segunda-feira, 26 de abril de 2010

A literatura infanto-juvenil que estimula a inteligência

A mulher ou o tigre?
A literatura infanto-juvenil que estimula a inteligência

Frank R. Stockton

Muito tempo atrás, existia um rei semibárbaro. Suas ideias, apesar de continuamente aperfeiçoadas e estimuladas pela rápida expansão dos seus vizinhos latinos, permaneciam primitivas, disparatadas e irrefreáveis, como se viessem de sua metade ainda bárbara. Era um homem de imaginação exuberante e, sobretudo, dotado de tão irresistível autoridade que, de acordo com sua vontade, suas fantasias se transformavam em fatos. Como era seu próprio conselheiro, bastava concordar consigo mesmo para que seus desejos se tornassem realidade.

Enquanto os membros dos seus sistemas doméstico e político se moviam suavemente na direção que o rei apontava, sua natureza era afável e cordial; porém, se surgisse um pequeno obstáculo e um dos seus satélites saísse da devida órbita, ele se mostrava ainda mais afável e cordial, pois nada o agradava mais do que desentortar o torto e alisar à força qualquer irregularidade.

Dentre as ideias importadas que tornavam seu barbarismo mais sofisticado estava a arena pública. Nela, através das exibições de coragem e força de homens e de feras, as mentes dos súditos eram refinadas e educadas.

Contudo, mesmo lá, os caprichos exuberantes e bárbaros se faziam presentes. A arena do rei era construída não para dar ao povo a chance de ouvir a rapsódia dos moribundos gladiadores, nem para dar a ele a oportunidade de testemunhar a inevitável conclusão de um conflito entre opiniões religiosas e mandíbulas famintas, mas sim para propósitos mais adaptados para ampliar e desenvolver as energias mentais das pessoas. Esse vasto anfiteatro, com galerias circundantes, subterrâneos misteriosos e passagens ocultas, era um agente de poética a mulher ou o tigre? justiça, onde o crime era punido e a virtude recompensada pela decisão do imparcial e incorruptível acaso.

Quando um súdito era acusado de um crime importante o suficiente para interessar ao rei, anunciava-se publicamente que num dia determinado a sorte da pessoa acusada seria decidida na arena real. A estrutura bem merecia esse nome, pois, ainda que sua forma e arquitetura fossem emprestadas de outrem, seu propósito emanava apenas do cérebro desse homem que, por conter a realeza em cada átomo de seu corpo, não defendia outra tradição que não a plena satisfação de seus caprichos, e que impunha a força de seu idealismo bárbaro a toda e qualquer forma de ação e do pensamento humanos.

Após a multidão se acomodar nas galerias e o monarca, rodeado pela sua corte, ocupar o camarote real, ele dava um sinal; em seguida, uma porta se abria e o súdito acusado era introduzido no anfiteatro. Do outro lado da arena, bem à sua frente, havia duas portas, absolutamente iguais em forma, dispostas lado a lado. Era dever e privilégio da pessoa sob julgamento encaminhar-se para as portas e abrir uma delas. O réu podia abrir a porta que desejasse: não estava sujeito a qualquer influência ou orientação, apenas ao supracitado imparcial e incorruptível acaso. Abrindo uma delas, surgiria um tigre faminto, o mais feroz e cruel que tivesse sido encontrado, que imediatamente se lançaria sobre ele e o faria em pedaços, como punição por seu crime. Nesse momento, em que o caso do criminoso fora assim decidido, os sinos soariam lugubremente, as carpideiras contratadas gritariam seus lamentos e a vasta audiência, com cabeça curvada e coração entristecido, tomaria o caminho de casa, desolada porque alguém tão jovem e belo, ou velho e respeitável, merecera um destino tão horrendo.

Porém, se a pessoa acusada abrisse a outra porta, dela sairia uma mulher, a mais adequada em idade e condição social que Sua Majestade pudesse selecionar entre suas belas súditas. O acusado e essa mulher casar-se- iam imediatamente, como recompensa pela sua inocência. Não importava que o acusado já tivesse esposa e filhos ou que estivesse comprometido afetivamente com alguém de sua escolha: o rei não permitia que qualquer compromisso anterior interferisse no seu grande plano de retribuição e recompensa. A cerimônia, assim como no caso da outra escolha, acontecia imediatamente na própria arena. Outra porta se abria sob o balcão do rei e surgia um padre, acompanhado por um balé de virgens soprando clarins dourados e por um coral entoando poemas epitalâmicos. O religioso e seu cortejo se dirigiam ao centro da arena, onde aguardavam o recém-julgado e a noiva prometida; o matrimônio era prontamente realizado e devidamente festejado. Em seguida, os sinos de bronze repicavam alegremente, as pessoas da audiência saudavam o casal com fervor incomparável, e o réu inocentado, precedido por crianças que espalhavam flores no caminho, levava para sua casa a jovem noiva.

Esse era o método semibárbaro escolhido pelo rei para exercer a justiça. Sua perfeita imparcialidade é óbvia. O criminoso não sabia que porta escondia a mulher: ele abria a que escolhesse, sem ter a mínima ideia se, no instante seguinte, estaria despedaçado ou casado. Em algumas ocasiões o tigre saía por uma porta, outras vezes pela outra. As decisões desse tribunal eram não apenas justas, mas também determinadas com clareza: a pessoa acusada seria instantaneamente punida se fosse considerada culpada; e se fosse inocente, seria recompensada no mesmo instante, quisesse ou não. Não havia como fugir aos julgamentos da arena do rei.

Essa instituição era muito popular. Quando os súditos se reuniam nos dias de julgamento, não podiam prever se testemunhariam uma sangrenta carnificina ou um alegre matrimônio. Esse elemento de incerteza emprestava um encanto especial à ocasião que, talvez, não fosse possível de outra maneira. Assim, as massas eram entretidas e satisfeitas, e a parte intelectualizada da comunidade não tinha como duvidar da imparcialidade dessa instituição: não estava nas mãos do próprio acusado a responsabilidade da escolha?

Esse rei semibárbaro tinha uma filha, tão florescente quanto seus mais ostentosos caprichos e com uma alma tão ardorosa e dominadora quanto a do monarca. Como geralmente acontece nesses casos, ela era a menina dos olhos dele, numa adoração que sobrepujava a de qualquer outro mortal. Entre seus cortesãos estava um jovem rapaz, com a nobreza de caráter e a deficiência de sangue azul tão comuns aos convencionais heróis de romance que se apaixonam por altivas princesas. A princesa real estava muito satisfeita com seu apaixonado, pois ele era o mais belo e corajoso jovem de todo o reino; e ela o amava com um ardor tão intenso que apenas o barbarismo de seu sangue poderia explicar.

Esse romance desenvolveu-se alegremente durante muitos meses, até o dia em que o rei descobriu sua existência. Ele não hesitou nem vacilou no cumprimento de seus deveres. O jovem foi imediatamente jogado na prisão, e foi marcado o dia para seu julgamento na arena real. Essa, sem dúvida, era uma ocasião especialmente importante, e o monarca, assim como seu povo, estava enormemente interessado nos preparativos e desenvolvimento desse julgamento. Nunca antes havia acontecido um caso semelhante; nunca antes havia um súdito ousado amar a filha de um rei. Em tempos posteriores, tais coisas se tornaram até bastante comuns; porém, naquele momento, a situação era nova e surpreendente.

As feras mais selvagens e implacavelmente cruéis do reino foram avaliadas para que dentre elas fosse selecionada aquela que estaria na arena. Todas as jovens donzelas do reino foram cuidadosamente analisadas por um grupo de competentes juízes, para que o jovem réu tivesse uma noiva adequada, no caso de ser esse o destino que o acaso lhe reservava. É lógico que todo mundo conhecia o motivo pelo qual o acusado seria julgado. Ele havia amado a princesa, e nem ele, ela ou qualquer pessoa pensaria em negar o fato; porém o rei não permitiria que qualquer fato desse tipo interferisse com os trabalhos do tribunal, que lhe davam tamanho prazer e satisfação. Independente do destino do romance, o jovem seria liquidado; e o rei demonstrava um prazer estético ao testemunhar o curso dos eventos, que determinaria se o jovem tinha ou não errado ao ousar amar a princesa.

O dia marcado chegou. Os súditos chegavam de todos os lugares do reino, amontoando-se nas galerias da arena; impossibilitada de entrar, uma multidão se apinhava do lado de fora, espremendo-se contra as grades e portões. O rei e sua corte ocuparam seus lugares, exatamente na parede oposta às duas portas - as duas fatídicas portas, tão terríveis em sua similaridade.

Tudo estava pronto. O sinal foi dado. Uma porta se abriu sob o camarote real, e o namorado da princesa entrou na arena. Alto, belo, loiro, sua entrada foi saudada com um audível murmúrio de admiração e ansiedade. Metade da audiência nem ao menos sabia que um rapaz de tão bela aparência havia vivido entre eles. Não era de se espantar que a princesa tivesse se apaixonado por ele! Que coisa horrível era, para ele, estar ali!

De acordo com o costume, o réu, ao entrar na arena, voltou-se para reverenciar o rei; entretanto, seu olhar não se prendeu à augusta figura do monarca. Seus olhos foram arrebatados pela princesa, sentada à direita do pai. Não fosse pela porção primitiva de sua natureza, é provável que a princesa nem estivesse ali; porém, sua alma intensa e fervorosa não permitiria que se ausentasse numa ocasião na qual estava tão terrivelmente interessada. Desde o momento em que havia sido decretado que seu amado teria a sorte decidida na arena, a moça não conseguira pensar em outra coisa, noite e dia, senão nesse grande evento e nos fatos a ele relacionados. Dotada de mais poder, influência e força de caráter do que qualquer outra pessoa, ela conseguiu o que ninguém conseguira antes - ela descobriu o segredo das portas. Ela sabia em qual dos cubículos atrás das portas havia sido colocado o tigre e em qual permanecia a futura noiva. Através das pesadas portas, recobertas internamente por grossas cortinas, era impossível ouvir qualquer barulho; nenhuma sugestão viria de dentro para a pessoa que se aproximasse para erguer o trinco de uma delas; entretanto, o dinheiro e o poder do desejo de uma mulher haviam revelado o segredo.

Não apenas a donzela real sabia em que recinto estaria a jovem prometida, pronta para surgir, toda corada e radiante, se sua porta fosse aberta, como também sabia quem era essa jovem. Uma das mais belas e adoráveis donzelas da corte fora a escolhida para ser a recompensa do rapaz acusado, caso fosse considerado inocente do crime de desejar alguém tão superior a ele. A princesa a odiava. Muitas vezes tinha visto, ou imaginava ter visto, essa bela criatura lançando olhares de admiração para seu amado, e acreditava que os olhares não somente eram percebidos como também retribuídos. Várias vezes os vira conversando, ainda que por apenas um instante; entretanto, muito pode ser dito em questão de segundos. Se o assunto era desimportante ou não, como poderia ela saber? A garota era adorável, mas havia ousado levantar os olhos para o amado da princesa; e, com toda a intensidade do sangue selvagem, herdado de uma longa linhagem de ancestrais bárbaros, ela odiava a mulher que enrubescia e tremia atrás daquela porta silenciosa.

Seu amado voltou-se na arena e olhou-a. Quando a viu, mais pálida e desolada que qualquer outro ser em meio ao vasto oceano de faces ansiosas que a rodeavam, ele percebeu, pelo poder de rápida percepção inerente a aqueles seres cujas almas são uma só, que ela sabia qual porta escondia o tigre e qual ocultava a mulher. Ele tinha certeza que ela descobriria. Ele compreendia sua natureza; sua alma acreditava que a princesa jamais descansaria até descobrir o segredo das portas, algo desconhecido por todos, até mesmo pelo próprio rei. A única esperança para o jovem estava baseada na crença de que a princesa conseguiria descobrir o mistério; e, no momento em que seus olhares se cruzaram, ele soube que ela havia atingido seu intento, exatamente como a alma do rapaz acreditava que ela o faria.

Nesse rápido e ansioso olhar, a pergunta "Qual?" foi feita. A indagação era tão clara para a princesa como se o jovem a tivesse gritado do meio da arena. O momento era preciso, não havia um instante a ser desperdiçado. A pergunta foi feita num átimo de segundo; a resposta teria que ser produzida em igual velocidade. Seu braço direito estava apoiado no parapeito almofadado à sua frente. Ela ergueu a mão, e fez um leve e rápido movimento para a direita. Ninguém, com exceção de seu amado, percebeu o discreto gesto. Todos os olhos estavam fixos no homem no centro da arena. Ele voltou-se, e com passos firmes e ligeiros atravessou o espaço vazio. No estádio repleto, cada coração perdeu o compasso, cada respiração foi suspensa, cada olhar imobilizou-se, acompanhando os movimentos do rapaz. Sem a menor hesitação, ele dirigiu-se à porta da direta, e abriu-a.

* * * * *

Agora, o desfecho da história é o seguinte: Quem a porta ocultava: a mulher ou o tigre?

Quanto mais refletimos sobre a questão, mais difícil nos parece a resposta. Ela envolve um estudo do coração humano, o que nos leva pelos tortuosos labirintos da paixão, dos quais a saída é sempre muito difícil. Analise de maneira imparcial, caro leitor, não como se a decisão dependesse de você, mas sim de uma princesa semibárbara de sangue quente, de sentimentos primitivos, com a alma dividida entre as chamas do desespero e do ciúme. Ela o perdera; porém, quem deveria ganhá-lo?

Quantas vezes, nas horas de insônia ou nos pesadelos, ela sofrera as agonias do horror e cobrira seus olhos em pânico ao pensar que seu amado pudesse abrir a outra porta e encontrar a sua espera as garras mortais do cruel tigre!

Entretanto, muitas vezes mais, ela o imaginara abrindo a outra porta! Quantas vezes, nos dolorosos devaneios, ela rangera os dentes e arrancara os cabelos ao imaginar os arroubos de felicidade do amado quando abrisse a porta que ocultava a linda jovem! Como sua alma se consumia de angústia ao imaginá-lo correndo ao encontro de tal mulher, com sua face corada de alegria e os olhos brilhantes de triunfo; quando o via conduzir a jovem, seu prêmio, com o coração transbordante de júbilo pela vida recuperada; quando ouvia os gritos de contentamento da multidão e o alegre ressoar dos sinos; quando imaginava ver o padre e seu festivo cortejo se aproximando do feliz casal para uni-los em sagrado matrimônio; e quando os via trilhando juntos o caminho recoberto de flores, acompanhados dos brados de felicidades da entusiasmada audiência - oh! e em meio a tudo isso, o que lhe restaria, senão um inútil e perdido gemido de desespero!

Não seria melhor que ele morresse de uma vez, e fosse esperar por ela nas abençoadas regiões de um paraíso semibárbaro?

Mas, apesar de tudo isso, a lembrança daquele tigre medonho, daquele rosnar feroz, daquele sangue!

Sua decisão fora manifestada num átimo de segundo, porém havia sido tomada após dias e noites de angustiada deliberação. Ela sabia o que lhe seria perguntado, ela havia decidido o que deveria responder e, sem a menor hesitação, movera sua mão para o lado direito.

As diferentes hipóteses que podem ser levantadas tendo em vista a decisão da princesa têm que ser consideradas cuidadosamente, sem leviandade nem precipitação. Não me considero a pessoa mais capacitada para responder. Portanto, deixo para você, leitor, esta pergunta: Quem saiu pela porta aberta: a mulher ou o tigre?

STOCKTON, Frank. R. A Chosen Few Short Stories. New York, Charles Scribner's Sons, 1895. Tradução e adaptação de Maria Cristina Bessa Lima, maria.cristina.bessa@bol.com.br

Revista de Literatura

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Mídia, juventude e memória cultural


Mídia, juventude e memória cultural

Rosa Maria Bueno Fischer
Doutora em Educação e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: rosabfischer@terra.com.br


RESUMO

O texto trata das relações entre memória, mídia e juventude. Discute os resultados de uma pesquisa com estudantes universitários e de ensino médio, sobre suas memórias culturais e midiáticas, problematizando questões contemporâneas sobre alteridade, memória e produções audiovisuais, a partir de autores como Henri Bergson, Andreas Huyssen, Maria Rita Kehl e Michel Foucault, entre outros. Desenvolve-se o argumento de que a produção de sujeitos, em nosso tempo, estaria estreitamente relacionada à experiência cotidiana, em particular dos mais jovens, com as imagens e textos oferecidos pelos meios tecnológicos de informação e comunicação. Estes meios, segundo a argumentação tecida, parecem operar fortemente nos processos de elaboração de nossas memórias individuais e sociais, bem como na construção de modos de existência específicos, relacionados à construção de nós mesmos e de nossas diferenças.
Palavras-chave: Juventude. Memória. Cultura. Mídia. Alteridade.



