quarta-feira, 16 de março de 2011

Brincadeira de Criança (2.0)

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Até que ponto os fenômenos sociais on-line no mundo das crianças diferem da vida off-line dos adultos?
Jackelin Wertheimer Cavalcante*

Em 2004, Martin Lindstrom, consultor da Fortune 500* , já caracterizava as crianças da nossa geração como pessoas mais propensas a ter um amigo no outro lado do mundo do que na própria rua. E em 2010 esse perfil está mais que consolidado. As crianças desta geração já acordam a tuitar um bem-humorado “Bom dia, pessoal! \o/”. Muitas checam seus e-mails e os primeiros twitts dos amigos em seus smartphones (ou dos pais, caso ainda não tenham ganhado seu primeiro celular com acesso à internet). Suas lições de casa e aquela pesquisa para o trabalho de ciências estão em uma apresentação compartilhada com os amigos da escola no Google Docs. Mas na aula de informática, o computador da escola bloqueia o acesso ao Orkut. Não faz mal: pegando algum sinal wi-fi aberto, as crianças verificam suas fazendinhas do Colheita Feliz pelo celular ou iPod Touch. Em seguida, com a atenção de volta ao computador do laboratório de informática, elas ainda dão um jeitinho de acessar o MSN pelo Ebuddy*, já que o computador da escola não tem o programa, não permite downloads e nem instalações de novos softwares. Tudo isso para conseguir interagir com os amigos discretamente, sem que a professora note. Na escola, a web é, para essas crianças, a versão 2.0 dos antigos bilhetinhos de papel, que reinavam nas escolas até o século 20.
Segundo a comScore, 11,9% dos internautas brasileiros possui idades entre 6 e 14 anos. O mesmo relatório aponta ainda que sites de entretenimento, mensageiros instantâneos e redes sociais são os preferidos das crianças e dos adolescentes. E estes passam 60% do tempo total on-line nesses serviços. Já a pesquisa Playground Digital, realizada pela Nickelodeon, analisou mais de 7 mil crianças entre 8 e 14 anos e que viviam em 12 países. Entre eles, o Brasil. Ela revelou que as crianças brasileiras ocupam o segundo lugar do ranking das que mais acessam redes sociais (67%), perdendo apenas para a China (79%).
Mas o que essas plataformas representam para as crianças afinal? Diversão é a palavra-chave. Segundo o Kids Experts, estudo promovido pela Cartoon Network em 2008, o principal motivo para a utilização assídua das redes sociais pelas crianças é o binômio diversão e distração. O segundo fator mais influente, por sua vez, é a facilidade de expressão que esses canais representam. A pesquisa revela que a comunicação passa a ser uma necessidade primordial para crianças a partir dos 12 anos. A essa altura, elas já dominam todo tipo de ferramenta de comunicação on-line. Nas redes sociais, as crianças têm em média 23 amigos que nem sequer moram na mesma cidade e duas em cada cinco trocam conteúdos on-line. As redes sociais estão assumindo o papel de ponto de encontro dos grupos de identificação das crianças.

*Fortune500 » Tradicional revista de negócios fundada em 1930, no contexto da crise da Bolsa de Nova York, a Fortune é publicada pela Time Inc. A Fortune 500 é uma edição especial, que traz um ranking com as maiores companhias dos EUA.

*Ebuddy» Serviço de internet que permite ao usuário acessar instant messengers, como o MSN Messenger ou o Yahoo! Messenger, sem necessitar instalar o programa em um computador. Outro serviço nessa linha é o Meebo.

QUESTÃO DE SEGURANÇA

Entretanto, devido ao crescimento exponencial do número de usuários, e do gigantesco fluxo de dados compartilhados, a vigilância absoluta torna-se impraticável até mesmo para os gigantes da web, como o Google (vide os inúmeros processos judiciais contra a empresa devido ao conteúdo veiculado em suas diversas plataformas e redes sociais). As discussões sobre segurança na web não são recentes e, com o advento das redes sociais, tem se aprofundado ainda mais. A figura do pedófilo, por exemplo, já se tornou comum. Trata-se de um medo que assola o ambiente on-line contemporâneo. Políticas públicas já procuram coibir sua ação.
Uma pesquisa realizada pela ONG Plan Brasil, juntamente com a entidade Parceria para a Proteção da Criança e do Adolescente (CPP, em inglês), indica que 79% das meninas brasileiras com idades entre 10 e 14 anos não se sentem seguras ao acessar a internet. Os motivos para o temor são variados: de roubo de senhas das comunidades on-line a violência sexual. Uma menina de 12 anos, participante do painel de pesquisa em questão afirmou: “O problema não é a informação que você posta, são as pessoas que você acumula ao seu redor: amigos ou estranhos.” Os fakes, isto é, perfis falsos em comunidades on-line, são temidos. Não se sabe se eles são pedófilos, piratas da web ou se estão lá apenas para distribuir malwares por meio de spams. O medo da violência torna-se cada vez mais generalizado e compartilhado nas diversas plataformas on-line.
Scraps coloridos e com muitos links, no Orkut, por exemplo, já são temidos. Mesmo sem estudos ou estatísticas a respeito, a sensação de muitos usuários de redes sociais é de que eles são disparados por perfis de pessoas menos escolarizadas, ou com menos acesso à informação. Por isso, várias crianças migram para redes sociais que possam supostamente oferecer maior segurança, como o Facebook e o Twitter, seja por conta própria, seja por insistência dos pais ou irmãos mais velhos. É uma forma de, em vez de administrar a competição social e integrar a todos em instituições comuns, “comprar a proteção”. É como se a comunidade virtual passasse a ser definida mais por suas fronteiras vigiadas que por seu conteúdo, que deveria ser sua essência primordial. Algumas escolas particulares paulistanas já chegaram até a incluir disciplinas como “Ética e Cidadania Digital” em sua grade curricular para ensinar seus alunos de Ensino Fundamental a se proteger de eventuais pessoas de má fé em redes sociais.
Vale salientar que a maioria dos sites de relacionamento é destinada exclusivamente a maiores de 18 anos. Apesar de existirem as redes sociais exclusivas para crianças, como a NeoPets e a CosmoPax, elas sentem-se livres para criar perfis e utilizar todas as outras: basta mentir a idade. Trata-se de um comportamento comum em nossa sociedade, uma vez que crianças a partir dos 13 anos frequentemente falsificam documento para entrar em casas noturnas que atenderiam apenas maiores de 18 anos.

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MUNDO REAL, MUNDO VIRTUAL
Valores como a política da honestidade, a lei e ordem são frequentemente esquecidos no mundo off-line. E também são desrespeitados nas plataformas on-line, simulacros compulsórios da vida social real. Em seus estudos da sociedade capitalista moderna, Alain Peyrefitte* chegou à conclusão de que sua característica mais importante é a confiança em si, nos outros e nas instituições. Bauman afirma que podemos “descrever a moderna construção da ordem como um esforço contínuo de implantar fundações institucionais da confiança”. Pierre Bourdieu, por sua vez, defende a ligação entre o colapso da confiança e o enfraquecimento da vontade de engajamento. E nada mais é difícil que estabelecer uma relação de confiança e engajamento com plataformas que estão continuamente passando por processos de “reengenheirização” e imitação das inovações promovidas por outras redes sociais. E esse processo também ocorre simultaneamente nas próprias empresas que as disponibilizam. Por isso, a sensação de insegurança e anseio pela mudança também acontece com os adultos que nelas trabalham.

Extremamente superprotegidas nos mundos físico e virtual, as crianças ficam impedidas de se mover: restringem-se ao circuito de suas casas, escolas e (quiçá) clubes. É uma tendência descrita pela pesquisadora de marketing Faith Popcorn, o encasulamento, causado pela obsessão por segurança. As crianças, fortemente influenciadas e controladas pelos adultos que as rodeiam, passam cada vez mais tempo em suas casas e condomínios. Estes são lugares isolados, herméticos e seguros, sem tanta influência do caótico mundo exterior. Tal processo causa uma verdadeira confusão mental para os Digital natives que, apesar de participarem de uma fluida realidade virtual completamente globalizada, permanecem pessoas “locais”, uma vez que mal saem de seus bairros.
Esta dúvida também existe nos adultos contemporâneos à era digital. Eles trabalham em empresas locais, de capital global (e vice-versa), que estão continuamente tentando adaptar-se à realidade da sociedade da informação. São pessoas cada vez menos engajadas e mais desconfiadas, que se encasulam em pequenos e modernos apartamentos, vivendo a realidade dos grandes centros urbanos. Convivem com a insegurança em paralelo à sensação de contínuo monitoramento e perda da privacidade. É fazer check-in no Foursquare* ao entrar na própria casa, ao final de um dia de trabalho ou de uma manhã na escola.

* Alain Peyrefitte» Ensaísta e diplomata francês, Alain Peyerefitte (1925–1999) estudou na École Nationale d’Administration, foi ministro da Educação da França e membro da Academia Francesa. É autor do livro A sociedade da confiança (1995).

* Foursquare» Aplicativo de localização, no qual o usuário informa para sua rede de amigos no Twitter ou Facebook onde você se encontra, procedimento denominado de check-in. O usuário escolhe se deseja tornar pública ou não sua localização.

