terça-feira, 16 de novembro de 2010

Caminhos para uma agenda sustentável

Caminhos para uma agenda sustentável

A educação como cultura e a cultura como educação abrem possibilidades de construção de valores permanentes para outra forma de estar e pertencer ao mundo, plena de significados, sentidos, compartilhamentos, intimidades do fazer humano, convivências com o mistério, realidades e fabulações

por Hamilton Faria

Qualquer contribuição para uma agenda da cultura sustentável seria incompleta se não tratasse da educação como cultura. É do binômio cultura/educação que poderá nascer uma noção ampliada de cultura, que gerará práticas além da expressão das artes, mas sempre com a presença delas.

A sociedade precisa compreender a ideia do “desenvolver-se com arte”, gerando formas mais sensíveis de ver o mundo. Como diz Marcel Duchamp: “A arte é um meio de libertação, sabedoria, contemplação e conhecimento”1. Mas a arte é essencialmente linguagem, patrimônio, experiência existencial. Para a artista plástica Fayga Ostrower, participante e fundadora da Rede Mundial de Artistas2: “Todas as formas de arte incorporam conteúdos existenciais. Estes se referem à experiência do viver, a visões de mundo, a estados de ser, desejos, aspirações e sentimentos, e aos valores espirituais da vida. Enfim, são conteúdos gerais da própria consciência humana. Atravessando séculos, sociedades e culturas, tais conteúdos continuam válidos e atuais para cada um de nós. Por isso, a arte tem esse estranho poder de nos comover tão profundamente. Ela fala a nós, sobre nós, sobre o nosso mais íntimo ser”.

A educação como cultura e a cultura como educação abrem possibilidades de construção de valores permanentes para outra forma de estar e pertencer ao mundo, plena de significados, sentidos, compartilhamentos, intimidades do fazer humano, convivências com o mistério, realidades e fabulações.

Neste sentido, aponto algumas ideias de educação para uma cultura sustentável, e de cultura para uma educação sustentável.

EDUCAÇÃO PARA A DIVERSIDADE CULTURAL



Educar para a diversidade é circular informações, ideias, sonhos e projetos pelo território, é fazer cultura na escola e educação na cidade inteira, é fortalecer todas as potências da localidade. É reconhecer o diferente, o outro, não como inimigo, mas como completude daquilo que está inacabado, como virtude que não adquirimos e que pode ensinar, mesmo aquilo que não serve para a minha identidade de ser humano e cultural.

Educar para a diversidade é aproximar a escola dos movimentos e expressões culturais do entorno e levar as expressões e manifestações para a escola, além de promover o aprender a conviver no próprio universo escolar. É inacreditável a distância entre as partes dessa comunidade, seus funcionários, alunos e professores/direção. São universos distintos e incomunicáveis. Na escola aberta, colocar-se no lugar do outro poderá vitalizar o precário ambiente escolar, tão defasado em relação a exigências de um novo paradigma educacional. Assim é possível, por exemplo, fazer a troca de papéis por um dia, onde os professores serão alunos e faxineiros e os faxineiros ensinarão seu ofício aos alunos e professores, como um trabalho nobre. São as diversidades que devem construir o diálogo intercultural entre escola, educação informal, manifestações culturais ou mesmo a cultura da vida cotidiana dos bairros. Apesar da grande comunicação entre bairros promovida por jovens com mobilização presencial e novas tecnologias, ainda vivemos em territórios-guetos e com valores precários, fáceis presas daqueles edificados em torno da publicidade e dos meios de comunicação, presentes na totalidade do território brasileiro.

