terça-feira, 16 de novembro de 2010

O saber não é neutro


O saber não é neutro

O ideal do século XIX de construir uma ciência pura não existe mais. Atualmente, as grandes controvérsias científicas não se resumem a confrontações entre sábios racionais e público obscurantista. Correspondem, antes, aos debates políticos entre partidários de mundos possíveis
por Rubens Naves

Encontrar seu lugar na sociedade é um desafio para a ciência. Um exemplo que ilustra bem essa afirmação são as atuais controvérsias no campo da biotecnologia. Os biólogos estão em meio a um verdadeiro fogo cruzado: de um lado, o poder econômico privilegia, com seus financiamentos direcionados, a pesquisa com fins aplicáveis, exigindo como contrapartida segredos e patentes; de outro, o público rejeita o papel de espectador passivo e se rebela contra alguns “desconhecimentos” científicos, como por exemplos os efeitos de organismos geneticamente modificados (OGM) na agricultura. Tantas contradições terminam, às vezes, por resgatar o velho ideal da ciência pura, onde são rejeitadas as “deformações inerentes às contingências econômicas e sociais1”.

Nos últimos anos, porém, os estudos da história social da ciência iniciados com Alexandre Koyré e levados adiante por Thomas Kuhn2 renovaram totalmente a abordagem dessas questões e, de forma mais geral, a maneira de conceber o lugar da ciência na sociedade. Suas pesquisas observaram que a “revolução científica” na origem das ciências modernas é geralmente apresentada como a vitória da razão frente, notadamente, a uma Igreja obscurantista. Falácia. A maior parte dos sábios, como Isaac Newton, por exemplo, era profundamente crente e pensava que “descobrir as leis da natureza graças à física é descobrir a obra de uma providência absolutamente divina e convencer-se de que a organização do mundo não é produto do acaso3”. Muito antes das Luzes, é no declínio das antigas hierarquias e no turbilhão suscitado pela chegada ao Novo Mundo que devemos buscar a fonte dessa revolução. É nesse contexto que as novas ciências abandonam a concepção de natureza como algo maravilhoso, governado por princípios ocultos, e passam a imaginá-la como uma máquina gigantesca. A tal engrenagem seguiria leis reguladoras e necessárias, passíveis de serem traduzidas em linguagem matemática. Isso não impediria, contudo, que a visão mecanicista da natureza continuasse por muito tempo como um ato de fé4, incapaz de explicar fenômenos tão familiares como a coesão de materiais, a queda dos corpos ou a maré.

O pensamento mecanicista, inspirado pela tecnologia e pela religião, permitiu alcançar um saber eficaz, cujo objetivo era o domínio e controle do mundo justamente no momento de expansão colonial e da primeira revolução industrial. Naquele período, os universos científicos, técnicos e dos poderes econômicos ou políticos se imbricavam profundamente.

Universo particular

Assim, as evoluções das ciências não resultam de um projeto coerente concebido em apenas um lugar, mas de mutações globais tanto dos produtores de saber como dos poderes secular e religioso. Cada ator perseguia – e persegue – seus interesses e busca aproveitar-se das mudanças no entorno. A partir de conjunturas singulares, emergem novas visões científicas do mundo e, por razões complexas, algumas delas se difundem entre numerosos atores sociais e naturais. Assim, a história das ciências assemelha-se à imagem do leito de um curso d’água, desenhado por inúmeras conjunções geológicas: acidentes, obstáculos, desvios. Essa visão difere bastante daquela proposta pela história habitual5, que descreve o avanço das ciências como a descoberta progressiva de uma natureza fixa – como se o curso d’água “descobrisse” seu leito, fluindo inevitavelmente desde sua fonte à foz. A história realista das ciências é cheia de suspense, de surpresa, de pontos de inflexão.

Em primeiro lugar, a prática efetiva das ciências não visa apenas descrever a realidade tal como é, mas a criar, graças aos laboratórios, um mundo artificial onde seus conceitos podem ser operacionalizados. Essa tendência, dominante hoje, caracteriza as ciências modernas desde o início. Galileu privilegiava o estudo do movimento num mundo idealizado onde o atrito não existia, o que gerava muitos protestos por parte dos aristotélicos, para quem a física deveria se ocupar da realidade, não importando se tais condições dificultassem os trabalhos dos matemáticos. Segundo, a noção de “descoberta” é ingênua, pois não leva em consideração um fato atualmente bem estabelecido: o de que a realidade sempre nos escapa, pois nossos conhecimentos estão indissociavelmente misturados à nossa noção do real e nossas ferramentas de acesso a eles estão, por sua vez, intrinsecamente ligadas à sociedade que as criou. Reconhecer esses limites conduz a uma verdadeira historicidade dos fatos científicos. Assim, os micróbios de Pasteur não são os nossos: com a mediação de aparelhos e teorias diferentes daquela época, eles são muito mais variados, alguns inclusive se tornaram vírus. Quanto aos átomos, eles constituem uma visão da matéria ainda relacionada com materiais purificados produzidos por laboratórios modernos. Contudo, isso não significa, contrariamente ao que certos teóricos preconizam, que essas entidades seriam ilusões: elas respondem bem aos processos laboratoriais e permanecem elementos essenciais na construção de “fatos” científicos. Mas as características que conhecemos delas não esgotam suas realidades: de certa maneira, essas entidades falam por si mesmas, mas jamais dizem tudo que sabem.

Imersos na realidade

Ao acompanhar os pesquisadores em seus gestos diários, observá-los fabricar objetos e produzir sentidos a distintos universos sociais e políticos, constata-se que as ciências não descobrem “o” mundo, mas constroem mundos ao relacionar coletivos humanos, máquinas e objetos naturais. Quanto às ciências puras, elas jamais duram muito tempo: o ideal de um saber neutro, autônomo e descolado dos outros universos sociais, privilegiado pelos sábios do século XIX, logo cedeu lugar a outras abordagens no momento em que a inserção desses estudiosos no mundo socioeconômico se intensificava.

Com essas múltiplas ilusões, parcialmente dissipadas, torna-se possível buscar integrar melhor as ciências no debate democrático. As grandes controvérsias científicas não se resumem mais a confrontações entre sábios racionais e público obscurantista. Correspondem, antes, aos debates políticos entre partidários de mundos possíveis. Que seja sobre terapias genéticas, nanotecnologia ou organismos geneticamente modificados, é cada vez mais flagrante que esses avanços científicos não devem ser julgados separadamente do sistema social onde estão inseridos6. Como associar os pesquisadores a uma sociedade civil que não aceita o papel de espectador passivo, mas que ao mesmo tempo é influenciável e versátil, como mostram as mudanças de opinião sobre o aquecimento global, sempre mantendo a autonomia frente a pressões econômicas? Para Isabelle Stengers, uma solução possível consiste em definir as ciências como a construtora de provas críveis7. Contudo, as indústrias ameaçam a fiabilidade por uma exigência mais forte, a da competitividade, enquanto o público pede a extensão desse tipo de prova para fora dos laboratórios. Se já existem várias pistas de como fazer isso, como as conferências cidadãs ou a separação de poderes sugerida por Bruno Latour8, as formas concretas de se implementar essas iniciativas ainda estão por ser inventadas.

Rubens Naves é professor licenciado do Departamento de Teoria Geral do Direito da PUC-SP, sócio titular de Rubens Naves, Santos Jr, Hesketh Escritórios Associados de Advocacia.

1 Relatório de síntese do movimento “Sauvons la recherche”. Disponível em: http://cip-etats-generaux.apinc.org/IMG/pdf/synthese-finale-EG.pdf
2 Ler Alexandre Koyré, Du monde clos à l’univers infini, Gallimard, Paris, 2005; Thomas Kuhn, La structure des révolutions scientifiques, Flammarion, Paris 2008.
3 Simone Mazauric, Histoire des sciences à l’époque moderne, Armand Colin, Paris, 2009.
4 Mary Midgley, Science as salvation: a modern myth and its meaning, Routledge, Oxford, 1992.
5 Encontramos um exemplo caricatural na obra dirigida por Georges Barthélémy, Histoires des sciences, Ellipses, Paris, 2009.
6 Christophe Bonneuil e colaboradores. «Innover autrement? La recherche face à l’avènement d’un nouveau régime de production et de régulation des savoirs en génétique végétale» [Inovar de outra maneira? A pesquisa frente a um novo regime de produção e regulação de saberes em genética vegetal], Dossiê de meio ambiente do INRA, n° 30, Editions Quae, Versalhes, 2005, www.inra.fr/dpenv/pdf/BonneuilD30.pdf
7 Isabelle Stengers, La Vierge et le neutrino: Les scientifiques dans la tourmente, Empêcheurs de Penser en Rond, Paris, 2006.
8 Bruno Latour, Politiques de la Nature, La Découverte, 1999.

Le Monde Diplomatique Brasil

Caminhos para uma agenda sustentável

Caminhos para uma agenda sustentável

A educação como cultura e a cultura como educação abrem possibilidades de construção de valores permanentes para outra forma de estar e pertencer ao mundo, plena de significados, sentidos, compartilhamentos, intimidades do fazer humano, convivências com o mistério, realidades e fabulações

por Hamilton Faria

Qualquer contribuição para uma agenda da cultura sustentável seria incompleta se não tratasse da educação como cultura. É do binômio cultura/educação que poderá nascer uma noção ampliada de cultura, que gerará práticas além da expressão das artes, mas sempre com a presença delas.

A sociedade precisa compreender a ideia do “desenvolver-se com arte”, gerando formas mais sensíveis de ver o mundo. Como diz Marcel Duchamp: “A arte é um meio de libertação, sabedoria, contemplação e conhecimento”1. Mas a arte é essencialmente linguagem, patrimônio, experiência existencial. Para a artista plástica Fayga Ostrower, participante e fundadora da Rede Mundial de Artistas2: “Todas as formas de arte incorporam conteúdos existenciais. Estes se referem à experiência do viver, a visões de mundo, a estados de ser, desejos, aspirações e sentimentos, e aos valores espirituais da vida. Enfim, são conteúdos gerais da própria consciência humana. Atravessando séculos, sociedades e culturas, tais conteúdos continuam válidos e atuais para cada um de nós. Por isso, a arte tem esse estranho poder de nos comover tão profundamente. Ela fala a nós, sobre nós, sobre o nosso mais íntimo ser”.