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Para entender a linguagem na rede
\o/ »
Emoticon, isto é, símbolo que representa uma pessoa levantando os braços efusivamente em sinal de alegria.

Hashtag » Ferramenta de tagging do Twitter. Ao adicionar o símbolo # (hash, em inglês), a palavra torna-se uma tag, isto é, uma categoria de assunto autorreferente. Isso permite uma busca por todos twitts que citem o assunto referido pela hashtag.

Baleiar » Verbo/neologismo que faz alusão à baleia que surge na tela do Twitter sempre que o servidor da rede social apresenta instabilidades.

#EpicFail » Hashtag muito popular no Twitter, que denota um grande fiasco.

Unfollow/ dar unfollow » Deixar de seguir determinado usuário do Twitter. No caso do uso da expressão no mundo off-line, quer dizer deixar de ouvir, dar importância ou até mesmo cortar relações com alguém.

Gadgets » Dispositivos ou aparelhos tecnológicos.

Malwares » Softwares maliciosos, como vírus e trojans, que se instalam no computador para causar danos ou roubar informações em geral.

Encasulamento » Termo cunhado pela estudiosa de marketing Faith Popcorn. Define a tendência do consumidor contemporâneo a desejar permanecer em casa, transformando-a em um “casulo” confortável, capaz de proteger das ameaças do mundo exterior.

REFERÊNCIAS
AGUIARI, Vinicius. Crianças usam 60% do tempo online em redes In: Portal Exame. Disponível em . Acesso em: 18/12/2010

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANUNCIANTES. Revista da ABA. n. 15, ano 13, agosto. 2009. p. 26-29.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

DIGITAL NATIVES. Blog disponível em . Acesso em: 18/12/2010

MOTA, M. Crianças online: A internet não é mais coisa (só) para gente grande. In: Meio Digital. n 10, maio/junho 2009. p.41-47.

http://leiturasdahistoria.uol.com.br

quinta-feira, 10 de março de 2011

A criança e a cultura lúdica


Gilles Brougère*
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1. INTRODUÇÃO

Toda uma escola de pensamento, retomando os grandes temas românticos inaugurados por Jean-Paul Richter e E. T. A. Hoffmann, vê no brincar o espaço da criação cultural por excelência. Deve-se a Winnicott a reativação de um pensamento segundo o qual o espaço lúdico vai permitir ao indivíduo criar e entreter uma relação aberta e positiva com a cultura: "Se brincar é essencial é porque é brincando que o paciente se mostra criativo"1. Brincar é visto como um mecanismo psicológico que garante ao sujeito manter uma certa distância em relação ao real, fiel, na concepção de Freud, que vê no brincar o modelo do princípio de prazer oposto ao princípio de realidade2. Brincar torna-se o arquétipo de toda atividade cultural que, como a arte, não se limita a uma relação simples com o real3.

Mas numa concepção como essa o paradoxo é que o lugar de emergência e de enriquecimento da cultura é pensado fora de toda cultura como expressão por excelência da subjetividade livre de qualquer restrição, pois esta é ligada à realidade. A cultura nasceria de uma instância e de um lugar marcados pela independência em face de qualquer outra instância, sob a égide de uma criatividade que poderia desabrochar sem obstáculos. O retrato é, sem dúvida, exagerado, mas traduz a psicologização contemporânea do brincar, que faz dele uma instância do indivíduo isolado das influências do mundo, pelo menos quando a brincadeira real se mostra fiel a essa idéia, recusando, por exemplo, qualquer ligação objetiva muito impositiva, caso do brinquedo concebido exteriormente ao ato de brincar. Encontramos aqui de volta o mito romântico tão bem ilustrado em L’enfant étranger, de Hoffmann, onde o brinquedo se opõe ao verdadeiro ato de brincar. Alguns autores negam a qualquer construção cultural estável até mesmo o termo "brincadeira", "jogo". Seriam uma apropriação do "brincar", essa dinâmica essencial ao ser humano.

Concepções como essas apresentam o defeito de não levar em conta a dimensão social da atividade humana que o jogo, tanto quanto outros comportamentos, não pode descartar. Brincar não é uma dinâmica interna do indivíduo, mas uma atividade dotada de uma significação social precisa que, como outras, necessita de aprendizagem. Desejaríamos, nesta comunicação, explorar as conseqüências desse ponto de vista e dele extrair um modelo de análise da atividade lúdica.



2. O ENRAIZAMENTO SOCIAL DO JOGO

Brincar supõe, de início, que no conjunto das atividades humanas, algumas sejam repertoriadas e designadas como "brincar" a partir de um processo de designação e de interpretação complexo. Não é objetivo desta comunicação mostrar que esse processo de designação varia no tempo de acordo com as diferentes culturas. O ludus latino não é idêntico ao brincar francês. Cada cultura, em função de analogias que estabelece, vai construir uma esfera delimitada (de maneira mais vaga que precisa) aquilo que numa determinada cultura é designável como jogo. O simples fato de utilizar o termo não é neutro, mas traz em si um certo corte do real, uma certa representação do mundo. Antes das novas formas de pensar nascidas do romantismo, nossa cultura parece ter designado como "brincar" uma atividade que se opõe a "trabalhar " (ver Aristóteles e Santo Tomás sobre o assunto), caracterizada por sua futilidade e oposição ao que é sério. Foi nesse contexto que a atividade infantil pôde ser designada com o mesmo termo, mais para salientar os aspectos negativos (oposição às tarefas sérias da vida) do que por sua dimensão positiva, que só aparecerá quando a revolução romântica inverter os valores atribuídos aos termos dessa oposição.

Seja como for, o jogo só existe dentro de um sistema de designação, de interpretação das atividades humanas4. Uma das características do jogo consiste efetivamente no fato de não dispor de nenhum comportamento específico que permitiria separar claramente a atividade lúdica de qualquer outro comportamento5. O que caracteriza o jogo é menos o que se busca do que o modo como se brinca, o estado de espírito com que se brinca. Isso leva a dar muita importância à noção de interpretação, ao considerar uma atividade como lúdica. Quem diz interpretação supõe um contexto cultural subjacente ligado à linguagem, que permite dar sentido às atividades. O jogo se inscreve num sistema de significações que nos leva, por exemplo, a interpretar como brincar, em função da imagem que temos dessa atividade, o comportamento do bebê, retomando este o termo e integrando-o progressivamente ao seu incipiente sistema de representação. Se isso é verdadeiro de todos os objetos do mundo, é ainda mais verdadeiro de uma atividade que pressupõe uma interpretação específica de sua relação com o mundo para existir. Se é verdade que há a expressão de um sujeito no jogo, essa expressão insere-se num sistema de significações, em outras palavras, numa cultura que lhe dá sentido. Para que uma atividade seja um jogo é necessário então que seja tomada e interpretada como tal pelos atores sociais em função da imagem que têm dessa atividade.

Essa não é a única relação do jogo com uma cultura preexistente, não é a única que invalida a idéia de ver na atividade lúdica a fonte da cultura. O segundo ponto que gostaríamos de salientar tem seu fundamento na literatura psicológica que atualmente insiste no processo de aprendizagem que torna possível o ato de brincar6. Parece que a criança, longe de saber brincar, deve aprender a brincar, e que as brincadeiras chamadas de brincadeiras de bebés entre a mãe e a criança são indiscutivelmente um dos lugares essenciais dessa aprendizagem. A criança começa por inserir-se no jogo preexistente da mãe mais como um brinquedo do que como uma parceira, antes de desempenhar um papel mais ativo pelas manifestações de contentamento que vão incitar a mãe a continuar brincando. A seguir ela vai poder tornar-se um parceiro, assumindo, por sua vez, o mesmo papel da mãe, ainda que de forma desajeitada, como nas brincadeiras de esconder uma parte do corpo. A criança aprende assim a reconhecer certas características essenciais do jogo: o aspecto fictício, pois o corpo não desaparece de verdade, trata-se de um faz-de-conta; a inversão dos papéis; a repetição que mostra que a brincadeira não modifica a realidade, já que se pode sempre voltar ao início; a necessidade de um acordo entre parceiros, mesmo que a criança não consiga aceitar uma recusa do parceiro em continuar brincando. Há, portanto, estruturas preexistentes que definem a atividade lúdica em geral e cada brincadeira em particular, e a criança as apreende antes de utilizá-las em novos contextos, sozinha, em brincadeiras solitárias, ou então com outras crianças. Não se trata aqui de expor a gênese do jogo na criança, mas de considerar a presença de uma cultura preexistente que define o jogo, torna-o possível e faz dele, mesmo em suas formas solitárias, uma atividade cultural que supõe a aquisição de estruturas que a criança vai assimilar de maneira mais ou menos personalizada para cada nova atividade lúdica.

Que tentam provar esses exemplos senão a idéia de que antes de ser um lugar de criação cultural, o jogo é um produto cultural, dotado de uma certa autonomia? Conseqüentemente o primeiro efeito do jogo não é entrar na cultura de uma forma geral, mas aprender essa cultura particular que é a do jogo. Esquecemo-nos facilmente de que quando se brinca se aprende antes de tudo a brincar, a controlar um universo simbólico particular. Isso se torna evidente se pensarmos no jogo do xadrez ou nos esportes, em que o jogo é a ocasião de se progredir nas habilidades exigidas no próprio jogo. Isso não significa que não se possa transferi-las para outros campos, mas aprende-se primeiramente aquilo que se relaciona com o jogo para depois aplicar as competências adquiridas a outros terrenos não-lúdicos da vida. Por isso é necessário aprender a contar antes de participar de jogos que usam os números. O jogo supõe uma cultura específica ao jogo, mas também o que se costuma chamar de cultura geral: os pré-requisitos.

