terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O prazer de ler: presente ou conquista¹


O prazer de ler: presente ou conquista¹


DE CAMARGO, Maria Aparecida Bosschaerts²

Resumo: o artigo pretende discutir os modos de obtenção de prazer e significado da leitura e, a partir de uma definição mais abrangente da mesma, questionar o papel da escola e da mediação do professor nesse processo.

Palavras-chave: leitura, escola, conceito, metodologias.

Abstract: this paper intends to discuss the way to have pleasure and signification in reading and, from one bigger definition of it, to question the responsibility of school and the teacher mediation in this process.

Key-words: reading, school, conception, methodologies.

Quando se observa uma pessoa embevecida na leitura de um livro, como que se distanciando da realidade que a circunda, pergunta-se sempre se essa capacidade de "viajar" através da leitura seria um dom recebido nos genes, como a cor da pele ou a altura da pessoa, ou seria uma habilidade adquirida, fruto de ensino, de treino.

Na verdade, como quase todos os comportamentos humanos, a leitura pode desenvolver-se através de estimulação do ambiente a uma predisposição individual para esse tipo de prazer. Sempre haverá pessoas para as quais os esportes radicais ou o risco de investimentos financeiros exercerão maior fascínio. Mas mesmo estes poderão ser notificados sobre outros modos de obtenção de prazer, através da leitura.

Mas, antes que se fale propriamente no prazer de ler, é preciso reconhecer que a leitura não é apenas uma forma de obter um distanciamento prazeroso da realidade. Ela pode ser (e é) uma ferramenta muito útil na resolução de problemas prosaicos do dia a dia.Vejamos então.

As situações de leitura são basicamente duas: um em que se lê para resolver um conflito, um impasse, uma necessidade imediata ou remota. São as situações ditas "funcionais", quando ler é um ato de comunicação em relação com uma situação-problema; lê-se para agir, compreender, escolher, aprender, etc. É o que ocorre quando manuseamos o jornal em busca do nome do filme da sessão da tarde, quando lemos a bula de remédio para saber à correta dosagem do medicamento, quando lemos um quadro com partidas e chegadas de avião, para sabermos quanto tempo ainda nos resta esperar no aeroporto. Nessas situações, o sentido a ser construído através da leitura é determinado pela situação: interessa escolher na pluralidade das leituras possíveis, aquela que a situação exige. É evidente que nenhum tipo especial de encantamento estético pode surgir de uma situação como esta, mas o "prazer" que pode ela pode proporcionar surgir é o da eficácia e do sucesso, ou seja, a obtenção da informação ou o esclarecimento de uma dúvida pode nos dar satisfação. Os objetivos de tal tipo de leitura são, portanto, informar ou informar-se, ampliar conhecimentos, para orientar ou orientar-se, apoiar a memória.

Mas há outra forma de relação com a leitura: são as situações ditas de "prazer" ou de "fruição", quando ler é um ato de expressão em relação com o imaginário. São ocasiões em que se lê para descansar, passar o tempo, divertir-se e construir a si próprio, interagir com outro (o autor), imergir no imaginário, no estético, seduzir ou induzir. Não há cobranças, não há prazos, não há nenhuma informação importante a ser obtida. O sentido a ser construído é determinado pelo leitor. A pluralidade de leituras aparece de uma leitura para outra, mas também de um momento para outro do mesmo leitor. Situa-se nesse parâmetro a leitura de romances, ficção científica e particularmente dos poemas, cuja multiplicidade de leituras e de "entendimentos" torna cada leitura e cada leitor, únicos.

Nesta leitura específica, o prazer é aquele da liberação dos fantasmas e do imaginário. Mundos são criados, personagens imaginados; mesmo que a descrição deles seja muito minuciosa, sempre haverá espaço para a minha criação. Lembro-me de ter lido com muito prazer a coleção toda de Jorge Amado, despertada pela leitura de "Gabriela, Cravo e Canela". Dentro da liberdade que tinha como leitora, criei minha própria Gabriela, com traços italianos, lembrando Sophia Loren, nosso sonho de beleza feminina nos anos 60. Quando vi Sônia Braga, em sua brasilidade morena encarnando Gabriela na TV, senti-me ultrajada: aquela não era a "minha" Gabriela. Era a do diretor da novela. Levei certo tempo para aceitá-la. E que relação há entre essa constatação e o trabalho da escola? No Brasil, a escola tem papel preponderante na formação de leitores. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997, p. 23) já reconhecem: cabe "à escola a função e a responsabilidade de garantir a todos os seus alunos o acesso aos saberes lingüísticos necessários para o exercício inalienável da cidadania...". Esta instância precisa assumir esse trabalho uma vez que as famílias nem sempre têm assumido o estímulo à leitura como tarefa sua. Para Edmir Perrotti (apud FARIA, 1992, p.85),