A educação como cultura e a cultura como educação abrem possibilidades de construção de valores permanentes para outra forma de estar e pertencer ao mundo, plena de significados, sentidos, compartilhamentos, intimidades do fazer humano, convivências com o mistério, realidades e fabulações.

Neste sentido, aponto algumas ideias de educação para uma cultura sustentável, e de cultura para uma educação sustentável.

EDUCAÇÃO PARA A DIVERSIDADE CULTURAL



Educar para a diversidade é circular informações, ideias, sonhos e projetos pelo território, é fazer cultura na escola e educação na cidade inteira, é fortalecer todas as potências da localidade. É reconhecer o diferente, o outro, não como inimigo, mas como completude daquilo que está inacabado, como virtude que não adquirimos e que pode ensinar, mesmo aquilo que não serve para a minha identidade de ser humano e cultural.

Educar para a diversidade é aproximar a escola dos movimentos e expressões culturais do entorno e levar as expressões e manifestações para a escola, além de promover o aprender a conviver no próprio universo escolar. É inacreditável a distância entre as partes dessa comunidade, seus funcionários, alunos e professores/direção. São universos distintos e incomunicáveis. Na escola aberta, colocar-se no lugar do outro poderá vitalizar o precário ambiente escolar, tão defasado em relação a exigências de um novo paradigma educacional. Assim é possível, por exemplo, fazer a troca de papéis por um dia, onde os professores serão alunos e faxineiros e os faxineiros ensinarão seu ofício aos alunos e professores, como um trabalho nobre. São as diversidades que devem construir o diálogo intercultural entre escola, educação informal, manifestações culturais ou mesmo a cultura da vida cotidiana dos bairros. Apesar da grande comunicação entre bairros promovida por jovens com mobilização presencial e novas tecnologias, ainda vivemos em territórios-guetos e com valores precários, fáceis presas daqueles edificados em torno da publicidade e dos meios de comunicação, presentes na totalidade do território brasileiro.

EDUCAÇÃO PARA A CULTURA DE PAZ
E OS DIREITOS HUMANOS



Um recente mapeamento das dinâmicas culturais da região sul de São Paulo, realizado pelo Sesc Santo Amaro e Instituto Pólis, e pesquisa do Pontão de Convivência e Cultura de Paz, demonstram que ainda é pequeno o número de jovens que dispõem de informações sobre cultura de paz, e menos ainda aqueles que sabem o que é realmente isso – alguns a consideram a negação do conflito e a submissão.
Em virtude dos cenários de violência, a paz e os direitos humanos são hoje complementares e devem atingir massivamente o território, tanto nas escolas como na educação informal e nas atividades cotidianas da população. Em muitos lugares do país passam a existir leis instituindo Conselhos Municipais de Cultura de Paz e Conselhos Parlamentares de Cultura de Paz. Prêmios, cursos, projetos de toda ordem, Redes de Paz, Rodas de Conversa de Convivência e Cultura de Paz, Conversas de Rua em São Paulo e papo de subida em morros do Rio de Janeiro, Terapia Comunitária, cursos e oficinas de mediação de conflitos, justiça restaurativa em várias regiões do país, constroem sanidade e abrem caminhos para uma ação de cultura de paz mais ampla, em interação com a população. No entanto, os currículos escolares e as atividades podem incluir a educação para uma cultura de paz e direitos humanos de forma mais efetiva. São importantes também algumas campanhas de valores na escola e nos meios de comunicação. E as políticas transversais precisam ousar mais neste campo, particularmente entre os jovens.

A arte e seus processos criativos têm contribuído sobremaneira para uma cultura de paz e direitos. A arte entre os jovens tem reconfigurado dinâmicas territoriais, ampliado diálogos locais, envolvido a população em processos de culturalização e aberto outros cenários públicos onde se viabilizam territórios vitais e estéticas num mundo que oculta suas expressões e os destina à irrelevância e ausência de perspectivas. Por meio da arte jovem e das manifestações culturais, os territórios ganham outros significados além da exclusão, como expressão significativa da criatividade e da reorientação de vida para um lugar mais alto que o destinado pela história vivida.

EDUCAÇÃO PARA A VIDA SIMPLES

Assim, educar para a vida simples será revisitar soluções da ancestralidade, da economia doméstica, com a importância do trabalho manual e o reconhecimento de sua nobreza, a cultura alimentar, a indumentária não apenas das marcas que povoam o mundo com seu séquito de escravos e tiranias.3


Educar para a vida simples é educar para valores que não têm preço, como a sociabilidade e a convivência com o outro e os outros – animais, plantas, minerais, enfim, a enorme comunidade dos seres vivos que dá sentido à nossa existência. Tenho escrito sobre a presença do Andarilho Urbano4 ou do Poeta Andarilho nas cidades. O deslocamento urbano deve se constituir também em mobilidade cultural e não apenas numa mobilidade física de um ponto ao outro da cidade. Andar a pé é um método de vida simples que necessita ser praticado e ensinado nas escolas, para que não pensemos que a partir de uma determinada renda estamos indissoluvelmente condenados a usar um acessório motor permanentemente acoplado à nossa vida, seja como signo de status ou de facilidades. Por outro lado, parece evidente que não há saída para a mobilidade urbana sem atitudes solidárias e a presença do andarilho. Enfim, a cultura pode contribuir para este debate de uma cultura da vida simples em nossas cidades como paradigma relevante.

A cultura do consumo deverá também ser objeto de nossas preocupações culturais, pois além de empobrecer valores da sociedade, trazendo sentidos materiais, contribui para a degradação de culturas. Realizar a ponte entre consumo e cultura pode trazer consequências importantes para o debate cultural sustentável. Por outro lado, negar simplesmente o consumo com ideologias não nos faz entender o que cada vez mais é um lugar significativo da construção de valores e políticas.

Aqui é importante retomar Canclini5: “Proponho reconceituar o consumo, não como simples cenário de gastos inúteis e impulsos irracionais, mas como espaço que serve para pensar e no qual se organiza grande parte da racionalidade econômica, sociopolítica e psicológica da sociedade”.

A EDUCAÇÃO PARA O CUIDADO
COM A COMUNIDADE DOS SERES VIVOS

Aqui, estamos falando em um paradigma cultural que valoriza a vida em toda a sua extensão, além da comunidade de seres humanos. Este paradigma biocêntrico (gr. bio, “vida” e kentron, “centro”) enfatiza a importância de todas as formas de vida onde não somos o centro da existência, mas participamos de uma rede de relações vitais em que as espécies colaboram entre si e são solidárias para a construção de uma vida digna. Assim, a vida humana e não humana, e a vida vegetal, animal e mineral (a água é mineral) buscam uma integração e diálogos constantes dentro da comunidade da vida, uma espécie de transvaloração, de humildade, onde não nos constituímos como única e dominadora referência da vida. Nem tudo no universo pode ser considerado na razão instrumental dos interesses do homem (e aqui é homem mesmo), de nossa especial posição que confere domínio sobre a natureza como se ela não tivesse direitos, nem os animais, nem os vegetais, nem os minerais. Somos superiores e tudo está a nosso serviço. A Constituição do Equador de 2008 prevê a natureza como sujeito de direitos. Aí podemos considerar a vida no centro como alternativa a uma cultura empobrecedora das relações vitais e suas conexões solidárias. E isso muda tudo no campo da cultura: as manifestações circenses utilizam animais em suas apresentações? Os equipamentos culturais queimam florestas para suas construções? As águas são consideradas em nossa proposta cultural? Os direitos da natureza dialogam com as políticas culturais e com a diversidade cultural? Os patrimônios são pensados na perspectiva dos direitos da comunidade dos seres vivos? As nossas cidades poderão ser desenhadas para esta comunidade? Qual a presença de outros integrantes desta comunidade em nosso patrimônio construído – escolas, equipamentos, bibliotecas ou mesmo nas praças e ruas? Quero apontar aqui apenas algumas indagações marcadas por um caminho do coração e que já faz parte de alguns milhares de grupos no país e no mundo, mas que, sem dúvida, já são considerados no debate cultural e nas políticas públicas.

EDUCAR PARA O REENCANTAMENTO DO MUNDO

Parece evidente que a mudança sustentável do mundo e da cultura necessita mais que transformações materiais que busquem o equilíbrio de relações cultura-natureza e mesmo um conhecimento transdisciplinar cultural que envolva os modos de vida sustentáveis nos processos culturais.


Educar para outro cenário que vise construir um outro mundo possível implica absorver realidades poéticas, construir mundos poeticamente habitáveis, presentes além da dimensão racional da cultura, mas na sua dimensão mítico-simbólica e mesmo na dimensão do mistério, pois a cultura trabalha com humanidades, divindades e espiritualidades. Estimular estas dimensões do reconhecimento entre pessoas e comunidades, a emoção presente nas relações humanas e culturais, a capacidade de rir e sonhar possibilidades de criação e vida podem dar este diferencial da cultura de que tanto necessitamos. As festas, celebrações, rituais, encontros poético-artísticos trazem para a cultura um mundo imaginal que amplia o mundo real e nos conecta com possibilidades de vida estruturadas a partir da imaginação e não apenas do pensamento e da ação política com objetivos e fins estabelecidos. Reencantar o mundo é dar alma à sociedade e isso só será possível por meio da cultura, mas é necessário ter cuidado de não transformar a cultura em uma atividade racional que busca resultados e não processos, pois o mais rico da cultura são seus processos criativos, de encantamento e de educação pela diversidade.

