quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O que é que Coreia tem?

"Se o aluno não aprende, o professor é reprovado." Com essa mentalidade, a Coreia do Sul saltou da condição de país obscuro no ranking da educação e da tecnologia para uma posição de destaque mundial. Analistas que estudam o desenvolvimento econômico coreano criaram uma expressão para esse fenômeno: "febre educacional"

Texto e fotos: Johnny Mazilli

Até o início da década de 60 a Coreia do Sul, oficialmente República da Coreia, era um país agrário e pobre, numa península dividida ao meio pela guerra fratricida com a Coreia do Norte (1950-1953), com o trauma de mais de um milhão de mortos. Um em cada três coreanos era analfabeto e boa parte da população passava fome. Apesar disso, em 40 anos o país virou um "tigre asiático" e se tornou o 13o PIB mundial. Hoje, oito de cada dez habitantes ingressam na universidade. Para mudar, os coreanos revolucionaram seu sistema educacional, desde o nível mais básico até a pesquisa científica.


Cerimônia de graduação de estudantes na Universidade de Seul.
O país entendeu que a chave para o êxito do ensino superior era concentrar recursos no ensino fundamental. Hoje, a Coreia investe 4% do PIB em educação e todas as suas salas de aula são equipadas com computadores modernos, conectados à internet por banda larga. A internet é uma mania nacional e o país, campeão mundial em fibras óticas e banda larga (100 Mbps). Nove em cada dez residências usam a rede. Todos os alunos do ensino fundamental e médio recebem livros didáticos digitais gratuitamente. Desde cedo as crianças são estimuladas a pensar no futuro e no país com visão empreendedora. Com 7 anos já simulam entrevistas de emprego e as escolas trabalham sob slogans como "Economia Forte É País Forte", ou "Economize um Centavo, Orgulhe Seu País".

Uma administração centralizada supervisiona e administra as escolas com uma política coerente de estímulos a professores e alunos. O sistema de reconhecimento de mérito premia os bons professores e os estudantes desde a escola até as últimas etapas do aprendizado. Os mais talentosos são automaticamente incentivados com bolsas de estudo e cursos extracurriculares. Os professores são vistos como elementos-chave do processo educacional e gozam de alto prestígio na sociedade. Trabalham em regime de dedicação exclusiva a uma única escola e são proibidos de manter um segundo emprego. Estão entre os mais bem pagos do mundo: um profissional experiente pode ganhar US$ 6 mil mensais.

Universidade da Coreia, um dos vários centros de excelência de ensino superior.
Outro aspecto decisivo do sistema é o envolvimento familiar. Pais seriamente comprometidos tornam os filhos motivados e criativos. É comum as famílias investirem cerca de 20% de seus rendimentos no custeio de cursos extracurriculares para os filhos. O governo apoia a cultura do esforço familiar e investe na construção de grandes bibliotecas, com vastos acervos e recursos tecnológicos que atraem famílias inteiras nos fins de semana.

Os investimentos na construção do capital humano foram fundamentais para a arrancada do desenvolvimento econômico. Num passado não distante, a Coreia do Sul e o Brasil compartilhavam semelhanças. Em 1960, ambos eram países subdesenvolvidos que patinavam em índices socioeconômicos calamitosos e taxas nefastas de analfabetismo rondando os 35%. Na época, o Sudão e a Coreia do Sul tinham a mesma renda per capita: US$ 900 anuais. O Brasil então estava à frente, com o dobro desse valor.

Até 1987 a Coreia foi um foco da Guerra Fria, atravessada por uma zona desmilitarizada que separa tropas norte-coreanas apoiadas por chineses e soviéticos, ao norte, de tropas sul-coreanas e norte-americanas, ao sul. A instabilidade política gerou várias ditaduras e golpes militares, mas desde as manifestações democráticas e as eleições de 1987, o país mantém a estabilidade e o desenvolvimento econômico.

Em 40 anos, Brasil e Coreia do Sul se distanciaram dramaticamente nos rankings educionais. O analfabetismo coreano foi erradicado e hoje 82% dos jovens frequentam universidades. O Brasil ainda tem entre 9,7% e 11% de analfabetos e apenas 18% de estudantes na universidade. A economia coreana cresce vigorosamente e a população alcançou um alto nível de bem-estar social. A Coreia é o terceiro maior detentor de patentes no mundo, depois dos Estados Unidos e do Japão.

