Hierarquias de títulos acadêmicos esclarecem o país e o idioma que as adotam | ||
Paulo Ferreira da Cunha Mesmo países pequenos, como Portugal, e "periféricos", como o Brasil, têm valores culturais que não podem ser ignorados, sob pena de termos o direito de chamar incultos a quem os ignore. Desconhecer Machado de Assis, Villa-Lobos ou Niemeyer é ser analfabeto. Mas haveria tantos mais... Gentes de todas as cores e quadrantes políticos têm obrigação de ter ouvido Chico Buarque, lido Guimarães Rosa, visto Brasília e suas asas... Há contudo um aspecto em que as pessoas cultas não ganham grande coisa com a sua condição: no domínio das fórmulas linguísticas. Quando vai de um país a outro, o académico talvez até ganhasse em não o ser. Porque as convenções linguísticas em matéria académica são muito diversas. E é fatal que cometa gafes. A síndrome do "professor" Fiquemo-nos pela comparação linguística mais simples, entre Brasil e Portugal. Mesmo assim, não entremos nas variantes do português do Brasil. Nesse domínio, muito haveria para um académico lusitano espantar-se... Desde os usos do pronome pessoal "tu" e do "você", e do curioso vocativo "Professor!" na sala de aula que, estamos em crer em Portugal por via das telenovelas, de há anos a esta parte tem vindo a invadir as classes portuguesas, só perdendo para a corruptela "setôr" (abreviatura oral de "Senhor doutor", outrora fórmula universal de tratar os professores, do ensino secundário ao universitário). Por carta, colocam-nos sempre "Excelentíssimo" antes desse sintagma que lembra um trem... E ainda incluirão entre o "Professor" e o nome próprio mais um "Doutor" por extenso... Imagine-se se o nosso estrangeiro em terras brasílicas não é inteligente e internacionalmente maleável para compreender que tratarem-no por "professor" simplesmente é coisa natural. E tratarem-no por "professor" não é nada de especial numa universidade, como tratarem qualquer um por "Senhor" na rua. Contudo, além do uso imoderado do "doutor" (in dubio? Ou por simpatia?), no Brasil há muita cerimónia, que o desprevenido viajante luso poderá considerar o máximo do obséquio e até algum arcaísmo. Por vezes, certa cerimónia no vestir em certos meios (a recomendação de gravata para sessões solenes é curiosa, a seus olhos, mesmo que o alienígena ande sempre de gravata). Não é inusitado o cerimonial, com mestre de cerimónias, em eventos. O próprio ritual de chamar, entre palmas, os palestrantes para a mesa ou o estilo amabilíssimo e mais dilatado que na Europa... Tudo isso dá ar oitocentista ao mesmo tempo que no mais parece estar-se na pura pós-modernidade. Brasil, sem dúvida país de extremos. Origens Uma coisa são habilitações reais, competência clara, e outra os títulos. E confunde-se demais o doirado dos "canudos" com a substância. É patologia social quando se é povo de titulados e titulares. Nisso algo há de comum dos dois lados do Atlântico. Tratamo-nos excessivamente por "doutores", e muitas vezes sem propriedade. Hoje, os mestrados na Europa tendem a ter o mesmo número de anos dos bacharelatos brasileiros, e de suas antigas licenciaturas. Como chamar o quê a quem? Mania de nobreza Somos todos nobres, ou queremos sê-lo. Não só no Brasil, mas na América Latina há grande interesse pela genealogia. Abolidos os títulos nobiliárquicos (e quem não ostenta anel de brasão adora exibir anel de curso...), com o advento da República passamos a querer ser doutores. As manias da autopromoção deveriam ser pensadas. Que abundância de "professores universitários" que o não são, e dos que, mais subtis, se apresentam como "docentes"... Os doutores substituíram os barões. Almeida Garrett (1799-1854), poeta e dramaturgo liberal, dizia: Rendas e rabanetes O Manoel é licenciado e dá umas aulas numa universidade: usa "Prof. Dr.". O Joaquim é bacharel, licenciado, mestre, doutor e agregado (livre-docente no Brasil), e catedrático (titular no Brasil): usa "Prof. Doutor". Mas, com pudor da "doutorice" nacional, este pode acabar por usar só "Prof. Dr.", como qualquer espanhol ou brasileiro, professor e doutorado, entenda-se. Portanto, quando vê um lusitano usar para si "Prof. Dr." o brasileiro terá de pensar: este ou é fraudulento ou modesto. Terá de decifrar o rosto, a caligrafia, a seda da gravata nas tais recepções de gala... A linguagem fez-se para nos entendermos e para nos desentendermos, entendendo-nos. Mas as formas de tratamento de ofício deveriam indicar o ofício. Ninguém, sendo tenente, finge que é coronel... O público de boa fé não deve presumir titulado quem se diz professor universitário. Quando oiço falar em "docentes", puxo logo da lupa. Que é arma de ver diplomas. Tantas rendas e rabanetes! Ser o que não é Paulo Ferreira da Cunha é Catedrático de Estudos Brasileiros na Univ. Lusófona e de Direito na Univ. do Porto |
quarta-feira, 9 de março de 2011
As pátrias dos doutores
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