Por exemplo, compreender a ideia de “desenvolver-se com arte”7 permite a inclusão de outras dimensões criativas no trabalho educativo que a arte possibilita, uma maior ludicidade, utopia e fabulação. Assim, tornam-se possíveis novos diálogos entre a ciência e outros saberes, aproximação da racionalidade e da celebração, do logos e do contar histórias. As artes são formas universais de expressão e comunicação humana que promovem a diversidade e a identidade espiritual da sociedade, são inseparáveis do ato de viver e contribuem para a formação de comunidades empáticas e sensíveis, unindo as pessoas pelo afeto e pela solidariedade, abrindo caminhos para a reinvenção do mundo.8


Acreditamos cada vez mais na cultura como fator de humanização, crítica da modernidade perversa e árida e dos processos homogeneizantes de globalização. Não podemos perder o horizonte de repor a condição humana na vida cotidiana e nas políticas públicas convergentes com uma efetiva cidadania planetária. Pretende-se um mundo que seja o lugar do extraordinário, da felicidade. Um mundo criativo e poético, material e espiritual, denso e sonhador, que saiba desocultar a música escondida sob o manto daquilo que parece natural ou rotineiro, daquilo que subjuga ou empobrece a experiência humana. Assim, buscamos a bem-aventurança de estarmos vivos e de uma utopia radical: o reencantamento do mundo. A cultura deve constituir-se como guia “das forças da beleza que conduzem o mundo”, como diz o filósofo-poeta Gastón Bachelard: “Sonhar tomando consciência que a vida é um sonho, que aquilo que sonhamos para além do que já vivemos é verdadeiro, está vivo. Está aí, presente com toda a verdade diante dos nossos olhos...”9.

Fruto do diálogo intercultural com o Oriente e a ancestralidade, emerge a ideia da vida simples como alternativa a uma sociedade hiperconsumista que banaliza os sentidos da existência, rebaixando-os a uma materialidade insustentável. Para além das dimensões que emergem no campo do desenvolvimento humano, quando percebemos que a modernidade jogou a água da bacia com a criança dentro ao banir o mistério e toda a generosidade nele envolvido – suas poéticas, campos da sensibilidade e da alma – elegendo caminhos cuja centralidade é o desenvolvimento material, parece não haver mesmo saída viável para a civilização fora da vida simples. Nem as políticas públicas, a participação da sociedade e seu empoderamento ou mesmo uma governança democrática darão conta desta tarefa hercúlea, sem proposta de vida simples – que não significa pobreza ou austeridade, mas ecologia interior combinada com novos estilos e modos de vida. Principalmente no plano local, vemos que a condição de miséria leva as populações a adotar os mesmos paradigmas simbólicos de inclusão e consumo manifestados pela sociedade em geral, gerando modos de vida consumistas entre a população mais pobre.
A construção de direitos humanos articulados a práticas culturais possibilita um território comum entre cultura de paz, direitos humanos e cidadania cultural, e poderá ampliar o campo cultural para além das práticas específicas, dando um sentido mais forte à cultura de paz, ainda com pouca presença como consigna explícita.
A diversidade é a base da liberdade, sem ela não existem direitos humanos ou culturais nem respeito à vida e à existência das pessoas, da natureza e dos povos. Educar para a diversidade cultural é valorizar o território, sua paisagem, seus grupos e pessoas, comunidades, territórios culturais, o papel dos indivíduos no cotidiano com suas pequenas vidas e subjetividades, seu reconhecimento e valorização. O território é mais que uma geografia, ele é construído por potências vitais e redes de relacionamentos que se deslocam e ampliam experiências e imaginários; são os jovens que buscam sua integridade na arte para abrir a voz e o coração para o sonho impossível de se fazerem ouvir num deserto de oportunidades e recursos; é a voz das mulheres na família, no trabalho, na afirmação de que são pessoas antes de tudo e não apenas esteios da vida doméstica.

Hamilton Faria é poeta, autor de Haikuazes, Encântaros, Súbitos encantos para São Pedra e Espanto, entre outros. É coordenador da área de Cultura do Instituto Pólis.

1 Hamilton Faria, Pedro Garcia, Bené Fonteles, e Dan Baron. Arte e cultura pelo reencantamento do mundo. Pólis/Fondation Charles-Léopold Mayer, 2009.
2 Idem.
3 Naomi Klein. Sem logo – A tirania das marcas em um planeta vendido. Editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2006.
4 A utopia de uma Gaia urbana, São Paulo, 2009.
5 Nestor García Cancline. Consumidores e cidadãos. Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 2006, p.14.
6 Jaan Kaplinski. O lobo e o cordeiro compartilharão o mesmo pasto, p. 198, em Imaginar a paz, Brasília: Unesco e Paulus Editora, 2006.
7 Desenvolver-se com arte. Hamilton Faria (org.). São Paulo, Pólis, 1999.
8 Carta das Responsabilidades dos Artistas/Rede Mundial de Artistas em Aliança. Pólis, São Paulo, 2009.
9 Gastón Bachelard. A poética do devaneio. São Paulo, Martins Fontes, 1998.

Le Monde Diplomatique Brasil

A invenção das crenças


A invenção das crenças

O tema das crenças leva-nos a uma infinidade de interrogações. De início, com o risco de simplificar, propomos duas modalidades delas, reconhecendo que muitas vezes a fronteira entre uma e outra é bastante tênue: as ativas e as passivas. Suas propriedades permitem “tanto construir uma ciência quanto uma religião”

por Adauto Novaes

...toda estrutura social é fundada
sobre a crença ou sobre a confiança.
Todo poder se estabelece sobre
estas propriedades psicológicas.
Pode-se dizer que o mundo social,
o mundo jurídico, o mundo político
são essencialmente mundos míticos,
isto é, mundos dos quais as leis,
as bases, as relações que os constituem
não são dadas, propostas pela
observação das coisas...


Paul Valéry, A política do Espírito

Depois de analisar a desordem do mundo provocada pelas grandes transformações e de mostrar que se tornou impossível deduzir das coisas passadas algumas prováveis imagens do futuro, Robert Musil escreve com ironia sobre aqueles que não querem enfrentar o novo mundo: “acredita-se que se pode curar a decadência”. Assim, Musil nos convida a pensar o inteiramente novo. É com esse espírito que um grupo de intelectuais brasileirose franceses vem a cada ano, nos quatro últimos ciclos de conferências, expor suas ideias sobre as Mutações: Novas configurações do mundo (2007); A condição humana (2008); A experiência do pensamento (2009) e A invenção das crenças (2010).

As mutações resultam das revoluções tecnocientíficas, biotecnológicas e da informação. Tendemos a dizer que elas se fazem no vazio do pensamento e à margem das “duas maiores invenções da humanidade, o passado e o futuro”. Se tomarmos como exemplo outra prodigiosa mutação que foi o Renascimento, a peculiaridade da mutação que vivemos torna-se evidente: o Renascimento apontava ao mesmo tempo para o futuro e para o passado, verdadeira paixão pelo novo e paixão pelo antigo. Seus eruditos, escreve o filósofo Alexandre Koyré, “exumaram todos os textos esquecidos em velhas bibliotecas monásticas: leram tudo, estudaram tudo, tudo editaram. Fizeram renascer todas as doutrinas esquecidas dos velhos filósofos da Grécia e do Oriente: Platão, Plotino, o estoicismo, o epicurismo, os pitagóricos, o hermetismo e a cabala. Seus sábios tentaram fundar uma nova ciência, uma nova física, uma nova astronomia; ampliação sem precedentes da imagem histórica, geográfica, científica do homem e do mundo. Efervescência confusa e fecunda de ideias novas e ideias renovadas. Renascimento de um mundo esquecido e nascimento de um mundo novo. Mas também: crítica, abalo e, enfim, destruição e morte progressiva das antigas crenças, das antigas concepções, das antigas verdades tradicionais, que davam ao homem a certeza do saber e a segurança da ação”. Nada disso vemos hoje na mutação tecnocientífica a não ser a morte de algumas das antigas crenças e o elogio dos fatos e dos acontecimentos técnicos, e, principalmente, o elogio do presente eterno, sem passado nem futuro. Tudo se torna veloz, volátil e efêmero. Antes, uma das virtudes era o desejo de duração das obras de arte e das obras de pensamento. Como lemos em Valéry, “entre as crenças que estão morrendo, uma delas já desapareceu: a crença na posteridade e seu julgamento”.

O que se pretende com um ciclo de conferências sobre as crenças? Partimos do pressuposto de que um dos efeitos da revolução tecnocientífica está na mudança das ideias e práticas da crença, entendendo por crença não apenas as religiões, mas também e, principalmente, os ideais políticos, os valores morais e éticos, as novas visões de mundo, as construções imaginárias nas artes, enfim, tudo aquilo que Paul Valéry define como coisas vagas, isto é, tudo aquilo que se opõe aos fatos ou à “realidade”.

No ensaio “De la croyance”, o filósofo Victor Brochard afirma que nenhum tema foi tão desprezado pela filosofia quanto o da crença e, apesar disso, nenhuma filosofia pode e deve desinteressar-se dela, negligenciá-la, fugir dela: “O empirismo e o positivismo deveriam dizer como definem a certeza e qual a diferença entre acreditar e estar certo. Geralmente, eles deixam de lado essa questão. O espiritualismo sempre compreendeu a importância do problema da certeza, mas, salvo algumas exceções, dá menos atenção à crença... Entretanto, é por ela que se deve começar”.

Em um breve, mas esclarecedor texto sobre a crença, o filósofo francês Pascal Engel a define como um estado mental que leva a dar seu assentimento a certa representação ou a trazer um julgamento cuja verdade objetiva não é garantida e que não é acompanhada de um sentimento subjetivo de certeza. Pascal Engel põe algumas questões que devem ser consideradas em nosso ciclo de conferências: se não é difícil admitir que o espírito possa “querer afirmar o que tem como verdade ou apenas provável, é muito mais espantoso, de início, que ele possa querer subscrever aquilo que considera falso ou improvável e cegar-se voluntariamente”. Como as pessoas podem acreditar, pergunta Engel, “não apenas em coisas inacreditáveis, mais também em coisas que elas sabem ser tais? Por que preferem acreditar quando dispõem de meios para saber?”.

Parte da resposta a essa questão pode ser lida em Paul Valéry. No seu ensaio Petite lettre sur les mythes, Valéry chega a esta conclusão: “não sei o que fazer para sair daquilo que não existe”. Assim é a crença, palavra vazia e comum que designa “certeza sem prova” e que espalha vestígios materiais por onde passa: na história, nas religiões, na política nas doutrinas e nos acontecimentos, nos costumes e na própria ciência. O filósofo, o físico, o geômetra que buscam o mundo da certeza pouco podem diante dela. Enfim, a crença é uma disposição voluntária ou involuntária para aceitar tudo – das doutrinas políticas aos costumes. Valéry encerra assim o ensaio: “O que seríamos nós, pois, sem o recurso daquilo que não existe? Pouca coisa, e nossos espíritos, desocupados, tenderiam a fenecer se as fábulas, os enganos, as abstrações, as crenças e os monstros, as hipóteses e os pretensos problemas da metafísica não habitassem com seres e imagens sem objetos nossas profundezas e nossas trevas naturais”. Mesmo quando a filosofia sai em busca de dois desejos fundamentais, encontrar a verdade e evitar o erro, ainda assim ela teria grande dificuldade de se afastar de certos postulados da crença. Muitas vezes só podemos agir quando nos movemos em direção ao que criamos imaginariamente,e é certamente neste sentido que Montaigne escreve que o homem é um animal que crê.