Os jovens sul-coreanos estão entre os melhores em matemática, ciências e leitura, de acordo com o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA). Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, 97% dos estudantes completam o ensino médio, o mais alto percentual entre os países pesquisados. Em uma avaliação de rendimento escolar de 40 países, a Coreia se saiu como o sistema mais igualitário, com diferenças mínimas entre os alunos, alcançando o terceiro lugar em matemática e o quarto lugar em ciências, enquanto o Brasil, que rejeita a implantação da meritocracia nas escolas, ficou, respectivamente, com a última e a penúltima colocação em ambas as matérias.

A Coreia não apenas investe muito em educação, como também faz uso mais eficaz e responsável do dinheiro. Os coreanos gastam duas vezes mais na formação de um universitário do que na de um aluno de ensino fundamental, o que é uma proporção equilibrada para os padrões internacionais. No Brasil, um universitário custa 17 vezes mais.

A virada começou com uma lei tornando o ensino básico prioridade e gratuito. Cerca de 50% das escolas de ensino médio são privadas e as faculdades são todas pagas, mesmo as públicas. Uma criança sul-coreana fica, anualmente, um mês a mais na escola do que uma criança norteamericana.

O sistema educac ional coreano premia os estudantes talentosos e recompensa os bons professores - é a meritocracia em ação

O governo incentiva pesquisas tecnológicas estratégicas e articula a aproximação das instituições acadêmicas e científicas com os chamados chaebol, os conglomerados de empresas como Hyundai, Samsung e LG Electronics. A Coreia é um país inovador em campos como investigação aeroespacial, robótica, biotecnologia, transporte, energia e comunicação. Atualmente, está determinada a virar uma economia "verde", com baixa emissão de carbono e muito reflorestamento.



1. Protótipos de automóveis no Centro de Ciência e Tecnologia Avançada, que realiza pesquisa para as montadoras Hyundai e Kia.

2. Celebração estudantil do dia da independência, em 1o de março de 2011.

3. O budismo e o cristianismo são as duas principais religiões do país.

4. Templo budista Yahcheon-sa, na Ilha de Jeju.

A febre educacional revigorou a fascinante cultura milenar do país, que dispõe de um próprio alfabeto, o pictográfico hangul, inventado no século 15. O termo Daehan Min-guk, que em coreano significa Coreia do Sul, também pode ser traduzido como "Grande Nação do Sul" - um dos reinos mais antigos da Ásia. Há 5.000 anos a península era habitada por uma das mais antigas civilizações que se conhece. Gyeongju, no sul, foi a capital do célebre Reino de Silla e a mais importante cidade da Coreia durante séculos. O interesse dos coreanos pelo conhecimento não é de hoje. Em Gyeongju se encontra uma torre de pedra, com 18 metros de altura, de inestimável valor histórico: o observatório astronômico Cheomseongdae, do século 7 - o mais antigo da Ásia.

A febre educacional revigorou a cultura milenar da Coreia, uma das mais antigas civilizações da Ásia e do mundo

As duas maiores religiões do país são o cristianismo e o budismo, que na Coreia segue a linha tibetana. Há templos budistas em toda parte. A culinária é um espetáculo à parte, baseada em arroz, talharins, tofus, cogumelos, verduras, peixes e carnes. Os pratos são servidos com muitos acompanhamentos, os banchan, e a cerimônia do chá é uma das tradições populares mais sofisticadas.

Na cosmopolita Seul, capital com quase 10 milhões de habitantes, ao cair da noite pequenas tendas brancas acendem luzes sobre as calçadas. São os fortune tellers, os adivinhos que leem mãos e predizem o futuro. As cabines sempre lotadas dão pistas do quanto a prática é levada a sério. Na pujante e dinâmica educação coreana, também há lugar para os valores tradicionais.

Mais informações
Turismo cultural na Coreia: A Princess Travel é referência em viagens à Ásia e tem quatro viagens para a Coreia do Sul. Site: www.princesstravel.com.br. Fone: (11) 3388-5288.