dentro do quadro sócio-cultural brasileiro, a escola é peça fundamental na promoção da leitura em todas as suas fases. Isto porque não temos, no Brasil, uma infra-estrutura cultural, como nos países europeus, por exemplo, em que a família assume em casa o estímulo à leitura. Entre nós, por falta de estrutura cultural, as crianças vêm para a escola sem a menor familiaridade com o texto escrito. Daí papel essencial da escola.

E como a sociedade brasileira não tem intimidade com o escrito, seus professores, em geral, também não o têm. O professor aprende que a leitura é importante, aprende história literária, teoria da literatura, mas não se transforma num leitor. Não descobre ou vive a leitura como um fato cultural. E assim o escrito não aparece como parte de seu universo sócio-cultural. Para Perrotti, não há um projeto de formação do professor se não considerarmos a leitura como um ato compartilhado, que exija sensibilidade e cumplicidade na formação do leitor.

É preciso levar em conta interesses e experiências das crianças. Com relação ao desinteresse dos alunos pela fantasia das histórias infantis, por exemplo, Eduardo Fonseca (Apud Faria, 1992, p. 95) declarou que este assunto está muito estudado por vários autores americanos que descobriram que, entre os 7 a 8 e 11 a 14 anos, a criança e o pré-adolescente vêm de uma fase de vivência poética e entram numa fase realista. A criança passa a valorizar visões mais exatas do mundo, começa a não gostar de explicações mágicas etc. Já na pré-adolescência gostam de manifestações de força e de violência.

Maria Alice Faria (1992, p.96) lembrou que na escola hoje esse problema aparece de forma bem mais simples: quando se fala de leitura só se pensa em leitura literária por causa de uma longa tradição em que os textos escolares, considerados como modelo, eram apenas dos da literatura clássica, escolhidos por certas autoridades. Como em sua formação o professor não é instrumentalizado para diferenciar os diferentes tipos de texto, acaba trabalhando o texto literário como um texto utilitário.

Outro fator a ser lembrado é o conteúdo e a forma dos chamados "textos escolares", aqueles comumente encontrado em cartilhas e livros de leitura: muitas vezes eles não atendem nem a um, nem a outro objetivo citado no início deste texto: não são nem funcionais nem prazerosos. Cattani e Aguiar (1986, p.26) relatam estudo minucioso sobre os materiais de leitura indicados para os professores por documentos oficiais de vários estados brasileiros; enfatizam em alguns a falta de indicações bibliográficas completas nas obras indicadas. Salientam que, em muitos textos "predomina a voz do adulto", com sua valoração característica. Notam também a "indigência de textos adaptados", textos retirados de livros não infantis, a freqüência de textos informativos, uma preponderância de textos narrativos e poéticos. Há freqüentemente o uso do texto como pretexto para "se ensinar gramática ou para a transmissão de normas morais e sociais explícitas". Soares (2003) fala sobra a "pedagogização" da leitura e da escrita pela escola, que retira os textos de seus suportes habituais e faz deles uma leitura forçada, indicada por ordens do professor, reduzindo a vontade do leitor quanto à escolha do texto, tipo de leitura, tempo de leitura e "devolução" do entendimento em exercícios previamente determinados.

Esse enfoque inadequado pode ser resultado de uma tradição equivocada, de uma metodologia sem embasamento teórico adequado, da má formação do professor, que será o mediador entre a criança e o texto. É preciso ser um bom leitor para despertar na criança o prazer de ler. A leitura é ato compartilhado, que exige sensibilidade e cumplicidade na formação do leitor. O professor precisa ter competência profissional, além de sensibilidade, para ler e ensinar a leitura. Entre outras habilidades, para se formar o leitor é preciso conhecer a fisiologia do ato de ler, suprir eventuais falhas nos processos de alfabetização e de letramento, selecionar obras, oferecer alternativas de leitura, interessar-se pelo que crianças e adolescentes gostam de saber, conhecer as estruturas dos diferentes textos (narrativas, ensaios, poemas, etc), contextualizá-los.Isso demanda cultura geral ampla e aprimoramento profissional constante.
Maria Helena Martins (apud Faria, 1992, p. 94), constata que há:

