quarta-feira, 9 de março de 2011

As pátrias dos doutores

Hierarquias de títulos acadêmicos esclarecem o país e o idioma que as adotam

Paulo Ferreira da Cunha

O universitário ou a pessoa de cultura que vai de um país a outro tem vantagens face ao simples turista. Há coisas que lhe são já familiares... Pois a cultura é, em grande parte, universal. Um chinês terá de conhecer Shakespeare se quiser ser culto, e um inglês retribuirá sabendo quem foi Confúcio.

Mesmo países pequenos, como Portugal, e "periféricos", como o Brasil, têm valores culturais que não podem ser ignorados, sob pena de termos o direito de chamar incultos a quem os ignore. Desconhecer Machado de Assis, Villa-Lobos ou Niemeyer é ser analfabeto. Mas haveria tantos mais... Gentes de todas as cores e quadrantes políticos têm obrigação de ter ouvido Chico Buarque, lido Guimarães Rosa, visto Brasília e suas asas...

Há contudo um aspecto em que as pessoas cultas não ganham grande coisa com a sua condição: no domínio das fórmulas linguísticas. Quando vai de um país a outro, o académico talvez até ganhasse em não o ser. Porque as convenções linguísticas em matéria académica são muito diversas. E é fatal que cometa gafes.

A síndrome do "professor"
Não vamos deliciar-nos com alemães que adoram títulos académicos, e em que o suprassumo do saber seria ser "Prof. Dr. Dr. Dr. h. c. Multipl. Fulano de tal". Ou seja, trata-se de um professor universitário, doutorado duas vezes, mas também com múltiplos doutoramentos honoris causa (que funcionam como condecorações internacionais, quer a académicos quer a políticos e pessoas de notoriedade). Também não importa escalpelizar o pólo oposto, os países anglo-saxónicos em que, dizendo a lenda (nos países latino-americanos) que todos igualitariamente se tratam por "mister", "mrs." e "miss"), na verdade, quando alguém tem doutoramento em muitos casos o usa e lho tributam. E também há "Professors" por lá, e gente que os trata como tais...

Fiquemo-nos pela comparação linguística mais simples, entre Brasil e Portugal. Mesmo assim, não entremos nas variantes do português do Brasil. Nesse domínio, muito haveria para um académico lusitano espantar-se... Desde os usos do pronome pessoal "tu" e do "você", e do curioso vocativo "Professor!" na sala de aula que, estamos em crer em Portugal por via das telenovelas, de há anos a esta parte tem vindo a invadir as classes portuguesas, só perdendo para a corruptela "setôr" (abreviatura oral de "Senhor doutor", outrora fórmula universal de tratar os professores, do ensino secundário ao universitário).

Cerimônias
Ainda hoje há professores portugueses que tremeriam de pavor ao serem tratados pelo nome próprio por um aluno, e com o título de "professor", simpliciter. Um português com o meu nome estaria à espera de ser tratado - oralmente! - por um aluno pelo seguinte título, digno do Império Bizantino: "Senhor Professor Ferreira da Cunha" ou "Senhor Professor Paulo Ferreira da Cunha". Tenho alunos e antigos alunos hoje meus colegas que ainda assim me tratam, e por deferência. Mas fazem-no a todos como a mim...

Por carta, colocam-nos sempre "Excelentíssimo" antes desse sintagma que lembra um trem... E ainda incluirão entre o "Professor" e o nome próprio mais um "Doutor" por extenso... Imagine-se se o nosso estrangeiro em terras brasílicas não é inteligente e internacionalmente maleável para compreender que tratarem-no por "professor" simplesmente é coisa natural. E tratarem-no por "professor" não é nada de especial numa universidade, como tratarem qualquer um por "Senhor" na rua. Contudo, além do uso imoderado do "doutor" (in dubio? Ou por simpatia?), no Brasil há muita cerimónia, que o desprevenido viajante luso poderá considerar o máximo do obséquio e até algum arcaísmo. Por vezes, certa cerimónia no vestir em certos meios (a recomendação de gravata para sessões solenes é curiosa, a seus olhos, mesmo que o alienígena ande sempre de gravata). Não é inusitado o cerimonial, com mestre de cerimónias, em eventos. O próprio ritual de chamar, entre palmas, os palestrantes para a mesa ou o estilo amabilíssimo e mais dilatado que na Europa... Tudo isso dá ar oitocentista ao mesmo tempo que no mais parece estar-se na pura pós-modernidade. Brasil, sem dúvida país de extremos.