EDUCAÇÃO PARA A CULTURA DE PAZ
E OS DIREITOS HUMANOS



Um recente mapeamento das dinâmicas culturais da região sul de São Paulo, realizado pelo Sesc Santo Amaro e Instituto Pólis, e pesquisa do Pontão de Convivência e Cultura de Paz, demonstram que ainda é pequeno o número de jovens que dispõem de informações sobre cultura de paz, e menos ainda aqueles que sabem o que é realmente isso – alguns a consideram a negação do conflito e a submissão.
Em virtude dos cenários de violência, a paz e os direitos humanos são hoje complementares e devem atingir massivamente o território, tanto nas escolas como na educação informal e nas atividades cotidianas da população. Em muitos lugares do país passam a existir leis instituindo Conselhos Municipais de Cultura de Paz e Conselhos Parlamentares de Cultura de Paz. Prêmios, cursos, projetos de toda ordem, Redes de Paz, Rodas de Conversa de Convivência e Cultura de Paz, Conversas de Rua em São Paulo e papo de subida em morros do Rio de Janeiro, Terapia Comunitária, cursos e oficinas de mediação de conflitos, justiça restaurativa em várias regiões do país, constroem sanidade e abrem caminhos para uma ação de cultura de paz mais ampla, em interação com a população. No entanto, os currículos escolares e as atividades podem incluir a educação para uma cultura de paz e direitos humanos de forma mais efetiva. São importantes também algumas campanhas de valores na escola e nos meios de comunicação. E as políticas transversais precisam ousar mais neste campo, particularmente entre os jovens.

A arte e seus processos criativos têm contribuído sobremaneira para uma cultura de paz e direitos. A arte entre os jovens tem reconfigurado dinâmicas territoriais, ampliado diálogos locais, envolvido a população em processos de culturalização e aberto outros cenários públicos onde se viabilizam territórios vitais e estéticas num mundo que oculta suas expressões e os destina à irrelevância e ausência de perspectivas. Por meio da arte jovem e das manifestações culturais, os territórios ganham outros significados além da exclusão, como expressão significativa da criatividade e da reorientação de vida para um lugar mais alto que o destinado pela história vivida.

EDUCAÇÃO PARA A VIDA SIMPLES

Assim, educar para a vida simples será revisitar soluções da ancestralidade, da economia doméstica, com a importância do trabalho manual e o reconhecimento de sua nobreza, a cultura alimentar, a indumentária não apenas das marcas que povoam o mundo com seu séquito de escravos e tiranias.3


Educar para a vida simples é educar para valores que não têm preço, como a sociabilidade e a convivência com o outro e os outros – animais, plantas, minerais, enfim, a enorme comunidade dos seres vivos que dá sentido à nossa existência. Tenho escrito sobre a presença do Andarilho Urbano4 ou do Poeta Andarilho nas cidades. O deslocamento urbano deve se constituir também em mobilidade cultural e não apenas numa mobilidade física de um ponto ao outro da cidade. Andar a pé é um método de vida simples que necessita ser praticado e ensinado nas escolas, para que não pensemos que a partir de uma determinada renda estamos indissoluvelmente condenados a usar um acessório motor permanentemente acoplado à nossa vida, seja como signo de status ou de facilidades. Por outro lado, parece evidente que não há saída para a mobilidade urbana sem atitudes solidárias e a presença do andarilho. Enfim, a cultura pode contribuir para este debate de uma cultura da vida simples em nossas cidades como paradigma relevante.

A cultura do consumo deverá também ser objeto de nossas preocupações culturais, pois além de empobrecer valores da sociedade, trazendo sentidos materiais, contribui para a degradação de culturas. Realizar a ponte entre consumo e cultura pode trazer consequências importantes para o debate cultural sustentável. Por outro lado, negar simplesmente o consumo com ideologias não nos faz entender o que cada vez mais é um lugar significativo da construção de valores e políticas.

Aqui é importante retomar Canclini5: “Proponho reconceituar o consumo, não como simples cenário de gastos inúteis e impulsos irracionais, mas como espaço que serve para pensar e no qual se organiza grande parte da racionalidade econômica, sociopolítica e psicológica da sociedade”.