1. Seul, metrópole de 10 milhões de habitantes.

2. Torre do observatório Cheomseongdae, em Gyeongju, o mais antigo da Ásia.

3. Culinária baseada em talharins, tofu e vegetais.

4. Inscrição antiga do alfabeto hangul, em Pusan.

5. As populares cabines de adivinhos em Seul.

Revista Planeta

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Segredos do coração: a escola como espaço para o olhar sensível*


Rosvita Kolb-Bernardes

Doutoranda em Educação na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professora efetiva na Escola Guignard, na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). E-mail: rnf.bhz@terra.com.br

Raízes de um projeto de arte

Início de ano. Novas turmas. Alguns já conhecidos. Turma agitada, cheia de questões e sugestões. Muitas meninas e poucos meninos. Logo foram me dizendo que adoram trabalhar com argila... E eu logo perguntando: sim, mas o que vocês estudaram na aula de arte do ano passado? O que vocês imaginam que crianças com 8, 9, 10 anos de idade podem aprender numa aula de arte? (Anotações do caderno, fev. 2005)

Desse início de conversa e das inquietações, tanto minhas, professora e pesquisadora, como também dessas crianças, nasceu a experiência que aqui compartilho. Os dados que trago para análise dizem respeito às atividades desenvolvidas com crianças entre 8 e 10 anos de idade, numa escola do ensino fundamental, na cidade de Belo Horizonte, durante as aulas de arte no ano de 2005. Nesse contexto, é preciso dizer que aquele foi um princípio de ano carregado de muita emoção e tristeza (sobretudo para nós professores), pois tínhamos perdido uma colega de trabalho.

De minha parte, começava o ano reconhecendo que a vida tem limites, que a morte faz parte do ciclo da vida do ser humano. Esse fato (essa consciência!) me provou tanto na minha tarefa de ser professora que, ao iniciar o ano letivo, lancei como eixo de trabalho: a memória da dor, do sofrimento, da perda, da ausência.

Poderia a escola ser um lugar para o acolhimento de histórias e memórias daqueles que a frequentam? Seria possível trabalhar o sentimento de perda, cultivar segredos, sonhos e desejos na escola? Seria possível, pois, através da atividade artística, construir um olhar e um fazer sensíveis para as histórias de cada um? A experiência que serve de base para a análise aqui proposta oferece elementos para respondermos que sim, e este texto é um convite para se pensar a escola como um espaço de acolhimento; um espaço para o diálogo com os nossos desejos, sonhos, angústias e incertezas; um lugar do afeto, da memória, de compartilhar a história de vida de cada um. Um lugar, enfim, que nos permite caminhar pelos corredores, diferenciando os cheiros vindos da cozinha, escutar os sons do pátio, correr pelo pátio, explorando os diferentes cantos, sentar aqui ou acolá, juntar-se em roda para conversar ou lanchar, subir nas árvores que compõem o cenário educativo, transformando aquele tempo e aquele espaço em tempo-espaço-vida-vivida-partilhada.

Olhar e reviver os espaços da escola como um lugar da nossa memória afetiva significa reconhecer e reviver os cantos da escola como um caminho profícuo para o resgate dos significados neles imbricados e refletidos com todos aqueles que viveram e vivem nesses espaços. Mas, até o momento em que formulei a proposta para as aulas de arte - de puxar fios e tecer as histórias de vida que os alunos traziam -, não tinha me dado conta nem da possibilidade, muito menos da importância e vitalidade que esses espaços poderiam ter na história e memória de alunos e professores.

O que é o vivido? O que é o passado? No dia a dia das escolas, é comum difundir a ideia de que o passado existe para preparar o futuro. Contudo, Benjamim (1994), em sua análise da história, fala de um passado vivo, passível de ser refeito e no qual o sujeito tem um papel fundamental. É possível refazer o passado, interligando-o com o presente. Entretanto, como é possível fazer isso na escola, se os estudantes não se colocam como sujeitos vivos e ativos na experiência de seu cotidiano, sendo privados de contar sua história? O processo de massificação nos priva da arte de narrar e empobrece nossa experiência. Em outras palavras, pessoas moldadas em série perdem sua história, deixando de ser sujeitos.

Como nos diz Kramer (1993), os sujeitos alunos e professores, no momento que contam, escrevem ou falam sobre si, sobre a sua história vivida, têm a possibilidade de interagir e se inter-relacionar, refazendo caminhos, recompondo rastros e recontando suas histórias, criando um novo passado a partir da vivência coletiva do presente. Pois, se existem alunos e professores que contam histórias e têm experiências significativas, eles não poderiam dar um novo sentido para o conhecimento? Um sentido que se constrói pelo afeto, pela dimensão cultural das crianças e adultos que vivem na escola?

Souza (2006) fala da importância do estudo das histórias de vida, colocando-as como ferramentas para compreender como se constrói os saberes escolares. O sujeito aprende a partir da sua própria história e, ao narrá-la, permite-lhe um espaço onde pode falar, pensar, sentir sobre si e os outros.