uma tendência generalizada em se tratar a leitura apenas em áreas como a da alfabetização, da lingüística, do ensino das línguas etc. A relação com a literatura é comumente limitada a textos escritos para crianças. Seria preciso, entretanto, que a leitura se integrasse com outras áreas, como as artes, o jornalismo e mesmo as ciências exatas. Esta questão se agrava em sociedades onde predominam os iletrados e analfabetos, como a brasileira. Para minorar o problema é imperioso considerar também a leitura do não-verbal para conquistar o leitor para a palavra escrita.

Ela diz também que o

diálogo do leitor com o que lê acontece quando se dá o estranhamento. O que lhe é familiar aparece apresentado de forma diferente e então é obrigado a rever o já conhecido. Os objetos assumem então outra identidade - e isso é o que completa o processo de leitura. Cita uma frase de Mário Quintana para quem "o mais difícil mesmo, é a arte de desler.

Ainda para a autora, o não-leitor é o resultado da ineficiência da mediação, que seria dada preferencialmente pela escola: a má formação dos professores, as más condições de trabalho, os salários baixos e os mediadores de leitura não-leitores. Aponta também contextos familiares em situação pré-gutemberguianas, quando a sociedade já está imersa no mundo da eletrônica, com tudo o que ele traz, com a influência crescente dos multimeios, da TV, dos computadores etc. Por isso, os mediadores de leitura precisam aprender a explorar outras linguagens não-verbais, para levar os alunos ao escrito.

Para Maria Helena Martins (Apud Faria, 1992, p. 90) "a leitura, numa acepção ampla e abrangente, é um processo que atribui significados às mais diversas formas de expressão". Os PCNs esclarecem: "a leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção do significado do texto" (Brasil, p. 53). Lajolo (1986, p. 59) completa:

ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto, é, a partir de um texto, ser capaz de atribuir-lhe significação, conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista."

Também se pode perceber essa definição mais abrangente em Jolibert (1994,p. 15)

Ler é atribuir diretamente um sentido a algo escrito .
"Diretamente", isto é, sem passar pelo intermédio:
- nem da decifração (letra por letra, sílaba por sílaba, ou palavra por palavra); -nem da oralização (nem sequer grupo respiratório por grupo respiratório).
Ler é questionar algo escrito a partir de uma expectativa real (necessidade-prazer) numa verdadeira situação de vida. (grifos no original)

Não se pode negar, evidentemente, o valor da leitura, uma vez que ela, segundo Cattani e Aguiar (1986, p. 26), é:

Um instrumento de comunicação entre os homens; constitui-se em um patrimônio histórico-cultural, através do qual o aluno estabelece relações entre o presente e o passado; representa um documento social que permite à criança reconhecer o meio em que vive; funciona como um recurso para o ajustamento social do aluno; contribui para a formação integral do homem, através do desenvolvimento do pensamento e da postura crítica; atua como um meio para atingir os objetivos da educação, não se constituindo um fim em si mesma .

Sugestões de metodologias e exemplos de trabalho pedagógico com leitura podem ser encontrados no livro "Leitura em crise na escola" (dados na bibliografia), organizado por Regina Zilberman, particularmente nos artigos "Leitura no 1º grau: a proposta dos currículos", de Maria Izabel Cattani e Vera Teixeira de Aguiar; "O texto não é pretexto", de Marisa Lajolo; "A poesia na escola", de Lígia Morrone Averbuck, "Leituras para o 1º grau: critérios de seleção e sugestões", de Vera Teixeira de Aguiar.

É preciso reconhecer que o ensino da língua, na escola, nem sempre ocorre de maneira apropriada. Faracco, em artigo (sem referências) bem humorado, arrola o que chama de "sete pragas do ensino de português", ou seja, metodologias, às vezes consagradas, mas ineficientes, no ensino de língua, ou seja, "certas atividades rotineiras que constituem a essência de um determinado tipo de português, qualificável de tradicional, cujos resultados têm sido os mais negativos possíveis" que leva a resultados como alunos de universidades com acentuadas dificuldades de expressão oral e escrita, pouca ou nenhuma leitura, incapacidade de interpretação de textos, completo desprezo pela linguagem. O autor ressente-se, de, no magistério não haver aulas de lingüística e no cursos de Letras, de lingüística aplicada.

