístico escolarmente rentável, muitos alunos fracassam na escola.

A comunicação pedagógica envolve atividades que, em geral, caracterizam-se muito mais pelo reconhecimento da linguagem legítima do que seu conhecimento. O ensino da língua caracteriza-se pelo estudo da gramática da língua legítima, leitura de textos sempre escritos em língua legítima, correção da linguagem oral e escrita dos alunos conforme os padrões da língua legítima. Conseqüentemente, para os alunos das classes dominantes, o ensino constitui além de uma didática do reconhecimento que já possuem da língua legítima, um aperfeiçoamento da capacidade de produção e de consumo do conhecimento.

Todavia, para os alunos pertencentes às camadas populares, a escola possibilita, em geral, apenas o reconhecimento que existe uma maneira de falar e escrever considerada legítima e que é diferente daquela que conhecem e dominam. Tal reconhecimento se inscreve, para Bourdieu (1998:37-8), “em estado prático nas disposições insensivelmente inculcadas pelas sanções do mercado lingüístico [...]”. Com efeito, a escola não leva esses alunos a conhecer essa outra maneira, isto é, não os leva a produzi-la e consumi-la eficientemente, aumentando, assim, a distância entre a linguagem das classes populares e o capital lingüisticamente social e escolarmente rentável. Segundo Bourdieu (1998:50), “[...] os mecanismos sociais da transmissão tendem a garantir a reprodução da defasagem estrutural entre distribuição (bastante desigual) do conhecimento desta língua legítima e a distribuição (muito mais uniforme) do reconhecimento desta língua [...]”.

Dessa forma, os bens simbólicos das classes dominantes e a comunicação pedagógica legítima são instrumentos para o fracasso escolar das classes populares, contribuindo, assim, para a perpetuação dessas classes como dominadas e para perpetuação da estratificação social.

Retomando a discussão, cabe entender as implicações desse modo de ver a educação.A análise de Bourdieu fornece-nos importantes esclarecimentos a respeito do sistema educacional e dos processos de ensino e seleção, especialmente com relação à natureza “classista” desses processos.

Entretanto, do ponto de vista do desenvolvimento de uma sociolingüística alternativa para compreender a educação, há limitações. Substancialmente, uma educação vista à luz da linguagem como um mercado lingüístico não sugere uma disponibilidade para a mudança, na medida em que implica dispor o aluno numa relação estereotipada com a precariedade do próprio momento. Logo, não é possível pensar-se num processo educacional com fronteiras determinadas entre educação e o mercado lingüístico, sem o risco de alijar da escola o próprio processo constitutivo de sujeitos.

Nessa perspectiva, a escola não é o campo de luta contra o fracasso escolar das camadas populares e sim um instrumento e causa para a divisão da sociedade de classes. A solução dos problemas está na eliminação das discriminações e das desigualdades sociais e econômicas. É inegável a relação entre escola e sociedade, mas também é verdade que muitas “dificuldades e problemas do ensino de língua materna podem ser resolvidos no âmbito de discussões pedagógicas e didáticas” (Alkmin et alii, 1991:26).


Referências bibliográficas


ALKMIN, T M e outros. “A Lingüística e o Ensino da Língua Materna”. In: Geraldi, J.W. (Org.). O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel, Assoeste, 1991

BOURDIEU, P. “A Economia das Trocas Lingüísticas”. In: Bourdieu, P. (1998). A economia das trocas lingüísticas. São Paulo, Edusp, 1980

Primeira Versão - UFRO

Os maiores mitos sobre o cérebro dos adolescentes

Nas últimas duas décadas, os cientistas conseguiram mapear as mudanças neurais verificadas ao longo desse período central do desenvolvimento...