Aos poucos, tomava corpo de projeto a preocupação de garantir na escola um tempo para as narrativas que os alunos me traziam, abrindo um caminho metodológico no qual as histórias vividas e compartilhadas nem sempre se apresentavam pela escrita (o caminho mais comum, entre os procedimentos escolares...). Outras formas foram propostas e provocadas para dar a conhecer os enredos construídos, apresentados em forma de desenhos, em forma de diário, com fotos de objetos; ou, sugestivamente, configurados em pequenas caixas, contendo objetos colecionados e juntados para dar sentido ou significado a sua memória, a sua história. Nesse caso, emergem sentidos extremamente simbólicos: essas caixas, "memórias encaixadas", apareciam como "caixas de tesouro" (do alemão Schatzkästlein), conforme Hebel (apud Benjamin, 1994). E haveria bem mais precioso que a vida vivida?

Nessa direção, em meu fazer fui construindo o sentido de que as aulas de arte podem oferecer aos alunos a oportunidade de recontarem sua história, reconstruírem seu passado e construírem sua identidade por meio de variados fazeres, onde a palavra une-se a outras materialidades. Nessa abordagem, o trabalho de arte foi repensado, buscando dialogar com a cultura local e com outras manifestações culturais brasileiras.

Para alimentar e instigar as crianças, trouxe para a turma o livro Guilherme Augusto Araújo Fernandes (Fox, 1995), que conta a história de um menino que ajuda uma velha senhora, moradora de um asilo vizinho a sua casa e que estava perdendo a memória, a relembrar sua vida através de diferentes objetos carregados de significados pessoais.

A leitura dessa história ajudou no exercício de rememoração e, aos poucos, os alunos foram trazendo, primeiramente nos seus escritos, suas lembranças: "Sinto saudade de quando eu era menor" (Criança, 9 anos); "Memória para mim é passado, presente e futuro, tempo hora e dia. As fotos que eu trouxe são de amigos, que me fazem lembrar do tempo de pessoas que gostamos, de amigos do passado, gente que ainda não chegou, amigos do presente e os novos que ainda vão chegar" (Criança, 10 anos); "Mas são tantas as pessoas que eu guardo no meu coração, mesmo que esquecidas, porque tudo foi vivido, sentido, tudo eu pensei, tudo eu falei, e vários 'eus' curti" (Criança, 10 anos).

Desse ponto seguimos, alinhavando nossas histórias com os fios da experiência estética, cruzando nossas referências com as culturas africana e indígena e com a tradição das bordadeiras mineiras, que tecem a sua história de vida com fios e panos. Ficou explicitamente visível como essa experiência de memória, de desejos, de segredos se tornou mais intensa quando tivemos o contato com a lenda Quarup dos índios Kamaiurá (Xingu), com o fazer dos patuás da tradição africana e com os bordados da Família Dumont e das Mariquinhas. Constituindo o núcleo do projeto elaborado, tais situações e atividades planejadas nos conduziram a universos diferenciados, ampliando o repertório dos alunos, provocando não apenas o pensamento, mas o sentimento, articulando-os intensamente em novos fazeres.

Os muitos fios da história tecida: bordados, patuás, rituais

Puxando fios: bordados e bordadeiras

Ao visitar com os alunos a exposição dos bordados das Mariquinhas, numa galeria em Belo Horizonte, ficamos encantados e também impactados. As Mariquinhas bordam as suas histórias de sofrimento e de luta pela sobrevivência. Elas moram na periferia da cidade de Belo Horizonte, de onde saem panos bordados, cerzidos e narrados, de lembranças de dificuldades, de momentos de alegria e tristeza.

Em alguns momentos, as crianças ficaram confusas e acharam que os bordados não eram de verdade. Acharam que as histórias bordadas eram imaginárias e, no caminho de volta para escola, comentaram que era muito sofrimento, muita dor para um bordado só, e para uma pessoa só...

Com a Família Dumont, que mora no norte de Minas, na cidade de Pirapora, aprendemos a dialogar com as linhas, tecidos e bordados que trazem uma força e sensibilidade plástica/visual, onde a delicadeza é o grande diferencial. São memórias repletas de poesia da vida vivida e, outras vezes, com a referência na literatura.