Para Faracco, as sete pragas são: leitura não compreensiva (professores preocupados apenas com o aprimoramento da mecânica da leitura; segundo ele "o aluno brasileiro lê como agulha de vitrola: vai passando pela trilha e produzindo som"); textos "chatos" (textos afastados dos interesses e das necessidades das crianças e adolescentes encontrados nos livros didáticos); redações - tortura; gramática - confusão; conteúdos programáticos inúteis; estratégias inadequadas; literatura-biografia.

AGUIAR (1986) faz sugestões de leitura para as diferentes faixas etárias. O livro tem quase 20 anos, é preciso atualizar a relação com obras mais recentes, mas as que a autora indica são realmente muito especiais.

Para finalizar, mesmo sem concluir...

Se a leitura pode nos proporcionar diferentes tipos de prazer e ela é, na maior parte das vezes, aprendida na escola, é preciso que professores estejam preparados para essa tarefa. E como fazer isso? Através de uma adequada formação que nos torne leitores competentes, que saibam retirar prazer da leitura.
LEITE (1986,p. 43), escreve:

Nosso papel é muito simples e, ao mesmo tempo, porque estamos professoralmente viciados, muito difícil. Requer algo bastante sutil: uma presença meio ausente, e, no entanto, atuante; um apagar-se da figura do mestre que, muito embora, conduz o jogo; uma condução do jogo que se deixa conduzir. Escolhido o texto, junto com os alunos, de preferência, ou depois de uma sondagem de seus interesses, e tendo sido criada uma atmosfera descontraída, mas tensa de curiosidade, é a conversa que passará a ocupar o vazio da sala. Depois disso é navegar no rumo aventureiro da criação, sem resistência à vontade de escrever, representar, compor, desenhar, ou reler, recompor e reinventar.

A leitura é indispensável na vida do homem moderno. É instrumento de trabalho, traz informação, atualiza conhecimentos, ajuda a resolver problemas, transporta-nos a mundos de insuspeitada beleza.

É animador encontrar uma informação indispensável, é satisfatório saber o que contém o remédio que vamos tomar, é prazeroso ler e seguir à risca uma receita e fazer um bolo saboroso. E é indescritível o prazer estético que se obtém da leitura de um texto elaborado com paixão, capricho e competência, escolhendo a dedo cada palavra, como num trabalho de ourivesaria. É evidente que cada um de nós tem um trecho ou uma obra que tenha nos tocado mais profundamente, mas, como dona da palavra neste momento, concedo-me o direito de colocar para sua leitura, (e para terminar esse artigo), trechos que considero especialmente queridos, pelas fortes emoções estéticas despertadas em mim, a cada (re)leitura que deles faço:

"Mas o amor, aprendido de começo, nuns olhos de mulher,
não se empareda na cabeça;
senão, com a agilidade de todos os espíritos,
se espalha com a rapidez do pensamento em nossas faculdades,
a todas redobrando de potência
e deixando-as muito acima de seus próprios ofícios e funções.
Visão mais nobre aos olhos ele empresta:
O amante vê mais longe do que as águias;
O amante escuta os sons que o próprio ouvido do ladrão Cauteloso não percebe". (W. Shakespeare)

"Tu pisavas os astros, distraída". (Orestes Barbosa)

"Sei que tinha tatuagem no peito e dourado no dente, minha mãe se entregou a esse homem, perdidamente." (Chico Buarque) "Fica decretado" que se plantem roseiras nos pomares e laranjeiras nos jardins para que haja cores nos quintais e cheiros e sabores em todas as calçadas". (Cidaboss)

"Jogou então sobre ele as redes trançadas de figuras, de versos conhecidos e outros especialmente para a ocasião preparados, de elegantes e elaboradas construções lingüísticas, trechos de fino humor ou escancarado galanteio".
Supôs que ele se rendesse, incontinenti, diante do maciço ataque perpetrado. Esperou que se declarasse vencido pela doçura das palavras de afeto, pela sutileza das propostas escondidas, pela ênfase sabiamente distribuída pelas palavras mais prenhes de significado.
"E esperou, entre uma lição e outra, o resultado desse esforço de enredamento, de embaralhamento, tecido de esperas, silêncios, gritos e sussurros, gemidos e louvações...". (Cidaboss).