O tema da crença leva-nos a uma infinidade de interrogações. De início, e com o risco de simplificar, propomos duas formas, ou duas modalidades de crenças, reconhecendo que muitas vezes a fronteira entre uma e outra é bastante tênue: crenças ativas e crenças passivas. Mas a crença traz nela mesma esse duplo caráter, propriedades que permitem “tanto construir uma ciência quanto uma religião”, o que leva Valéry a escrever: “Não se deve crer – porque não se deve dar às afirmações que são feitas ou que nos são propostas valores diferentes dos próprios valores. O bilhete do banco. Moeda fiduciária (...)Crer = dar mais do que recebe – Receber palavras e dar atos. (...)

Que o homem possa “afirmar” sem “saber” – ver sem ter visto – fiar-se em um fragmento que contradiz o que ele vê –, não se sujeitar ao valor atual de seu conhecimento... É uma propriedade que lhe permite tanto construir uma ciência quanto uma religião”. Ao exortar que não se deve crer, Valéry não quer dizer que o homem possa viver sem crenças, mas que existe um embate permanente entre crença e saber. Interessa, pois, pensar as lógicas produtivas das crenças.

Tentemos, pois, circunscrever o campo das crenças. “Uma crença – escreve Gustave Le Bon – é um ato de fé de origem inconsciente que nos força admitir em bloco uma ideia, uma opinião, uma explicação, uma doutrina. A razão é estrangeira à sua formação. Quando ela tenta justificar a crença, essa já está formada. Tudo o que é aceito como um simples ato de fé deve ser definido como crença. Se a exatidão da crença é verificada mais tarde pela observação e pela experiência, ela cessa de ser uma crença e torna-se um conhecimento”. Mas como jamais existe conhecimento absoluto, e como cada descoberta científica traz nela mesma uma infinidade de coisas desconhecidas, “as realidades mais precisas são sempre cobertas de mistérios”, e um mistério é “a alma ignorada das coisas”. Somos levados a concluir com Le Bon que crença e saber constituem dois modos de atividade mental diferentes e de diferentes origens. Mais: qualquer teoria do conhecimento é precedida por uma teoria da crença. Assim, seguindo ainda Le Bon e Hume, as crenças são estados de sentidos, espécies de sentimentos e, portanto, separadas da parte intelectual. As crenças são, pois, fenômenos afetivos – sentimentos, paixões – anteriores aos fenômenos intelectuais – reflexão, pensamento, razão. Separados, os dois fenômenos da vida não cessam de agir um sobre o outro. O humano enreda-se nessa teia: obedece tanto às suas paixões quanto às ideias que as regulam. Ou, como escreve Musil, em um de seus aforismos: o homem é movido, governado por afetos e ideias, mas, como ponto de partida, a vida se regra sobre afetos e não sobre ideias. Mas o espírito desregrado das crenças é capaz de tudo, apenas pensamento e saber definem limites. Lemos em Hume, no Tratado da natureza humana, que a crença “consiste não na natureza nem na ordem de nossas ideias, mas na maneira pela qual a concebemos e de como a sentimos no espírito. Confesso – escreve Hume – que não posso explicar perfeitamente esse sentimento, essa maneira de conceber. Podemos empregar palavras que exprimem algo de aproximado. Mas seu verdadeiro nome, seu nome próprio, é crença. Cada um compreende esse termo na vida corrente. Em filosofia, não podemos fazer mais do que afirmar que o espírito sente, que algo distingue as ideias do julgamento das ficções da imaginação”. Na mesma linha de Hume, Le Bon também afirma que as crenças não são formadas por uma decisão voluntária submetida à parte racional do nosso espírito. Nenhuma crença pode ser justificada pela razão. Ou melhor, ela é indiferente aos apelos da razão. Pertencem mais ao universo da imaginação. Ora, o principal crédito dos milagres, das visões, dos encantamentos e de tais efeitos extraordinários vem, como diz Montaigne, “da potência da imaginação agindo principalmente contra as almas do vulgo, as mais frágeis: a crença apoderou-se delas de tal maneira que elas pensam ver o que não veem”.

Comecemos, pois, com a concepção de crença ativa. Ao afirmarmos que a atual revolução tecnocientífica é feita no vazio do pensamento e que, como insistem Paul Valéry e Robert Musil, estamos na era na qual os fatos dominam nossa vida, queremos, com isso, reconhecer também o predomínio, hoje, de um enorme descrédito em que caiu o pensamento. Musil inverte a forma de pensar: para ele, a descrença do nosso tempo pode ser vista não como negação, mas como momento de uma afirmação: ele só acredita nos fatos, e “sua representação da realidade só reconhece o que é, por assim dizer, realmente real”. Acredita-se no fato como verdade, como se acredita também na opinião como fato. Ora, sabemos, como já foi dito, que nenhuma sociedade estrutura-se, organiza-se sem as “coisas vagas”, que são, entre outras coisas, as crenças no pensamento abstrato, como define Valéry. São essas crenças que ordenam os sentimentos, a política com suas normas morais e o próprio imaginário. Mesmo nas ciências da natureza puramente racionais, escreve Musil, “é impossível construir uma teoria apenas com a indução, a partir dos fatos apenas. A partir dos casos particulares jamais se encontrará a regra geral que os rege sem se recorrer a um pensamento orientado no sentido oposto e que implica sempre, como ponto de partida, um ato de fé, uma intervenção da imaginação, uma suposição”. “Ato de fé”, “suposição”, presunção, conjecturas são termos do universo da crença. A crença no pensamento é, portanto, para nós, a maior das crenças, aquela que define o tipo de relação com a experiência. A derrota do pensamento está na expressão do homem comum, resignado com a sua condição. Assemelha-se ao que escreveu Alain: o rosto do santo é “um rosto esquecido dos seus pensamentos”.

Outra concepção a considerar é a da crença passiva. Uma das crenças capazes de causar mais espanto ao pensamento é o costume. Talvez porque seja uma crença prática sem julgamento, que não exige persuasão e aprovação explícita. Talvez porque, seguindo Montaigne, ele é de produção enigmática. No comentário à interrogação de Montaigne – De onde vêm os costumes? – Bernard Sève opta por uma resposta negativa: o costume não vem da natureza, nem de Deus e muito menos da razão humana: “Montaigne apresenta os costumes como fatos isolados, fatos que ele não procura inscrever em uma rede de causalidade”. Mais adiante, Sève escreve: “O costume permite compreender como o espírito individual é moldado segundo o espírito coletivo já existente; mas ele não permite evidentemente compreender como a invenção individual se generaliza para dar conta de sua própria existência como costume”. Talvez porque o costume seja também a expressão mais bem acabada da servidão voluntária. Como nos ensina Le Bon, o costume, forma do hábito, faz a força das sociedades e dos indivíduos, dispensando-os de pensar cada caso que se apresenta para se formar uma opinião. Daí, o costume ser definido como uma crença fácil que nos faz acreditar nas coisas, como escreve Pascal, “sem violência, sem arte, sem argumento” e conduz todas as nossas potências de tal forma que nossa alma se inclina naturalmente. Se o costume nos dispensa de pensar, passamos a acreditar nos signos, nas palavras, nas metáforas. É mais fácil persuadir as massas através de signos do que com argumentos.

O princípio mais geral da crença passiva pode ser assim enunciado: o homem submete-se ao poder das crenças ao tomar as coisas singulares – o ente, para usar um termo da filosofia – como o Ser, ou essência universal. Ou melhor, constrói passionalmente mundos a partir de uma coisa singular. A crença passiva procura desfazer a contradição entre a particularidade do sujeito e a universalidade absoluta. Essa é uma das origens das diversas formas de superstição e intolerância: o particular que se apresenta como o Ser, como o universal abstrato: primeiro, foi a ideia de Deus no Ocidente; depois, com o “mundo sem Deus”, o Homem da modernidade passa a ocupar um lugar na crença universal. Se de início a ciência iluminista era um meio para questionar a religião, ela se tornou, aos poucos, um problema para o próprio homem. Pensadores contemporâneos anunciam a dissipação, a decomposição da figura do homem, enfim, a morte do sujeito. A divinização do homem dá, assim, lugar ao pós-humanismo radical na figura da racionalidade técnica: “Em nossos dias, só se pode pensar no vazio do homem desaparecido”, escreveu Foucault. Ora, a hipótese aqui é de que o culto da ciência e da técnica passa a ocupar o vazio que há no espaço que seria destinado à crença, hoje: ciência e técnica encarnam os princípios da onipresença, onipotência e onisciência. Como escreveu Valéry em um de seus “Cadernos”: “Tudo aquilo que é fiduciário desfaz-se (...). O que resta? As ‘ciências’, reduzidas às suas operações e seus poderes”. Postas como uma “nova religião”, elas se apresentam na sua abstração como inquestionáveis do ponto de vista ético: ou melhor, nada podemos saber, nada queremos saber e, ainda que quiséssemos, nada saberíamos.

Adauto Novaes foi jornalista e professor. Estudou filosofia na França. Foi diretor, durante 20 anos, do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte/Ministério da Cultura. Organizou diversos ciclos de conferências, sendo o último deles "Mutações – a experiência do pensamento" (mais informações em www.cultura.gov.br/pensamento).

Le Monde Diplomatique Brasil

O modo de viver caipira

O modo de viver caipira

Graças também aos festejos juninos, desde criança aprendemos que o caipira é desajeitado, deselegante e despreparado para o convívio urbano. A representação, tão difundida nas grandes cidades, tem como essencial a descrição caricatural do homem rural, frequentemente pejorativa

por Luciana Chianca

Pari passu com a chegada do inverno, ao se aproximar o mês de junho, percebe-se a população citadina mobilizar-se à procura de recompor um “modo de viver” caipira. Essa é uma das principais marcas das festas juninas e, indubitavelmente, a mais nacional de todas. Nesse momento especial do nosso calendário festeja-se de modo alegre e dançante, degustando-se abundantemente os pratos locais mais prestigiados.