Origens
Daria para meditar o contraste entre os vocativos linguísticos informais, que o lusitano sem prática consideraria íntimos quase, com a formalidade da mise-en-scène académica. Tentemos antes ir ao âmago da questão. Façamos a autopsia do sisudismo académico, com a neutralidade de quem disseca cadáver de batráquio. Tudo começa com os títulos académicos. O intelectual lisboeta Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894) chocava-se com a falta de habilitações literárias para altos postos políticos e administrativos. Já o filósofo portuense Sampaio Bruno (1857-1915) pensava ser um escândalo que os empregos públicos fossem conferidos a quem era, então, bacharel. Parecia-lhe colidir com o princípio da igualdade. A doutrina divide-se, como se vê, e não é de hoje. Curiosamente, nem um nem outro destes publicistas do delicioso século 19 tinha educação muito formal. Eram ambos autodidactas.

Uma coisa são habilitações reais, competência clara, e outra os títulos. E confunde-se demais o doirado dos "canudos" com a substância. É patologia social quando se é povo de titulados e titulares. Nisso algo há de comum dos dois lados do Atlântico. Tratamo-nos excessivamente por "doutores", e muitas vezes sem propriedade. Hoje, os mestrados na Europa tendem a ter o mesmo número de anos dos bacharelatos brasileiros, e de suas antigas licenciaturas. Como chamar o quê a quem?

Mania de nobreza
Já o advertira o humanista Nicolau Clenardo (1493-1542), que no rectângulo extremo da Europa detectou a mania das nobrezas. Mais tarde, no tempo do Marquês de Pombal (1699-1782), eram os pergaminhos feridos da nobreza mais antiga pelo poder novo-rico do "fidalgote". E Antero de Quental (1842-1891) explicou, nas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, como entre nós está democratizado o foro nobiliárquico: por isso ideais de independência e autonomia; mas também egoísmo e inveja, como sublinha Teixeira de Pascoaes (1877-1952) na Arte de ser Português. Aqueles ideais se exportariam para o Brasil, segundo Agostinho da Silva (1906-1994), um dos fundadores da Universidade de Brasília.

Somos todos nobres, ou queremos sê-lo. Não só no Brasil, mas na América Latina há grande interesse pela genealogia. Abolidos os títulos nobiliárquicos (e quem não ostenta anel de brasão adora exibir anel de curso...), com o advento da República passamos a querer ser doutores.

As manias da autopromoção deveriam ser pensadas. Que abundância de "professores universitários" que o não são, e dos que, mais subtis, se apresentam como "docentes"... Os doutores substituíram os barões. Almeida Garrett (1799-1854), poeta e dramaturgo liberal, dizia:
"- Foge Cão que te fazem Barão.
- Para onde, se me fazem visconde?"
Clenardo é que tudo captou bem: generalizada mania da nobreza. Haja fome, mas com pompa. E à falta de mais posses, muitos rabanetes escondidos em brocados, sedas e rendas... Numa carta, conta Clenardo que o nobre empobrecido, ostentando a sua prodigalidade, se apresentava pelas ruas, cambaleante de noitada rija, segurado por dois lacaios. Mas anotara a sua dieta na agenda: não tinha comido nada, por não haver rabanetes no mercado (sua única comida). Vem de longe o gosto da ostentação, sem posses nem conteúdo.