Bibliografia

AGUIAR, V. T. de. Leituras para o 1º grau: critérios de seleção e sugestões. In: ZILBERMAN, R. (org) Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. 6. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.
BARBOSA, R. L. L. Dificuldades de leitura: a busca da chave do segredo. São Paulo: Arte e Ciência, 1998.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: SEF, 1997.
CATTANI, M.I. & AGUIAR, V. T. de. Leitura no 1º grau: a proposta dos currículos. In: ZILBERMAN, R. (org) Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. 6.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.
FARACO, C.A. As sete pragas do ensino do Português. [s.l:s.n, 19-?].
FARIA, M. A. (org) Anais do Seminário "Leitura e literatura na escola: a formação do professor". Assis (SP): UNESP, set. 1992.
JOLIBERT, J. Formando Crianças Leitoras. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
LAJOLO, M. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, R. (org) Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. 6.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986
LEITE, L.C.M. &MARQUES, R.M.H. Ao pé do texto na sala de aula. In: ZILBERMAN, R. (org) Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. 6ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986
SOARES, M. Letramento e Escolarização. In: UNESP. Pedagogia Cidadã. Cadernos de Formação. Alfabetização. São Paulo: UNESP, 2003.
SOUZA, R.J. de. Leitura da poesia infantil na escola. In: UNESP. Pedagogia Cidadã. Cadernos de Formação. Alfabetização. São Paulo: UNESP, 2003.


¹Artigo preparado como base da palestra com o mesmo título, proferida na ESBAM, Manaus, maio de 2004. ²Doutora em Educação e professora do curso de Pedagogia da Faculdade de Presidente Prudente/ SP (UNIESP) e Coordenadora do Núcleo de Apoio ao Discente e Docente da mesma Instituição de Ensino.

Revista Saber Acadêmico

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Reflexões sobre a escrita na formação inicial de professores


Odisséa Boaventura de Oliveira

Programa de Pós-graduação em educação - UFPR. Email: odissea@terra.com.br


RESUMO

O presente estudo busca nos textos produzidos por licenciandos ao analisarem aulas ministradas por eles a manifestação de subjetividades, singularidades e identidades ao se verem no papel de professor. Toma-se como fundamentação as noções de processos identitários e gêneros textuais. Observa-se que alguns licenciandos destacam as falhas cometidas na condução de suas aulas procurando justificá-las. Outros licenciandos destacam o papel satisfatório de suas práticas se identificando à profissão. Discute-se ainda sobre a contribuição da escrita de gêneros diferenciados na formação docente.

Palavras-chave: processo identitário; subjetividade; formação de professor; gênero textual.

Este estudo visa discutir a formação docente pelo prisma da linguagem, enfocando a escrita, o que nos leva a tomar da Análise de Discurso a concepção de linguagem como matéria estruturante dos sujeitos, ou seja, como uma "tomada de posição", segundo Pêcheux, o que equivale reconhecer que os lugares ocupados nas relações sociais definem os significados das palavras, delimitando o que cada falante (ou escrevente) manifesta e como o faz. Isso implica que nenhum sentido, no discurso oral ou escrito, é dado a priori, mas constituído e considerado "em relação a", isto é, as palavras mudam de sentido conforme a posição de quem as emprega. Por conta disso, refletir sobre posições assumidas pelo sujeito no uso da linguagem implica em trazer à tona noções de subjetividade e identidade, vale dizer, sua própria autopercepção e autorreconhecimento, o que se dá por meio de pensamentos e emoções conscientes e inconscientes, como demonstraremos.

Diferentemente de nós, há também uma corrente de investigação bastante influente nos meios acadêmicos relativa à formação do professor reflexivo, e que, para isso, vem investigando os instrumentos e mecanismos que levam o docente a uma familiarização com ações e pensamento críticos. Para ela, a expressão escrita é vista como uma maneira de promover tal reflexão, ou de incitar estranhamento, na medida em que o professor descreve o que fez e o porquê de determinadas atividades. Nessa perspectiva, muitos autores apontam a escrita narrativa como uma forma de registro das impressões sobre a sala de aula, na medida em que é utilizada de maneira informal, geralmente refletindo as dimensões subjetivas das perspectivas do professor, ou seja, possibilitando o registro dos pensamentos e sentimentos experienciados que podem fornecer subsídios ao seu trabalho (SILVA; DUARTE, 2001). Além disso, essa forma de registro é vista como importante para a construção da autoconfiança, percepção a respeito do processo ensino-aprendizagem e construção de novos significados para a prática de ensino (CRISTÓVÃO, 2002).