Mídia, juventude e memória cultural

Este texto1 trata de questões relativas à produção, veiculação e consumo de imagens, focalizando a atenção na memória de jovens de 15 a 24 anos, em nosso tempo, sobre sua experiência com imagens, sons e textos das mídias.2 Para tanto, opero aqui com um conjunto de conceitos, a começar pelos de imagem e memória, que articulo aos de alteridade, mídia e juventude.3 As perguntas que moveram o estudo maior, sobre algumas das quais aqui discuto, podem ser assim sintetizadas: Como nossa sociedade tem distribuído espacialmente os diferentes tipos de jovens e de que modo eles mesmos, na condição de homens e mulheres, referem-se a si mesmos? Como avaliam as formas de nomeação do jovem pela indústria cultural nestes últimos quinze anos? O que afirmam e como se pode pensar o que dizem sobre as formas como as diferentes mídias, das mais simples às mais sofisticadas, em termos das tecnologias utilizadas, os têm construído? E, mais especificamente, como articulam suas memórias, individuais e coletivas, à sua experiência com produtos da publicidade e da cultura audiovisual?

Nossas perguntas, pensando a partir da palavra de Skliar (2003), caminharam por várias espacialidades, como diria o autor: estaríamos narrando o jovem como um "outro" colonizado, como alguém que vem se tornando uma espécie de objeto exótico de desejo e curiosidade? E como pensar a "adulação" de que fala Bauman (2001), desse convite a uma espécie de ditadura jovem em nossa cultura? Ainda: os jovens "diferentes", cada vez mais contemplados na mídia e na publicidade, estariam sendo acolhidos como "diversidade multicultural" ou na sua condição de diferença mesmo, como outros irredutíveis, completo mistério, "différance" (Derrida & Roudinesco, 2004)? Finalmente (e não menos importante): como esses jovens narram sua experiência com o tempo presente, passado e futuro, tendo como centro de atenção as imagens pelas quais as diversas gerações, especialmente a deles mesmo, os têm inventado?

De acordo com Zizek (2003a), vivemos um tempo em que grandes e sérios conflitos econômicos e políticos passam a ser deslocados para o terreno da cultura: se as diferenças são inúmeras e constatáveis, como a da radical cisão entre ricos e pobres, é bem verdade que o interesse maior hoje parece centrar-se predominantemente no reconhecimento das diferenças culturais – fato que, para o autor esloveno, não deveria constituir-se como "o último horizonte da política": "Para reconhecer você como diferente, nós devemos partilhar um campo mínimo de solidariedade. Sem isso, a diferença não é interessante para o pensamento. A diferença não vem primeiro" (p. 6). Ora, esse argumento nos interessa de modo particular, pois, como Zizek, entendemos que o debate teórico a respeito das diferenças – e dos modos como elas são nomeadas pelos meios de comunicação contemporâneos – não pode ser desvinculado de uma atitude e de um agir políticos.

Fetiches e sintomas de imagens midiáticas

Falar de formas de uma espécie de "alteridade jovem", em relação às narrativas midiáticas e à memória das imagens a respeito desses meios, exige que articulemos conceitos de áreas diversas do conhecimento. Marilena Chauí, no prefácio ao livro Videologias, de Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl (2004), anuncia que os autores buscam em seus ensaios falar do modo de produção do imaginário contemporâneo, nos meios audiovisuais, e o fazem a partir da "crítica da imagem enquanto imagem, seja no nível do inconsciente individual, seja no nível do inconsciente coletivo" (Chauí, 2004, p. 12, destaque da autora). Atualizando para nosso tempo o conceito de fetichismo (na psicanálise freudiana e na teoria marxista da mercadoria), os autores do livro Videologias oferecem farto material sobre nossas relações com os produtos das tecnologias da comunicação e da informação; o fetichismo, hoje, insere-se na sociedade do espetáculo e do consumo, "na qual o gozo e a satisfação se tornaram imperativos sociais e morais" (idem, ibid., p. 13).

Busco esses autores, associando a discussão sobre alteridades, diversidades e diferenças aos temas da juventude e das práticas da indústria cultural e da sociedade do espetáculo. Procuro pensar "o outro jovem" na sua relação com a mídia, tendo como preocupação o olhar atento àquilo que Marjorie Garber chamou de "sintomas da cultura", no livro Symptoms of culture (1999). Do ponto de vista da psicanálise, a autora nos sugere que leiamos aquilo que "fala" na cultura, já que sintomas são modos de falar de algo que existe como doença. A proposta é "ler a cultura" como se ela fosse estruturada qual um sonho, qual uma rede de imagens, relacionadas a desejos, medos, projeções, identificações, e cujos elementos estão solidamente fundados em bases sociais, políticas e econômicas muito concretas (Garber, 1999, p. 8-9).

A cultura do medo e da violência, por exemplo, poderia ser vista como um sintoma de nossa cultura; refiro-me a esse sintoma, rapidamente, já que foi um dos temas recorrentes lembrados pelos jovens pesquisados, não só nos debates como nas respostas aos questionários. E não por acaso também é um dos temas insistentemente tratados pelos meios de comunicação. Concordo com Jurandir Freire Costa: o sentimento de desamparo, a exposição permanente à violência e às narrativas midiáticas que tematizam o medo de todos nós precisam ser analisados de modo a estabelecer relações com as formas pelas quais tratamos e nomeamos os outros. Assassinatos, atos de crueldade de toda ordem, humilhações, agressões físicas e psicológicas, embora sejam considerados indesejáveis, podem também passar a ser facilmente aceitos: "Basta desumanizar o próximo. Basta acreditar que ele não é um sujeito moral como 'nós' para que a crueldade cometida não seja percebida em seu horror" (Costa, 1994, p. 123).

Jornais, canais de televisão, emissoras de rádio não se cansam de narrar jovens envolvidos em casos de violência, e é muito clara a cisão vislumbrada a cada texto, a cada imagem, a divisão entre "nós" e "eles", entre os jovens de classe média, brancos, universitários ou estudantes de uma boa escola particular e aqueles que desumanizamos, que literalmente consideramos inferiores. Falo aqui de juventude, de mídia, de diferenças. O importante a pensar, nessa perspectiva, é que os jovens, de uma maneira geral, em relação à ordem midiática, do mercado e da sociedade do espetáculo, estariam permanentemente "de fora", embora constantemente sejam interpelados por essa mesma ordem. Este seria o grande fantasma: ficar de fora, fora do consumo, fora da fama, fora da moda, fora da publicidade. Para ficar "por dentro", a saída parece ser esta: inscrever-se como um "novo tipo de objeto", ausente de deliberações éticas, fixado num tipo de narcisismo para o qual valem exclusivamente os interesses individualistas (Costa, 1994, p. 124-125).

Real, simbólico e imaginário: ferramentas para ler a cultura

No livro Bem-vindo ao deserto do real!, Slavoj Zizek (2003b) nos ajuda a estabelecer melhor ainda essas relações que aqui expomos, entre mídia, diferença e juventude. As análises do pensador esloveno incursionam pelo universo na publicidade, do cinema, da televisão. Com fundamento na filosofia de Hegel e na psicanálise de Lacan, ele nos fala de um mundo que estaria fascinado, entregue à "paixão pelo real", expressão que Zizek toma de Alain Badiou, como nos lembra Kehl (2004), comentando passagens dessa obra. Penso que o tripé lacaniano dos registros do real, do simbólico e do imaginário, utilizado por Zizek em suas análises da cultura, mostra-se extremamente útil e necessário aqui. Como escreve Kehl (op. cit., p. 12), o "real é o elemento traumático que resiste a ser integrado simbolicamente na vida social e/ou na realidade psíquica". De certa forma, nunca temos acesso ao real, precisamos simbolizá-lo; a palavra, as imagens, a poesia, as narrativas, os sonhos também, todos são meios de buscar o acesso ao real. Como esse pleno acesso é impossível, somos levados à repetição da narrativa (de pesadelos, de histórias horrendas, de violências que vivemos etc). Só que essa paixão pelo real, diz Kehl, está diretamente relacionada aos imaginários que se produzem no social; ela é, nas palavras da psicanalista:

A força propulsora das formações imaginárias que recobrem todos os aspectos da vida que não podemos compreender. É precisamente do imaginário que se alimenta a ideologia. Aliada a todas as formas de gozo, tal paixão gera o impulso cego que nos precipita, em ato, a intervir diretamente sobre o real, nos casos em que todo o campo simbólico parece estar tão perfeitamente recoberto pelo imaginário que nenhuma mudança substancial parece possível. Esse é o paradoxo da paixão pelo real: ela é alimentada pelas formações do imaginário, que no caso contemporâneo são produzidas na escala superindustrial do espetáculo globalizado. (Idem, ibid.).

Não é no campo do imaginário que outras interpretações são possíveis e necessárias, mas sim no campo do simbólico, daquilo que está para ser nomeado, seja como arte, seja mesmo como lei: num caso como no outro, trata-se de arranjos sociais, de possibilidades, de jogos de linguagem específicos. Escrever, produzir poesia e literatura, pintar, desenhar, fazer música, dançar, fazer cinema estariam na ordem da invenção, da criação de falas novas, faz parte daquilo que Bauman (2001) chama de "estratégias de transcendência", ou, como escreve Kehl (2000, p. 238),4 seria um modo de abrir uma brecha na "pedra dura do real, adiando temporariamente nosso confronto inevitável com a morte". Os produtos da indústria cultural, massivamente consumidos, massivamente elaborados, pertenceriam a essa ordem também? Talvez sim. Mas pertencem à ordem simbólica de um modo muito particular, na medida em que investem poderosamente na produção de uma infinidade de sentidos, procurando recobrir todos os "buracos", todas as faltas – as quais exatamente são propulsoras de buscas de sentido e de produções simbólicas. Na medida em que tudo está recoberto de imaginário, em que o imaginário social efetivamente "excede", abre-se o caminho para ações extremamente violentas, para atos de tentativa de acesso puro ao real.

Matar e morrer, no caso de tantos jovens neste país, são atos que parecem estar vinculados a isso, e ao que Jurandir Freire Costa (1994) afirma sobre ausência de idealidade de si, de reconhecimento de si no mundo social, no seu tempo (do tipo "eu sou alguém aqui"), e que por isso não permite a esses sujeitos reconhecerem no outro (a quem assaltam ou ferem) alguém como eles mesmos, da mesma forma que o policial não o reconhece como gente. Ora, a meu ver isso está relacionado com imaginários produzidos socialmente e que circulam todos os dias nos meios de comunicação: ali também aprendemos quem existe e quem não existe, quem é reconhecido e quem não tem nome, quem é o diferente exótico, quem é a personalidade a ser incensada, quem tem e quem não tem, quem pode ter ou quem jamais poderá ter.5 Aliás, o tema da morte e da violência, na voz dos estudantes pesquisados, muitas vezes vem associado a temores em relação a catástrofes possíveis, especialmente as ambientais – outro assunto do qual nenhum dos meios de comunicação se abstém de falar, cotidianamente.

Sem perder de vista o mergulho em conceitos específicos – como o de imagem, por exemplo –, como veremos adiante, interessa-me, a propósito dos dados aqui discutidos, mostrar a importância de estudar mídias e tecnologias em relação à educação, em articulação com questões de ordem política, como, por exemplo, as levantadas por Arendt (2000). Segundo escreve Ortega (2000, p. 24), a filósofa entende que pensar em termos políticos "representa uma tentativa de pensar o acontecimento, de afrontar a contingência, de romper e inaugurar, de recusar as imagens e metáforas tradicionais oferecidas para imaginar o político e uma vontade de agir, de transgredir e superar os limites". As contingências do mundo do espetáculo, dos novos fundamentalismos, do narcisismo associado à cotidiana exclusão de muitos "outros" efetivamente existem, mas não conduzem necessariamente a uma paralisação. A escuta das memórias jovens, de que falo aqui, inscreveu-se, portanto, no desejo de transgredir e imaginar novos modos de experiência pública.

Memória, tempo e criação

Além desses referenciais sobre alteridade e produção simbólica na cultura, comentados acima, recorro – como Eclea Bosi (1987) o fez em seu Memória e sociedade: lembranças de velhos – ao filósofo Henri Bergson, para sustentar a escuta que fiz de jovens porto-alegrenses, a respeito de sua breve memória sobre um tipo muito particular de experiência: a relação com imagens publicitárias e midiáticas. Ora, sabemos que a filosofia de Bergson se constrói a partir da intuição como método: não a intuição romântica do senso comum, mas a intuição que busca expressar-se, que busca penetrar até a profundeza do real e extrair dela, por meio de imagens, o que os conceitos são impotentes para revelar em toda a sua plenitude. É o método intuitivo que permitiria descobrir, nas operações psíquicas, as características da duração (já que o tempo sempre é um tempo concreto), da qualidade (o psíquico é irredutível ao quantitativo e ao mecânico) e da liberdade (na medida em que o psiquismo consiste em criação perpétua). Matéria e memória, espacialização e temporalização, para o filósofo, seriam exemplos de como o real se oferece sucessivamente à inteligência e à intuição. Em Matéria e memória, Bergson (1990, p. 197) escreve que

(...) nosso presente não deve se definir como o que é mais intenso: ele é o que age sobre nós e o que nos faz agir, ele é sensorial e é motor; nosso presente é antes de tudo o estado do nosso corpo. Nosso passado, ao contrário, é o que não age mais, mas poderia agir, o que agirá ao inserirse numa sensação presente da qual tomará emprestada a vitalidade.

O importante é esse movimento, do presente ao passado e do passado ao presente; Bergson diz que não se trata, na memória, de uma regressão ao passado, mas de um "progresso do passado ao presente" (p. 196). Trata-se de um estado de "virtualidade" do passado, algo que vai sendo conduzido, por uma série de "planos de consciência diferentes", até materializar-se numa percepção atual, presente, atuante em nosso próprio corpo (idem). Segundo Bergson, portanto, nosso próprio corpo é imagem: ele não "armazena" imagens, ele mesmo é parte constitutiva das imagens, pois elas "estão" nele. E é do presente que emanam os apelos em direção às nossas lembranças. Nesse sentido, segundo o filósofo, viver exclusivamente no presente seria pouco para o homem, seria viver na impulsividade apenas; ao mesmo tempo, viver no passado seria próprio dos sonhadores. O ponto ideal, em relação a nosso trabalho com a memória, seria estarmos atentos às situações presentes, de modo a vê-las em maior profundidade e de forma seletiva, no sentido também de uma ação crescente de organização de nossas lembranças.

Considero que a filosofia de Bergson sobre memória e intuição, também sobre os conceitos de objetividade e subjetividade (objetividade como o dado, o que não se caracteriza como virtualidade; e subjetividade como aquilo que pode atualizar-se, que devém, que pode vir a ser), enfim, sobre a noção de "virtual" – que funda toda uma filosofia da memória e da vida, conforme explicita Deleuze (1999), em Bergsonismo – mostra-se como elemento básico para pensar os dados sobre a memória cultural e midiática de jovens em nosso tempo.

Associamos neste trabalho as formulações de Bergson às do estudioso alemão Andreas Huyssen (1997; 2000), sobre as relações entre memória, sociedade e mídia, problematizando a recordação como uma construção social, evocada por demandas e materiais simbólicos dados pelo presente, com ênfase no papel dos meios de comunicação. Huyssen nos auxilia a pensar os processos históricos e sociais de construção das nossas lembranças, afirmando que a obsessão pela memória, vivida nas últimas décadas em nossa cultura, está diretamente relacionada ao bombardeio de informações a que somos submetidos e, conseqüentemente, ao medo do esquecimento. Tais atitudes caminham exatamente na contramão daquilo que propõe Bergson, como vimos acima. "Nostalgia é a lei que move o mundo", diz um estudante universitário de 18 anos, referindo-se ao boom de festas e eventos relacionados à rememoração dos anos de 1980. Outro jovem de 16 anos, do ensino médio, complementa: "Às vezes tu esquece de tudo, então tu pegas aquela caixinha ali, de recordação, e acaba te lembrando (...). É tão bom...". Ora, hoje temos acesso não só às nossas "caixinhas" de recordação, mas a todo um aparato tecnológico, de vídeos, DVDs, sites especializados, verdadeiros acervos de memórias reais.

Huyssen (1997; 2000), então, nos ajuda a entender o paradoxo dos depoimentos dos jovens – amarrados ao presente, mas idealizando o passado dos pais; angustiados com a falta de tempo, mas deliciados com a instantaneidade e a rapidez da comunicação. Para o estudioso alemão, o real pode fazer-se mítico, assim como o mítico pode imiscuir-se na vida cotidiana, produzindo efeitos importantes na chamada realidade. E é disso exatamente que se trata, quando observamos a riqueza e a complexidade dos depoimentos dos estudantes sobre o tempo, a memória e as novas tecnologias.