A idéia que gostaríamos de propor e tratar a título de hipótese é a existência de uma cultura lúdica, conjunto de regras e significações próprias do jogo que o jogador adquire e domina no contexto de seu jogo. Em vez de ver no jogo o lugar de desenvolvimento da cultura, é necessário ver nele simplesmente o lugar de emergência e de enriquecimento dessa cultura lúdica, essa mesma que torna o jogo possível e permite enriquecer progressivamente a atividade lúdica. O jogador precisa partilhar dessa cultura para poder jogar.



3. TENTATIVA DE DESCRIÇÃO DA CULTURA LÚDICA

Tentaremos definir as características dessa cultura lúdica antes de examinar as relações que ela estabelece com o conjunto da cultura, e as conseqüências que isso pode ter sobre a relação da criança com a cultura numa perspectiva não mais psicológica, mas antropológica.

A cultura lúdica é, antes de tudo, um conjunto de procedimentos que permitem tornar o jogo possível. Com Bateson e Goffman7 consideramos efetivamente o jogo como uma atividade de segundo grau, isto é, uma atividade que supõe atribuir às significações de vida comum um outro sentido, o que remete à idéia de fazer-de-conta, de ruptura com as significações da vida quotidiana. Dispor de uma cultura lúdica é dispor de um certo número de referências que permitem interpretar como jogo atividades que poderiam não ser vistas como tais por outras pessoas. Assim é que são raras as crianças que se enganam quando se trata de discriminar no recreio uma briga de verdade e uma briga de brincadeira. Isso não é fácil para os adultos, sobretudo para aqueles que em suas atividades quotidianas se encontram mais afastados das crianças. Não dispor dessas referências é não poder brincar. Seria, por exemplo, reagir com socos de verdade a um convite para uma briga lúdica. Se o jogo é questão de interpretação, a cultura lúdica fornece referências intersubjetivas a essa interpretação, o que não impede evidentemente os erros de interpretação.

A cultura lúdica é, então, composta de um certo número de esquemas que permitem iniciar a brincadeira, já que se trata de produzir uma realidade diferente daquela da vida quotidiana: os verbos no imperfeito, as quadrinhas, os gestos estereotipados do início das brincadeiras compõem assim aquele vocabulário cuja aquisição é indispensável ao jogo.

A cultura lúdica compreende evidentemente estruturas de jogo que não se limitam às de jogos com regras. O conjunto das regras de jogo disponíveis para os participantes numa determinada sociedade compõe a cultura lúdica dessa sociedade e as regras que um indivíduo conhece compõem sua própria cultura lúdica. O fato de se tratar de jogos tradicionais ou de jogos recentes não interfere na questão, mas é preciso saber que essa cultura das regras individualiza-se, particulariza-se. Certos grupos adotam regras específicas. A cultura lúdica não é um bloco monolítico mas um conjunto vivo, diversificado conforme os indivíduos e os grupos, em função dos hábitos lúdicos, das condições climáticas ou espaciais.

Mas a cultura lúdica compreende o que se poderia chamar de esquemas de brincadeiras, para distingui-los das regras stricto sensu. Trata-se de regras vagas, de estruturas gerais e imprecisas que permitem organizar jogos de imitação ou de ficção. Encontram-se brincadeiras do tipo "papai e mamãe" em que as crianças dispõem de esquemas que são uma combinação complexa da observação da realidade social, hábitos de jogo e suportes materiais disponíveis. Da mesma forma, sistemas de oposições entre os mocinhos e bandidos constituem esquemas bem gerais utilizáveis em jogos muito diferentes. A cultura lúdica evolui com as transposições do esquema de um tema para outro.

Finalmente a cultura lúdica compreende conteúdos mais precisos que vêm revestir essas estruturas gerais, sob a forma de um personagem (Superman ou qualquer outro) e produzem jogos particulares em função dos interesses das crianças, das modas, da atualidade. A cultura lúdica se apodera de elementos da cultura do meio-ambiente da criança para aclimatá-la ao jogo.

Essa cultura diversifica-se segundo numerosos critérios. Evidentemente, em primeiro lugar, a cultura em que está inserida a criança e sua cultura lúdica. As culturas lúdicas não são (ainda?) idênticas no Japão e nos Estados Unidos. Elas se diversificam também conforme o meio social, a cidade e mais ainda o sexo da criança. É evidente que não se pode ter a mesma cultura lúdica aos 4 e aos 12 anos, mas é interessante observar que a cultura lúdica das meninas e dos meninos é ainda hoje marcada por grandes diferenças, embora possam ter alguns elementos em comum.

Pode-se analisar nossa época destacando as especificidades da cultura lúdica contemporânea, ligadas às características da experiência lúdica em relação, entre outras, com o meio-ambiente e os suportes de que a criança dispõe. Assim desenvolveram-se formas solitárias de jogos, na realidade interações sociais diferidas através de objetos portadores de ações e de significações. Uma das características de nosso tempo é a multiplicação dos brinquedos8. Podem-se evocar alguns exemplos como a importância que adquiriram os bonecos, freqüentemente ligados a universos imaginários, valorizando o jogo de projeção num mundo de miniatura. Esse tipo de jogo não é novo, entretanto a cultura lúdica contemporânea enriqueceu e aumentou a importância dessa estrutura lúdica. Não podemos deixar de citar os video-games: uma nova técnica cria novas experiências lúdicas que transformam a cultura lúdica de muitas crianças. Tudo isso mostra a importância do objeto na constituição da cultura lúdica contemporânea.



4. A PRODUÇÃO DA CULTURA LÚDICA

Seria interessante tentar levantar hipóteses sobre a produção dessa cultura lúdica. Na realidade, como qualquer cultura, ela não existe pairando acima de nossas cabeças, mas é produzida pelos indivíduos que dela participam. Existe na medida em que é ativada por operações concretas que são as próprias atividades lúdicas. Pode-se dizer que é produzida por um duplo movimento interno e externo. A criança adquire, constrói sua cultura lúdica brincando. É o conjunto de sua experiência lúdica acumulada, começando pelas primeiras brincadeiras de bebê, evocadas anteriormente, que constitui sua cultura lúdica. Essa experiência é adquirida pela participação em jogos com os companheiros, pela observação de outras crianças (podemos ver no recreio os pequenos olhando os mais velhos antes de se lançarem por sua vez na mesma brincadeira), pela manipulação cada vez maior de objetos de jogo. Essa experiência permite o enriquecimento do jogo em função evidentemente das competências da criança, e é nesse nível que o substrato biológico e psicológico intervêm para determinar do que a criança é capaz.. Os jogos de ficção supõem a aquisição da capacidade de simbolização para existirem. O desenvolvimento da criança determina as experiências possíveis, mas não produz por si mesmo a cultura lúdica. Esta, origina-se das interações sociais, do contato direto ou indireto (manipulação do brinquedo: quem o concebeu não está presente, mas trata-se realmente de uma interação social). A cultura lúdica como toda cultura é o produto da interação social9 que lança suas raízes, como já foi dito, na interação precoce entre a mãe e o bebê.

Isso significa que essa experiência não é transferida para o indivíduo. Ele é um co-construtor. Toda interação supõe efetivamente uma interpretação das significações dadas aos objetos dessa interação (indivíduos, ações, objetos materiais), e a criança vai agir em função da significação que vai dar a esses objetos, adaptando-se à reação dos outros elementos da interação, para reagir também e produzir assim novas significações que vão ser interpretadas pelos outros. A cultura lúdica, visto resultar de uma experiência lúdica, é então produzida pelo sujeito social. O termo "construção" é mais legitimamente empregado em sociologia, mas percebe-se aqui uma dimensão de criação, se concordarmos sobre a definição desse termo. Voltaremos ao assunto.

Mas a cultura lúdica, mesmo que esse isolamento conceitual corresponda mais a uma necessidade de clareza na exposição do que a uma realidade, é também objeto de uma produção externa. De fato, essa experiência se alimenta continuamente de elementos vindos do exterior, não oriundos do jogo. A cultura lúdica não está isolada da cultura geral. Essa influência é multiforme e começa com o ambiente, as condições materiais. As proibições dos pais, dos mestres, o espaço colocado à disposição da escola, na cidade, em casa, vão pesar sobre a experiência lúdica. Mas o processo é indireto, já que aí também se trata de uma interação simbólica, pois, ao brincar, a criança interpreta os elementos que serão inseridos, de acordo com sua interpretação e não diretamente.

Alguns elementos parecem ter uma incidência especial sobre a cultura lúdica. Trata-se hoje da cultura oferecida pela mídia, com a qual as crianças estão em contato: a televisão e o brinquedo. A televisão, assim como o brinquedo, transmite hoje conteúdos e às vezes esquemas que contribuem para a modificação da cultura lúdica que vem se tornando internacional. Mas, embora arriscando-me a repetir, eu diria que o processo é o mesmo. Barbie intervém no jogo na base da interpretação que a criança faz das significações que ela traz10. De uma certa forma, esses novos modos de transmissão substituíram os modos antigos de transmissão oral dentro de uma faixa etária, propondo modelos de atividades lúdicas ou de objetos lúdicos a construir. Não estamos dizendo que o sistema antigo foi menos impositivo, de forma alguma.