Nessa linha, Fiad e Silva (2000) defendem o diário como um gênero que se caracteriza pela exposição e difusão da vida privada, portanto trata-se de uma "fala escrita", uma vez que o locutor escreve para si mesmo ou dirige-se a um outro com quem convive no "campo da linguagem" ou a alguém eleito no "campo empírico". Para essas autoras o diário oportuniza a relação teoria-prática, uma vez que o produtor deste gênero pode relatar articulações com leituras e estudos realizados no curso e seu relacionamento na escola, dialogar com suas representações o que pode levar à sua conscientização e revisão de procedimentos. Mas para que o diário contribua para a formação reflexiva, Silva e Duarte (2001) ressaltam que as descrições de acontecimentos precisam ultrapassar o nível do simples relato e contemplar a análise das causas e consequências de suas ações para que o professor se transforme em investigador de si próprio, iniciando como narrador e posteriormente assumindo a posição de analista crítico dos registros elaborados. Por fim e em geral, esses estudos consideram que a escrita na formação docente deve se configurar em experiência compartilhada, ser concebida como espaço de troca (CARVALHO, 2002).

Por sua vez, na perspectiva por nós adotada, não concebemos a escrita dessa forma interativa, ou seja, para efeitos de promover trocas entre professor e alunos, nem segundo a pretensão de fazê-la instrumento de reflexão para o licenciando. De fato, nosso objetivo é o de identificar e descrever as impressões relativas às próprias práticas pedagógicas dos licenciandos em sua experiência docente de formação, bem como os sentidos que manifestam em seus relatos escritos sobre ela. Esse enfoque nos permite, adicionalmente, analisar o próprio discurso que a universidade aplica e imprime em quem passa por ela como estudante.

Assim, buscamos neste artigo compreender a "posição-professor" assumida nos textos dos licenciandos, destacando aspectos relacionados a esta atividade como a constituição de processos identitários, o gênero textual e as condições de produção da escrita, uma vez que, todo texto constitui representações, relações e identidades. Com estes conceitos analisaremos a produção escrita que se deu na disciplina Metodologia de Ensino, ministrada no 6.º período do curso de Ciências Biológicas quando os licenciandos ministraram aulas para alunos de uma escola rural no ensino fundamental e médio. Após esta produziram um texto analítico a respeito da linguagem utilizada, do enfoque dado ao conteúdo, da interação promovida com os alunos e da forma como se viram no papel de professor. Para isso, caminhamos na direção apontada por Riolfi e Alaminos (2007, p.305) quando afirmam que é importante "examinar as marcas que permitem supor a manifestação de um sujeito singular na escrita".

Processos identitários

Em lugar de adotar o termo "identidade" alguns autores preferem "processos identitários", pois traz a ideia de identidade não fixa, mas em constante fluxo de construção. Por assim dizer, um palco de lutas e conflitos, pois comporta a marca da ambiguidade do individual e do coletivo, do que é próprio e do que é alheio, do que é igual e do que é diferente, de permanência e de metamorfose, ora apontando para um polo ora para outro, numa síntese inacabada entre objetividade e subjetividade. Trata-se de um conceito que permite distinguir sujeitos e grupos, localizá-los no tempo e no espaço. Assim, identidade e subjetividade, conceitos relacionados à natureza do social e do sujeito, respectivamente, são indicativos de concepções teóricas que apontam para os modos de produção histórica dos sujeitos inseridos em práticas discursivas. O conceito de identidade toma como referência o estudo dos grupos sociais e da forma como se constituem, pressupõe a análise das diferentes dimensões nos modos de constituição histórica do sujeito (BALOCCO, 2007). Já o de subjetividade é pensado a partir do entrecruzamento de fatores sociais, linguísticos e culturais.