Uma palavra sobre olhar e imagem

Em toda a discussão que vimos fazendo até aqui, de certa forma já anunciamos um posicionamento a respeito do conceito de imagem, que não se separa do conceito de memória, como veremos. Assim como Bergson insiste em que corpo e imagem não se separam, outros estudiosos, como Didi-Huberman e Marilena Chauí, chamam a atenção para a necessidade de ultrapassarmos as visões clássicas do ato de ver (que remete necessariamente ao conceito de imagem), ora situando-o nas "coisas", ora na ação soberana do sujeito que, ao olhar, "iluminaria" o objeto. Fabiana de Amorim Marcello (2007) escreve, a respeito da cisão do olhar, valendo-se de Didi-Huberman:

(...) o filósofo discute acerca dessa "inelutável cisão do ver" e nos convida: "devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui" (ibidem, p. 31). Afastamo-nos, portanto, de uma crença que sugeriria que a visão depende de nós. Ao enfatizar que o que está diante de nós também nos olha, o autor, de algum modo, rompe com o subjetivismo do olhar (mais propriamente, daquele que olha), que acreditaria, por exemplo, conseguir tornar as coisas inexistentes pelo simples fato de fechar os olhos. (Marcello, 2007, p. 2)

Em outras palavras: ao nos depararmos com imagens (e aqui nos interessam especialmente aquelas veiculadas pelo cinema, pela TV e todos os meios audiovisuais), sempre haverá uma espécie de perda (no ato de olhar): qualquer imagem se nos apresenta como incompleta, mesmo que haja um esforço por fazê-las plenas de sentido, ou por tentar cobrir todos os seus buracos – como sucede costumeiramente com diferentes materiais publicitários ou com produções do tipo oferecido pelo "cinemão hollywoodiano". Até essas produções, quando submetidas a um olhar investigativo e suscitador de debate – como na experiência que tivemos nos grupos de recepção da pesquisa aqui comentada –, podem aparecer nos seus vazios, nas suas incompletudes. Como lembra Marcello, essa é a posição de Didi-Huberman, quando este afirma que as imagens "nos olham": ao olhar algo, tocamos também um pouco desse vazio das imagens, e nesse momento algo sempre nos foge. "E, por isso, tal cisão é inelutável: queiramos ou não, algo nos escapa no ato mesmo de ver, algo que nada tem de evidente" (Marcello, 2007, p. 2).

O mesmo Didi-Huberman, no livro Imágenes pese a todo, analisando fotos de anônimos sobre o horror de Auschwitz (o crematório V), chama a atenção para a importância de tais registros, "em que pese" a impossibilidade de nessas imagens "dizer-se tudo". Elas se dirigem ao inimaginável, escreve Didi-Huberman (2004, p. 37), e ao mesmo tempo o refutam. Daí a importância de vê-las e de pensar a partir delas. Insistir no inimaginável é deshistoricizar as singularidades dos acontecimentos; insistir no inimaginável também é aderir a um esteticismo sem história (idem, p. 50). Em contraposição, aceitar o "duplo" das imagens e do ato de ver significa pensar na "verdade" a que elas podem remeter, bem como na permanente obscuridade de que elas são feitas. Trata-se de exercer a observação, entregar-se às imagens, saber delas e dá-las a conhecer, organizá-las de um determinado jeito – mesmo que elas sejam para sempre fugazes, incompletas, móveis. É o que nos ensina Didi-Huberman, sustentando a tese de que a imagem está no centro também de uma questão ética. Cabe então a pergunta: Afinal, o que precisamos recordar, que imagens são fundamentais para atuarmos eticamente em nosso tempo? (idem, p. 232). Sabemos que as imagens não ressuscitam mortos, não nos redimem, nem nos consolam. Mas tratar delas seria, mesmo que momentaneamente, levantar o véu que as cobre – deixandoas dizer algo sobre o mundo e sobre nós mesmos –, sabendo ainda assim que nesse mesmo ato ela volta a cobrir-se, indisponível a uma total leitura (idem, p. 247).

"Que todo mundo entre então no jogo das imagens e se ponha a jogá-lo", escreve Foucault, no texto "A pintura fotogênica", no qual analisa o trabalho do artista Fromanger. Foucault (2001, p. 353) reivindica não "a" imagem, mas o acontecimento, aquilo que seria interior à imagem, um acontecimento que é sempre único, aquilo que é, sobretudo, "passagem". Ora, nos inúmeros textos de Foucault sobre artes visuais, ele propõe que o fato de algo se fazer visível, em pinturas ou outras imagens, atestaria justamente sua desvinculação em relação a qualquer realidade. Um filme, uma fotografia ou uma escultura – esses próprios objetos configuram-se como "realidades". Assim, nosso afã em retratar, refletir ou imitar é inócuo, pois estamos sempre diante de invisibilidades profundas e da impossibilidade de fazer com que algo se torne efetivamente presente (idem, p. 209). Isso não quer dizer, de maneira alguma, que esses objetos visuais que criamos ou a que temos acesso, na cultura, não sejam históricos e passíveis de uma análise. O que importa é essa complexidade das imagens, esse jogo permanente entre o visível e o invisível, do qual precisamos dar conta, se desejamos tratar da vida como acontecimento, e pensar as coisas ditas e mostradas para além do grande modelo da representação, do "isto representa aquilo", "isto esconde aquilo".6 O não-isomorfismo entre ver e falar, entre o visto e o falado, entre a palavra e a coisa – essa é a proposta de Didi-Huberman; essa é a proposta de Foucault, que aqui assumimos, quando tratamos das imagens e memórias midiáticas de grupos jovens em nosso tempo.

Imagens do "meu tempo"

Com base nas provocações desses autores, passo a discutir tópicos tratados ao longo de três anos da pesquisa aqui referida. Nos levantamentos feitos sobre alteridade jovem e memória cultural midiática, várias questões foram levantadas, não apenas por meio dos questionários, mas especialmente pelos debates, tanto nas escolas públicas e privadas de ensino médio, como em dois cursos da UFRGS (calouros de Pedagogia e Psicologia). Buscamos basicamente problematizar o seguinte: Como os jovens, de diferentes camadas sociais, se relacionam com os imaginários da grande mídia? Como estabelecem relações desse imaginário com o real cotidiano e como manifestam possibilidades de fuga, de resistência, a partir de experiências genuínas de simbolização? A partir de que gestos eles marcam presença, ou seja, de que modo deixam para os outros a sua palavra, e como aprendem a ver-se como semelhantes na diferença? Ainda: Como se narram para além das formações imaginárias da mídia sobre adolescentes, teenagers, jovens? Finalmente: De que maneira aprendem e expressam relações entre o desejo de marcar uma possível singularidade e a necessidade crucial de "estar-com" o outro, com aqueles que poderíamos chamar de iguais-diferentes?7

Em primeiro lugar, foi possível observar a forte presença, em suas rememorações desde a infância, de objetos, situações e personagens originados dos meios de comunicação, especialmente da música, do cinema e da televisão, das histórias em quadrinhos, além de brinquedos, guloseimas e jogos diversos; nessas rememorações, vale ressaltar, a memória de peças publicitárias é uma constante. Impossível não referir aqui o romance de Umberto Eco, A misteriosa chama da rainha Loana, em que o personagem Yambo perde a memória num acidente e, na recuperação, vê-se às voltas com um sem-número de imagens recentes e antigas, a maioria relacionada à sua experiência com as mídias, a publicidade e os jogos eletrônicos. Nas primeiras páginas do romance, o personagem diz: "Sei o que é um fliperama. Mas não sei quem sou eu, entende?" (Eco, 2005, p. 22); páginas depois, o homem em recuperação se vê diante de um gibi de Walt Disney e reconhece cada trecho da história em quadrinhos, vai direto aos quadros certos e recita de memória toda a narrativa. A mulher indaga: "Como você pode saber tudo isso?". Ele responde com uma pergunta: "Todo mundo sabe, não?" (idem, ibid., p. 75).

Trata-se no romance de Eco de uma situação limite, de perda da memória, mas ela nos remete ao grande tema das perdas e ganhos, neste tempo de excesso de informação (mais dados, mais "conhecimento", mais acesso a quase tudo; por outro lado, sensação de vazio, dificuldade de escolhas); também nos leva a pensar sobre as tênues fronteiras entre aquilo que é da ordem de nossos repertórios individuais e aquilo que é da ordem do coletivo. No caso do personagem Yambo, discos, quadrinhos e jornais emergem, recompondo o período fascista na Itália e todos os horrores da Segunda Guerra Mundial.

Nossos estudantes, por seu turno, ao debaterem conosco, estabelecem inúmeras associações de suas memórias com sentimentos e vivências, sociais ou individuais; semelhante ao personagem de Eco. Seus depoimentos marcam o tempo ("antes", "depois", infância, adolescência, primeira relação amorosa, primeiro emprego, casamento, entrada na vida adulta, primeiro filho), quase sempre a partir de objetos de consumo, os quais aparecem articulados a personagens de diferentes produtos das mídias.

Talvez o dado mais surpreendente tenha sido a constatação de certo "saudosismo precoce", presente já há algum tempo em materiais da internet que circulam entre pessoas e grupos de faixas etárias diversas. Enviam-se questionários os mais diversos, pela rede de computadores, a partir dos quais se busca testar o pertencimento das pessoas a uma determinada geração. Inevitavelmente, as referências são relativas a objetos de consumo (par de tênis da marca tal), a ídolos da música pop, ao uso de certo vocabulário, a um filme ou a um programa de TV, a heróis de gibis, a uma determinada composição musical. Estudantes de 15 a 16 anos, assim, tranqüilamente repetem a expressão "no meu tempo...", como se fossem já pessoas maduras e saudosas de uma juventude vivida "anos atrás". Vive-se aí um prazer compartilhado, de sentir-se pertencendo a uma determinada "tribo" (dos anos 90, dos anos 80, tão "distantes"). Simultaneamente, eles expressam angústia com o "pouco tempo" de que dispõem; da mesma forma, em muitos depoimentos a idéia de "fazer alguma coisa" vem necessariamente associada a "fazer alguma coisa produtiva". Nesse sentido, ver TV, comunicar-se pela internet, jogar no computador, tudo isso é percebido como "não fazer nada".

A pesquisadora italiana Carmen Leccardi, especialista em estudos sobre juventude e tempo, remete-se a Norbert Elias para lembrar que a consciência temporal e os modos de concebermos e vivenciarmos o tempo não é nem um dado biológico, nem um dado metafísico, mas plenamente social, cultural (Leccardi, 2005). Os jovens de nossa investigação acabam por oferecer um panorama de sentimentos por vezes contraditórios, em relação ao "uso do tempo": as tecnologias digitais, o uso de aparelhos como MP3, telefones celulares e, especialmente, a comunicação via sites de relacionamento fazem-nos ocupar excessivamente o tempo, na mesma medida em que essas práticas são desejadas (especialmente pelo prazer da instantaneidade) e relacionadas a um "nada fazer". "A gente se acostuma a fazer tudo rápido (...), não tem o stress de ficar lá procurando [informações] em jornal e revista", diz uma jovem de 16 anos, estudante de escola pública estadual. A mesma aluna conta que fica de duas a seis horas por dia navegando na internet. E conclui: "aí eu não faço nada, praticamente".

Eles referem que vêem televisão de duas a quatro horas por dia; essa prática associa-se ao "vício" (como eles dizem) de entrar nas comunidades como o Orkut ou o MSN, muitas vezes para comunicar-se com pessoas muito próximas, com quem eles têm contato presencial, diariamente. Tais práticas aparecem associadas a uma curiosa percepção do tempo: um tempo que parece encurtar a cada dia, de tal modo que jovens de 15 ou 18 anos referem-se a si mesmos como pessoas que literalmente "não têm tempo", sentem-se "divididos" e fragmentados. A maioria deles revela certa angústia com o tempo, que para todos eles passa rápido demais – angústia que não se separa de outro problema: a necessidade quase incontrolável de estar up to date com a mais nova tecnologia (do celular, do PC, do programa de download de músicas e materiais audiovisuais etc.), como se todas as coisas no mundo envelhecessem a cada segundo.

Para completar esse quadro, contraditoriamente ou não, a maioria dos estudantes que pesquisamos, mesmo afirmando "viver o presente" (ou consagrando-se ao instante, como escreve Canclini [2005]), manifesta uma percepção mítica do passado, particularmente da juventude dos pais. Segundo eles, seus pais, sim, "sabiam" participar politicamente, tinham ídolos interessantes, como filósofos e artistas, criativos e engajados em lutas sociais. Alguns revelam até certo apego às imagens e aos modos de pensar, de épocas não vividas por eles. Há para outros o prazer de referir-se a produtos do cinema, da literatura ou da TV a que tiveram acesso na relação com os pais, materiais que seriam mais "eruditos" (apreciar um clássico do cinema francês ou ouvir Chico Buarque é comentado com certo orgulho). Porém, na maioria dos casos, o que se observa é uma reduzida experiência com materiais audiovisuais que estejam fora do circuito massivo da produção hollywoodiana, veiculada nos canais de TV, a que eles têm acesso também nos cinemas e nas videolocadoras. Em todos os grupos e na maioria das respostas aos questionários, por exemplo, o filme norte-americano American pie8 aparece como a lembrança mais recorrente, tanto para estudantes de 15 a 16 anos como para universitários de 22 a 24 anos de idade.

Veja-se, a propósito, este depoimento de uma estudante de Psicologia, de 19 anos: "As pessoas tão revoltadas com o mundo, acho que as pessoas vêem que é uma sociedade bastante doente, tem bastante problema, aí tentam voltar ao passado... Aí voltam a esses anos 70, 80, de uma forma romantizada, achando que tudo era bom naquela época, aí pensam, por exemplo, na ditadura militar, que tinha gente que lutava contra. Aí é o romantismo daquelas pessoas... Ah, aquelas pessoas que fizeram esse país. Ah, eu queria ser igual a eles...".

Mais perguntas

Tratei aqui da memória cultural jovem, discutindo alguns dos resultados de investigação feita com estudantes de ensino médio e universitário, na cidade de Porto Alegre. Foi possível mostrar na pesquisa o lugar dos meios de comunicação (e das tecnologias digitais, de maneira mais ampla) como lugar por excelência de construção e veiculação de uma série de "verdades" – no caso que nos interessa, verdades sobre infância e juventude, com repercussões indiscutíveis para as práticas educacionais e para a formação dos mais jovens. Essa constatação referenda reflexões de teóricos como Zigmunt Bauman (2001), Slavoj Zizek (2003b), Jurandir Freire Costa (2004), Roger Silverstone (2002), entre tantos outros, que apontam para o fato de que os meios de comunicação e agora a internet têm se apresentado, cada vez mais fortemente, como o grande espaço de expressão do privado e do público – duas esferas que se entrecruzam de modo espetacular, como refere a pesquisadora Beatriz Sarlo (1997a; 1997b), alterando significativamente nossas percepções de política, ética e estética. Neste texto, tratei especificamente de questões relativas à memória cultural dos jovens pesquisados, bem como às suas mais significativas inquietações sobre presente, passado e futuro.

A reafirmação do senso comum, por alguns dos estudantes ouvidos, de que os jovens seriam hoje apáticos e desinteressados pelas causas sociais e políticas poderia ser articulada aos depoimentos, em que se pode comprovar a íntima relação entre o que Lucia Rabello de Castro (Castro & Correa, 2005) chama de "trabalho psíquico de construção individualizada de si" e a "reconfiguração do coletivo".9 Há crítica ao mundo em que vivem, na fala dos entrevistados; e o apego ao passado mítico dos pais pode ser entendido também como desejo de "fazer alguma coisa", de não se ver simplesmente como um "sintoma da cultura", conforme escreve Maria Rita Kehl (2004), a respeito da juventude contemporânea, uma juventude enaltecida por seu corpo e vitalidade, mas nem por isso alijada das diferentes formas de exclusão – desemprego, ociosidade, mortes violentas, e assim por diante (Castro & Correa, 2005).

Assim, a sensação de vazio, relatada em muitos dos depoimentos, talvez não esteja apenas relacionada ao uso do tempo, à angústia quanto à rapidez e à instantaneidade de comunicação, permitidas pelas novas tecnologias. As dificuldades de vivência com o mundo adulto também seriam responsáveis por essa sensação de "nada" – um nada que, aliás, é rapidamente preenchido pela competente ação das grandes mídias, do mercado e da publicidade (Kehl, 2004), atentas à desejada e idealizada figura do corpo jovem. Por outro lado, a "musealização da cultura", como refere o teórico Huyssen (2000), também participaria, a meu ver, desse preenchimento de vazios, evidenciando uma necessidade de guardar, de reter o tempo e as coisas, por medo do esquecimento.

Nas pesquisas anteriores e nesta que aqui comentamos, as análises mostram a forte presença da imagem jovem, na maioria dos materiais midiáticos que circulam em nossa sociedade, de revistas a programas de rádio e TV, além do cinema e da internet. Mas essa presença não parece ser uma resposta suficiente às aspirações de jovens de 15 a 24 anos, quanto ao acesso a produtos e práticas culturais. Há a expressão de um desejo não atendido, observado a partir de diferentes pesquisas: o desejo de participar, de estar presente, de envolver-se, por exemplo, com arte, cinema, vídeo, teatro, com formas de expressão de si mesmo, com materiais que arrebatem esses jovens para algum outro tipo de inscrição no social.