Que "doutor"?
Não posso deixar de sorrir quando vejo quem dê aulas numa universidade e acabe por reivindicar para si igual título ao dos Mestres dos Mestres, de quem fica a anos-luz de distância. Aqui entre nós: não prezo os títulos. Prezo as pessoas, seu saber e competência. Custa-me, contudo, que um bafejado pela sorte, ou ingénuo, só porque dá umas aulas em não se sabe que instituição, que por sua vez reivindica para si o título de universidade (com ou sem mérito) se venha a alcandorar a posição que, por lei, estará reservada aos que têm no mínimo doutoramento. É certo que até esse grau se abastardou. Mas há quem o não tenha sequer...
O uso imoderado da designação "Prof. Doutor", que em Portugal vai do professor auxiliar, recém-doutorado, até o catedrático (no Brasil, titular) jubilado, emérito e consagrado, não é de molde a mostrar quem é quem.

Rendas e rabanetes
Ao usar-se, em Portugal (não na Espanha ou no Brasil, em que tal designação parece rigorosa) o "Prof. Dr." para qualquer licenciado (ou menos) que dê aulas no ensino superior, a indução do público em erro não poderia ser maior.

O Manoel é licenciado e dá umas aulas numa universidade: usa "Prof. Dr.". O Joaquim é bacharel, licenciado, mestre, doutor e agregado (livre-docente no Brasil), e catedrático (titular no Brasil): usa "Prof. Doutor". Mas, com pudor da "doutorice" nacional, este pode acabar por usar só "Prof. Dr.", como qualquer espanhol ou brasileiro, professor e doutorado, entenda-se. Portanto, quando vê um lusitano usar para si "Prof. Dr." o brasileiro terá de pensar: este ou é fraudulento ou modesto. Terá de decifrar o rosto, a caligrafia, a seda da gravata nas tais recepções de gala...

A linguagem fez-se para nos entendermos e para nos desentendermos, entendendo-nos. Mas as formas de tratamento de ofício deveriam indicar o ofício. Ninguém, sendo tenente, finge que é coronel... O público de boa fé não deve presumir titulado quem se diz professor universitário. Quando oiço falar em "docentes", puxo logo da lupa. Que é arma de ver diplomas.

Tantas rendas e rabanetes!
Compreende-se a lenda que explica por que em Lisboa terá nascido o uso de chamar professores aos já doutorados, e doutores aos não doutorados... Teriam sido os professores doutorados de medicina que a teriam posto em voga, para marcar bem que eram mais que os simples licenciados em medicina e cirurgia, que toda a gente, em todo o mundo, parece tratar por doutores. Vai daí, a moda espalhou-se. Ainda não entendi bem, mas parece-me que no Brasil é o contrário: todo o que ensina é professor, mas só os doutores (e médicos, advogados e gentes do foro) são doutores. Mas claro que estes doutores não são os outros, que têm cara ou roupa ou carro de doutor.

Ser o que não é
Pois é esse clima que faz com que muitos pretendam aparentar o que não são, e se arroguem títulos que não têm. Em França, há um dicionário da falsa nobreza. Mircea Eliade, salvo erro, aconselhava a, perguntado na Índia pelo seu grau académico, se dissesse "Doutor". Nada menos. E doutoramentos eram tão complicados e longos em Portugal que havia quem aconselhasse os licenciados portugueses, que são os bacharéis brasileiros, a dizer fora do país que eram doutores. Porque a licenciatura portuguesa, equivalente ao bacharelato brasileiro, valia tanto, em profundidade, como doutoramento em países terceiros. E desde logo muito mais que nos EUA... Sem etnocentrismo, e com a frieza com que, aos 11 anos, abri uma rã a bisturi.

Paulo Ferreira da Cunha é Catedrático de Estudos Brasileiros na Univ. Lusófona e de Direito na Univ. do Porto

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