Riolfi e Alaminos (2007) abordam a identidade ou identificação, pelo âmbito da psicanálise, como sendo um laço emocional que uma pessoa estabelece com outra, isto é, quando toma alguém como sendo seu ideal, o que pode ser expressão de ternura ou de hostilidade. Segundo as autoras, a instalação de um processo identificatório abre a possibilidade da pessoa se reinventar e este jogo de identificações está em permanente construção de si e de seu trabalho. As autoras também descrevem os tipos de identificação propostos por Lacan, a saber:

Identificação à imagem proposta pelo outro: trata-se da identificação por meio da qual um sujeito pode vir a se compreender como sendo um eu, separado do outro do qual é, naquele instante da sua vida, objetivamente dependente. Ela permite a posterior construção de um dizer na primeira pessoa do singular [...]

Identificação ao desejo inconsciente: trata-se da identificação estruturante por meio da qual um sujeito toma alguém, que para ele é percebido como um sujeito desejante, como modelo. A condição de alguém vir a ocupar o lugar de um objeto copiado, portanto, é dar mostras de estar em permanente busca de algo que poderia vir a suprir a insatisfação do seu desejo. Lacan confere a essa identificação o poder de reintroduzir, como falta, o objeto perdido, responsável pela insatisfação [...] (RIOLFI; ALAMINOS, 2007, p. 303).

Por essas definições vê-se que a identificação está sempre relacionada à imagem do (proposta pelo) outro, aquela pela qual um sujeito pode vir a se compreender como sendo um eu, separado do outro, mas do qual é dependente. Essa identificação instaura, como visto, o campo que possibilita o desejo, proporciona ainda uma primeira separação do sujeito do outro e essa separação torna um querer subjetivado possível. Outra é a identificação ao desejo inconsciente, ou seja, o sujeito toma alguém, que para ele é percebido como um sujeito desejante, como modelo.

Segundo as autoras, Lacan afirma que só se responsabiliza por seu fazer aquele que sabe fazer, ou seja, aquele que constrói um estilo de conduzir a sua prática. Esta concepção, as autoras transpõem para o contexto da formação de professores, indicando que se responsabilizar pela própria prática implica em poder se autorizar a julgar a qualidade de seu fazer pelos resultados que obtém de seus alunos e não pela sua semelhança com o ideal ao qual estava identificado. Para elas, na formação de um novo professor, o processo identificatório é mobilizado e, idealmente, leva aquele que está em formação a construir um lugar próprio. Mas esta construção só se edifica caso esteja apoiada no andaime composto pelas múltiplas identificações colocadas em jogo ao longo de seu percurso.

Assim, concebemos que no campo do discurso pedagógico os professores constroem suas identidades por referência aos saberes teóricos e práticos, portanto mutáveis conforme o conjunto de valores ao qual se apropriam em determinados momentos. Dessa forma, a identidade está relacionada com a maneira e o modo de ser professor.

Por conta disso, nos textos produzidos pelos licenciandos, objetos dessa pesquisa, procuraremos compreender as imagens ou representações que eles têm de si, da futura profissão (as tarefas que lhes cabem, seus compromissos etc.), além das que eles têm dos alunos, já que estamos considerando que o sujeito se constrói pelo outro, para capturar os momentos de identificações do licenciando com o sentir-se professor. Enfocados os processos identitários, passemos aos gêneros textuais.

Gêneros textuais

Maingueneau (1989) aponta fatores importantes para pensarmos o papel da escrita, como a "deixis discursiva" referente ao EU (locutor discursivo), ao TU (destinatário discursivo), ao AQUI (topografia) e ao AGORA (cronografia), que definem a coordenada espaço-tempo da enunciação. Outro aspecto mencionado por ele é o lugar de onde se fala, enquanto determinante da identidade de cada indivíduo, sendo que este também ao enunciar garante sua autoridade institucional. Esta posição de onde fala o sujeito seria o lugar encenado no discurso, sendo a encenação uma das formas do real que só é acessado através do discurso.

O autor também reconhece contribuições do teatro quanto à ideia dos "papéis" que o locutor pode escolher para si ou para seu destinatário, estabelecendo a cenografia ou encenação de imagens que um remete ao outro no ato de comunicação. Para ele a Análise de Discurso enfatiza o lugar da enunciação, a topografia social dos falantes, de modo que a instância de enunciação constitui o sujeito e o assujeita, melhor dizendo, o lugar de onde se fala determina a identidade de cada indivíduo, sendo que este também ao enunciar se submete às regras.