A festa junina pode ser popular ou oficial, apresentada em versões luxuosas ou despojadas. Como milhares de cidadãos anônimos, as celebridades nacionais acorrem a bailes e festas onde todos são convidados a comparecer em “traje caipira”. Até mesmo a presidência da República cultua essa tradição, reunindo seus ministros, assessores e amigos para dançar quadrilha e tomar quentão na Granja do Torto.

Durante os festejos juninos, muitos se interrogam sobre a origem dessa representação tão difundida nas grandes cidades, já que, desde crianças, aprendemos que o caipira é desajeitado, deselegante e despreparado para o convívio urbano. Mesmo se em alguns lugares estes últimos são conhecidos como “matutos”, o essencial não muda: trata-se de uma caricatura do homem rural, frequentemente pejorativa. Ele não sabe se vestir, se comportar e até sua fala tem sotaques e vícios gramaticais – variáveis segundo os locais e regiões –, mas sempre inadequados. De modo jocoso e familiar, essas imagens são subjetivadas pela sociedade como um todo, reforçando as hierarquias sociais cotidianas que distinguem primeiramente citadinos e migrantes.

Como essas distâncias são recuperadas e reorganizadas na festa junina? Observando uma de suas mais importantes danças, a quadrilha, percebe-se como essa representação do caipira é atualizada entre jovens de origem socioeconômica desfavorecida, o que repercute, sobretudo, na sua nova versão, chamada “estilizada”. Recusando-se a recuperar a imagem estereotipada do caipira, esses filhos de migrantes preferem apresentar-se vestidos em seda e cetim, como “príncipes”! De que modo essa produção estética revela uma reordenação das próprias categorias identitárias desses jovens, e de que forma elas são percebidas pelo conjunto da sociedade?

A caricatura do caipira/matuto

Desde o começo do século XIX, são reforçadas, no Brasil,as diferenças entre as sociedades rural e urbana. Esse processo alcançou seu auge nos anos 1950, com a intensificação das migrações internas no país. Misturando nostalgia e humor depreciativo, é estabelecida uma série de representações equivocadas sobre o campo e “seu” habitante, compondo uma imagem ambígua deste último.

Apesar de Antonio Cândido (1964) definir o caipira como um “tipo cultural” localizado, a imagem que se fixou na memória nacional foi a do “Jeca Tatu” de Monteiro Lobato, reforçada anos depois pela publicidade do Biotônico Fontoura – uma das propagandas de maior sucesso da história do Brasil. Depois, Mazzaropi (ainda o Jeca Tatu) e o Chico Bento (Mauricio de Souza) consolidaram essa representação que se posiciona “do lado da cidade”: de boa índole, o caipira é inadequado ao convívio urbano e intelectualmente limitado. Ele difere do citadino pela vestimenta e fala, mas sobretudo moralmente, pois o universo de ambos e suas referências éticas os colocam em oposição – e nesse período junino, é recuperado com defeitos exagerados. Tal caricatura incomoda não somente aos próprios representados, mas também a alguns intelectuais que denunciam a “hipocrisia dos professores” que ensinam na escola “esse cerimonial iníquo e altamente deseducativo, que são as festas caipiras e reforçam assim essa “noção ridícula ou idealizada do homem do campo”1.

Se a maioria da população de nossas grandes cidades é composta de migrantes instalados há muitos anos em todos os seus setores e níveis da vida produtiva, poderíamos estar falando aqui de um perfeito sucesso de integração. Apesar desse fato, às vezes real, persiste a ideia de que uma assimilação de sucesso seria o resultado de um investimento pessoal e cotidiano para esconder sua origem, apagando os estigmas rurais. Mas esse “apagamento” identitário depende em larga medida do capital econômico e simbólico dos migrantes, pois ao contrário dos ricos que dispõem de meios socioeconômicos e acesso ao poder, reivindicando mais rápida e facilmente uma identidade citadina, os trabalhadores têm essa conquista dificultada: mascarar sua condição de migrante pobre torna-se quase impossível para eles, que encontram na cidade um espaço de ação limitado essencialmente ao trabalho e às visitas entre pares.

Como “festa rural”, o ciclo junino permite a atualização da imagem e da identidade de migrante, pois enquanto as grandes cidades encenam sua unidade social, salientando com orgulho a origem comum à maioria de seus habitantes, os trabalhadores migrantes e seus filhos percebem que outras referências cotidianas se sobrepõem à da origem. Sem reafirmar essa imagem idílica e ingênua, cabe à reflexão socioantropológica analisar a cena festiva como um palco de conflitos e afirmação de identidades sociais.

Hoje, em quase todo o Brasil, muitos citadinos participam dessa dança originalmente “de nobres” – as quadrilhas –, onde encontramos caipiras reunidos para um baile de casamento em que o noivo já engravidou a noiva, mas tenta fugir às núpcias, mesmo com a presença da lei, das famílias e autoridades religiosas.

No aspecto das vestimentas, o modelo caipira é definido por uma simplicidade reveladora de privações econômicas típica de migrantes economicamente desfavorecidos. Por outro lado, ele reforça o estereótipo citadino do homem do campo: cores fortes e disparatadas, maquiagem simulando dentes em falta e cicatrizes grosseiras, além de sobrancelhas, barbas e bigodes reforçados, compondo uma imagem mais “selvagem” do matuto. As festas juninas marcam o único momento do ano em que vestimentas de pais e avós são publicamente recuperadas, indicando a relação com um passado que se deseja revisitar: retomar as roupas da família parece ser um modo de recuperar a identidade de migrante com o intuito de melhor ultrapassá-la no contexto derrisório da festa. Sem exaltar essa identidade pré-migratória, o ritual permite que ela seja reexperimentada e, em seguida, desdenhada.

Caipiras ou rurais?

Contemporaneamente, enquanto alguns grupos reivindicam essa imagem do caipira, outros a questionam ou recuperam dela apenas alguns traços. Uma imagem menos caricatural do matuto é construída. Desde os anos 1990, com a visibilidade da quadrilha conhecida como “estilizada”, surge publicamente uma nova versão desses personagens, que não são mais desdentados, maltrapilhos e iletrados, mas ricos, prósperos e bem-sucedidos agro-business-men. Explicá-los, apenas, pela influência da indústria cultural escamotearia um processo complexo e dinâmico que envolve a reorganização da identidade migrante contemporânea. É no interstício dos símbolos citadinos e rurais que eles desejam integrar o “agricultor”, agora na valorizada e valorizadora condição de “produtor agrícola”, com trator em vez da enxada, produzindo “sem sujar as mãos”.

Para recompor essa nova personagem, costureiros e figurinistas recorrem a elementos estéticos rurais provenientes da Europa e das Américas: os rapazes têm o cowboy como a principal referência de uma ruralidade vestimentar, com chapéus, botas e cinto “texanos”, mas também podem usar bombachas de gaúchos. As dançarinas usam vestidos longos com camadas superpostas de tecido reproduzindo os modelos femininos do far-west, acrescentados de corpetes de camponesas europeias.

Essa estética de “exotismo rural” recorre a tecidos, acessórios e adornos luxuosos e vistosos tais como veludos, cetins e pedrarias. Seus dançarinos são excepcionalmente cuidadosos com sua expressão corporal, pois eles não são caipiras! Eticamente, temos uma guinada na visão do “homem rural”, que não é mais considerado um “simplório” de poucos recursos. Ele está em harmonia com a produção, o mercado e a modernidade e pode-se inserir com naturalidade no meio urbano, que tampouco é visto como um espaço politica e simbolicamente inacessível, mas um centro dinâmico a ser ocupado.

Resta saber quem são os reformadores dessa tradição, onde vivem e que setores sociais eles representam. Originárias de setores economicamente desfavorecidos e maciçamente localizados nas franjas da malha urbana, as quadrilhas estilizadas reivindicam uma cidadania que extrapola as referências citadinas estigmatizantes: “zonas”, “favelas”, “comunidades”, “conjuntos”. Filhos ou netos de migrantes, eles assumem o desafio da assimilação citadina, tanto no plano socioeconômico quanto no simbólico. Do ponto de vista sociológico, temos aqui esboçados três feixes de significados (rural/urbano, folclore/globalização cultural, cotidiano/festa), que é forçoso entrecruzar com as dinâmicas demográficas, urbanísticas, socioculturais e políticas para compreender os projetos identitários em pauta nas festas juninas contemporâneas do Brasil. Um desafio para a antropologia, que busca revelar como a sociedade pensa através da sua cultura e vive através das suas festas.

Luciana Chianca é professora de Antropologia Urbana na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Autora de A festa do interior, EdUFRN (2006), é doutora em Etnologia pela Université Bordeaux 2 (França).

1 LINS, Osman “Ao pé da fogueira” in: Do ideal e da glória: problemas indoculturais brasileiros Ed. Summus, São Paulo, 1977. [pp. 157-156]. Ainda discutindo este estereótipo temos o artigo de Yatsuda, Enid. “O caipira e os outros”. in: Bosi, Alfredo. (org) Cultura Brasileira: temas e situações. São Paulo, Editora Ática, 1987.

Le Monde Diplomatique Brasil

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Como se constrói identidade

Como se constrói identidade

Ninguém questiona a importância do professor na sociedade atual. Por que, então, sua imagem continua ruim?

Paola Gentile (pagentile@abril.com.br)
Há 2400 anos morria Sócrates. Filho de um escultor e de uma parteira, ele foi muito mais do que um filósofo, na época em que a Grécia era o centro do universo. Nas ruas de Atenas, dedicava-se a ensinar a virtude e a sabedoria. Revolucionário, rejeitava o modelo vigente, segundo o qual o conhecimento devia ser transmitido "de cima para baixo". Seu método era dialogar com pequenos grupos em praças e mercados. Usava a consciência da própria ignorância ("Só sei que nada sei") para mostrar que todos nós construímos conceitos. Acreditava que é preciso levar em conta o que a criança já sabe para ajudá-la a crescer intelectualmente. Na época, essas práticas representavam uma ameaça, porque tiravam o mestre do pedestal para aproximá-lo dos discípulos — exatamente o contrário do que faziam os sofistas, estudiosos e viajantes profissionais que cobravam caro por uma educação obviamente elitizada. Por isso, Sócrates foi levado a julgamento e punido com a condenação à morte bebendo cicuta, veneno extraído dessa planta.