Na realidade, há jogo quando a criança dispõe de significações, de esquemas em estruturas que ela constrói no contexto de interações sociais que lhe dão acesso a eles. Assim ela co-produz sua cultura lúdica, diversificada conforme os indivíduos, o sexo, a idade, o meio social. Efetivamente, de acordo com essas categorias, as experiências e as interações serão diferentes. Meninas e meninos não farão as mesmas experiências e as interações (como com os brinquedos que ganham) não serão as mesmas. Então, portadores de uma experiência lúdica acumulada, o uso que farão dos mesmos brinquedos será diferente. Observamos meninas e meninos brincando com bonecos fantásticos idênticos (da série He-Man, Mestres do Universo) Os meninos inventavam jogos de guerra bastante semelhantes a outros jogos com outros objetos, já as meninas, em numerosos casos, utilizavam os bonecos para reproduzir os atos essenciais da vida quotidiana (comer, dormir), reproduzindo os esquemas de ação usados com as bonecas. Descobre-se assim uma combinação, uma negociação entre as significações veiculadas pelos objetos lúdicos e as de que as crianças dispõem graças à experiência lúdica anterior.

Evidentemente deve-se desconfiar das palavras que usamos e evitar que a cultura lúdica se constitua em substância: ela só existe potencialmente – trata-se do conjunto de elementos de que uma criança pode valer-se para seus jogos. Da mesma maneira que a linguagem com suas regras e palavras, ela existe apenas como virtualidade.

Mas o jogo deixa menos marcas que a linguagem, e há os que pensam que ele só pode ser associado à subjetividade de um indivíduo que obedece ao princípio do prazer. Trata-se de fato de um ato social que produz uma cultura (um conjunto de significações) específica e, ao mesmo tempo, é produzido por uma cultura.

Limitamo-nos à cultura lúdica infantil, mas existe também uma cultura lúdica adulta, e é preciso igualmente situá-la dentro da cultura infantil, isto é, no interior de um conjunto de significações produzidas para e pela criança. A sociedade propõe numerosos produtos (livros, filmes, brinquedos) às crianças. Esses produtos integram as representações que os adultos fazem das crianças, bem como os conhecimentos sobre a criança disponíveis numa determinada época. Mas o que caracteriza a cultura lúdica é que apenas em parte ela é uma produção da sociedade adulta, pelas restrições materiais impostas à criança. Ela é igualmente a reação da criança ao conjunto das propostas culturais, das interações que lhe são mais ou menos impostas. Daí advém a riqueza, mas também a complexidade de uma cultura em que se encontram tanto as marcas das concepções adultas quanto a forma como a criança se adapta a elas. Os analistas acentuam, então, uns, o condicionamento, outros, a inventividade, a criação infantil. Mas o interessante é justamente poder considerar os dois aspectos presentes num processo complexo de produção de significações pelas crianças. É claro que o jogo é controlado pelos adultos por diferentes meios, mas há na interação lúdica, solitária e coletiva, algo de irredutível aos constrangimentos e suportes iniciais: é a reformulação disso pela interpretação da criança, a abertura à produção de significações inassimiláveis às condições preliminares.



5. ALGUMAS CONSEQÜÊNCIAS DE NOSSA ANÁLISE

Que conseqüências extrair desta rápida análise que tinha por objetivo fornecer um quadro de referências a uma interpretação sócio-antropológica do jogo?

O jogo é antes de tudo o lugar de construção (ou de criação, mas esta palavra é, às vezes, perigosa!) de uma cultura lúdica. Ver nele a invenção da cultura geral falta ainda ser provado. Existe realmente uma relação profunda entre jogo e cultura, jogo e produção de significações, mas no sentido de que o jogo produz a cultura que ele próprio requer para existir. É uma cultura rica, complexa e diversificada.

Mas esse jogo, longe de ser a expressão livre de uma subjetividade, é o produto de múltiplas interações sociais, e isso desde a sua emergência na criança. É necessária a existência do social, de significações a partilhar, de possibilidades de interpretação, portanto, de cultura, para haver jogo. Isso supõe encontrar uma definição mais restritiva que o habitual para a palavra jogo, e separá-lo, como fazem cada vez mais os pesquisadores11, da exploração – comportamento (comportamento de exploração) encontrado no animal e no homem, e que pode ser anterior à emergência de uma interação social. Para nós, acompanhando nesse ponto Bateson, o jogo supõe um acordo a respeito do estatuto da comunicação, não sendo impossível que certas espécies animais sejam capazes desse comportamento social elementar. Mas acima de seu substrato natural, biológico, o jogo, como qualquer atividade humana, só se desenvolve e tem sentido no contexto das interações simbólicas, da cultura.

Que é feito então da criatividade atribuída ao jogo desde a revolução romântica? Se definirmos a noção de criatividade a partir das teses de Chomsky12 , poderemos retomar essa questão relativamente ao jogo. A partir de palavras e estruturas gramaticais conhecidas, o locutor pode pronunciar enunciados que jamais ouviu, que são novos para ele, embora milhares de outras pessoas possam tê-los pronunciado antes dele. Esse exemplo permite-nos redefinir a noção, que se tornou usual, de criatividade. Ela é compatível com a noção de regra, pois nasce do respeito de um conjunto de regras. É essencial e corrente na língua. A criatividade é a possibilidade de usar a linguagem para produzir enunciados pessoais, específicos, novos, e não a de repetir enunciados ouvidos ou aprendidos, seja qual for o valor intrínseco desses enunciados. Criatividade não significa originalidade. Dizer pela primeira vez, sem tê-lo ouvido antes, um enunciado produzido por outros, milhares de vezes, é usar a dimensão criativa da língua, sem com isso ser original. Cada pessoa pode criar no seu nível pessoal, sem que isso signifique uma criação da humanidade tomada globalmente. Reservar a criatividade à aparição de um enunciado absolutamente novo na história da humanidade seria reduzi-la à exceção. O romantismo sobrevalorizou a noção de criatividade, associando-a estreitamente à arte, e isso no contexto de uma nova visão da atividade artística de que somos os herdeiros. A arte torna-se o exemplo privilegiado da criatividade e, em troca, não há verdadeira criatividade fora da arte. Assim, o poder criador da linguagem só se expressaria realmente na poesia. Para Schlegel, a língua comum é uma forma de arte primordial, mas só a poesia revela as potencialidades criativas da língua. Não há verdadeiramente criação e imaginação se não houver poesia. Além do mais, a criança e o poeta estão em relação estreita. Relativamente à análise do jogo, é preciso voltar a uma noção não "romantizada" da criatividade. Trata-se de abordar a dimensão criativa do jogo, conferindo a essa noção o sentido chomskyano da criatividade, aceitando as semelhanças entre jogo e linguagem. Aceitemos a banalidade da criatividade. Segundo esse modelo, quem brinca se serve de elementos culturais heterogêneos para construir sua própria cultura lúdica com significações individualizadas.

Resta uma última questão, a de saber se o jogo poderia ser um meio privilegiado de acesso à cultura. É indiscutível que a cultura lúdica participa do processo de socialização da criança. Deve-se considerar que sua contribuição é essencial? Parece-me difícil de provar. Os que defendem esse ponto de vista parecem movidos mais pelo interesse pelo jogo do que por resultados científicos. Mas dizer que o jogo e a cultura lúdica contribuem para a socialização nada significa, na medida em que se pode dizer o mesmo de todas as experiências da criança. A título de hipótese pode-se ir mais longe. A importância das diferenças sexuais na cultura lúdica pode indicar-nos o papel que ela pode representar na construção da identidade sexual13. Mas parece-me interessante ressaltar um outro aspecto mais estrutural. O processo usado na construção da cultura lúdica tem todos os aspectos mais complexos da construção de significações pelo ser humano (papel da experiência, aprendizagem progressiva, elementos heterogêneos provenientes de fontes diversas, importância da interação, da interpretação, diversificação da cultura conforme diferentes critérios, importância da criatividade no sentido chomskyano), e não é por acaso que o jogo freqüentemente é tomado como modelo de funcionamento social pelos sociólogos. Pode-se então considerar que através do jogo a criança faz a experiência do processo cultural, da interação simbólica em toda a sua complexidade. Daí a tentação de considerá-lo sob diversas formas como origem da cultura. Pode-se imaginar que isso não pode ocorrer sem produzir aprendizagens nesse campo, o que coloca o problema delicado da transferenciabilidade. Seja como for, a experiência lúdica aparece como um processo cultural suficientemente rico em si mesmo para merecer ser analisado mesmo que não tivesse influência sobre outros processos culturais mais amplos.

* Professor da Universidade Paris-Nord.

Tradução de Ivone Mantoanelli e revisão de Tizuko Morchida Kishimoto.