Em outras palavras: ao empreender a análise dos dados coletados, acabamos por formular novas perguntas, que deixamos ao leitor na conclusão deste artigo. Haveria uma relação entre o repertório audiovisual dos jovens de nosso tempo e a sensação de vazio e insatisfação que manifestam? Um repertório feito de comédias românticas, filmes "de ação", materiais marcados pela linguagem do chamado "cinemão hollywoodiano", poderia estar associado a um sentimento de não pertencimento, de falta, de vazio quanto ao acesso às próprias salas de projeção, à apresentação de espetáculos de teatro e de dança, à aquisição de livros, e assim por diante? Estaria certa a psicanalista Maria Rita Kehl, ao falar de um "excesso de imaginário", segundo o qual estaríamos sendo imaginados, nomeados e narrados a todo o momento, sem efetivamente encontrarmos espaços para nos inscrever no social?

Notas

1. Refiro-me aqui à pesquisa "Alteridade e cultura midiática: memórias de juventude", realizada de 2005 a 2008. Agradeço ao CNPq pelas bolsas de Produtividade em Pesquisa e de Iniciação Científica, nesse período. Agradeço também, de modo especial, aos bolsistas Gustavo Andrade Bandeira, Fabiana Silva Wetsphalen, Lisandra Eick de Lima, Letícia Germano, Ananda Hilgert e Fernanda Heberle.

2. Realizamos na pesquisa 21 encontros com um total de 150 alunos, com idade entre 15 e 24 anos, reunidos em seis grupos de recepção: alunos de ensino médio de duas escolas públicas, duas escolas particulares e dois grupos do ensino superior (dos cursos de Psicologia e de Pedagogia, da UFRGS), nos anos de 2006 e 2007. Em média, houve três encontros com cada grupo, nos quais debatemos temas relativos à memória cultural dos jovens, suas preferências em relação a produtos dos meios de comunicação e suas ponderações e questionamentos sobre o tempo e as novas tecnologias. As sessões com os grupos foram gravadas em vídeo. Além disso, esses mesmos grupos responderam a um questionário sobre consumo cultural, concepções de juventude e relação com o tempo, aplicado a outros 220 estudantes da Grande Porto Alegre.

3. Utilizamos aqui o conceito de juventude presente em vários trabalhos, como os publicados pela Fundação Perseu Abramo, sobre o Projeto Juventude, especialmente no livro Juventude e sociedade – trabalho, educação, cultura e participação (Abramo & Branco, 2005).

4. A psicanalista Maria Rita Kehl escreve essa frase a partir de uma citação de Gean Genet, e a propósito da análise que faz das músicas e letras do grupo rapper MC Racionais, no texto "A fratria órfã" (Kehl, 2000).

5. A propósito desse tema da construção do outro nas mídias, ver Fischer (2008).

6. Ver, a propósito da análise dos enunciados, em Foucault, a discussão da impossibilidade de chegar à "verdade" dos discursos, em Fischer (2001).

7. Ver, a propósito, a passagem da belíssima análise de Maria Rita Kehl, sobre as composições do grupo MC Racionais, onde a autora relata um evento em que os rappers desse grupo incluíram mulheres (quase sempre excluídas): "A inclusão desse outro tão diferente, mas com quem se pode compartilhar referências simbólicas, contribui para impedir que as formações fraternas se tornem agrupamentos identitários com sua marca inevitável de intolerância e fanatismo, expressões conhecidas do horror à alteridade, isto é, à castração" (Kehl, 2000, p. 243, destaque da autora).

8. Série do cinema hollywoodiano, iniciada em 1998, que chegou ao número 5 em 2006, sempre com uma bilheteria extraordinária, em vários países do mundo. A temática é a vida de jovens de classe média norte-americana. Ver, a propósito, a análise desse tipo de filmes em Shary (2005).

9. A pesquisadora se refere aos dados de pesquisas feitas no Brasil e em outros países, como Canadá e Portugal, a respeito de temas como a participação social da juventude, entre outros, publicados no livro Juventude contemporânea: perspectivas nacionais e internacionais (Castro & Correa, 2005).

Revista Educação e Sociedade

Processo de ensino-aprendizagem na sociedade da informação


Processo de ensino-aprendizagem na sociedade da informação

José Marcos de Oliveira Cruz
Mestre em Educação e professor da Universidade Federal do Sergipe (UFSE). E-mail: jo_marcruz@yahoo.com.br


RESUMO

A sociedade da informação tem colocado novos desafios ao processo de ensino-aprendizagem. A forma de se proceder em relação à construção do conhecimento mudou. O contato com as fontes de informações tornou-se mais dinâmico, obedecendo a uma lógica nunca vista anteriormente. O próprio saber tornou-se maleável e instável, necessitando de atualização constante. É com base no contexto dessa sociedade que se pretende refletir sobre processo de ensino-aprendizagem, introduzindo na discussão a perspectiva da bricolagem e da rizomática, que considera a construção do conhecimento diversificada, descentralizada e horizontalizada. Assim, analisar-se-á a relação entre informação e conhecimento, bem como as novas formas de se conceber e produzir o saber. Tal reflexão tem como finalidade pensar sobre os novos paradigmas produzidos pela sociedade da informação, bem como sua repercussão no processo de ensino-aprendizagem.


Sociedade da informação: entre o excesso de informação e a produção de conhecimento

A leitura que desejamos realizar para analisar a educação e o processo de ensino-aprendizagem na sociedade da informação terá como fundamento os princípios da bricolagem de Lévi-Strauss (1976) e da rizomática de Deleuze e Guattari (2004). A partir deste "roubo" conceitual, pretendemos refletir as novas estratégias engendradas e utilizadas pelos alunos acadêmicos perante o uso que fazem da internet.

A sociedade da informação é uma realidade decorrente dos novos mercados, meios de comunicação e consumidores desta era que conseguiu transformar o mundo em uma grande sociedade globalizada e globalizante, na qual os bens primordiais são informação e conhecimento. Conforme demonstrou Borges (2000), a sociedade da informação1 pode ser caracterizada pelo seu estilo sistêmico, tendo como destaque ser: 1) complexa, graças a seu número de interações, articulação e interdependência entre os elementos de um sistema presente em uma situação; 2) hierárquica, já que parte de estruturas mais simples para estruturas mais complexas; e 3) configurada, em virtude de suas dimensões macro e microscópicas.

A relação entre qualidade e quantidade de informação é, sem dúvida, um dos "calcanhares-de-aquiles" desta sociedade. Por isso o grande desafio está em transformar o imenso volume e o intenso fluxo de informações em conhecimento. A informação é um fator intrínseco a qualquer atividade, ela deve ser conhecida, processada, compreendida e utilizada pela consolidação de serviços, produtos e sistemas de informações.

A respeito do excesso de informação disponível na internet, Viera (1998), Dowbor (2000) e Demo (2000b) alertam-nos para o fato de as pessoas estarem absorvendo informações que, muitas vezes, têm credibilidade duvidosa. É importante destacar também a necessidade de se saber processar informação, mesmo porque ela, por si, não implica conhecimento, importa mais a capacidade reflexiva e crítica que o indivíduo é capaz de desenvolver ante o conteúdo que ela traz. Informação, sem uma mente que a analise, que a reflita, que a compreenda e que a use adequadamente, é inútil para o crescimento intelectivo do sujeito. A capacidade reflexiva do aluno é elemento essencial para o discernimento do conhecimento, já que é ela que o torna capaz de interpretar, comparar, ponderar e integrar as informações.

Para Jorge (1998) e Falzetta (2000), o excesso de informação ameaça soterrar cada indivíduo, pois, se não há tempo nem disposição para saborear idéias ou refletir sobre suas implicações, fica-se apenas na superficialidade. A avalanche informacional dificulta, por exemplo, a aprendizagem do aluno, pois o acesso a muitos conteúdos associado à falta de tempo para processá-los ou para digeri-los pode deixar o discente na superficialidade do saber.

Observação semelhante é feita por Monteiro (2000), mostrando que a internet é como uma grande vitrine de informações, mas não de conhecimento. A rede é apenas um transporte físico de documentos, ou uma ferramenta que trouxe mudanças cognitivas para o meio de comunicação, mediante suas formas textuais. Nela se tem contato com uma imensidão de elementos informativos, de tal forma que mal se assimila um conteúdo já se passa para outro. Ter acesso ao oceano de informação é algo fascinante. Com apenas alguns cliques podemos acessar informação de qualquer parte do mundo, sem precisar sair do lugar. Com isso, uma das principais dificuldades que a sociedade da informação nos coloca é a de saber selecionar entre milhões de informações disponíveis.

Carvalho e Kaniski (2000) evidenciaram que a informação passou a ser considerada recurso estratégico de agregação de valor e elemento de competição política e econômica entre os países, estando atrelada à utilização da telemática. Ela pode ser um instrumento modificador ou alienador da consciência do homem, já que sua assimilação produz conhecimento que modifica o estoque mental de saber o indivíduo, trazendo comportamentos que têm repercussão em seu desenvolvimento e no da sociedade em que vive.

A crítica feita por esses autores à sociedade da informação é a de que esta informa bem menos do que se imagina. A forma de procedimento ante a informação digital cria uma cultura descartável, pois, como se observa, as informações disponíveis nos bancos de dados, por exemplo, não existem para ser lidas. São informações essencialmente perecíveis e transitórias, que não contêm sínteses ou idéias e que provavelmente não serão relidas ou reinterpretadas no futuro. Neste sentido, a advertência de Gasque e Tescarolo (2004) é para o fato de esta sociedade criar novas formas de aprendizagem e de gestão de conhecimento. Para isso certas capacidades e atitudes gerais precisarão ser mobilizadas, de modo que novas formas de acesso e de manejo da informação sejam desenvolvidas.

Adentrar o oceano de informação pode ser um mergulho no vazio, pois o excesso de movimento gera uma espécie de paralisia. Nessa realidade, a cognição não realiza mergulho no plano da criação de sentidos, já que fica presa a uma exploração contínua e ininterrupta de todas as informações que podem ser acessadas e isso obsta à própria força de problematização e estranhamento que os textos poderiam provocar. O problema é que o fascínio pelo excesso de informações satura o intervalo necessário à virtualização e à criação de outras atualizações.

Conforme nos mostrou Lévy (1999), devemos nos defender do novo dilúvio que enfrentamos com o excesso de informação disponível no ciberespaço. Esta proteção, segundo Kastrup, consiste na utilização da rede como dispositivo politemporal, pois a sua novidade é aproximar tempos muito distintos,

(...) pela internet, temos acesso em tempo zero a bancos de dados, mas também a textos de diferentes tempos, entre os quais alguns existem para serem consultados e outros para serem lidos, interpretados e criticados. A construção de territórios locais e heterogêneos se dá a partir do momento em que mergulharmos no movimento politemporal da rede. (Kastrup, 2000, p. 53)
O mergulho nos textos encontrados, nos extratos disponíveis na rede, exige um intervalo temporal, uma velocidade cognitiva diferente, talvez mais lenta do ponto de vista do movimento sensório-motor.

Relação professores e alunos na sociedade da informação

A forma tradicional de conhecimento presente nas escolas centrava-se na figura do professor, sendo este tratado como o "dono do saber". Hoje, percebemos mudanças nesse cenário. Na era da informação, o espaço de saber do docente foi dando lugar ao de mediador e problematizador do aprender: ele passou a ser visto como aquele que desafia os alunos, mostrando-lhes, entre as várias possibilidades de aprendizagem, caminhos que poderão ser percorridos.

Maraschin (2000) evidencia que o papel da escola e do professor não é divulgar informações, mas sim instigar o conhecimento. A escola da informação e da memorização deve dar lugar à escola do conhecimento e da descoberta. A descoberta e a construção de modos criativos de conhecimento, usando as múltiplas e variadas modalidades de informação já disponíveis, devem ser o foco da educação escolar.

Viera (1998), citando Vigotski, mostra que o aluno e o professor terão à sua disposição recursos tecnológicos atuais e de grande interesse. Esses recursos podem funcionar como mediadores culturais, isto é, instrumentos que permeiam significantemente nossa relação com o mundo. Um dos principais mediadores do processo de ensino-aprendizagem perante o uso da internet continua sendo o professor. Moran enfatiza seu papel dizendo:

(...) precisamos de mediadores, de pessoas que saibam escolher o que é mais importante para cada um de nós em todas as áreas da nossa vida, que garimpem o essencial, que nos orientem sobre as suas conseqüências, que traduzam os dados técnicos em linguagem acessível e contextualizada. (Moran, 1997, p. 151)
Portanto, para Dewey (1978) e Cysneiros (1996), o professor é o elemento essencial neste processo de mediação do aprendizado do aluno, sendo sua função ensinar ao aluno novas formas de leitura, possibilitando-lhe ler nas entrelinhas sem se impressionar com a aparência e a forma, permitindo-lhe também confirmar ou questionar as fontes e a veracidade ou a qualidade de citações e, acima de tudo, da informação. Dessa forma, tanto o papel do professor como o do aluno mudarão. Aquele passará a ser o intermediador, ajudando o aluno a analisar as fontes de informação que possuem as melhores evidências sobre um determinado fato ou assunto, centrando sua atenção não mais na função de transmissão de informações, mas sim na de mediação do saber. Já o aluno deverá deixar a posição de passividade, na qual apenas recebia informações de livros e do professor, para se tornar um ser mais partícipe do seu processo educativo.

Então, professor e aluno terão de aprender a lidar com as novas tecnologias e também com os modelos tradicionais para adquirir as informações necessárias para sua formação profissional e pessoal. Como se percebe, o desafio não é simples, requer que professores e alunos se preparem para trabalhar com um universo tecnológico no qual eles ainda estão se iniciando.

Vivemos uma época em que o ensino presencial e a difusão pela internet acabarão se complementando. No processo educativo, as pessoas devem desaprender certos métodos, embora mantenham intacto o seu cabedal de conhecimentos. Dessa forma, o desafio da educação será

(...) arquitetar novas mentalidades. Para tanto devemos buscar, dentro e fora da escola, a complementaridade em objetivos que muitos julgam antagônicos: indução do espírito empreendedor e trabalho em equipe (...) a educação é força capaz de mediar os conflitos existentes e atenuar seus efeitos. (Marcovitch, 2002, p. 7)
Moran (1997, 2001 e 2003) e Assmann (2000) destacaram o processo de metamorfose da aprendizagem na sociedade da informação. Para eles, novas estratégias de ensino-aprendizagem foram e estão sendo engendradas com o uso das novas tecnologias da informação e da comunicação no campo da educação. Com a internet, alunos e professores introduzem formas diferentes de lidar com a informação e com o conhecimento.

Segundo Moran, a internet começa a ser um meio privilegiado de comunicação entre professores e alunos de modo que exige postura dinâmica de ambas as partes. Ao professor cabe o papel de orientar, estimular e acompanhar as atividades e pesquisas realizadas pelos alunos. Aos discentes, cabe a função ativa no manuseio de informação digital para a construção de seu conhecimento pessoal. O objetivo é educar os estudantes para a autonomia, permitindo-lhes que criem seu próprio saber, de acordo com seu ritmo.

Assim, ensinar ou aprender, na era da informação, exige mudanças nos paradigmas2 de ensino. O importante é utilizar as tecnologias de forma que nos ajudem a aprender, levando-nos a transformar informação em conhecimento e, mais ainda, em sabedoria, pois a interligação permite aperfeiçoar o pensamento reflexivo como instrumento de emancipação humana.

De forma semelhante, Assmann relata que, no tocante à aprendizagem e ao conhecimento, chegamos a uma transformação sem precedentes das ecologias cognitivas. A sociedade da informação, também considerada sociedade da aprendizagem,3 tem, nas novas tecnologias da informação e da comunicação, seus elementos essenciais para organizar o mundo. As novas tecnologias assumem um papel ativo e co-estruturante nas formas de aprender e de conhecer. Desse modo, "o processo de conhecimento se transforma intrinsecamente em uma versatilidade de iniciativas, escolhas, opções seletivas e constatações de caminhos equivocados ou propícios" (Assmann, 2000, p. 11).

Nessa perspectiva, o importante é que o aluno "aprenda a aprender" e a ter consciência de que tudo muda e que nada é seguro, pois o conhecimento/saber é uma aventura incerta que comporta em si mesma, permanentemente, o risco de ilusão e de erro. Neste sentido, "o conhecimento é a navegação em um oceano de incertezas, entre arquipélagos de certezas" (Morin, 2002, p. 86). O que se destaca nesta definição é a importância de os professores se prepararem para ajudar seus alunos a lidar não com as verdades e certezas absolutas, mas sim com as incertezas do saber e da vida. Este papel de mediador e instigador do conhecimento, que o educador passa a assumir na era da informação, não reduz nem minimiza sua responsabilidade com a formação do sujeito, muito pelo contrário, deve contribuir para uma formação humana e ético-social.