Vários séculos se passaram até que suas idéias fossem colocadas em seu devido lugar, o de primeiro professor da civilização ocidental. Professor, palavra de origem latina, é aquele que professa ou ensina uma ciência, uma arte, uma técnica, uma disciplina. É o mestre. Como tal, deve dar o exemplo, ser respeitado e imitado. Infelizmente, essa imagem nem sempre correspondeu à realidade, (acompanhe a linha do tempo, no Brasil e no mundo, ao longo das páginas desta reportagem). E, mais triste ainda, não acompanha o professorado nacional — tanto na sociedade quanto entre os próprios colegas. A universalização do ensino (em 1970, o Brasil tinha 17,8 milhões de alunos em todos os níveis; hoje, esse número é de 54 milhões, um terço do total da população) acabou levando a uma perda de prestígio.

Nos anos 80, quando esse processo chegou ao nível mais baixo, a mestra virou "tia". A socióloga Maria Eliana Novaes, ao defender sua tese de mestrado em Educação na Universidade Federal de Minas Gerais, descreveu com exatidão o processo: a professora primária ficou de lado quando as funções de diretora e orientadora (com salários melhores) foram ocupadas por profissionais com curso superior. Com gente "mais qualificada" pensando e gerindo o ensino, só restava à "normalista" fazer o que os outros planejavam. Desde então, a batalha é para reverter essa trilha. No mundo todo, vem crescendo a consciência de que a educação é o único jeito de garantir o crescimento econômico das nações e propiciar a construção de uma sociedade mais justa. Em discursos, entrevistas e artigos, o tom é sempre o mesmo: não há outra saída. Por que, então, o docente não é valorizado como deveria?

Projeção distorcida

"A identidade do professor ainda é respeitadíssima", garante Gaudêncio Torquato, especialista em marketing político. "O que está distorcida é a projeção dessa identidade." Uma alteração que só existe, segundo Diana Gonçalves Vidal, responsável pela disciplina de História da Educação na Universidade de São Paulo (USP), porque a sociedade ignora a essência do trabalho docente, o cotidiano da sala de aula e o desenvolvimento lento e gradativo do aluno. "A imprensa não divulga justamente o que nos dá mais satisfação", afirma. No ano passado, os maiores jornais do país publicaram 211 textos com o professor como tema central. Guilherme Canela, pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília, analisou essas reportagens e concluiu: a grande maioria não vai além da divulgação de programas oficiais de capacitação. A solução é fazer com que outros assuntos, tão ou mais relevantes, cheguem às redações.

Ou seja, é o momento para sair de trás das cortinas e assumir o lugar no palco. A boa notícia é que muita gente está disposta a fazer isso. Maria Inês Ghilardi Lucena, coordenadora do curso de pós-graduação de Análise do Discurso do Instituto de Letras da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, estudou uma pesquisa feita por NOVA ESCOLA no início do ano passado com leitores de Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Ribeirão Preto e Recife. Com base nas declarações dos entrevistados, ela concluiu que existem basicamente dois tipos de educadores: os que são de fato e os que estão apenas ocupando espaço. A especialista identifica o primeiro grupo com competência, criatividade e dedicação. Gente que busca acertar e melhorar o quadro geral da educação. Já no segundo existem resquícios de acomodação e preguiça de se envolver com essa nova realidade do ensino. O resultado é cruel: os próprios colegas ajudam a disseminar uma imagem ruim do que fazem. "É preciso criar vínculos", defende Maria Inês. "Sem esse compromisso, a tendência é expressar negativamente as condições de trabalho e a realidade da função."

As conclusões batem com outras, obtidas alguns anos atrás por Cláudia Pereira Vianna, professora de Política e Organização da Educação Básica e Estudos de Gênero em Educação, da Faculdade de Educação da USP. Numa pesquisa sobre o movimento sindical dos anos 70, ela percebeu que o bloco dos comprometidos é maioria — mesmo os que não se envolvem politicamente, por se considerar desiludidos com o movimento, procuram cursos de capacitação e têm vontade de acertar. Na trincheira oposta ficam os que não se identificam com a profissão: "Os muito jovens aguardam novas oportunidades e os mais velhos, a aposentadoria", afirma Cláudia.

Problemas escondidos

Além dos problemas visíveis, há vários escondidos, no fazer docente. Há seis anos, o sociólogo suíço Philippe Perrenoud percebeu que os educadores estavam preocupados com a imagem que tinham em seu país. Na busca por motivos, ele listou dez não-ditos da profissão, características inerentes ao dia-a-dia na escola, mas que não são discutidas nem assumidas. Entre elas estão o medo de enfrentar a violência nas escolas de bairros marginalizados, de não saber controlar uma classe e de avaliar injustamente; a necessidade de improvisar diante de situações não planejadas e a rotina. "Esses dilemas ficam ocultos e viram fonte de frustração", acredita Perrenoud.

Wanderley Codo, coordenador do Laboratório de Psicologia do Trabalho da Universidade de Brasília e da pesquisa Educação, Carinho e Trabalho, realizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, em 1999, destaca a existência de outro "vício" oculto: o vínculo afetivo necessário para que o processo de ensino-aprendizagem se desenvolva é contínuo e intenso — e provoca exaustão emocional. "O grau de exigência do próprio professor e da sociedade é elevado. Sem acompanhamento, muitos não conseguem agüentar a pressão e se sentem diminuídos", afirma Codo. Por isso, diz ele, o suporte psicológico deveria ser uma das principais bandeiras do movimento sindical, um caminho para reconstruir a identidade e o imaginário da profissão.

Professora, tia ou anjo?

Rodolfo Ferreira, professor de Sociologia da Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, estudou a evolução dessa imagem analisando as reportagens publicadas no Jornal do Brasil por ocasião do Dia do Professor entre 1940 e 1992. Ele conta que até meados dos anos 60 havia um respeito celestial ("Um pouco de anjo e um pouco de Deus", afirma um artigo em 15 de outubro de 1950). "O que se espera de um santo?", questiona. "Fazer milagres e chegar ao céu como recompensa por seus feitos, não pelo salário." Quando os baixos vencimentos e as parcas condições de trabalho se tornam conhecidos do grande público, na década de 70, o encantamento acaba. Termos como "proletário" e "falta de dignidade" substituem "dom", "sacerdócio" e "missão nobre".

O movimento sindical luta para desvincular o Magistério do sacerdócio. A atuação, indispensável, acaba desembocando numa arapuca. "Ao rejeitar o sofrimento do sagrado, o discurso de classe incorpora a penitência dos comuns", diz Ferreira. "E o excesso de auto-piedade levou à perda da dimensão do próprio valor." A pedido de NOVA ESCOLA, o sociólogo retomou o estudo e analisou as reportagens publicadas no jornal desde 1993. "Encontrei resquícios da imagem do sofredor, inclusive na boca de autoridades", constata.

"Qual é a solução? Ampliar as discussões em torno da importância da educação vai trazer mudanças a médio prazo, mas acho que cabe aos cursos de Pedagogia e às entidades representativas de classe resgatar nos professores os verdadeiros valores da profissão." Só desse modo o personagem pode se tornar o agente da própria transformação.

Essa mudança começou com a abolição da expressão "tia" do cotidiano da escola. Até porque ela está freqüentando a universidade e se especializando. Em 1999, 47% dos professores do Ensino Fundamental tinham o curso superior completo. Cinco anos antes, eram apenas 41%. A meta é chegar a 2007 com 100%. Ao ajudar a preparar o projeto pedagógico da escola, todos vão, inevitavelmente, ocupar mais espaços e recuperar a auto-imagem. O passo seguinte, diz Maria Izabel Noronha, presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo(Apeoesp), tem de ser o envolvimento na elaboração da política educacional. "Fora do processo de criação das leis que regem o próprio trabalho, o docente se limita a criticar e denunciar, expondo-se à opinião pública." Como muitas mudanças não alteram as condições de trabalho nem trazem melhoria no desempenho dos estudantes, vem a frustração. "Se o aluno não aprende, o culpado é o professor, nunca a política educacional", destaca Maria Izabel.

Interesse crescente

É inegável, porém, o aumento do interesse pelo assunto. O Grupo de Institutos, Fundações e Empresas divulgou em julho que 81% dos recursos aplicados no Brasil por organizações não-governamentais vão para a Educação de Jovens e Adultos. Como um todo, o setor educacional representa 9% do Produto Interno Bruto, o equivalente à soma dos investimentos em telecomunicações, eletricidade e petróleo. Movimento semelhante ocorre na imprensa. A Agência Nacional dos Direitos da Criança e o Instituto Ayrton Senna acompanham diariamente as notícias sobre infância e adolescência publicadas em cinqüenta jornais. No final de 1996, a educação ocupava a 5a posição no ranking dos temas mais abordados, atrás de saúde, direitos e justiça, violência e políticas públicas. Em 1998, assumiu o 1o lugar, que ocupa até hoje. No ano passado, foram 19619 inserções (31% relatos de ações e reflexões; 24% novidades do Ensino Fundamental e 17% histórias cujo foco era o professor).

De olho na televisão, a Apeoesp criou um espaço diferenciado. Desde abril, vai ao ar todos os sábados, pela Rede TV, o programa Educação no Ar. Durante cinco minutos, especialistas discutem temas do dia-a-dia da categoria e grandes questões de política educacional. Da mesma forma, os programas dos canais abertos apontam para uma preocupação maior com a imagem do docente. Estudo feito especialmente para NOVA ESCOLA por alunos de pós-graduação em Análise do Discurso da PUC de Campinas revela que Malhação, da Rede Globo, mostra o colégio como um lugar moderno, espaço de companheirismo e troca de boas experiências. Na telinha, os professores conversam sobre assuntos de interesse dos adolescentes e fogem dos estereótipos. A exceção é Jalecão, que leciona Matemática sempre de avental, pune a garotada e dá provas sem avisar. Curiosamente, ele também é respeitado pelos personagens jovens. Os pesquisadores concluíram que a imagem do mestre é condizente com seu papel na educação moderna. Embora a escola da série seja uma espécie de ilha da fantasia, é infinitamente melhor do que a caricatura presente em velhos programas, como Escolinha do Professor Raimundo (Globo) e Chaves (SBT), que mostram um profissional totalmente ultrapassado.