1 Winnicott, Jeu et réalité, tr. fr., Paris : Gallimard, 1975, p. 26.

2 "Toda criança que brinca se comporta como um poeta, pelo fato de criar um mundo só seu, ou, mais exatamente, por transpor as coisas do mundo em que vive para um universo novo em acordo com suas conveniências." Sigmund Freud, "La création littéraire et le rêve éveillé" (1908), in Essais de psychanalyse appliquée, tr. fr., Paris : Gallimard, 1973, p. 70.

3 O poeta age como a criança que brinca; cria um mundo imaginário que leva muito a sério, isto é, que dota de grandes qualidades de afetos, sem deixar de distingui-lo claramente da realidade." Ibidem.

4 Ver sobre o assunto Jacques Henriot, Sous couleur de jouer - La métaphore ludique, Paris, José Corti, 1989.

5 Ö caráter lúdico de um ato não vem da natureza do que é feito, mas da maneira como é feito... O brincar não comporta nenhuma atividade instrumental que lhe seja própria. Ele tira suas configurações de comportamentos de outros sistemas afetivos comportamentais." P. C. Reynold, "Play, language and human evolution", citado por J. S. Bruner, Le développement de l’enfant - Savoir faire, savoir dire, Paris : P.U.F., 1983, p.223.

6 Pode-se certamente citar novamente Jerome Bruner, particularmente em sua tão bela obra Child’s talk: learning to use language, Oxford University Press, Oxford, 1983, que utilizei do ponto de vista de uma análise do jogo em Gilles Brougère, "How to change words into play", Communication & Cognition, vol.27, n.3 (1994), p.273-86.

7 Gregory Bateson, "A theory of play and fantasy", in Steps of an ecology of mind, St.Albans, Herts, Al: Paladin, 1973. Erving Goffman, Frame Analysis - An Essay of the Organization of Experience, Nova York: Harper and Row, 1974.

8 Sobre a análise do brinquedo moderno pode-se consultar Gilles Brougère (dir.), Le Jouet, Autrement, n.133, novembro de 1992, Brian Sutton-Smith, Toys as culture, Nova York : Gardner Press, 1986, Stephen Kline, Out of the garden - Toys and children’s culture in the age of TV marketing, Toronto: Garamond Press, London: verso, 1993.

9 Referimo-nos de maneira implícita à corrente do interacionismo simbólico, tal como vem definido em Herbert Blumer, Symbolic Interactionism - Perspective and Method, [1969], Berkeley : University of California Press, 1986.

10 A esse respeito ver Gilles Brougère, "Désirs actuels et images d’avenir dans le jeu", in L’éducation par le jeu et l’environnement, n.47, 3. trimestre 1992.

11 Ver, por exemplo, S. John Hutt et al., Play, exploration and learning - A natural history of pre pre-school, London : Routledge, 1989

12 N. Chomsky, La linguistique cartésienne [1966], tr. fr. Paris, Le Seuil, 1969. Segundo esse autor, há dois tipos de criatividade, aquela que modifica as regras, freqüentemente considerada com exclusão da outra, e a que é engendrada pelas próprias regras. Chomsky mostrou como, de Descartes a Humboldt, a lingüística dos séculos XVII a XIX percebeu essa dimensão criativa que a lingüística moderna nem sempre tomou em consideração. O aspecto criador da língua evidencia, segundo Chomsky, na trilha de Descartes e seus discípulos, a capacidade humana de inovar. Para a filosofia clássica é essa característica que distingue o homem do autômato ou do animal. A conseqüência é que a língua não fica reduzida a uma função de comunicação (reação adequada a estímulos ) mas é igualmente "um instrumento para exprimir livremente o pensamento e para reagir a situações novas" (op. cit., p.36). É essa característica da língua que permite ao homem evadir-se ao mesmo tempo da situação presente e dos modelos de uso da língua com que está familiarizado. Pode personalizar suas mensagens, evocar o que não existe, inventar, inovar, permanecendo numa situação de comunicação possível, isto é, de ser compreendido por outros, o que supõe o respeito das regras lingüísticas e gramaticais. Criação e respeito às regras caminham lado a lado.

13 Sobre esse assunto, cf. Pierre Tap, Masculin et féminin chez l’enfant, Toulouse: Privat, 1985.

Revista da Faculdade de Educação - USP

quarta-feira, 9 de março de 2011

Estrangeirismo às avessas

Termos brasileiros de uso corriqueiro são tratados nos EUA como signos de uma cultura difícil de digerir

Edgard Murano

Ação policial em favela carioca: foco na linguagem para abordar ponto fraco do Rio de Janeiro
A mídia norte-americana bem que tentou truncar a candidatura do Rio a sede das Olimpíadas em 2016. Não por acaso, dias antes de o comitê olímpico anunciar a escolha da cidade, a conceituada revista The New Yorker publicara reportagem de fôlego sobre o tráfico nas favelas cariocas.

O texto estava na gaveta da revista havia pelo menos quatro meses. Além do senso de oportunidade em alfinetar a concorrente com sua mais gritante debilidade, a matéria Gangland ("terra das gangues") virou exemplo de deferência que os brasileiros se acostumaram a fazer ao idioma dos outros. O comum é vermos textos brasileiros inundados de estrangeirismos, alguns em alusão a conceitos tão específicos que nem sempre conseguimos tradução aceitável, de élan a dèjá vu, de round a factoring (empréstimo de dinheiro usando promissórias e cheques como garantia).

Salta aos olhos a opção do jornalista Jon Lee Anderson por manter sem versão em inglês termos de língua portuguesa, como "traficantes", "cachaça", "feijoada" e "evangélica". Vocábulos que consideramos de uso cotidiano, tão banais que nem merecem atenção especial, são tratados como signos de uma cultura difícil de ser digerida por outro povo.

É evidente que o recurso tem a função de acentuar o exotismo de cada expressão aos olhos estrangeiros. Mas o texto se tornou, involuntariamente, uma compilação de termos nossos que causam estranhamento à cultura anglo-saxã.

- Preservar os sons originais de uma língua é vital à compreensão de uma parcela do sentido das palavras - afirma o escritor inglês Adam Jacot de Boinod.

No livro Tingo (Conrad, 2008), Boinod popularizou o "turismo linguístico" ao compilar palavras de difícil tradução. Mas diferentemente de Bonoid, em Anderson as palavras preservadas estão a serviço de um estilo. Ele usa, por exemplo, "maconha", para o qual há sinônimos em inglês, mas que foi mantido intacto por expressar a riqueza sonora da variante brasileira.

Gíria nacional
O texto é generoso em exemplos, a maioria seguida de explicações ao pé da letra no idioma de Obama. A expressão "boca de fumo" é vertida como mouth of smoke e descrita como "gíria brasileira para o lugar onde drogas são vendidas". E letras de funk são traduzidas de forma literal para realçar o conteúdo erótico e violento. Há as adaptações de contexto (o traficante Cebolinha vira Little Onion, para situar o leitor americano), e de rodapés explicativos (o "PQD" de Marcelo PQD é definido como abreviatura de "paraquedista", paratrooper). As adaptações culturais, no entanto, predominam nesse estrangeirismo às avessas.

Se "maluco", "baile funk" e "dendê" sinalizam o que há de peculiar no universo carioca, gírias pinçadas ao acaso são levadas a sério, como "bandidos", que se traduz por "importadores de drogas no atacado". Como essa, outras palavras podem ter assumido novos significados nas favelas a ponto de chamar a atenção americana, como "asfalto" (todo lugar fora de uma favela, posto que ela é ocupação ilegal, em geral sem pavimentação urbana), "dono" (chefe do comando de várias favelas), "subdelegado" ou "subgerente" (auxiliar do chefe de uma favela) e "açougueiro" (assassino sanguinário).
O apuro linguístico do texto não vence o fosso que nos separa. Mas mostra que palavras nossas ecoam mundo afora, por ouvidos alheios à nossa realidade.

Favela da linguagem

Como os norte-americanos entendem palavras usadas nos morros cariocas
Termo OriginalVersão em InglêsSignificado Norte-Americano
Boca de FumoMouth of smokeGíria brasileira para o lugar onde se vendem drogas.
MaconhaWeed (erva)Erva.
Gerente GeralGeneral managerFavela chief (chefe da favela).
DonosOwners (proprietários)Top gang bosses (chefões do comando de muitas gangues).
Macumba-Religião afro-derivada, junto com a Umbanda e o Candomblé.
MalucoManiac (maníaco)"Louco". A conotação dada por um entrevistado na reportagem, "ele é um maluco", é positiva (de "ele é um incorrigível").
Dendê-Equivalente português para o óleo de dendê africano.
Feijoada-Prato tradicional brasileiro com carne de porco e feijão preto.

As pátrias dos doutores

Hierarquias de títulos acadêmicos esclarecem o país e o idioma que as adotam

Paulo Ferreira da Cunha

O universitário ou a pessoa de cultura que vai de um país a outro tem vantagens face ao simples turista. Há coisas que lhe são já familiares... Pois a cultura é, em grande parte, universal. Um chinês terá de conhecer Shakespeare se quiser ser culto, e um inglês retribuirá sabendo quem foi Confúcio.

Mesmo países pequenos, como Portugal, e "periféricos", como o Brasil, têm valores culturais que não podem ser ignorados, sob pena de termos o direito de chamar incultos a quem os ignore. Desconhecer Machado de Assis, Villa-Lobos ou Niemeyer é ser analfabeto. Mas haveria tantos mais... Gentes de todas as cores e quadrantes políticos têm obrigação de ter ouvido Chico Buarque, lido Guimarães Rosa, visto Brasília e suas asas...