Logo, a escola não deve ser oficina isolada onde se prepara o indivíduo, mas o lugar onde, numa situação real da vida, indivíduo e sociedade constituam uma unidade orgânica. Fazer o resgate de princípios humanísticos é também tarefa que cabe à escola realizar na figura de seus docentes. Até porque isso nenhuma máquina ou recursos tecnopedagógicos, por si, podem proporcionar, a não ser o professor de "carne e osso" (Cysneiros, 1996).

As aventuras do conhecimento na sociedade da informação

Conhecida por ter um repositório inesgotável, a web dispõe de milhões de megabytes de informação, inclusive aquelas informações que se prestam apenas à reprodução dos padrões de embotamento político e de passividade intelectual. Os mecanismos de busca de informação na internet evoluíram de forma surpreendente. Sistema de busca como o Google tem elevado bastante o estado da arte das pesquisas bibliográficas.

Ao analisar as formas de como as informações da internet são usadas, Silva et al. (2003) evidenciam que o leitor da web não lê da mesma forma que o leitor de livros e revistas de papel. Este é um tipo de leitor fugidio, que faz leitura de forma superficial e rápida das páginas que acessa. A sua preferência é por texto com parágrafos curtos e objetivos. O leitor-navegador tem o mundo ao alcance do clique do mouse. Basta o texto tornar-se monótono para que o leitor se dirija a outras paragens, provavelmente para nunca mais voltar.

Com isso, pode-se dizer que surge uma nova forma de aprender, que nasce a partir do manejo dos vários instrumentos mais diretamente circunscritos à dinâmica ou à pulsação do mundo virtual. Contudo, "essa nova forma de aprender envolve tipos específicos de percepção e de cognição do sujeito, demandando, por isso mesmo, a superação de formas tradicionais de aprendizagem pela recuperação, reinserção e dinamização das dimensões interativa e lúdica do processo" (Silva et al., 2003, p. 50).

Com a internet os textos passaram a ser documentos dinâmicos, abertos, onipresentes que remetem para um "corpus" praticamente infinito. Fala-se em página como uma unidade de fluxos. Ao se referir ao texto eletrônico - hipertexto -, Monteiro caracteriza-o como sendo destituído de materialidade, porém instituído de uma forma que poderá alterar o conceito de acervo e, sobretudo, da relação com a leitura. O hipertexto é entendido como uma forma eminentemente eletrônica, tendo como característica principal a apresentação da informação de maneira não-linear, como se a organização seqüencial e linear do papel fosse desmantelada. Esse tipo de texto se diferencia do texto impresso, porque "no hipertexto a informação encontra-se, de fato, armazenada em uma rede de nós conectados por ligações, podendo ser nós que contêm gráficos, textos, sons e imagens, os chamados documentos hipermídia" (Monteiro, 2000, p. 29). Isso não é possível encontrar no texto impresso, considerado uma longa seqüência linear de palavras que é dividida em linhas e páginas. Para Fonseca (2000, p. 61), o hipertexto é "base da navegação como a nova forma de leitura e escrita, é regido pelo princípio da não-linearidade, podendo ser comparável a um grande mapa nunca passível de ser totalmente desdobrado, podendo ser explorado somente através de pedaços minúsculos".

Com a era da hipertextualidade, Lévy (1996) e Carvalho e Kaniski (2000) vão dizer que o saber se tornou móvel, sendo entendido como um fluxo de acontecimentos, isto é, uma sucessão de eventos que se realiza fora do estoque, na mente de algum ser pensante e em determinado espaço social. É um caminho subjetivo e diferenciado para cada indivíduo.

O ato de conhecer é visto como "uma cerimônia com ritos próprios, uma passagem simbólica, mediada por uma condição de solidão fundamental tanto para o emissor quanto para o receptor da informação, uma cerimônia que acontece em mundos diferentes" (Barreto, 2002 p. 71). Assim, conhecer é um ato de interpretação individual, uma apropriação do objeto pelas estruturas mentais de cada sujeito. É uma reconstrução das estruturas mentais do indivíduo, realizada por meio de suas competências cognitivas, ou seja, é uma modificação em seu estoque mental de saber acumulado, resultante da interação com a informação.

Moysés, Geraldi e Collares (2002) falam da aventura do conhecer como sendo um ato que promove um reencontro do conhecimento com o sujeito, o qual, aprendendo a olhar, percebe que o desafio do conhecimento é assumir que tudo que sabe e conhece pode ser desmontado, remontado, substituído, estabilizado e até mesmo loucamente fixado por uns tempos. Pellanda (2000), citando Maturana, Varela e Lévy, mostrará que o conhecimento não pode ser transmitido como quem copia um disquete. É preciso que cada um refaça a experiência e que re-crie o mundo a partir de seus próprios olhares.

Depreende-se de tudo isso que indivíduos e grupos não se satisfazem mais com saberes estáveis, buscam um saber-fluxo caótico, de curso dificilmente previsível, no qual se deve agora aprender a navegar. A relação intensa com a aprendizagem, a transmissão e a produção de conhecimento não é mais reservada a uma elite, mas a toda a massa de pessoas em suas vidas cotidianas e em seus trabalhos.

Aprendizagem na sociedade da informação: uma leitura do processo de ensino-aprendizagem na perspectiva da bricolagem4 e da rizomática

"Bricolagem" é um termo oriundo do francês, proposto pela primeira vez por Lévi-Strauss (1976)5 para se referir a trabalho manual feito de improviso, aproveitando toda a espécie de materiais e objetos disponíveis. De forma geral, bricolagem relaciona-se com os trabalhos manuais ou de artesanato doméstico, todavia, de modo específico, trata-se do aproveitamento de coisas usadas ou partidas cuja utilização se modifica e se adapta a outras funções.

Segundo Lévi-Strauss, o bricoleur6 trabalha com as mãos, usando meios indiretos se comparados com os do artista. O bricoleur está apto para executar grande número de tarefas diferentes. Ele subordina cada uma delas à obtenção de matérias-primas e de ferramentas, concedidas e procuradas na medida do seu projeto. Para Lévi-Strauss, o conjunto dos meios do bricoleur não se pode definir por um projeto; define-se somente por sua instrumentalidade, para dizer de maneira diferente e para empregar a própria linguagem do bricoleur: os elementos são recolhidos ou conservados, em virtude do princípio de que isto sempre pode servir. Segundo ele, cada elemento representa um conjunto de relações, ao mesmo tempo concretas e virtuais. O bricoleur dirige-se a uma coleção de resíduos de obras humanas, isto é, a um subconjunto da cultura: "O bricoleur, posto em presença de dada tarefa, ele não pode fazer seja lá o que for; deverá também começar por inventariar um conjunto predeterminado de conhecimentos teóricos e práticos, de meios técnicos, que restringem as soluções possíveis" (Lévi-Strauss, 1976, p. 40).

Wenth (2003), ao se referir à bricolagem, evidencia que esta tem o sentido de um trabalhar com o inesperado, com aquilo que se tem à mão, um adaptar-se às circunstâncias; refere-se ao trabalho de amador. Trabalho em que a técnica é improvisada, adaptada ao material e às circunstâncias existentes. As criações da bricolagem reduzem-se sempre a um arranjo novo de elementos, já que novos universos nascem de seus fragmentos. Por sua vez, Taddei (2000), fazendo uma leitura de O pensamento selvagem de Lévi-Strauss, dirá que bricolagem é a atividade por intermédio da qual o indivíduo, pela criação do instrumental disponível, por tentativa e linguagem por meio da utilização de referenciais textuais e culturais aparentemente desconexos, encontra novas soluções. Conforme também evidenciou Walty (2004), Lévi-Strauss usa a imagem da bricolagem para distinguir o pensamento mítico do pensamento científico. O primeiro apóia-se no signo, ao passo que o segundo se vale dos conceitos.

Contemporaneamente, a bricolagem pode ser usada para traduzir uma prática dita pós-modernista de transformação ou estilização de materiais preexistentes em novos trabalhos (não necessariamente originais). Na sociedade da informação, o termo passou a ser sinônimo de colagem de textos ou extratextos para a produção de uma nova obra ou atividade, já que o texto que se constrói a partir de uma dinâmica da bricolagem não admite a possibilidade de ser governado por qualquer lógica científica e caminha para uma conclusão inesperada.

Os diversos procedimentos adotados pelos alunos, que vão desde a pesquisa de fontes até a concretude do trabalho final, são um trabalho quase que de "garimpagem", para se encontrar a informação desejada, num mar quase infinito de possibilidades que é a internet. Com a atitude de um bricoleur, o aluno-navegador faz o trabalho de busca, de recortes e de colagens que tem como base os textos obtidos no espaço virtual e, a partir daí, começa um verdadeiro trabalho de "alfaiataria" que envolve cortes, recortes, ajustes, reajustes e colagens. Tudo é feito na tentativa de construir ou produzir seu próprio conhecimento.

As críticas são cada vez mais ácidas quanto a esta forma de construção, tachada de cópia e de plágio. Há uma crescente sinalização para os efeitos desastrosos que essa prática pode trazer para a formação intelectiva e profissional dos acadêmicos. Contudo, queremos promover outro tipo de reflexão - sem querer desmerecer esta problemática - que traz como pronto nevrálgico a questão das novas formas de ensino e aprendizagem, possibilitadas graças à introdução das novas tecnologias da informação e comunicação no campo pedagógico. Logo, considerar-se-á que as novas estratégias produzem também verdadeiras idiossincrasias no sujeito que aprende. Por isso apostamos na invenção de formas diferentes de se proceder com o saber e com a informação.

É verdade que análises feitas por Paldês (1999) e Cruz (2004 e 2005), sobre as formas de uso pedagógico da internet por alunos acadêmicos, demonstraram que é inimaginável pensar o processo de ensino-aprendizagem sem a utilização dos recursos da rede mundial de computadores. Todavia, foi observado nesses estudos que muitos recursos ainda são subutilizados, embora cada vez mais o espaço virtual seja utilizado de forma sistemática para buscar informações quando da realização de atividades e de trabalhos acadêmicos.

Sabemos dos excessos no uso dos recursos da rede mundial de computadores, e das conseqüências negativas que a sua utilização indevida poderá trazer para a formação dos alunos, levando-os a uma formação acrítica e superficial. Todavia, um bom acompanhamento, por parte do professor, no sentido de orientar os discentes na forma de se proceder com a informação e os conteúdos usados, poderá tornar a internet um dos espaços pedagógicos mais produtivos destes novos tempos.

Na era da informação, a aprendizagem assumiu uma dimensão descentralizada e, cada vez menos, hierarquizada. Na perspectiva de Deleuze, apresentada por Gallo, a aprendizagem se coloca para além de qualquer controle. Assim, a aprendizagem na sociedade da informação deverá ser traduzida como

(...) algo que escapa, que foge ao controle, resistir é sempre possível. Desterritorializar os princípios, as normas da educação maior,7 gerando possibilidades de aprendizado insuspeitadas naquele contexto. Ou, de dentro da máquina opor resistência, quebrar os mecanismos como ludistas pós-modernos, botando fogo na máquina de controle, criando novas possibilidades. (Gallo, 2003, p. 81)
No contexto da internet não interessa criar modelos, propor caminhos, impor soluções. Não se trata de buscar a complexidade de uma suposta unidade perdida. Não se trata de buscar integração dos saberes. Importa fazer rizoma,8 viabilizar conexões; abalizar e viabilizar rizomas entre os alunos, fazer rizomas com projetos de outros professores e manter os projetos abertos.

Deleuze e Guattari (2004) criaram o conceito de rizoma para se referir à teoria das multiplicidades. O rizoma funciona como o ponto de partida para se pensar as multiplicidades por elas mesmas, visto que o fundamento do rizoma é a própria multiplicidade. Assim, numa perspectiva rizomática, qualquer ponto pode ser conectado a outro. O rizoma não fixa pontos nem ordens: há apenas linhas e trajetos de diversas semióticas, estados e coisas, e nada remete necessariamente a outra coisa. Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, "inter-ser". Ainda segundo os autores, um rizoma pode ser rompido e quebrado em algum lugar qualquer, mas também retoma segundo uma de suas linhas ou segundo outras linhas. Neste sentido, "todo rizoma compreende linhas de segmentariedade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas também compreende linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar" (Deleuze & Guatarri, 2004, p. 18). Ele é feito de direções móveis, sem início nem fim, mas apenas um meio, por onde ele cresce e transborda, sem remeter a uma unidade ou dela derivar. O rizoma não é um sistema hierárquico, é uma rede maquínica de autômatos finitos a-centrados, não-significante e heterogêneo.

A aprendizagem rizomática seria, então, definida pela operação de subtração dos pontos de unificação do pensamento e do real, realizando um mapeamento e uma experimentação no real que contribuem para o desbloqueio do movimento e para uma abertura máxima das multiplicidades sobre um plano de consistência.

Com esse entendimento, na sociedade da informação não há espaço para a possibilidade de atos solitários, isolados; toda ação implicará muitos indivíduos. Toda singularização será, ao mesmo tempo, singularização coletiva. Logo, todo ato singular se coletiviza, e todo ato coletivo se singulariza.

O sistema rizomático, o qual se tornou a internet, rompe a hierarquização tanto no aspecto do poder e da importância quanto no aspecto das prioridades na circulação. Diz Gallo (2003, p. 95): "No rizoma são múltiplas as linhas de fuga e, portanto, múltiplas as possibilidades de conexões, aproximações, cortes, percepções".

Nessa perspectiva, a educação possibilita a cada aluno um acesso diferenciado às áreas do saber de seu interesse particular, possibilitando a realização de um processo educacional muito mais condizente com as exigências da contemporaneidade. O processo educativo é uma produção singular a partir de múltiplos referenciais. Nessa produção não se poderiam vislumbrar, de antemão, resultados. Uma educação rizomática abre-se para a multiplicidade, para uma realidade fragmentada e múltipla, sem a necessidade mítica de recuperar uma ligação, uma unidade perdida. Os campos de saber são tomados como horizontes, mas sem fronteiras, permitindo trânsitos inusitados e insuspeitos. Dessa forma,

(...) o processo educativo seria necessariamente singular, voltado para a formação de uma subjetividade autônoma, completamente distinta daquela resultante do processo de subjetivação de massa que hoje vemos como resultante das diferentes pedagogias em exercício. (Gallo, 2003, p. 98)
Com base nesses fundamentos, ensinar seria lançar sementes que não sabemos se germinarão ou não, ao passo que aprender seria incorporar a semente, fazê-la germinar, crescer e frutificar, produzindo o novo. Assim, a aprendizagem é entendida como "um processo sobre o qual não se pode exercer absoluto controle. Podemos planejar, podemos executar tudo de acordo com o planejado, tomando à luz um resultado insuspeitado, inimaginável" (op. cit., p. 103).

Há método para ensinar, porém não há método para se aprender, pois o aprendizado não pode ser circunscrito nos limites de uma aula, da audição de uma conferência, da leitura de um livro. O aprendizado ultrapassa todas essas fronteiras, rasga os mapas e pode instaurar múltiplas possibilidades.

Para Gallo, Deleuze compreende a criação intelectual como sendo um ato de autoplágio, ou seja, a criação de conceitos é, também, um ato de roubar9 conceitos de outros. O roubo é criativo, pois sempre transformamos aquilo de que nos apropriamos. Ele é capaz de motivar novas criações. Roubar é contrário a plagiar, a copiar e a imitar. É recorrer ao que já existe, pois ninguém produz do nada, do vazio. A produção depende de encontros, encontros são roubos e roubos são sempre criativos. Roubar um conceito é produzir um conceito novo, porque cada conceito remete a outros conceitos, não somente em sua história, mas em seu devir, em suas conexões presentes. Cada conceito tem componentes que podem ser, por sua vez, tomados como conceitos. Os conceitos vão, pois, ao infinito e, sendo criados, não são jamais criados do nada.

De forma parecida, Kastrup explorou o conceito de aprendizagem de Deleuze. Para ela, a aprendizagem é vista como um movimento de vaivém, como uma série de saltos do objetivo para o subjetivo e vice-versa, unida à possibilidade de chegar, nesse momento, à essência do signo ou sua diferença. Desse modo, o aprendiz da sociedade da informação

(...) não é aquele que aborda o mundo por meio de hábitos cristalizados, mas o que consegue permanecer sempre em processo de aprendizagem. O processo de aprendizagem permanente pode, então, igualmente, ser dito de desaprendizagem permanente. Em sentido último, aprender é experimentar incessantemente, é fugir ao controle da representação. É também, nesse mesmo sentido, impedir que a aprendizagem forme hábitos cristalizados. (Kastrup, 1999, p. 151)
Aprender é estar atento às variações contínuas e às rápidas ressonâncias, mas isso implica, ao mesmo tempo, certa desatenção aos esquemas práticos de recognição. Aprender é, antes de tudo, ser capaz de problematizar, ser sensível a variações materiais que têm lugar em nossa cognição presente. A aprendizagem tem como base seu caráter inventivo. Desse modo, aprender é aprender a aprender, para continuar aprendendo e inventando a si mesmo e ao mundo. Aprender é, então, fazer a cognição se diferenciar permanentemente de si mesma, fazê-la bifurcar-se. A invenção10 é, assim, uma política de abertura da cognição às experiências não re-cognitivas e ao devir.