Nesse novo cenário moldam-se as condições favoráveis para resgatar o velho prestígio de fomentador do conhecimento e condutor da formação pessoal e social dos alunos. Tomar ciência dessa situação é o primeiro passo para revelar à sociedade a verdadeira imagem — e reconstruir a identidade hoje chamuscada. A tarefa seguinte é aproveitar cada vez melhor os espaços que se abrem na sociedade e na mídia. Uma missão digna da importância do trabalho do professor.

Lições no tempo

No mundo

Povos primitivos
Os feiticeiros, curandeiros e esconjuradores falavam com os espíritos superiores e transmitiam os conhecimentos para as crianças e o resto da tribo. Para suprir as necessidades do dia-a-dia, como alimentação e vestuário, as crianças imitavam os adultos.

China
A educação era baseada na decoreba. As classes — sempre barulhentas, com todos repetindo em voz alta os textos de Confúcio e seus discípulos — funcionavam em qualquer sala vaga em residências particulares.

Grécia
Os anciãos educavam os jovens a qualquer hora e em qualquer lugar. O mestre era o exemplo a ser admirado. Mulheres tinham direito à educação, para se tornar boas mães de guerreiros. No século V (a.C.), os sofistas — estudiosos profissionais — cobravam caro para transmitir o conhecimento adquirido em viagens e leituras.

Roma
O lar era o centro da educação. As escolas elementares funcionavam em ruas, praças ou entrada de templos. Só apareceram como edifícios próprios para o ensino com a expansão do Império Romano sobre a Grécia, para imposição dos costumes. Os preceptores, muitas vezes escravos, não mereciam atenção das autoridades.

Século VIII
Ênfase na educação religiosa como forma de combater o paganismo dos gregos.
O imperador Carlos Magno edita várias capitulares sobre educação. A de 787 ordena que sacerdotes e monges estudem as letras. Dois anos depois, todo mosteiro e abadia é obrigado a ter a própria escola, para ensinar salmos, música, canto, aritmética e gramática.

Século XI
Em 1088, surge a primeira universidade do mundo, em Bolonha (Itália), com ensino independente da Igreja. Dois séculos depois, 74 instituições de ensino são criadas por papas e monarcas, estendendo aos membros da universidade os privilégios do clero, como isenção de serviço militar, impostos de taxas.

Século XIV
Na sociedade asteca, sacerdotes controlavam a educação. As calmecas eram escolas especiais que treinavam meninos e meninas para tarefas religiosas. As crianças menos disciplinadas iam para as telpuchcallis, ou "casas da juventude", onde aprendiam história, tradições, artesanato e normas religiosas.

Século XIV
O Renascimento marca a retomada dos valores da literatura e da filosofia gregas. Petrarca e Boccaccio, entre outros, dão aulas particulares para complementar o salário da universidade.
Vittorino da Feltre, o primeiro mestre moderno, funda a Casa Amena, onde ensina literatura e história em vez de línguas. Esportes e jogos se mesclam aos estudos.

Século XV
Erasmo, em sua Educação Liberal, condena os métodos bárbaros de disciplina e recomenda métodos mais atrativos. Aconselha estudos sobre a criança, enfatiza a importância de jogos e do exercício. Ele é considerado o grande mestre da época.

Século XVI
Um surto da educação teológica influencia tanto universidades quanto o ensino elementar. A Companhia de Jesus torna-se o principal instrumento da educação na Contra-Reforma, inclusive com o envio de missionários jesuítas para catequizar índios no Brasil.

Século XVII
O pastor João Amós Comênio conclui em 1632 a Didactica Magna (tradução latina em 1657 e impressão no idioma original somente no século XIX), tratado educacional sobre a finalidade do homem na Terra, o papel da educação e da religião e as exigências universais do ensino e da aprendizagem, além das metodologias e da disciplina escolar.

Século XVIII
Em 1760, a imperatriz da Áustria, Maria Teresa, declara: "A educação é e sempre foi, um fato político", criticando o caráter privado e eclesiástico válido até então. Ela e Frederico II, da Prússia, são os primeiros a investir na escola pública estatal. A Revolução Francesa e a independência dos EUA exigem instrução para todos e a educação vira tema de políticos e filósofos.

Século XIX
O conceito de educação e sua administração continuam essencialmente religiosos, mas o acesso se amplia. Isso faz com que os professores não sejam mais escolhidos entre o clero, mas entre sacristãos, soldados inválidos e trabalhadores temporários. Recomenda-se não usar mais varas nem chicotes para punir o aluno, só colocá-lo de joelhos, em posição de oração, de sofrimento e de arrependimento. Em 1806, o ensino mútuo ou monitorial, de Andrew Bell e Joseph Lancaster, ganha força: é possível instruir mais de 50 alunos por classe, utilizando adolescentes já escolarizados como monitores. Doze anos mais tarde, J. H. Pestalozzi afirma que só há um meio de combater a rejeição de alguns alunos à escola: um método de ensino melhor. Ele combate o sadismo pedagógico e a crueldade contra as crianças, até então atos "naturais". Documentos da Revolução Socialista de 1848 pregam educação pública e gratuita para todos, baseada na instrução intelectual, na educação física e no treinamento tecnológico.
O Manifesto Comunista prevê elevar "a classe operária acima das classes superiores e médias". Em 1897, o educador norte-americano John Dewey ressalta, em seu Credo Pedagógico, que "o professor é empenhado não somente na formação dos indivíduos, mas na formação da justa vida social".

Século XX
Avanços na Psicologia Infantil garantem: a criança precisa de atividades para aprender. Já o professor precisa saber como a criança aprende para poder ensiná-la. A Escola Nova nasce em 1919 propondo a substituição da autoridade pelo senso crítico e pela liberdade. Na década de 20, a Itália fascista defende uma escola para as classes privilegiadas, com estudos humanísticos, e outra para as subalternas, com cursos profissionalizantes. Terminada a Segunda Guerra Mundial, brotam movimentos pedagógicos. Entre os destaques, as idéias de Célestin Freinet. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pelas Nações Unidas em 1948, sanciona o direito à educação gratuita e obrigatória no ensino elementar. Carta a Uma Professora, escrito em 1967 e publicado por uma pequena editora de Florença, vira símbolo do movimento estudantil que eclode no ano seguinte. 1968 marca a luta contra a opressão entre classes sociais e entre gerações, também presentes na relação aluno-professor. Para combater a escola opressora, Illich sugere o fim da instituição. Em 1992 a ONU promove o primeiro Fórum Mundial de Educação para Todos, em Jomtien (Tailândia). O encontro lança as bases para a erradicação do analfabetismo e a garantia de um ensino de qualidade. Dacar, a capital do Senegal, recebe delegados de todo o mundo em nova conferência da ONU, em 2000. O sonho da educação para todos ainda não se tornou realidade.

No Brasil

Antes de Cabral
Não há registros precisos sobre a educação na "Ilha de Vera Cruz" antes da chegada das caravelas portuguesas à costa da Bahia. Sabe-se, porém, que os curumins eram instruídos por muitos adultos (pais, tios, avós), principalmente entre os tupis-guaranis. Em algumas tribos, o pajé era o responsável por passar os valores culturais.

Século XVI
Jesuítas chefiados pelo padre Manoel da Nóbrega chegam em 1549 para catequizar e educar os índios e dar aulas para os filhos dos colonos.
A educação é baseada na hierarquia e na religião. Os filhos da nobreza e da classe dominante estudam em Lisboa, Londres, Paris e Roma. Sob a direção do sacerdote Vicente Rijo (ou Rodrigues), o primeiro mestre-escola do Brasil, é fundada em Salvador a primeira "escola de ler e escrever", o Colégio de São Salvador, posteriormente rebatizado Colégio dos Meninos de Jesus na Cidade do Salvador, com "boa capela, livraria e alguns trinta cubículos". O edifício é de pedra e cal de ostra, construído pelos próprios religiosos, com a ajuda dos índios.

Século XVIII
Com a expulsão dos jesuítas, em 1759, dezenas de colégios, seminários e missões são fechados. Na área educacional, seus substitutos são os padres franciscanos, beneditinos e carmelitas, além de pessoas da sociedade sem preparo nem instrução. O Marquês de Pombal, ministro dos Negócios Estrangeiros e Gente de Guerra, introduz o ensino público.

Século XIX
A Corte portuguesa se transfere para o Brasil em 1808 e inaugura faculdades de Ciências Médicas e Econômicas. Governadores das capitanias, autoridades religiosas e corporações de comerciantes pedem licença para operar cursos de ensino elementar. Em 1822, D. Pedro I ainda permite que particulares mantenham estabelecimentos de ensino sem autorização.

A Lei Geral de Ensino, de 15 de outubro de 1827, é a primeira do tipo no país. Coexistem professores padres, mestres de corporações profissionais, associações filantrópicas e preceptores particulares (estrangeiras que ensinavam os filhos da elite). Meninas só podiam freqüentar escolas de meninas. Em 1834, um Ato Adicional transfere para as províncias a responsabilidade pela organização do sistema de ensino e de formação de professores. A primeira escola normal é aberta no ano seguinte, em Niterói (RJ). Em 1839, inaugura-se o Colégio Pedro II, marco do ensino público. No final da década de 40, regulamentos reduzem os salários e o nível de exigência de formação dos professores, que são obrigados a ir à missa aos domingos e proibidos de se ausentar da freguesia sem a permissão do presidente da província. A escola vira lugar para disciplinar e moralizar, não para instruir. No ano de 1872 começa a funcionar a primeira escola pública municipal do Brasil, a São Sebastião, na Praça 11 de Junho, no Rio de Janeiro. É lançada a revista A Instrução Pública, que ajuda a construir a identidade profissional dos docentes.

Século XX
Em 1903, o Estado de São Paulo decide reduzir os vencimentos dos professores para poupar recursos públicos. Manifestações pipocam e os processos na Justiça se arrastam até os anos 30.