A EDUCAÇÃO PARA O CUIDADO
COM A COMUNIDADE DOS SERES VIVOS

Aqui, estamos falando em um paradigma cultural que valoriza a vida em toda a sua extensão, além da comunidade de seres humanos. Este paradigma biocêntrico (gr. bio, “vida” e kentron, “centro”) enfatiza a importância de todas as formas de vida onde não somos o centro da existência, mas participamos de uma rede de relações vitais em que as espécies colaboram entre si e são solidárias para a construção de uma vida digna. Assim, a vida humana e não humana, e a vida vegetal, animal e mineral (a água é mineral) buscam uma integração e diálogos constantes dentro da comunidade da vida, uma espécie de transvaloração, de humildade, onde não nos constituímos como única e dominadora referência da vida. Nem tudo no universo pode ser considerado na razão instrumental dos interesses do homem (e aqui é homem mesmo), de nossa especial posição que confere domínio sobre a natureza como se ela não tivesse direitos, nem os animais, nem os vegetais, nem os minerais. Somos superiores e tudo está a nosso serviço. A Constituição do Equador de 2008 prevê a natureza como sujeito de direitos. Aí podemos considerar a vida no centro como alternativa a uma cultura empobrecedora das relações vitais e suas conexões solidárias. E isso muda tudo no campo da cultura: as manifestações circenses utilizam animais em suas apresentações? Os equipamentos culturais queimam florestas para suas construções? As águas são consideradas em nossa proposta cultural? Os direitos da natureza dialogam com as políticas culturais e com a diversidade cultural? Os patrimônios são pensados na perspectiva dos direitos da comunidade dos seres vivos? As nossas cidades poderão ser desenhadas para esta comunidade? Qual a presença de outros integrantes desta comunidade em nosso patrimônio construído – escolas, equipamentos, bibliotecas ou mesmo nas praças e ruas? Quero apontar aqui apenas algumas indagações marcadas por um caminho do coração e que já faz parte de alguns milhares de grupos no país e no mundo, mas que, sem dúvida, já são considerados no debate cultural e nas políticas públicas.

EDUCAR PARA O REENCANTAMENTO DO MUNDO

Parece evidente que a mudança sustentável do mundo e da cultura necessita mais que transformações materiais que busquem o equilíbrio de relações cultura-natureza e mesmo um conhecimento transdisciplinar cultural que envolva os modos de vida sustentáveis nos processos culturais.


Educar para outro cenário que vise construir um outro mundo possível implica absorver realidades poéticas, construir mundos poeticamente habitáveis, presentes além da dimensão racional da cultura, mas na sua dimensão mítico-simbólica e mesmo na dimensão do mistério, pois a cultura trabalha com humanidades, divindades e espiritualidades. Estimular estas dimensões do reconhecimento entre pessoas e comunidades, a emoção presente nas relações humanas e culturais, a capacidade de rir e sonhar possibilidades de criação e vida podem dar este diferencial da cultura de que tanto necessitamos. As festas, celebrações, rituais, encontros poético-artísticos trazem para a cultura um mundo imaginal que amplia o mundo real e nos conecta com possibilidades de vida estruturadas a partir da imaginação e não apenas do pensamento e da ação política com objetivos e fins estabelecidos. Reencantar o mundo é dar alma à sociedade e isso só será possível por meio da cultura, mas é necessário ter cuidado de não transformar a cultura em uma atividade racional que busca resultados e não processos, pois o mais rico da cultura são seus processos criativos, de encantamento e de educação pela diversidade.

Por exemplo, compreender a ideia de “desenvolver-se com arte”7 permite a inclusão de outras dimensões criativas no trabalho educativo que a arte possibilita, uma maior ludicidade, utopia e fabulação. Assim, tornam-se possíveis novos diálogos entre a ciência e outros saberes, aproximação da racionalidade e da celebração, do logos e do contar histórias. As artes são formas universais de expressão e comunicação humana que promovem a diversidade e a identidade espiritual da sociedade, são inseparáveis do ato de viver e contribuem para a formação de comunidades empáticas e sensíveis, unindo as pessoas pelo afeto e pela solidariedade, abrindo caminhos para a reinvenção do mundo.8