Trata-se de uma política que mantém a aprendizagem sempre em curso por meio de agenciamentos, acoplamentos diretos, imediatos com aquilo que faz a diferença. A aprendizagem não cessa com o saber, não faz obstáculo à continuidade do processo de diferenciação de si mesmo. Aprender a aprender é também e, paradoxalmente, aprender a desaprender. Trata-se de aprender a viver num mundo que não fornece um fechamento preestabelecido, num mundo que inventamos ao viver, lidando com a diferença que nos atinge.

Considerações finais

Aprender na era da informação passou a depender, em grande parte, da capacidade ativa e dinâmica de professores e alunos. Assim, o que temos que aprender na e da vida não é propriamente a resolver problemas, mas administrá-los com inteligência. Dessa forma, "aprender não pode aludir, nunca, a uma tarefa completa, a um procedimento acabado ou a uma pretensão totalmente realizada; ao contrário, indica vivamente, à dinâmica da realidade complexa, a finitude das soluções e a incompletude do conhecimento" (Demo, 2000a, p. 49). Por tudo isso o conceito de aprendizagem precisa ser ampliado, numa direção que articule objetividade e subjetividade, respeitando não só os conhecimentos prévios dos alunos como também outros aspectos ou processos psicológicos que agem como mediadores entre o ensino e os resultados da aprendizagem.

Podemos dizer que, na sociedade da informação, aprende melhor quem descobre mais e mais profundos padrões. A aprendizagem está, principalmente, na habilidade de estabelecer conexões, revê-las e refazê-las. Com isso, a aprendizagem deixa de ser algo passivo para tornar-se uma obra de reconstrução permanente, dinâmica entre sujeitos que se influenciam mutuamente. É fundamental saber ler a realidade com acuidade, para nela saber intervir com autonomia. Em síntese, compreende-se que a aprendizagem na era das novas tecnologias da informação exige uma política de produção de si e do mundo.

Tudo isso mostra que a construção do saber na era da internet é uma prática de bricolagem em meio a um contexto rizomático, já que o processo de aprendizagem acontece graças à construção de link que se pode realizar entre as diversas fontes de informação e de saber, o que, naturalmente, viabiliza novos modos de construção de saber e de aprender. Portanto, pode-se destacar que a não-hierarquização, a descentralidade e a desterritorialidade do saber e da informação são características marcantes no processo de ensino-aprendizagem da sociedade da informação.

Notas

1. De acordo com Carvalho e Kaniski (2000), o conceito de sociedade da informação foi formulado pela primeira vez em 1962 por Fritz Machlup.

2. Kuhn (1994) fala-nos que os paradigmas se estabelecem de forma normal e por revolução. Para ele, a condição para o surgimento de um novo paradigma está na incapacidade de o paradigma vigente não conseguir compreender os fenômenos na sua completude.

Penso estarmos vivendo este momento, no campo da educação, já que a introdução das novas tecnologias da comunicação e da informação passou a exigir uma nova leitura sobre o processo de ensino-aprendizagem que o paradigma atual não está sendo capaz de realizar.

3. Assim como Gasque e Tescarolo (2004), Assmann prefere falar de uma sociedade da aprendizagem em vez de uma sociedade da informação ou do conhecimento.

4. Neste trabalho se optou por aportuguesar a palavra bricolage para "bricolagem".

5. Lévi-Strauss usa esta palavra para fazer uma análise entre o pensamento mítico e o pensamento científico. Seu objetivo é descrever a lógica de pensamento das civilizações primitivas.

6. Bricoleur refere-se ao sujeito que faz, aquele que constrói ou cria a partir da perspectiva da bricolagem.

7. Segundo Gallo, Deuleze fala de uma educação maior para se referir àquilo que é produzido na macropolítica, nos gabinetes, expressa nos documentos. Mas considera uma outra educação denominada de menor, que está no âmbito da micropolítica, na sala de aula, expressa nas ações cotidianas de cada um. A educação menor é rizomática, segmentada, fragmentada e não está preocupada com a instauração de nenhuma falsa autoridade.

8. O conceito de rizoma, utilizando uma expressão dos próprios Deleuze e Guattari (2004), é um "roubo" que ele traz da botânica. Na botânica, rizoma é um tipo de caule radiciforme de alguns vegetais, formados por uma miríade de pequenas raízes emaranhadas em meio a pequenos bulbos armazenatícios. Na educação, refere-se à relação intrínseca entre as várias áreas do saber que se entrelaçam, formando um conjunto complexo, no qual os elementos remetem, necessariamente, uns aos outros e mesmo para fora do próprio conjunto. O rizoma não se presta nem à hierarquização nem a ser tomado como paradigma.

9. O roubo, aqui apresentado, não deve ser compreendido de forma negativa, como sendo uma apropriação indevida de outrem, mas, pelo contrário, demonstra a possibilidade de construção do novo a partir do já existente, coisa muito comum e necessária no campo da educação.

10. Para Kastrup, a invenção consiste num movimento de problematização das formas cognitivas constituídas. Do latim invenire, que significa encontrar relíquias ou restos arqueológicos, a invenção implica uma duração, um trabalho com restos, uma preparação que ocorre no avesso do plano das formas visíveis.

Revista Educação e Sociedade

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Paradigmas, valores e educação


Paradigmas, valores e educação

Denis Domeneghetti Badia
Universidade Estadual Paulista

Denis Domeneghetti Badia, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e doutor em Educação pela FEUSP, é professor do Departamento de Ciências da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Araraquara e diretor do Centro Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Imaginário (CIPI - FCL - UNESP - SCAr).
RESUMO

O texto levanta os perfis epistemológico e socianalítico da questão paradigmática. Mauss evidenciara o moule affectif das noções científicas de força e causa. Posteriormente Baudouin falaria na indução arquetípica das noções e a antropologia do imaginário de Durand concluiria pela indução arquetipal do conceito pela imagem. Chegava-se, assim, ao desvendamento do substrato inconsciente das ideações, de um substrato regido pela catexis vetorializada, traduzindo-se nos valores como cerne das ideações. É o famoso a priori emotivo. Portanto, no texto, questionam-se dois mitos, esteios da ciência clássica: o mito da objetividade científica e o da neutralidade axiológica. Destaca, assim, a falácia da existência de uma ruptura epistemológica entre ciência e ideologia. A partir daí, as ideações tornam-se ideologias, sobretudo nas ciências do homem e nas ciências da educação que, ademais, tornam-se suporte de uma disfarçada luta ideológica, na qual, num "colonialismo cognitivo", as estratégias de conhecimento dissimulam as de preconceito. Entretanto, assumir a realidade desse suporte fantasmanalítico e ideológico propicia uma tarefa educativa salutar: os paradigmas tornam-se fantasias e, nessa relativização crítica, podem ser usados como um campo de objetos transicionais coletivos num ludismo cultural e educativo. No policulturalismo da sociedade contemporânea, o "politeísmo de valores" de Weber transforma-se num "politeísmo epistemológico", regido pelo "relativismo ontológico" de Feyerabend e por uma ética do pragmatismo. Articulando cultura, organização e educação, a antropologia das organizações educativas e a culturanálise de grupos de Paula Carvalho traduzem as heurísticas dessa dialética transicional.
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Segundo Toulmin (1973), a palavra paradigma começa a ser utilizada no domínio da ciência por Lichtenberg em meados do século XVIII, precisamente no momento em que também vai ser adotada pela linguística da época, dada a necessidade de encontrar modelos de conjugação e declinação no âmago da linguagem. Em física, dava-se o mesmo: tratava-se de reduzir certos fenômenos insólitos a modelos que definissem determinada racionalidade. De acordo com Prado Coelho (1982), "questões de arranjo [...] o paradigma é um fator de ordem e de ordenação" (p. 27). O uso do termo permanece discreto. Certa apatia acontece até o final do século XIX, até que Lichtenberg começa a ser lido e a influenciar a nova filosofia da ciência como, por exemplo, o empiriocriticismo de Mach. Com a leitura de Lichtenberg, emerge o termo adentrando o cenário científico. O paradigma entra novamente em cena filosófica por meio de Wittgenstein entre 1938 e 1947.

Por volta dos anos 1950, chegava aos Estados Unidos. Nessa época, Kuhn (2000), homem de formação científica, começava a se interessar pela filosofia, posteriormente, de modo mais específico, pela história e filosofia da ciência. Ele se refere às obras importantes de Koyré, Meyerson, Metzger (cuja influência sobre Bachelard é decisiva) e Maier. No entanto, a formação filosófica de Kuhn terá ainda outros componentes: os trabalhos de Piaget, sobretudo no domínio da psicologia da percepção; as concepções de Lee-Whorf, estabelecendo as bases de um relativismo linguístico (cada linguagem determina uma concepção de mundo, que condiciona os que nela falam); as análises de Quine sobre o empirismo e seus dogmas; os estudos de história da cultura de Lovejoy; e os ensaios de Fleck sobre a importância dos grupos científicos. Kuhn vai traçar os primeiros esboços de suas futuras ideias a partir de 1951 na série de Conferências do Instituto Lowell de Boston. Em 1957, publica The copernican revolution. Ao final dos anos 1950, iria se impor a ideia de paradigma.

Entretanto, agora o termo paradigma está fortemente associado à passagem de uma concepção de história em moldes de continuidade para uma concepção em moldes de descontinuidade. Nesse sentido (e só nesse, pois no resto muitas são as diferenças), pode-se dizer que a noção de paradigma pertence à complexa família dos "jogos de linguagem" de Wittgenstein (1961), das "realidades múltiplas" de Schütz (1972; 1978), das "realidades alternativas" de Castaneda, das "estruturas da linguagem" de Lee-Whorf, das "problemáticas" de Bachelard (1934; 1975) ou dos "epistemas" de Foucault (apud Giddens, 1978). Em todas essas noções, existe a ideia de que o nosso mundo se multiplica noutros mundos mais ou menos autônomos, seja ao longo do processo histórico ou seja na própria textura do presente que nos envolve. A separação entre esses mundos, sua relativa incomunicabilidade, os problemas da tradução entre si e a (im)possibilidade de encontrarmos um mundo estável e objetivo, que se torne padrão de avaliação de todos os outros, são algumas das questões que pervagam o uso da noção de paradigma. Diante dessa problemática, segundo Prado Coelho (1982), duas reações são possíveis:

1. ou se aceita a diversidade do real, acabando por dissolver nela todas as referências estáveis;

2. ou se considera que essa diversidade é apenas aparência e oculta um nível subjacente de padrões absolutos. (p. 28)

Iremos, assim, oscilando entre o relativismo e a absolutização, ou seja, em termos do século XX, entre Collingwood (1940; 1978) e Frege (1971) como vetores respectivos dessas orientações de sentido. Respectivamente com a holonomia, teríamos, por um lado, o equivalente dessa polêmica nas discussões entre Prigogine (Petitot, 1988) e a Escola de Bruxelas – nos vetores de Bachelard (1934; 1975) e de Morin (2000) e, por outro lado, a "teoria das catástrofes" e a topologia de Thom (Petitot, 1988), próximas a uma arquetipologia.

Frege (1971) afirmava que se quisermos conhecer o mundo, não podemos reduzi-lo a um mero fluxo de fenômenos, pois precisamos crer em coisas estáveis, que persistem sob as mudanças e transformações. Essa estabilidade encontra-se nos puros conceitos quando somos capazes de pensá-los em si mesmos, libertos das sedimentações históricas que os envolve. Se os conceitos têm uma história, trata-se apenas da história de como nós os conhecemos, não da história dos próprios conceitos, que subsistem numa esfera intemporal do entendimento. A tarefa da filosofia consiste em apreender a forma pura do conceito: por isso, ele orienta seus estudos para os domínios da lógica e da matemática.

Collingwood (1940; 1978) situa-se no polo oposto da antinomia absoluto-relativo. Para Prado Coelho (1982), entretanto, esse relativismo de Collingwood nada tem a ver com o subjetivismo contemporâneo ou o modo contemporâneo do solipsismo epistemológico como, por exemplo, assumido por Foerster (1974). A diversidade, ou a diferença, conceitual é um ponto de partida objetivo da reflexão de Collingwood. O que está tematizado, no caso de Frege (1971), é a existência de um estrato conceitual intemporal e absoluto capaz de servir como referência, sem controvérsias, para a avaliação de todos os outros estratos e incidências. A célebre distinção entre Sinn e Bedeutung, nos Escritos lógicos e filosóficos, que é densamente discutida por Rusell (1990), não terá outra finalidade.

A experiência conceitual de Collingwood não autoriza admitir isso. Se queremos fazer um julgamento, emitir um juízo sobre uma teoria, temos como único padrão objetivo o próprio conjunto de valores do quadro cultural a que essa teoria pertence e nada além disso. Collingwood (1940) parte da estrutura tradicional das teorias científicas, tal como entendida pela filosofia de seu tempo. Uma teoria é constituída por um sistema de proposições entre si vinculadas por uma rede de relações lógicas. De um ponto de vista empirista, essas relações se dão de baixo para cima, isto é, os enunciados teóricos produzem-se a partir dos enunciados de observação, partindo-se do fato para a lei, do dado para a abstração. É a clássica descrição da indução. De um ponto de vista racionalista, as relações se dão de cima para baixo, isto é, temos axiomas, princípios e leis gerais que possibilitam o entendimento dos enunciados de observação. É a clássica descrição da dedução. De qualquer modo, o sistema teórico é sempre um sistema de relações lógicas entre proposições. Collingwood (1978) dirá que isso só serve para a matemática. Diz ainda que não encontra nos outros domínios do conhecimento essa linearidade axiomática e vai explicar isso:

1. entre os enunciados da teoria as relações não serão relações de verdade, mas relações de significado ou sentido: cada enunciado interpreta-se noutros, e assim vai se tecendo o texto do significado e o tecido da significância. Mas nenhum enunciado garante ou avaliza a verdade dos outros. Há apenas um significado em construção. Ou um processo de significância ou significatividade;

2. esse significado, esse sentido, essa significância ou significatividade se constroem não sob a forma de sistema axiomático, mas em forma de rede de pressuposições. (p. 62)

É a partir da concepção da teoria como sistema formado por redes de pressuposições e relações de significado que Collingwood chegará à conclusão que, em qualquer teoria, quaisquer enunciados pressupõem outros enunciados mais gerais que os fundamentam e justificam. São esses enunciados mais gerais que asseguram a eficácia lógica dos demais. No entanto, onde isso para?

Cada enunciado estabelece relações com os enunciados adjacentes e com aqueles mais particulares a que ele dá fundamento. Entretanto, estabelece também com aqueles que estão mais acima e lhe dão uma razão de ser. Contudo, no termo da hierarquização, quem manda? Collingwood dirá que é um sistema de pressuposições absolutas, e isso será o paradigma.

De modo denso e minucioso, Prado Coelho (1982) mostra que a problemática epistemológica do paradigma, da década de 1960, configurando-se, sobretudo, por meio da polêmica em torno da obra de Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, publicada em 1962, é uma aprofundada retomada da problemática tematizada, na década de 1940, pelo Ensaio de metafísica, de Collingwood, Herdeiro da tradição do relativismo epistemológico de Sócrates e Montaigne, opondo-se, portanto, ao enfoque de Descartes e, no século XX, aos Escritos lógicos e filosóficos de Frege, interessa-nos os resultados a que chega Collingwood ao conceber o paradigma como "um sistema de pressuposições absolutas" e, no contexto racionalista da problemática paradigmática, apresentar o insight, de extrema significação, ao conceber que o solo do paradigma (sobretudo no que diz respeito a "mudança ou salto paradigmático") é um processo de pensamento inconsciente.