A primeira universidade do Brasil, a do Paraná, é inaugurada em 1912. Oito anos mais tarde, a do Rio de Janeiro abre suas portas. O Ministério dos Negócios da Educação e da Saúde Pública nasce em 1930. A década é marcada pelo aumento do número de escolas. Diversos Institutos de Educação formam professores em nível superior e dão nova dimensão à carreira. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, critica as reformas sem consistência, fragmentárias e desarticuladas da educação.

O que seria o primeiro Plano Nacional de Educação — elaborado pelo Conselho Nacional da Educação depois de ampla pesquisa em instituições culturais e com especialistas — tem sua promulgação adiada pela instituição do Estado Novo, em 1937. A legislação prioriza o ensino pré-vocacional e profissionalizante para as classes menos favorecidas.

É o fim dos Institutos de Educação.

Após a Segunda Guerra, educação entra em crise e educadores procuram fomentar a solidariedade para a construção de um mundo melhor.

Só em 1953 o curso normal passa a ter equivalência em relação aos cursos de Ensino Médio para ingresso na universidade. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação é aprovada em 1961, descentralizando os serviços de ensino. Seu texto garante autonomia às escolas e poder ao professor para avaliar a aprendizagem.

O golpe de 1964 reprime toda e qualquer manifestação crítica. Grêmios estudantis transformam-se em centros cívicos. Professores universitários e pensadores são exilados. O regime militar cria o Mobral para acabar com o analfabetismo — um estrondoso fracasso.

A Lei 5692 recebe 362 emendas (207 com parecer contrário) antes de ser aprovada, em 1971. Ela obriga administradores, planejadores, orientadores, inspetores e supervisores a ter diploma de curso superior. Professor primário não precisa. Também torna obrigatória a habilitação profissional já no segundo grau. Ganham força as queixas contra os baixos salários.

Em 1988, a nova Constituição é uma luz de esperança. Ela obriga União e os Estados a aplicar, respectivamente, 18% e 25% da receita em educação. No ano seguinte, professores de São Paulo fazem uma greve de 79 dias por melhores salários. Outras paralisações ocorrem em 1993 (60 dias) e 2000 (44 dias). Em 1996, é promulgada a nova LDB e o MEC edita os Parâmetros Curriculares Nacionais.

Um ano mais tarde entra em vigor o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef).

No início do século 21, o Brasil é o sexto país do mundo em número de alunos: mais de 54 milhões.

Veja na Sala de Aula

Hannah Arendt - A voz de apoio à autoridade do professor

Para a cientista política, os adultos devem assumir a responsabilidade de conduzir as crianças por caminhos que elas desconhecem

Márcio Ferrari (Márcio Ferrari)
Fotos: Corbis /Stock Phot

Hannah Arendt (1906-1975) foi uma das principais pensadoras da política no século 20, mas sua obra inspira estudos em outras áreas, entre elas a educação. Poucos intelectuais atuaram tão diretamente em seu tempo como Arendt, que foi vítima, ainda jovem, da perseguição nazista em sua Alemanha natal.

Como uma filósofa (designação que a desagradava) interessada em particular no fenômeno do pensamento e no modo como ele opera em "tempos sombrios", Arendt não poderia deixar de se ocupar do ensino. A pensadora abordou o assunto em dois textos, A Crise na Educação (incluído no livro Entre o Passado e o Futuro) e, mais indiretamente, Reflexões sobre Little Rock, escritos em 1958 e 1959 respectivamente. Na época, as salas de aula nos Estados Unidos – para onde se mudou em 1940 – se viam invadidas por questões sociais como a violência, o conflito de gerações e o racismo.

É no primeiro dos dois textos que Arendt apresenta, com a habitual veemência e coragem, uma visão bastante crítica do tipo de educação considerada "moderna", naquela época e também hoje. Em poucas páginas, ela questiona em profundidade alguns dos conceitos pedagógicos mais difundidos desde fins do século 19, e que se originam do movimento da Escola Nova e da concepção do trabalho educativo como um aprendizado "para a vida".

"A função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver", escreve Arendt. Sua argumentação é a favor da autoridade na sala de aula e sua visão educativa é assumidamente conservadora. "Isso não quer dizer que ela defenda um professor autoritário", diz Maria de Fátima Simões Francisco, professora de filosofia da educação da Universidade de São Paulo. Nem se trata de ser favorável à escola como um agente da manutenção da ordem estabelecida. Ao contrário, Arendt acreditava que o aluno deve ser apresentado ao mundo e estimulado a mudá-lo.

Educação sem política
Tensão racial em Little Rock, EUA, nos anos

1950: crise inspira reflexão
Arendt defendia o conservadorismo na educação, mas não na política. Para ela, o campo político deveria se renovar constantemente, movido pelos objetivos da igualdade e da liberdade civil. Ao reivindicar a total separação entre política e educação, Arendt rejeita linhas de pensamento que partem de filósofos como Platão (427-347 a.C.) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).

Segundo a pensadora, a política é uma área que pertence apenas aos adultos, agindo como iguais – igualdade que não poderia existir entre crianças e adultos. Ela critica a educação moderna por ter posto em prática "o absurdo tratamento das crianças como uma minoria oprimida carente de libertação". "Hannah Arendt defende que cabe aos adultos conduzir as crianças", diz Maria de Fátima Simões Francisco.

O papel da tradição

Dessas considerações nasce a defesa da autoridade, uma vez que a escola deverá trazer instrução, isto é, conhecimentos que o aluno não tem. Esse processo não é apenas de aprendizado, mas de preservação do mundo, entendido como a cultura em sua totalidade. Numa formulação ousada, a pensadora defende que é preciso proteger "a criança do mundo e o mundo da criança" – uma vez que o "assédio do novo" é potencialmente destrutivo.

A preocupação com a perda da "tradição", definida como "o fio que nos guia com segurança através dos vastos domínios do passado", foi o que levou Arendt a escrever sobre educação. A relação entre crianças e adultos não pode, segundo ela, ficar restrita "à ciência específica da pedagogia", já que se trata de preservar o patrimônio global da humanidade. "Está presente a idéia de que o planeta não pertence só a nós que vivemos nele agora, mas a todos que já estiveram aqui", diz Maria de Fátima.

"A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele", escreve Arendt, acrescentando que "a educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos".

O mal da irreflexão

A obra mais difundida de Hannah Arendt origina-se de uma reportagem que lhe foi encomendada pela revista New Yorker. No ano de 1961, ela foi enviada a Israel para cobrir o julgamento do alto burocrata nazista Adolf Eichmann. No livro Eichmann em Jerusalém, a pensadora cunhou a expressão que a celebrizou: "a banalidade do mal", em referência aos códigos aparentemente lógicos e até sensatos com que o totalitarismo se propaga e ganha poder.

Durante o julgamento, chamou a atenção da pensadora a figura prosaica do réu. Em Eichmann, um homem de aparência equilibrada e comum, Arendt identificou alguém habituado a não pensar. Os perigos da irreflexão, como sinal de alienação da realidade, constituem um dos principais eixos de uma obra que pode trazer contribuições para a educação em muitos aspectos.

No artigo A Crise na Educação, Arendt dá ênfase ao conceito de responsabilidade dos adultos tanto em relação ao mundo como às crianças. "Formar para o mundo significa, entre outras coisas, adquirir a noção do coletivo", diz a educadora Maria de Fátima Simões Francisco. É um processo que só se realiza, em cada aluno, com a intervenção do pensamento para a criação de uma ética perante o grupo.

Para pensar

Hannah Arendt defendia que os adultos têm dois tipos de obrigação em relação às crianças. Uma recai sobre a família, responsável pelo "bem-estar vital" de seus filhos. Outra fica a cargo da escola, a quem cabe o "livre desenvolvimento de qualidades e talentos pessoais". Ela acusa a educação praticada nos Estados Unidos à época da publicação do artigo de abrir mão de sua função ao rejeitar a autoridade que decorre dela. "Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças e é preciso proibi-la de tomar parte na educação", escreve Arendt. Você, professor, concorda com ela? Qual é, a seu ver, a principal responsabilidade de sua profissão?

Uma testemunha do terror de Estado

O julgamento de Adolf Eichmann em
Jerusalém: banalidade do mal

No início de sua vida acadêmica, mal saída da adolescência, Hannah Arendt era uma apaixonada pela filosofia de Immanuel Kant (1724-1804), filho mais célebre da cidade em que foi criada, Königsberg (hoje Kaliningrado, na Rússia). Ela mesma admitia que foram os acontecimentos – a começar pela perseguição nazista à sua família – que a fizeram migrar da filosofia mais abstrata para a ciência política e a refletir sobre as questões urgentes de seu tempo. Em As Origens do Totalitarismo, ela analisa e descreve o regime típico do século 20, representado pelo nazismo e pelo stalinismo, dois sistemas de princípios opostos e estratégias muito semelhantes, como o terror, o papel marcante da ideologia e o uso de polícias secretas. Toda sua obra dialogou com os dilemas morais e políticos mais graves do século 20, com ênfase nas possibilidades do indivíduo diante do poder.

Biografia

Hannah Arendt nasceu em 1906, em Hannover, na Alemanha, de uma família judia. Cedo ela direcionou seus estudos para a filosofia, passando a se dedicar à ciência política. Na Universidade de Marburg, foi aluna do filósofo Martin Heidegger (1889-1976), com quem manteve uma ligação amorosa que se estendeu por 50 anos – período durante o qual ela foi casada duas vezes e ele uma. O nazismo levou Arendt a emigrar, em 1933, para Paris, de onde teve novamente de fugir em 1940, indo para Nova York. Naturalizou-se norte-americana em 1951, ano em que publicou seu primeiro livro, As Origens do Totalitarismo. Ao adotar uma perspectiva liberal, que não se alinhava com os extremos ideológicos, Arendt construiu um pensamento independente e crítico, até mesmo, às vezes, em relação a grupos com os quais compartilhava idéias, como os sionistas e a esquerda nãomarxista. Morreu em 1975 em Nova York, onde era professora universitária.

Quer saber mais?

Entre o Passado e o Futuro, Hannah Arendt, 352 págs., Ed. Perspectiva.
Maria de Fátima Simões Francisco

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