Há contudo um aspecto em que as pessoas cultas não ganham grande coisa com a sua condição: no domínio das fórmulas linguísticas. Quando vai de um país a outro, o académico talvez até ganhasse em não o ser. Porque as convenções linguísticas em matéria académica são muito diversas. E é fatal que cometa gafes.

A síndrome do "professor"
Não vamos deliciar-nos com alemães que adoram títulos académicos, e em que o suprassumo do saber seria ser "Prof. Dr. Dr. Dr. h. c. Multipl. Fulano de tal". Ou seja, trata-se de um professor universitário, doutorado duas vezes, mas também com múltiplos doutoramentos honoris causa (que funcionam como condecorações internacionais, quer a académicos quer a políticos e pessoas de notoriedade). Também não importa escalpelizar o pólo oposto, os países anglo-saxónicos em que, dizendo a lenda (nos países latino-americanos) que todos igualitariamente se tratam por "mister", "mrs." e "miss"), na verdade, quando alguém tem doutoramento em muitos casos o usa e lho tributam. E também há "Professors" por lá, e gente que os trata como tais...

Fiquemo-nos pela comparação linguística mais simples, entre Brasil e Portugal. Mesmo assim, não entremos nas variantes do português do Brasil. Nesse domínio, muito haveria para um académico lusitano espantar-se... Desde os usos do pronome pessoal "tu" e do "você", e do curioso vocativo "Professor!" na sala de aula que, estamos em crer em Portugal por via das telenovelas, de há anos a esta parte tem vindo a invadir as classes portuguesas, só perdendo para a corruptela "setôr" (abreviatura oral de "Senhor doutor", outrora fórmula universal de tratar os professores, do ensino secundário ao universitário).

Cerimônias
Ainda hoje há professores portugueses que tremeriam de pavor ao serem tratados pelo nome próprio por um aluno, e com o título de "professor", simpliciter. Um português com o meu nome estaria à espera de ser tratado - oralmente! - por um aluno pelo seguinte título, digno do Império Bizantino: "Senhor Professor Ferreira da Cunha" ou "Senhor Professor Paulo Ferreira da Cunha". Tenho alunos e antigos alunos hoje meus colegas que ainda assim me tratam, e por deferência. Mas fazem-no a todos como a mim...

Por carta, colocam-nos sempre "Excelentíssimo" antes desse sintagma que lembra um trem... E ainda incluirão entre o "Professor" e o nome próprio mais um "Doutor" por extenso... Imagine-se se o nosso estrangeiro em terras brasílicas não é inteligente e internacionalmente maleável para compreender que tratarem-no por "professor" simplesmente é coisa natural. E tratarem-no por "professor" não é nada de especial numa universidade, como tratarem qualquer um por "Senhor" na rua. Contudo, além do uso imoderado do "doutor" (in dubio? Ou por simpatia?), no Brasil há muita cerimónia, que o desprevenido viajante luso poderá considerar o máximo do obséquio e até algum arcaísmo. Por vezes, certa cerimónia no vestir em certos meios (a recomendação de gravata para sessões solenes é curiosa, a seus olhos, mesmo que o alienígena ande sempre de gravata). Não é inusitado o cerimonial, com mestre de cerimónias, em eventos. O próprio ritual de chamar, entre palmas, os palestrantes para a mesa ou o estilo amabilíssimo e mais dilatado que na Europa... Tudo isso dá ar oitocentista ao mesmo tempo que no mais parece estar-se na pura pós-modernidade. Brasil, sem dúvida país de extremos.

Origens
Daria para meditar o contraste entre os vocativos linguísticos informais, que o lusitano sem prática consideraria íntimos quase, com a formalidade da mise-en-scène académica. Tentemos antes ir ao âmago da questão. Façamos a autopsia do sisudismo académico, com a neutralidade de quem disseca cadáver de batráquio. Tudo começa com os títulos académicos. O intelectual lisboeta Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894) chocava-se com a falta de habilitações literárias para altos postos políticos e administrativos. Já o filósofo portuense Sampaio Bruno (1857-1915) pensava ser um escândalo que os empregos públicos fossem conferidos a quem era, então, bacharel. Parecia-lhe colidir com o princípio da igualdade. A doutrina divide-se, como se vê, e não é de hoje. Curiosamente, nem um nem outro destes publicistas do delicioso século 19 tinha educação muito formal. Eram ambos autodidactas.

Uma coisa são habilitações reais, competência clara, e outra os títulos. E confunde-se demais o doirado dos "canudos" com a substância. É patologia social quando se é povo de titulados e titulares. Nisso algo há de comum dos dois lados do Atlântico. Tratamo-nos excessivamente por "doutores", e muitas vezes sem propriedade. Hoje, os mestrados na Europa tendem a ter o mesmo número de anos dos bacharelatos brasileiros, e de suas antigas licenciaturas. Como chamar o quê a quem?

Mania de nobreza
Já o advertira o humanista Nicolau Clenardo (1493-1542), que no rectângulo extremo da Europa detectou a mania das nobrezas. Mais tarde, no tempo do Marquês de Pombal (1699-1782), eram os pergaminhos feridos da nobreza mais antiga pelo poder novo-rico do "fidalgote". E Antero de Quental (1842-1891) explicou, nas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, como entre nós está democratizado o foro nobiliárquico: por isso ideais de independência e autonomia; mas também egoísmo e inveja, como sublinha Teixeira de Pascoaes (1877-1952) na Arte de ser Português. Aqueles ideais se exportariam para o Brasil, segundo Agostinho da Silva (1906-1994), um dos fundadores da Universidade de Brasília.

Somos todos nobres, ou queremos sê-lo. Não só no Brasil, mas na América Latina há grande interesse pela genealogia. Abolidos os títulos nobiliárquicos (e quem não ostenta anel de brasão adora exibir anel de curso...), com o advento da República passamos a querer ser doutores.

As manias da autopromoção deveriam ser pensadas. Que abundância de "professores universitários" que o não são, e dos que, mais subtis, se apresentam como "docentes"... Os doutores substituíram os barões. Almeida Garrett (1799-1854), poeta e dramaturgo liberal, dizia:
"- Foge Cão que te fazem Barão.
- Para onde, se me fazem visconde?"
Clenardo é que tudo captou bem: generalizada mania da nobreza. Haja fome, mas com pompa. E à falta de mais posses, muitos rabanetes escondidos em brocados, sedas e rendas... Numa carta, conta Clenardo que o nobre empobrecido, ostentando a sua prodigalidade, se apresentava pelas ruas, cambaleante de noitada rija, segurado por dois lacaios. Mas anotara a sua dieta na agenda: não tinha comido nada, por não haver rabanetes no mercado (sua única comida). Vem de longe o gosto da ostentação, sem posses nem conteúdo.

Que "doutor"?
Não posso deixar de sorrir quando vejo quem dê aulas numa universidade e acabe por reivindicar para si igual título ao dos Mestres dos Mestres, de quem fica a anos-luz de distância. Aqui entre nós: não prezo os títulos. Prezo as pessoas, seu saber e competência. Custa-me, contudo, que um bafejado pela sorte, ou ingénuo, só porque dá umas aulas em não se sabe que instituição, que por sua vez reivindica para si o título de universidade (com ou sem mérito) se venha a alcandorar a posição que, por lei, estará reservada aos que têm no mínimo doutoramento. É certo que até esse grau se abastardou. Mas há quem o não tenha sequer...
O uso imoderado da designação "Prof. Doutor", que em Portugal vai do professor auxiliar, recém-doutorado, até o catedrático (no Brasil, titular) jubilado, emérito e consagrado, não é de molde a mostrar quem é quem.

Rendas e rabanetes
Ao usar-se, em Portugal (não na Espanha ou no Brasil, em que tal designação parece rigorosa) o "Prof. Dr." para qualquer licenciado (ou menos) que dê aulas no ensino superior, a indução do público em erro não poderia ser maior.

O Manoel é licenciado e dá umas aulas numa universidade: usa "Prof. Dr.". O Joaquim é bacharel, licenciado, mestre, doutor e agregado (livre-docente no Brasil), e catedrático (titular no Brasil): usa "Prof. Doutor". Mas, com pudor da "doutorice" nacional, este pode acabar por usar só "Prof. Dr.", como qualquer espanhol ou brasileiro, professor e doutorado, entenda-se. Portanto, quando vê um lusitano usar para si "Prof. Dr." o brasileiro terá de pensar: este ou é fraudulento ou modesto. Terá de decifrar o rosto, a caligrafia, a seda da gravata nas tais recepções de gala...

A linguagem fez-se para nos entendermos e para nos desentendermos, entendendo-nos. Mas as formas de tratamento de ofício deveriam indicar o ofício. Ninguém, sendo tenente, finge que é coronel... O público de boa fé não deve presumir titulado quem se diz professor universitário. Quando oiço falar em "docentes", puxo logo da lupa. Que é arma de ver diplomas.