Acreditamos cada vez mais na cultura como fator de humanização, crítica da modernidade perversa e árida e dos processos homogeneizantes de globalização. Não podemos perder o horizonte de repor a condição humana na vida cotidiana e nas políticas públicas convergentes com uma efetiva cidadania planetária. Pretende-se um mundo que seja o lugar do extraordinário, da felicidade. Um mundo criativo e poético, material e espiritual, denso e sonhador, que saiba desocultar a música escondida sob o manto daquilo que parece natural ou rotineiro, daquilo que subjuga ou empobrece a experiência humana. Assim, buscamos a bem-aventurança de estarmos vivos e de uma utopia radical: o reencantamento do mundo. A cultura deve constituir-se como guia “das forças da beleza que conduzem o mundo”, como diz o filósofo-poeta Gastón Bachelard: “Sonhar tomando consciência que a vida é um sonho, que aquilo que sonhamos para além do que já vivemos é verdadeiro, está vivo. Está aí, presente com toda a verdade diante dos nossos olhos...”9.

Fruto do diálogo intercultural com o Oriente e a ancestralidade, emerge a ideia da vida simples como alternativa a uma sociedade hiperconsumista que banaliza os sentidos da existência, rebaixando-os a uma materialidade insustentável. Para além das dimensões que emergem no campo do desenvolvimento humano, quando percebemos que a modernidade jogou a água da bacia com a criança dentro ao banir o mistério e toda a generosidade nele envolvido – suas poéticas, campos da sensibilidade e da alma – elegendo caminhos cuja centralidade é o desenvolvimento material, parece não haver mesmo saída viável para a civilização fora da vida simples. Nem as políticas públicas, a participação da sociedade e seu empoderamento ou mesmo uma governança democrática darão conta desta tarefa hercúlea, sem proposta de vida simples – que não significa pobreza ou austeridade, mas ecologia interior combinada com novos estilos e modos de vida. Principalmente no plano local, vemos que a condição de miséria leva as populações a adotar os mesmos paradigmas simbólicos de inclusão e consumo manifestados pela sociedade em geral, gerando modos de vida consumistas entre a população mais pobre.
A construção de direitos humanos articulados a práticas culturais possibilita um território comum entre cultura de paz, direitos humanos e cidadania cultural, e poderá ampliar o campo cultural para além das práticas específicas, dando um sentido mais forte à cultura de paz, ainda com pouca presença como consigna explícita.
A diversidade é a base da liberdade, sem ela não existem direitos humanos ou culturais nem respeito à vida e à existência das pessoas, da natureza e dos povos. Educar para a diversidade cultural é valorizar o território, sua paisagem, seus grupos e pessoas, comunidades, territórios culturais, o papel dos indivíduos no cotidiano com suas pequenas vidas e subjetividades, seu reconhecimento e valorização. O território é mais que uma geografia, ele é construído por potências vitais e redes de relacionamentos que se deslocam e ampliam experiências e imaginários; são os jovens que buscam sua integridade na arte para abrir a voz e o coração para o sonho impossível de se fazerem ouvir num deserto de oportunidades e recursos; é a voz das mulheres na família, no trabalho, na afirmação de que são pessoas antes de tudo e não apenas esteios da vida doméstica.

Hamilton Faria é poeta, autor de Haikuazes, Encântaros, Súbitos encantos para São Pedra e Espanto, entre outros. É coordenador da área de Cultura do Instituto Pólis.

1 Hamilton Faria, Pedro Garcia, Bené Fonteles, e Dan Baron. Arte e cultura pelo reencantamento do mundo. Pólis/Fondation Charles-Léopold Mayer, 2009.
2 Idem.
3 Naomi Klein. Sem logo – A tirania das marcas em um planeta vendido. Editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2006.
4 A utopia de uma Gaia urbana, São Paulo, 2009.
5 Nestor García Cancline. Consumidores e cidadãos. Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 2006, p.14.
6 Jaan Kaplinski. O lobo e o cordeiro compartilharão o mesmo pasto, p. 198, em Imaginar a paz, Brasília: Unesco e Paulus Editora, 2006.
7 Desenvolver-se com arte. Hamilton Faria (org.). São Paulo, Pólis, 1999.
8 Carta das Responsabilidades dos Artistas/Rede Mundial de Artistas em Aliança. Pólis, São Paulo, 2009.
9 Gastón Bachelard. A poética do devaneio. São Paulo, Martins Fontes, 1998.

Le Monde Diplomatique Brasil

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