De modo ignaro, Toulmin (1977) retoma as linhas de sua intervenção no Simpósio de 1970, organizado por Lakatos (1979), e, numa perfeita ilustração de ignorância por hybris epistemológica, afirma que pensamento inconsciente é uma expressão absurda e contraditória, sobretudo quando Collingwood dela se vale para resolver a questão que Kuhn chamaria de incomensurabilidade e de incomunicabilidade na questão paradigmática, especialmente na questão do salto paradigmático, questões onde se evidencia o "paradigma como sistema de pressuposições absolutas". Entretanto Toulmin, como epistemólogo, desconhece a Escola de Genebra, ou seja, a psicologia complexa e a psicocrítica com as elaborações de Baudouin (1963) e de Mauron (1968). Ora, esse autor define e explora a noção de pensamento inconsciente, que será uma densa fundamentação para aquilo que, no livro A imaginação científica, de Holton (1989), o autor designaria como themata ou as metáforas obsessivas e as matrizes arquetipais inconscientes recorrentes no evolver do pensamento científico, descoberta essa que Morin (2000) capilariza em Ciência com consciência, em seu Capítulo 2, que traz o expressivo título de "O conhecimento do conhecimento científico", e que desponta na questão candente da criatividade científica em oposição ao pensamento operacional. Mauron (2000) adverte o leitor cartesiano, adepto de um pensamento racionalista e formalista que se choca com essa noção, que

[...] o pensamento é o ato mental pelo qual quaisquer representações são comparadas, religadas, agrupadas, de modo que tal ato pode ser inconsciente e se distingue, assim, do pensamento propriamente reflexivo. (p. 31)

Vale-se, ainda, da noção de "função oscilante", elaborada por Kris (1953) e Bellack (1961), que possibilita, tanto para o artista, quanto para o cientista, "saltar" entre os universos consciente e inconsciente. Mais uma vez, isso é de extrema importância na questão da criatividade científica pela emergência/enação dos themata na criatividade científica.

Após essa miseau-point, voltemos a Collingwood, que Kuhn (2000) retoma, sem explícita menção, ao longo de todo o Posfácio. Assim, o paradigma é um sistema de pressuposições absolutas do teor de um pensamento inconsciente, ou seja, um sistema de pressupostos absolutos, significando um sistema de sentimentos e valores, modos de pensar, ver, falar e argumentar que introduz o relativismo epistemológico e o pensamento da diferença, que Kuhn herda (apesar de se debater contra). Um antropólogo como Geertz (2001) soube avaliar isso melhor que qualquer epistemólogo no capítulo "O legado de Thomas Kuhn: o texto certo na hora certa", do livro Nova luz sobre a Antropologia.

Kuhn coloca a questão de como proceder quando se configura uma não comensurabilidade de estruturas de pensamento, que não podem ser resolvidas seja pela confrontação paradigmática de universos diferentes, seja pela "tradução", o que fará ressaltar de modo irredutível o paradigma como uma estrutura de pensamento, linguagem e visão de mundo estreitamente vinculada a um grupo (comunidade científica ou intragrupos da comunidade científica) e à defesa de um sistema de valores e crenças. Assim, advindo a questão das matrizes socioantropológicas e antropo-psicanalíticas dos paradigmas e epistemas, Kuhn repete, disfarçando e amortecendo, os efeitos daquilo que Collingwood assume às claras. Vejamos isso em Collingwood e, depois, vinculemo-lo a Kuhn.

Collingwood (1940) diz que se compreendermos o paradigma como um sistema de pressuposições absolutas, a que acrescentaríamos do teor de um pensamento inconsciente, há dois modos, como sintetiza Prado Coelho (1982), de incomunicabilidade que o paradigma define.

[...] em primeiro lugar, eu não posso confrontar enunciados cujo significado depende de sistema de pressuposições diferentes. Há aqui universos que se incompatibilizam. Em segundo lugar, eu não posso comparar um sistema de pressuposições absolutas com outro sistema de pressuposições absolutas. Porque, onde está o espaço neutro (sem pressuposições) para as por em confrontos e avaliar? É a própria linha da racionalidade que se fratura nesta multiplicidade de mundos incomparáveis. (p. 30)

É a mesma ideia que, em a Fenomenologia do mundo social e em Collected Papers, Schütz defenderá, na linhagem de James, sobre as realidades múltiplas, definindo-as como âmbitos finitos de sentido, de modo que são "pluri-(uni)versos", onde cada um "habita" e cuja transversalização e cruzamento é altamente problemática, pois são mundos diferentes ou "mundividências" diferentes, onde só a comoção permite o "salto paradigmático" — perceba o teor emotivo e inconsciente do termo "comoção": os franceses chamariam, inicialmente, com Ribot, Janet e Flournoy (apud Ellenberg, 1974), de "ideias-força", que evolveu para "lógica do sentimento" e, por fim, na etnopsiquiatria de Devereux (1974; 1980), para "emoções-força" ou valores.

Isso introduz, por um lado, grandes limitações à proposta de Blanchot-Foucault, o "princípio da recondução aos limites" para um dado paradigma, que peca por extrapolar seus lindes iniciais: mas para haver convergência ou confronto paradigmáticos e recondução, pois para os limites específicos, isso se daria a partir de onde? Seria preciso um "espaço neutro" ou então um "ponto de vista meta-". No entanto, isso seria uma metalinguagem e, portanto, evidenciaria o caráter retórico do paradigma. Passemos a explorar isso lembrando dois pontos de Kuhn (apud Geertz, 2001) que levam diretamente à questão da infiltração instaurativa dos valores nos paradigmas e à socialização dos "exemplares" por meio da "função diferenciadora da educação" em sua promoção de "especialidades". Ele afirma que a ciência normal e as revoluções são:

[...] atividades baseadas na comunidade. Para descobri-las e analisá-las, primeiro é preciso desenredar a estrutura comunitária mutável das ciências ao longo do tempo. Um paradigma não rege [...] um assunto, mas um grupo de praticantes. Qualquer estudo das pesquisas norteadas por paradigmas ou destruidoras de paradigmas deve começar pela localização do grupo ou grupos responsáveis. (p. 146)

Portanto, o paradigma é uma produção de consenso e de conhecimento como consenso a partir do grupo comunidade científica e/ou dos intragrupos, na qual Kuhn evidencia, ao longo de todo o Posfácio, o papel formador da cultura e da linguagem na transmissão desses modelos ou "exemplares": trata-se precisamente daquilo que Durkheim (1963) designou como "função diferenciadora da educação", que nada mais é, na terminologia da Escola Cultura e Personalidade, que a transmissão das "especialidades" como elementos culturais de um grupo específico no profundo desenvolvimento dado por Linton (1961). Nesse sentido, o paradigma, como diz Kuhn, será "um sistema de exemplos compartilhados" que, a rigor, corresponde com maior precisão ao que Barthes (1968) chama de "logotécnicas" e que Bachelard (1934; 1975) chamava de "noumenotecnias". Quer dizer, isso definirá a linha em que será tratada por Kuhn a questão da incomensurabilidade, no qual des pontarão as questões dos valores e das estratégias de persuasão.

Vejamos isso: para Kuhn (2000), na "matriz disciplinar", está envolvido o paradigma por meio do "terceiro grupo de elementos que são os valores" (p. 229). Apesar do otimismo kuhniano, tentando disfarçar e não assumir o que Collingwood fizera e que, segundo o texto do próprio Kuhn, está no "conhecimento tácito" (p. 237) de Polanyi (1983), ou seja, o relativismo paradigmático, suas implicações subjetivas e sociológicas, Kuhn tenta resolver a questão da incompatibilidade e da não comunicabilidade de um modo racionalista e formalista. Assim propõe um "debate e a escolha pelo argumento das boas razões" (p. 245) Entretanto, acaba por reconhecer que essa estratégia epistemológica desemboca realmente numa questão, em última instância, valorativa, pois se trata de uma questão de sociologia da cultura e do conhecimento: a antropolítica da persuasão. Diz o próprio Kuhn (2000): "penso que persuadir alguém é convencê-lo de que nosso ponto de vista é superior e, por isso, deve suplantar o seu" (p. 249). Ora, temos aqui, por um lado, a já mencionada e irredutível questão do caráter retórico do paradigma e, por outro lado, a questão das determinações socioantropológicas e inconscientes dos quadros paradigmáticos, configurando-se mediante noções como retórica sofística da persuasão, discurso competente, violência simbólica. Enfim, trata-se de um tipo de estratégia do preconceito chamada, no melhor dos casos, "antropoemia da tolerância", mas mais usualmente apresentando-se como "antropofagia dialógica" do grupo comunidade científica. Isso levará à configuração do paradigma como instituição social (Bastide, 1979), como sistema de mecanismos de defesa contra a angústia (Jacques, 1988) e, enfim, como sistemas transferenciais-contratransferenciais travestidos em metodologias científicas (Devereux, 1980). Examinemos aqueles aspectos iniciais para virmos ter aos três últimos enfoques.

Vattimo (1996) diz textualmente sobre o "teor retórico" incontornável do paradigma:

A imposição dos direitos da retórica hermenêutica, isto é, do logos-consciência comum, aos discursos demonstrativos da ciência se realiza, ao contrário, como uma radicalização da natureza essencialmente retórica da própria ciência, numa direção que, poderíamos dizer, vai da forma ao conteúdo. A natureza retórica das ciências, em sentido puramente formal, poderia ser indicada na sua efetiva dependência por paradigmas histórico-realizados: as posições de Th. Kuhn, pelo menos em linha geral, já não provocam tanto escândalo ou, em todo caso, são aquelas que uma concepção hermenêutica da ciência faz suas de melhor grado. As teorias científicas são provadas com base em observações que só são pensáveis e têm sentido no interior dessas mesmas teorias e de seus paradigmas. Nem por isso a afirmação de um paradigma é, por sua vez, um fato descritível em termos de demonstração científica. Kuhn, como se sabe, deixa substancialmente aberto o problema de como se deva pensar o evento histórico da mudança dos paradigmas; a hermenêutica pode contribuir de maneira significativa e pensar esse problema fora de uma concepção da história como puro jogo de forças ou, ao contrário, como progresso no conhecimento objetivo de uma realidade estavelmente dada. Quaisquer que sejam os problemas da concepção de Kuhn, também se pode formular o sentido geral (e, talvez, mais geralmente aceitável) da sua teoria das revoluções científicas como uma redução da lógica científica à retórica — no sentido limitado em que isso significa que as teorias científicas só se demonstram dentro de paradigmas que, por sua vez, não são "logicamente" demonstrados, mas aceitos com base numa persuasão de tipo retórico, como quer que esta se instaure de fato. (p. 137-138)

Ora, não pretendemos desenvolver a perspectiva hermenêutica sobre o paradigma (Gadamer, 1999), apesar de ela permitir, por meio das noções de "círculo hermenêutico" e de "antecipação pré-compreensiva", escapar tanto ao enfoque de uma restrita sociologia do conhecimento quanto ao de uma epistemologia que ainda paga seus tributos ao racionalismo — como em Bachelard (teoria dos não valores e dos obstáculos epistemológicos, ruptura epistemológica ciência-ideologia, perfil epistemológico, corracionalismo da cidadela científica). Entretanto, cabe dela reter que, nos paradigmas, desde sempre, estaremos enclausurados na linguagem (Apel, 2000), sendo o paradigma as redes de leitura e interpretação da pretensa realidade ("X"), na qual não existe algo como "a realidade" porque o acesso que a ela temos é sempre mediado pela linguagem ou função simbólica... a menos que, com ingenuidade... e má fé... nos situemos nas várias recuperações do "projeto referencial-ontológico" — cuja crítica irredutível foi feita por Rorty (2001), em livros como A filosofia e o espelho da natureza... — e que, assim, situemo-nos antes do linguistic turn (Rorty, 1997) da filosofia analítica ou da Kehre (Hottois, 1981) da hermenêutica, antes, portanto, de Wittgenstein (1961) e de Heidegger (1967)... o que soaria como um irônico arcaísmo antropológico! Poderemos mostrar agora a retórica sofística da persuasão, presentificando-se nos paradigmas.

Desde o Protágoras de Platão, a maiêutica socrática se opõe à retórica dos sofistas, explicitada, como nos mostram Gomperz (1969) e Guthrie (1975), pelos procedimentos acoplados da erística e da peirástica, respectivamente o espírito polêmico e a arte de persuasão violenta. Esses procedimentos retóricos são encontrados nas "logotecnias" da "matriz disciplinar", definindo aquilo que Chauí (1969) chama de "discurso competente". Na burocratização da vida social e no saber administrado da/pela razão técnica, o discurso competente significa que não é qualquer um e de qualquer lugar que sabe e pode falar o que quiser. Portanto, só aquele que está investido e ocupa uma posição numa organização burocrática estará legitimado e terá a competência definida para dizer-enunciar um discurso também definido, ao qual é atribuída uma autoridade institucionalizada.

Retórica da persuasão e discurso competente aprofundam-se, em seu caráter de arbitrariedade violenta, legitimada por uma organização tecnoburocrata do saber e por uma educação praxiológica que a operacionaliza pela noção de violência simbólica.

Lembremos, com Bourdieu (1975): "todo o poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de força". Mostra o autor que a educação operacionaliza essa violência simbólica, em nosso caso, do arbitrário da imposição retórico-paradigmática e numa dinâmica da exclusão/inclusão compulsória pelas "estratégias de preconceito", por meio do duplo arbitrário da ação pedagógica. Diz o autor:

1. Toda ação pedagógica (AP) é objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural... 1.1. A AP é objetivamente uma violência simbólica, num primeiro sentido, enquanto que as relações de força entre os grupos e as classes constitutivas de uma formação social estão na base do poder arbitrário que é a condição da instauração de uma relação de comunicação pedagógica, isto é, da imposição e da inculcação de um arbitrário cultural segundo um modo arbitrário de imposição e de inculcação (educação)... 1.2. A AP é objetivamente uma violência simbólica, num segundo sentido, na medida em que a delimitação objetivamente implicada no fato de impor e de inculcar certas significações, convencionadas, pela seleção e a exclusão que lhe é constitutiva, como dignas de serem reproduzidas por uma AP, reproduz (no duplo sentido do termo) a seleção arbitrária que um grupo ou uma classe opera objetivamente em e por seu arbitrário cultural. (p. 20-22)

Portanto, chegamos ao paradoxo das estratégias de conhecimento dos paradigmas como produção de estratégias do preconceito. Como processar as diferenças culturais e as alteridades grupais "não alinhadas"?

Taguieff (1987) faz um estudo exaustivo da questão acima. Lembrando a distinção dos procedimentos, descritos por Lévi-Strauss, que as sociedades e as culturas adotam para processar as diferenças e as alteridades, quais sejam, as "sociedades antropofágicas" (o Outro é reduzido ao Mesmo por manducação) e as "sociedades antropoêmicas" (o Outro é "territorializado" e cercado) — dos ghetos às prisões, manicômios, asilos, desde as "reservas" até as "instituições totais" de Goffman (1999) — para Tragtenberg (1968), a escola é uma instituição total! —, até as "pseudoespécies" de Erickson (1980) — e a escola é a menor pseudoespécie, segundo o autor —, equivalendo às "tribos" de Maffesoli (1998) — é importante ver as várias "tribos" nas escolas, no aparelho de ensino e nos congressos!), poderíamos ver aplicados dois tipos de estratégias do conhecimento-estratégias do preconceito pela ciência institucionalizada e as instituições escolares: a antropofagia dialógica e a antropoemia da tolerância ou nas palavras sintéticas de Paula Carvalho (1997):

A antropofagia dialógica é a racização amena de englobar o Outro no e pelo discurso persuasivo, forma predominante, em educação, do "homo academicus" e de muitas pedagogias dialógicas; é fundamental, em forma estereotipada, na mídia política e na indústria cultural. Costuma desembocar na antropofagia digestiva, a racização repressiva da assimilação dos outros a si-mesmo em todas as formas de aculturação. Já a antropoemia da tolerância é a racização específica do desenvolvimento "em separado": em aparência, respeita-se tanto o outro, tolerando-o, que na realidade acaba-se por isolá-lo "territorialmente", não se dando aos trabalhos dos enfrentamentos das diferenças, típico de todas as ideologias do relativismo e do ecumenismo [...]. (p. 182)

Subjacente a tais estratégias está o que a antropo-psicanálise chamou de heterofobia e que origina o etnocentrismo e suas implicações educativas e gestionárias. Como Freud (1985) já mostrara, no fundo da "estranha inquietação" (Unheimlich), está a presentificação da dimensão do Inconsciente ou da Sombra Coletiva (em termos junguianos, cf. Zweig; Abrams, 1993), permeando as redes cognitivas na interação sociocultural. A partir daqui, desenvolvem-se duas noções que, infelizmente, não poderemos aprofundar: a noção de ritual de opressão, desenvolvida por Devereux (1974), e a noção de esquema mental inquisitorial, desenvolvida por Paula Carvalho (1987-1988). São noções de grande valor antropolítico conduzindo diretamente àquilo que é o cerne da questão paradigmática e da socialização educativa: o que é valor?

Se no salutar relativismo epistemológico de Kuhn (ainda mais se relido e promovido a uma das facetas do anti-antirrelativismo de Geertz), os paradigmas são sistemas de valores e crenças, é precisamente na noção de valor que vemos confluírem o caráter de instituição social dos sistemas de pensamento e seu teor inconsciente como sistemas projetivos, pois mesmo nos sistemas cognitivos, os valores são o sustentáculo da ação que lhes é específica, porque mesmo no valor cognitivo, está indissoluvelmente imbricado o afeto, isto é, a catexis torna-os "emoções-força". Isso pode ser rastreado por meio de duas vertentes, seja uma sociologia do conhecimento que chegue a uma axiologia, seja a uma axiologia que venha a ter a uma teoria da ação social.