Tantas rendas e rabanetes!
Compreende-se a lenda que explica por que em Lisboa terá nascido o uso de chamar professores aos já doutorados, e doutores aos não doutorados... Teriam sido os professores doutorados de medicina que a teriam posto em voga, para marcar bem que eram mais que os simples licenciados em medicina e cirurgia, que toda a gente, em todo o mundo, parece tratar por doutores. Vai daí, a moda espalhou-se. Ainda não entendi bem, mas parece-me que no Brasil é o contrário: todo o que ensina é professor, mas só os doutores (e médicos, advogados e gentes do foro) são doutores. Mas claro que estes doutores não são os outros, que têm cara ou roupa ou carro de doutor.

Ser o que não é
Pois é esse clima que faz com que muitos pretendam aparentar o que não são, e se arroguem títulos que não têm. Em França, há um dicionário da falsa nobreza. Mircea Eliade, salvo erro, aconselhava a, perguntado na Índia pelo seu grau académico, se dissesse "Doutor". Nada menos. E doutoramentos eram tão complicados e longos em Portugal que havia quem aconselhasse os licenciados portugueses, que são os bacharéis brasileiros, a dizer fora do país que eram doutores. Porque a licenciatura portuguesa, equivalente ao bacharelato brasileiro, valia tanto, em profundidade, como doutoramento em países terceiros. E desde logo muito mais que nos EUA... Sem etnocentrismo, e com a frieza com que, aos 11 anos, abri uma rã a bisturi.

Paulo Ferreira da Cunha é Catedrático de Estudos Brasileiros na Univ. Lusófona e de Direito na Univ. do Porto

As lições dos mestres

As qualidades ensinadas por alguns dos textos marcantes da língua portuguesa

Luiz Costa Pereira Junior

Só há um jeito de começar a escrever: é começar agora. O conselho, mesmo que ninguém o peça embora o devesse, abre um livro excelente sobre a atividade escrita, Oficina de Escritores (Martins Fontes, 2008), de Stephen Koch. Manuais de escrita prêt-à-porter lembram aqueles guias de autoajuda existencial ou corporativa sempre muito reverenciados, mas inúteis - o de Koch não o é. Ele sabe e professa que a atividade de escrita não é um talento inato, mas tampouco é coisa que se aprenda sozinho.

Cada escritor tem ao menos uma grande lição digna de nota. Em língua portuguesa, podemos aprender muito sobre como elaborar bons textos se aproveitarmos a lição que a leitura dos mestres oferece.

A revista Língua faz a seguir uma pequena seleção das qualidades que alguns desses textos nos legaram, com certas qualidades de estilo em língua portuguesa.
Os autores selecionados não foram, evidentemente, os únicos redatores a fazê-lo. Muitos têm igualmente o que nos ensinar, e a lista que segue está longe de esgotar as possibilidades. Mas nada impede que o leitor imagine a sua própria lista.



Quebrar a expectativa
Padre Antonio Vieira

Exímio pregador, padre Antonio Vieira (1608-1697) foi um mestre do estilo barroco. Era particularmente eficaz em usar a quebra de uma expectativa da plateia como base para fisgar a atenção de seus interlocutores. Com a ameaça de invasão da Bahia pelas tropas holandesas, fez algo inusitado, por exemplo, no sermão de 11 de maio de 1625: passou uma descompostura no próprio Deus.

"Tão presumido venho de vossa misericórdia, Deus meu, que ainda que nós sejamos os pecadores, vós haveis de ser o arrependido", sentenciou no púlpito.
Vieira se levantara contra a ideia de a Providência favorecer Maurício de Nassau, que sem oposição à altura já ocupara do Ceará ao Sergipe, evocando outra fé que não a de Roma e outro Deus que não o português.

O sermão de Vieira mirava a apatia dos homens, pensava no conforto do Estado e da Igreja, mas o jesuíta sabia que pouco adiantaria acusar os súditos da coroa portuguesa àquela altura. Preferiu usar Deus como figura de retórica. Com isso, reduziu eventuais resistências a suas opiniões.

É recurso antigo esse, o de preparar o terreno, descrever uma situação facilmente assimilada pelo ouvinte, antes de emitir pra valer a própria opinião.
Modificar o conjunto de opiniões e valores do leitor antes de dizer realmente o que se
deseja. Uma aula de retórica.

Usar palavras significativas
Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira

Perguntado sobre que tipos de leitura nos ensinam a escrever, o poeta Glauco Mattoso assegura que a poesia ainda é a melhor maneira de conhecer as palavras.
- A poesia trabalha a palavra ao limite, isoladamente. Cada palavra é ela mesma um texto. Quando você mexe nelas isoladamente, pensa uma por uma, acaba tendo uma visão melhor do todo, que é o texto. O leitor interessado em aprimorar o seu processo de escrita deveria começar a ler os poetas clássicos - afirma Mattoso.

Mattoso cita referências clássicas antigas (Homero, Catulo, Horácio, Anacreonte e Virgílio), renascentistas (o Luís Vaz de Camões de Os Lusíadas; o Tomás Antônio Gonzaga de Marília de Dirceu) e, principalmente, modernas (Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade).

- Drummond rompe com toda a tradição. O Bandeira fez a ponte entre dois estilos, entre a poesia mais regrada e a moderna. Ele tem uma fase de transição entre o parnasianismo e a literatura mais moderna, dá para aprender muito com tudo isso - pondera.

O poeta admite a importância de ler prosa, mas adverte que a prática pode produzir vícios na linguagem e na forma. Mesmo em profissionais da escrita, como no jornalismo, há vícios, como figuras de linguagem que se repetem. A leitura da poesia, por ser um gênero que lida com diversos significados e acepções das palavras, inclusive as figuradas, permite que as pessoas pensem melhor, reflitam sobre o significado das palavras e do mundo. Assim, acaba-se não só ampliando o vocabulário como descobrindo possibilidades expressivas, o que alarga o universo do redator.

Deixar algo implícito
Machado de Assis

Uma das muitas habilidades de Machado de Assis (1839-1908) era a sutileza com que abusava da ironia e do absurdo das situações quando parecia usar técnicas realistas de escrita.

No conto "Um Homem Célebre" (Várias Histórias), o pianista Pestana sonha com a imortalidade que nunca terá, aquela dada a Mozart, por exemplo. Aprendera música com um padre, que as más línguas tomam por seu pai biológico. Pestana tinha ambições eruditas, mas termina por fazer fortuna como compositor de músicas mais populares.

Como esse é o conflito central da narrativa, Machado descarta explorar a filiação bastarda logo nas primeiras linhas do conto. E concentra-se na história de Pestana. Vencido pelas imposições de ocasião, ele morre sem compor nada de erudito ("bem com os homens, mal consigo mesmo"). Mas eis que, de relance, Machado larga lá pela segunda metade do conto a marca de sua ironia. Enquanto narra o pianista num momento de entusiamos com a composição de uma música, menciona de passagem:
"Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação".

E nos dá, discretamente, com piscadela, a confirmação dos boatos maldosos, que, na superfície, garantira evitar.
Machado nos ensina a cifrar um pensamento na planície superficial de outro.

Cortar palavras excessivas
Graciliano Ramos

Na fala e na escrita, Graciliano Ramos foi um homem de poucas palavras. Literalmente. Sua contribuição inestimável à escrita brasileira está no ato de ligar a força bruta do enredo a uma forma rara de economia expressiva: a concisão lírica. Cortar um texto até deixar-lhe a medula, o indispensável à compreensão, o grau zero de escrita, periga retirar-lhe o molho, a alma, a força alusiva. Graciliano ensina a fazer outra pergunta. Destituído de adereço, descarnado ao osso, de que maneira um texto, ainda assim, pode sensibilizar? O escritor retrata o ambiente sem derramamento, mas achando o ponto em que ser conciso e seco emociona e envolve.

Graciliano, por exemplo, descreve a casa em que foi morar em Buíque (PE), aos 3 anos, em 1895:
"O quintal subsiste duro e nu, sem flores, sem verdura, tendo por único adorno, ao fundo, junto a montes de lixo, um pé de turco, ótimo para a gente se esconder nas perseguições. Desse lado o pé de turco marcava o limite do mundo."

Na linha final do período, os efeitos de uma vida de reclusão na casa do pai. A prosa concisa e sem excessos ou floreios de Graciliano é seca como as paragens que descrevia e os personagens condenados à derrota antes de terem ciência disso. Um estilo adequado ao material. Essa, uma outra lição de Graciliano.

A prática da reescrita
Jornais e revistas de excelência

Um texto tem de bastar-se. Para a professora Ana Rosa Ferreira Dias, do Departamento de Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), todo texto deve ser autossuficiente: não precisar que o leitor busque informação em outro lugar para entendê-lo; ter vida própria, fazer-se presente mesmo na ausência do redator. Refazer um texto não é fazer outro novo a partir de uma folha em branco, mas reescrever o original.

A reescrita é um exercício de humildade do redator, de percepção de que o texto deve servir ao leitor, em primeiro lugar.

- É preciso ter em seu horizonte discursivo a imagem de seu leitor. Por quê? Isso vai fazer com que ele observe a adequação da linguagem à idade do receptor do texto, à sua posição social, ao seu grau de escolaridade - recomenda.