Utilizando Maingueneau para interpretar os textos dos licenciandos apontamos elementos como a posição do enunciador, a deixis discursiva (espaço e tempo do discurso), o gênero adotado, que possibilitam compreender aspectos que permeiam as ações e os discursos dos futuros professores. Ele ainda associa gêneros textuais aos suportes de formulação dos textos, isto é, à sua forma de apresentação, ao modo de manifestação material dos discursos, por exemplo, panfletos, folders, livros, cartaz etc. Neles, o sujeito se manifesta a partir de posições enunciativas, marcadas pelo critério institucional, como participante de uma comunidade discursiva. Para ele, não se separa o que é dito das condições materiais e institucionais do dizer, pois eles remetem aos lugares enunciativos (de onde se fala).

Quanto aos gêneros textuais percebemos que grande parte das pesquisas que enfoca a escrita na formação aborda a utilização de diários, pois acredita que eles auxiliam na reflexão sobre suas experiências, suas crenças, decisões tomadas, atitudes e ações. Também defendemos que a escrita de gêneros não acadêmicos na formação inicial de professores pode contribuir para a assunção de um discurso próprio sobre a prática docente. Por isso enfocaremos adicionalmente a contribuição de outros gêneros escolhidos pelo licenciando para expressar sua percepção sobre si no papel de professor. Antes, porém, vale ressaltar a situação em que se deu as referidas produções escritas.

Condições de produção

Destaquemos as condições em que se deu a produção dos textos considerando o licenciando e o contexto da disciplina Metodologia de Ensino. Esta disciplina foi ministrada no 6.º período do curso de Ciências Biológicas e contou com uma carga horária de 90 horas no semestre. Os conteúdos abordados foram: Tendências pedagógicas e o histórico da disciplina ciências no Brasil; Questões curriculares: Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná; Concepções de ciência e o ensino de ciências: Bacon, Popper, Khun, Bachelard; Enfoques de conteúdos: Ciência-Tecnologia-Sociedade (C-T-S), História da ciência, Cotidiano; Estratégias de ensino: Aula expositiva dialogada, Leitura, Escrita, Vídeo, Informática, Atividade lúdica, Estudo de campo, Experimentação, Resolução de problema; Avaliação; Livro didático.

Foi proposto, em meados do semestre, que os licenciandos fossem para a escola observar aulas de professores de Biologia/Ciências orientados por um roteiro que contemplava a interação professor-aluno-conhecimento, a dinâmica comunicativa na sala de aula, a utilização de recursos didáticos e a abordagem do conteúdo. Após assistir essas aulas deveriam elaborar um relatório descritivo-analítico, relacionando a prática docente à teoria estudada.

Outra atividade desenvolvida relacionada diretamente à prática docente foi a de ministrar uma aula. Esta foi realizada em uma escola rural de um município próximo à Curitiba, Campo Magro. Os licenciandos se organizaram em grupos e a escola em questão cedeu todas as aulas do período para eles. Para a análise desta atividade foi sugerido que observassem os seguintes aspectos: Conteúdo (enfoque, profundidade, exemplificação, relações e objetivos); Uso de estratégias (o que, como, motivação e facilitações produzidas); Linguagem (adequação, tom, vícios, analogias); Interação com os alunos (questionamentos feitos, motivação); Mudanças necessárias. Estes aspectos foram sugeridos em função do programa e objetivo da disciplina que é o de possibilitar ao licenciando a reflexão teórica acerca da metodologia de ensino na área das ciências naturais, a fim de que elabore propostas coerentes com as necessidades atuais. Foi solicitado que produzissem um texto relatando essa experiência por meio de um gênero diferenciado, como carta, diário, artigo de jornal etc.

Análise: delimitações e desenvolvimento

Os gêneros efetivamente utilizados pelos licenciandos, para nossa surpresa, foram: diário, boletim policial, crônica, carta, relato (de guerra, de sonho), relatório, conto, poesia, texto religioso, edital de concurso, bula de remédio, entrevista, artigo de revista. Também foram utilizados diferentes suportes (veículos) como jornal, livro, e-mail, slides e blog.

Nesses textos os licenciandos denominaram a escola, local em que se deu para muitos a primeira experiência docente, de diferentes modos dependendo do gênero escolhido. Por exemplo, no texto religioso, a escola foi descrita como "o monte do saber"; em um diário de bordo como "um outro planeta", já no relato de guerra como "um campo de batalha". Enfim, o espaço escolar foi abordado como um palco em que ocorrem diferentes "aventuras".

Matéria completa de endereço
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602009000200007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt


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