Na primeira vertente, Gurvitch (1962) nos mostra que, dentre os enfoques das morais do sentimento até as teorias modernas dos valores, que permeiam uma sociologia da cultura e uma sociologia do conhecimento, destaca-se o enfoque de Max Scheler (1955; 1960), um dos fundadores tanto da sociologia do conhecimento, quanto da axiologia. Precisamente na segunda parte do livro, capítulo IV e V, estão as proposições fundamentais de Scheler que, ademais, Karl Mannheim (1952) elabora no capítulo IV. Por meio de ambos os textos, poderíamos sintetizar: (1) os valores são a priori emotivos, isto é, qualidades imediatas e irredutíveis das vivências na experiência emotiva, sendo consequentemente alógicos e irracionais; subtraem-se, portanto, a uma abordagem mediante as leis lógicas porque, precisamente, são dados imediatos das vivências do Lebenswelt (mundo da vida) que condicionam, de modo preciso, as elaborações cognitivas; (2) há um pluralismo de valores, que Max Weber chamava de "politeísmo de valores", que são tantas orientações possíveis da ação social segundo os vetores diversos que os sistemas de conhecimento acolhem, pois a sociedade e a cultura, por intermédio dos grupos, selecionam esses vetores de orientação e estabelecem uma hierarquia de valores de tal modo que a famosa "neutralidade axiológica" de Max Weber (1965) é impossível: todo sistema de conhecimento e pensamento é orientado a partir desses a priori emotivos plurais. Por isso, os franceses da escola da "lógica do sentimento" falam em "emoções-força". Em suma, os sistemas cognitivos são orientados por tais a priori emotivos. E isso de tal modo que o afeto, como dirá P. Janet (2000), ou a libido, como dirá seu discípulo Freud, fundam tais a priori emotivos. Lembremos, num parêntese, por razões de consistência no rastreamento genético-conceitual, que há um escalonamento entre afeto/libido/inconsciente: trata-se do trajeto que vai de Janet, com O automatismo psicológico, publicado em 1889, ao Freud da "econômica" e das "tópicas", como mostraram, na gênese conceitual do trajeto, Starobinski (1970) e Reich (1976), publicado nos Primeiros Escritos. Em suma, o inconsciente está na base da elaboração paradigmática: é a "indução arquetipal do conceito pela imagem", como diz Durand (1969, p. 62).

É precisamente isso que será elaborado na segunda vertente, ou seja, na axiologia de Kluckhohn (1968; 1962), dentro dos marcos da teoria da ação do grupo de Parsons. Kluckhohn (1968) define o valor como uma concepção explícita, mas geralmente implícita, própria de um indivíduo ou característica de um grupo sobre o desejável que é determinante na seleção dos modos, meios e fins de ação acessíveis. Fazendo uma análise detalhada dessa definição, que não reteremos aqui, o autor mostra que essa "construção lógica" é sempre permeada pelo desejo, afeto ou catexis, e isso de tal modo que o valor — que o autor sempre prefere dizer "valor de grupo" e não valor cultural — não passa de uma racionalização para uma catexis. Distinguindo entre os valores cognitivos, valores expressivos e valores estimativos, posto que a catexis é evidente nos dois últimos, Kluckhohn (1962) desenvolve ampla argumentação sobre o componente catético ou afetual dos valores cognitivos. Evidenciando que, via de regra, os valores coincidem com a "cultura encoberta" do grupo — depois o autor designou-a como "cultura implícita" ou "cultura latente" sob o influxo das investigações antropo-psicanalíticas —, Kluckhohn mostra o funcionamento da dimensão inconsciente na cultura do grupo e nas instituições sociais, por onde os sistemas cognitivos são estruturas de pressupostos de teor afetivo, catético ou inconsciente.

Poderemos, então, compreender essa dimensão socioantropológica dos paradigmas articulada à dimensão antropo-psicanalítica destes a partir de Bastide (1979), Jacques (1988) e Devereux (1980), compreendendo, portanto, o caráter "arbitrário" da persuasão retórica nos paradigmas: trata-se de uma indução inconsciente de racionalizações e polêmicas como estratégias de conhecimento fundada na inquestionabilidade dos a priori emotivos ou das emoções-força que são os valores. A educação simplesmente comunica esses valores de grupo transmitindo paradigmas. A questão de sua transformação envolve, precisamente, um trabalho sobre a dimensão fantasmática da ação social como veremos em Jacques (1988).

Frente ao que já foi dito, poderemos compreender claramente, com Bastide (1979), que os paradigmas, os sistemas cognitivos e os planejamentos são instituições sociais. Diz o autor:

A antropologia aplicada, tal como a definimos, considera os modelos de intervenção, que obedecem às regras metodológicas das ciências, como instituições sociais, em pé de igualdade com a família, o econômico ou a política. Sem dúvida trata-se de instituições de ação inovadora, mas de instituições, todavia, da mesma natureza das outras, que são instituições de natureza cristalizada. Logo, elas podem ser objetos de análises similares. Em suma, propomos considerar os "projetos" de ação como "obras culturais" de natureza idêntica a todas as outras obras do homem, do mesmo modo que seu sistema de parentesco e sua organização em castas ou classes. Como outras obras culturais, podemos destacar os fins, os valores (ocultos ou manifestos), as leis de funcionamento, as cadeias de ligações entre as partes [...], onde as determinações finalmente inconscientes podem ser encontradas nos valores que permanecem latentes e que foram aí traduzidos como objetivos. (p. 164)

Portanto, paradigmas, sistemas de conhecimento e planejamentos são instituições sociais que, lembremos, para o grupo de Parsons, são "pautas valorativas da ação", cuja dimensão inconsciente passamos a destacar por meio da socianálise de Jacques (1988) e da etnopsiquiatria/etnopsicanálise de Devereux (1974; 1980).

Apoiando-se nos estudos de Melanie Klein (1989) sobre a identificação projetiva e introjetiva em sua ação recíproca e no mecanismo originário de defesa contra a ansiedade pelo jogo entre agressão e reparação nos ataques ao seio materno e aos seus deslocamentos amplificados nos objetos sociais, Bion (1987) aprofundou-se no estudo dos grupos em sua socianálise do protomental, definindo as "hipóteses de base" responsáveis pelos vínculos nos pequenos grupos, e Jacques (1988) amplia o estudo das dinâmicas psíquicas inconscientes ativadas nas instituições e nos grupos sociais.

Jacques (1988) diz que os pontos fundamentais consistiriam em desenvolver a tese que os sistemas de pensamento como instituições sociais são mecanismos de defesa potenciados, mobilizados contra a emergência da ansiedade persecutória e depressiva na vida dos grupos que elaboram tais sistemas. Os mecanismos de identificação projetiva e introjetiva atuam no processo de vinculação entre o comportamento individual e o comportamento grupal. Portanto, os indivíduos se valem inconscientemente das instituições e, pela associação e pela cooperação, inconscientemente reforçam as defesas contra a emergência da angústia originária. Assim, esse autor insiste na discriminação entre a forma e o conteúdo social fantasiado/fantasmatizado de uma instituição:

A fantasia/o fantasma é usado no sentido de uma atividade intrapsíquica completamente inconsciente [...]. Desse ponto de vista, o caráter da instituição é determinado e especificado não somente por suas funções explícitas ou inconscientemente avalizadas e aceitas, mas também por suas múltiplas e não reconhecidas funções no plano da fantasia/fantasma. (p. 306)

Qualquer "ataque" ou discordância ou pluralismo epistemológico despertam a "angústia originária" e mobilizam a radicalização e intolerância de um sistema cognitivo/paradigma como mecanismo de defesa potenciado e reforça sua impositividade excludente como violência simbólica. Como lembra Don Juán a Castaneda (1968), não se pode puxar o tapete... ninguém tolera perder o pé, ou melhor, sequer aguenta ficar sem referenciais ordinários... Em virtude disso, muitos problemas sociais são insolúveis e as mudanças extremamente difíceis, pois a mudança na estrutura ou na cultura evidentes, com o objetivo de resolver um problema, pode ser ineficiente simplesmente por não se ter atingido a estrutura fantasmática de sustentação da coesão social dada, por permanecerem invariadas as relações inconscientes no vínculo social. Jacques (1988) afirma:

As razões que explicam a impossibilidade de mudar muitos conflitos sociais e tensões de grupo podem ser mais claramente apreciadas quando vistas como "resistências" de grupos de pessoas que inconscientemente se agarram às instituições de que dispõem, já que as mudanças nas relações sociais ameaçariam perturbar defesas sociais preexistentes contra a ansiedade psicótica. (p. 313)

Na medida em que os paradigmas são instituições sociais, são sistemas de pensamento e são sistemas sociais mobilizados contra a emergência da ansiedade psicótica ou da angústia originária: eles são mecanismos de defesa potenciados e esse é seu "teor inconsciente" como sistemas de pressuposições absolutas ou sistema de valores, pois falamos sempre a partir de uma tábua de valores que nos situa e permite que situemos os outros com relação a nós... Nessa medida, a possível ação transformadora da educação acha-se limitada...

Devereux (1980) detecta o caráter perverso e o funcionamento inconsciente dos paradigmas, sistemas de pensamento e metodologias científicas, amplificando as considerações anteriores. Diz que o estudo científico do homem:

1. é obstado pela angústia provocada pelo recobrimento entre o tema de estudo e o observador;
2. esse recobrimento exige a análise do lugar e da natureza da partilha entre ambos;
3. essa análise deve compensar a parcialidade da comunicação entre o tema e o observador a nível consciente mas
4. não deve ceder à tentação de compensar a plenitude dessa comunicação a nível inconsciente,
5. a qual desperta a angústia e, assim, também, as reações de contratransferência
6. que deformam a percepção e a interpretação dos dados e
7. produzem resistências e contratransferência que assumem as feições de metodologia, provocando novas deformações sui generis.
8. Desde que a existência do observador, sua atividade de observador e suas angústias (mesmo na auto-observação) produzem deformações que são, não só técnica mas também logicamente impossíveis de serem eliminadas,
9. toda metodologia eficaz em ciência do comportamento deve tratar tais perturbações como sendo os dados mais significativos e mais característicos na pesquisa nessa ciência.
10. Ela deve explorar a subjetividade inerente a toda observação como a via régia para uma autêntica objetividade, e não fictícia.
11. Essa objetividade deve ser definida em função daquilo que é realmente possível, mais do que em função do que "deveria ser".
12. Negligenciadas ou embelezadas de modo defensivo pelas resistências e contratransferência, vestidas como metodologias, essas "perturbações" tornam-se a fonte de erros incontrolados e incontroláveis ao passo que,
13. quando são consideradas como dados fundamentais e característicos das ciências do comportamento, são mais válidas e mais aptas a produzir tomadas de consciência que qualquer outro tipo de dados. Em suma, os dados das ciências do comportamento suscitam uma angústia contra a qual nos defendemos por meio de uma pseudometodologia inspirada pela contratransferência; tal manobra é responsável por quase todos os erros das ciências do comportamento. (p. 16-17)

Derradeira objeção ao mito da objetividade científica dos paradigmas e à correlata função lógico-racional e axiologicamente neutra da educação na elaboração paradigmática e em sua transmissão, bem como da famosa "ruptura epistemológica" bachelardiana-althusseriana ciência/ideologia: o paradigma é uma fantasia, ou melhor, tem o funcionamento de uma fantasia. Hillman (1999), muitas vezes, diz "de acordo com a fantasia de Kérényi", "de acordo com a fantasia de Freud", "de acordo com minha fantasia", querendo significar o teor de fantasia da teoria ou paradigma. Entretanto, o trajeto já se preparara para ele. Ele tem a coragem de enunciar o problema epistemologicamente, tirando-lhe as consequências e propondo, assim, de modo salutar, uma abordagem "poiética" da questão paradigmática, por onde liberta, ou "comuta", a estrutura fantasmática dos paradigmas em estruturas fantasiosas, distinguindo não só fantasma e fantasia, mas propondo, dessa feita, uma reversão "positiva" da colocação do problema. Vejamos como poderíamos esboçar as etapas desse trajeto.

Paula Carvalho (1985) já trabalhava longamente essa comutação de uma fantasmática numa "fantástica transcendental", projeto que Durand (1969; 1983), numa antropologia do imaginário e numa sociologia profunda, herda de Novalis e que tanto ele como Paula Carvalho, por caminhos diversos, ampliam. No denso estudo sobre a antropologia psicanalítica de Géza Róheim, Paula Carvalho (1987/1988) mostra de modo detalhado como o fantasma equivale às "formações reativas" (assim, o uso "perverso" dos paradigmas na luta ideológica) e como a estrutura fantasmática das formações reativas (portanto, de todas as formas de ideação construídas por tal mecanismo) constituem o "superego social". Elas funcionam pela produção da estase libidinal pela repressão. Diferentemente, as sublimações são fantasias, usando um termo de Marcuse (1968), ou sublimações não repressivas ou dessublimações. Elas adquirem o caráter do "ludismo transicional" que Winnicott (1971) trabalhou longamente nos "objetos transicionais" do "espaço potencial" da "região intermediária" entre os objetos primários, regidos pelo princípio do prazer, e os objetos secundários, regidos pelo princípio da realidade/rendimento e desempenho. Essa região alocada ao modo de jogos de linguagem com o mito, a arte, a magia e a religião, amplificar-se-ia, agora, com a inclusão da própria ciência ou da imaginação científica. Numa elaboração aprofundada da problemática, cujos passos não podemos aqui refazer, André Green (1980) elabora a noção de "objetos terciários", para exatamente recobrir os objetos de tal região em tal dinamismo "poiético": mito e ciência são, doravante, "objetos transicionais coletivos". Portanto, os paradigmas podem ser fantasmas ou fantasias... de acordo com as políticas culturais e lutas ideológicas em sua retórica de jogos de linguagem, enfim, de acordo com uma antropolítica, uma política do Homem adotada. Citemos um texto de Dadoun (1972), em seu estudo sobre a antropologia psicanalítica de Géza Róheim, que anteciparia as etapas acima mencionadas:

[...] também é possível designar como "transicionais" objetos "intelectuais" ou "representacionais" ou "poéticos", isto é, um sistema de pensamento, uma teoria, uma forma plástica, um procedimento operatório, a figura de um mestre, com que o sujeito mantém tipos de relações mais ou menos profundamente unidas ao próprio trabalho criativo, o que fora até agora malmente designado por "influência". Um "campo transicional representacional" ou um "campo transicional poético" — aqui compreendido tudo que se refira à criatividade — seria, assim, delimitado, tornando-se no espaço de circulação de uma valência subjetiva, narcisista — investimento libidinal do ego sobre tal aspecto da pessoa ou tal produto ou processo de sua criatividade — e de uma valência objetiva, objetal — investimento de um produto ou de um processo ou de uma forma ou de uma figura exterior; ou, naturalmente, nas duas vertentes, contra-investimentos. O progresso de uma elaboração estaria ligado à capacidade de fazer circular e equilibrar tais investimentos ou contra-investimentos, dinamicamente percorrendo tal campo transicional. (p. 72)

Para concluir, poderíamos nos perguntar como os paradigmas poderiam ser usados como campo de objetos transicionais num ludismo cultural e educativo. De modo indicativo e remissivo, poderíamos lembrar que formam uma única constelação, nas sociedades contemporâneas, o politeísmo de valores, o pluralismo cultural, o policulturalismo e as hibridações ou hibridismos (Canevacci, 1996).

Nesse sentido, não há como recusar um perspectivismo retórico e uma relativização, que fariam um jogo entre o "relativismo ontológico" de Feyerabend (2007), o "tudo vale" e o "etnocentrismo crítico" de Martino (1980). Teríamos um relativismo ontológico mitigado ou um relativismo epistemológico nos quais os epistemas seriam tratados no ludismo transicional.

Para Monique Augras (1989), as elaborações de Paula Carvalho estariam sob a égide de um politeísmo epistemológico e de certa visão do pragmatismo em pesquisa. Pensamos que, ao lado do já mencionado "princípio de recondução aos limites" (Blanchot-Foucault, 1963), do "princípio de saturação dos limites" (Sorokin-Durand, 1969) e de uma "filosofia da criação científica" (Moles, 1998), em termos epistemológicos, Paula Carvalho relativizou os paradigmas em heurísticas e elaborou uma cartografia dessas heurísticas em antropologia das organizações educativas (Paula Carvalho, 1990) e em culturanálise de grupos (Paula Carvalho, 1991). Enfim, trabalhando com os conceitos de educação fática e ação cultural em vários projetos, esse autor mostrou como, no nível microssocial de vários grupos socioculturais, poderiam ser utilizadas as propostas de Bion (1987) e de Winnicott (1971).

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