Quem deseja melhorar a própria escrita precisa adquirir o hábito de exercitá-la, reescrevendo o próprio texto. Essa lição nos é dada pelo jornalismo, que tem tradição consolidada de reescrita. Produtos jornalísticos viraram modelos disso ao marcarem época por prezar a excelência do texto, como Realidade, sucesso nos anos 60, disponível apenas em sebos hoje em dia. Alguns periódicos recentes retomam a tradição, como Piauí. Mas fuja dos textos padronizados das revistas semanais. A professora, que ministra cursos de redação, afirma que todo texto é fruto de um processo, de um trabalho.

A surpresa está na simplicidade
Nizan Guanaes, no comercial de TV Hitler

Criado em 1988 para o jornal Folha de S.Paulo pelo redator Nizan Guanaes, o comercial Hitler se tornou um dos exemplos máximos de simplicidade que arrebata, na história da comunicação brasileira. O texto apresenta um grande líder que tirara o país da miséria. Nós não vemos sua imagem, de imediato. Cada frase é lida por um locutor enquanto uma foto desse líder se expande a partir de um único pigmento. Ficamos sabendo que, sob o governo desse líder, a inflação do país acabou. O desemprego se tornou o menor do continente. A dívida externa foi paga em três anos. Tudo feito por um homem que, na juventude, sonhava ser pintor. A cada frase dita, mais nítida ficava a imagem... de Hitler. Ao fim do texto, a afirmação: "Com um monte de verdades podemos criar uma grande mentira".

Formado por comunicação verbal e visual, o texto foi criado para a agência W/GGK, com direção de arte de Gabriel Zellmeister e direção de criação de Washington Olivetto.

O texto de Guanaes mostra que o bom texto é o que busca surpreender o interlocutor. Levá-lo para um caminho e mudar as coordenadas, com outra história até então mantida em segredo. Diante do previsível e do convencional, a surpresa estabelece a curiosidade, e seu efeito se produz quando afinal a informação "secreta" se revela na superfície, pegando o leitor desprevenido.

A descrição que decifra
Guimarães Rosa

Descrever algo, alguém ou uma cena é uma necessidade contemporânea. Da receita de bolo à mensagem postada no blog, do boletim de ocorrência policial ao relatório de uma empresa, fazer uma descrição virou um desafio de escrita. Uma boa descrição é mais do que uma versão por escrito de uma fotografia. Guimarães Rosa foi um mestre da descrição clássica, que procura nos dar não só uma imagem visual do rosto de um personagem, por exemplo, mas um acesso ao seu estado de espírito:
"Aurísio é um mameluco brancarano, cambota, anoso, asmático como um fole velho, e com supersenso de cor e casta" ("São Marcos", em Sagarana).

Primeiro, ele nos apresenta uma série de traços exteriores: "mameluco brancarano" (mestiço com predominância do branco), "cambota" (manco, ou de pernas tortas), "anoso" (idoso), "asmático como um fole velho"... E em seguida uma revelação sobre a personalidade do indivíduo, que pressupõe (no presente caso) uma familiaridade prévia do narrador. O uso de palavras pouco comuns no cotidiano dá um relevo surreal à descrição, mostrando algo enquanto também o decifra. Eis uma lição rosiana.


Outras virtudes da língua

As técnicas e figuras de linguagem na literatura lusófona (por Gabriel Perissé)

Paradoxos
José Eduardo Agualusa

Os paradoxos fazem o leitor pensar o impensável, o que é sempre uma forma de exercitar a curiosidade e o espírito crítico. Nesta passagem de um conto do escritor angolano Agualusa, surge um impossível alfarrabista (dono de um sebo) que mantivesse os livros em ordem.

"Um alfarrabista organizado, metódico, sugere-me algo vagamente monstruoso, capaz de ofender a ordem natural das coisas, um pouco como um lagarto com duas cabeças, um advogado ingênuo, um general pacifista." ("Discurso Sobre o Fulgor da Língua", no livro Manual Prático de Levitação. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005, pág. 96).

Anticlímax
Luiz Vilela
O anticlímax requer mão de mestre. Uma narrativa vai em progressão ascendente, cria-se expectativa, tudo indica que haverá um clímax, que se chegará a um ponto culminante, mas no final cai-se no banal. No conto "O Suicida", de Luiz Vilela, um sujeito ligou para a rádio avisando que saltaria de um prédio. O suicídio anunciado é aguardado com ansiedade mas...

"A decepção era geral, todo mundo se sentia logrado. O único que vi contente com a coisa foi um dos estudantes: tinham apostado uma Brahma, e o que apostara que ninguém ia suicidar ria e gozava o outro, dando soquinhos. Mas o outro ainda não se dera por vencido; ainda não estava escuro, o sujeito ainda podia pular. Mas ninguém pulou mesmo." ("O Suicida", no livro Os Melhores Contos de Luiz Vilela. São Paulo: Global, 1988, pág. 129).

Antítese
Fabrício Carpinejar

Contrastes e antíteses são uma forma de ressaltar as dualidades da existência. Algumas dicotomias clássicas podem ser recuperadas em tom mais atual, como Carpinejar faz, opondo otimistas e pessimistas.

"O otimista é frouxo, repete as mesmas frases evasivas e genéricas como 'precisa acreditar' ou 'tenha esperança'. O pessimista é pessoal, persuasivo, abrirá seus segredos com desembaraço. O otimista rende somente autoajuda. O pessimista proporciona alta literatura." ("O Humor do Fodido", no livro Mulher Perdigueira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, pág. 87).

Anáfora
Raduan Nassar

A anáfora [repetição de palavras] é uma das estratégias de que dispomos para dar ênfase aos nossos textos. Neste momento de Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, uma palavra reaparece no início de sucessivas frases.

"O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo, o tempo se espreguiçava provocadoramente [...]." (Lavoura Arcaica. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, pág. 95).

Eufemismo
João Ubaldo Ribeiro

Dentre todos os medos humanos, a morte é a campeã e, por isso, tornou-se um dos maiores alvos do eufemismo, que atenua a ideia mórbida. João Ubaldo Ribeiro nos dá uma amostra desse recurso.

"Vítima contumaz do terrorismo médico que nos assola em jornais, revistas e reuniões sociais, todo dia me convencem de que serei ceifado ou, no mínimo, entortado definitivamente pelas doenças que nos pegarão, quer deixemos de fazer, quer persistamos em fazer alguma coisa." ("Mantendo a Forma", em O Conselheiro Come. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pág. 86).


Outras virtudes da língua

As técnicas e figuras de linguagem na literatura lusófona (por Gabriel Perissé)

"Vítima contumaz do terrorismo médico que nos assola em jornais, revistas e reuniões sociais, todo dia me convencem de que serei ceifado ou, no mínimo, entortado definitivamente pelas doenças que nos pegarão, quer deixemos de fazer, quer persistamos em fazer alguma coisa." ("Mantendo a Forma", em O Conselheiro Come. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pág. 86).

Símile
Mia Couto
É um recurso estilístico em que a comparação entre dois seres ou duas realidades tem por finalidade realçar um dos termos, como neste exemplo encontrado num romance do escritor moçambicano Mia Couto:
"Falo muito do mar? Me deixe explicar, senhor inspector: eu sou como o salmão. Vivo no mar mas estou sempre de regresso ao lugar da minha origem, vencendo a corrente, saltando cascata. Retorno ao rio onde nasci para deixar meu sémen e depois morrer. Todavia, eu sou peixe que perdeu a memória." (A Varanda do Frangipani. Maputo: Ndjira, 2001, pág. 50).

Etimologia
Adélia Prado
Utilizar as surpresas que a etimologia reserva é uma forma de abordar diferentes questões. A linguagem conserva em seus meandros significados esquecidos, mas resgatáveis, como neste trecho de Adélia Prado:
"Por causa da minha caprichada educação religiosa, aprendi coisas lindas: solidéu, por exemplo, aquele bonezinho minúsculo que papa mais bispo usam e se chama assim por causa de poder ser tirado só pra Deus. Olhe bem: soli Deo!" (Solte os Cachorros. São Paulo: Siciliano, 1979, pág. 77).

Metáfora
Ferréz
A figura de estilo mais importante e mais polêmica é a metáfora, e todo escritor sabe que é uma arma fundamental, como nesta crônica de Ferréz, em que mostra o perigo da inteligência.

"Estou armado, talvez seja preso por porte ilegal de inteligência, e passe a vida inteira em prisão aberta, pagando uma grande pena e vendo um país ir pro buraco." (Cronista de um Tempo Ruim. São Paulo: Selo Povo, 2009, pág. 50).

Prosopopeia
Clarice Lispector
Referindo-se e falando com Brasília como se fosse um ser humano, Clarice Lispector oferece um bom exemplo de prosopopeia, ou personalização.

"Ai que te pego, Brasília! E vais sofrer torturas terríveis nas minhas mãos! Você me incomoda, ó gélida Brasília [...]." (Para não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pág. 51).

Anadiplose
Osman Lins
Anadiplose, apesar do nome pomposo, consiste apenas em repetir a última palavra de uma frase no começo da seguinte, dando realce a algum elemento, como os sapatos desse personagem de Osman Lins.

"Olhou a esposa. Ela cruzara os pés e estava de sapatos, aqueles sapatos negros e já velhos, resguardados pelo seu zelo diligente contra o uso e o tempo." (O Fiel e a Pedra. São Paulo: Summus, 1979, pág. 204).

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