Patuás: dando forma e construindo um lugar para a dor

Em visita à exposição Mostra do Descobrimento Brasil + 500, em São Paulo, chamou-me a atenção a obra "Parede de Memória", da artista plástica Rosana Paulino. É uma obra composta por 850 pequenas fotos do seu álbum de família. São fotos desbotadas num tom apagado, que nos remetem a sua história. É como se ela articulasse o passado com o presente, falando da sua vida, relacionada as suas condições histórico-sociais. A partir do catálogo da exposição, e da poesia "Carrego comigo", de Carlos Drummond de Andrade, veio a inspiração para a proposição de confecção de patuás com as crianças. Símbolos de sorte e de proteção, os patuás são pequenas almofadas costuradas, contendo alguma erva aromática, um bilhete com os desejos, sonhos e o que carregamos na nossa bagagem ao longo da vida. Ao olharmos mais de perto a obra da referida artista, no catálogo que levei para a aula, as crianças e eu observamos detalhes: havia fotos de pessoas impressas nas pequenas almofadas costuradas. À medida que tivemos mais contato e mais informações, descobrimos que a artista é de descendência afro-brasileira, o que possivelmente lhe deu suporte para o trabalho com os patuás. Talvez sim, talvez não, mas o certo é que, olhando sua obra, pensamos em seguir pelo caminho nela evidenciado: para o nosso trabalho plástico naquele momento, traríamos o significado dos patuás, construiríamos patuás, pois precisávamos dar forma para os sentimentos, para a dor visível naquele início de ano, que já não cabia mais em nós.

A poesia de Carlos Drummond foi um presente! Ela nos permitiu um mergulho na força e profundeza das palavras, das coisas ditas e não ditas. Entendidas ou não. Ao ler a poesia, os versos do poeta fizeram sentido para as crianças.

Carrego comigo há dezenas de anos, há centenas de anos o pequeno embrulho. Serão duas cartas? Será uma flor? Será um retrato? Um lenço talvez? Já não me recordo onde o encontrei. Se foi um presente ou se foi furtado. Se os anjos desceram trazendo-o nas mãos, se boiava no rio, se pairava no ar. Não ouso entreabri-lo. Que coisa contém, ou se algo contém, nunca saberei. Como poderia tentar esse gesto? O embrulho é tão frio e também tão quente. Ele arde nas mãos, é doce ao meu tato. Pronto me fascina e me deixa triste. Guardar um segredo em si e consigo, não querer sabê-lo ou querer demais. Guardar um segredo dos seus próprios olhos, por baixo do sono, atrás da lembrança. (Andrade, 2001, p. 29-32)
Após a leitura do poema, dei para cada criança um pedaço de papel onde poderiam, individualmente, de uma forma bem livre e espontânea, do jeito que davam conta, escrever sobre si, sobre as suas perdas, segredos, sonhos e desejos...

Algumas optaram por se deitarem no chão para escrever. Outras se esconderam debaixo da mesa, atrás das cortinas, e outras sentaram no lugar de sempre... De repente, uma pergunta: "Alguém vai ler o que vamos escrever? Segredos são segredos, e se eu for ler para alguém, já não são mais segredos...". Entendi que esta criança estava reivindicando um lugar especial para esta escrita, um espaço para sua intimidade, onde pudesse escrever para si e não para o outro. Na escola, aprendemos que sempre escrevemos para alguém. A fala desta criança veio ao meu encontro, reforçando que o que estávamos vivenciando naquele momento pedia um lugar especial.

Depois da escrita dos bilhetes, que foram guardados em lugares supostamente seguros para elas, como no bolso da calça, no estojo, seguimos para a confecção dos patuás. Era a hora de olhar para os tecidos, para os retalhos, para as cores. Entre os materiais à disposição, tinha de tudo. Eram tecidos lisos, sedosos, finos e aveludados. Chegavam aos montes, trazidos de suas casas pelas crianças. Cada um escolheu o seu pedaço. No seu retalho, a sua cor. As escolhas foram as mais diversas. Algumas preferiam as cores mais claras, outras as mais escuras, e outras crianças ficaram em dúvida, pois queriam relacionar a cor com a escrita do bilhete... Em momentos como este, de escolha frente aos materiais a serem utilizados, é que a percepção estética se manifesta; neste caso, se defrontavam com a escolha dos diferentes tecidos, suas texturas, cores, tamanhos. As crianças falavam sobre suas percepções no contato com os materiais, como, por exemplo: "Eu gostei tanto deste pano... ele é tão macio, e as cores são tão leves. Ele é lindo!".

Depois da escolha dos tecidos, uma nova etapa: costurar o patuá e recheá-lo com o bilhete. Trabalhamos com agulhas grossas sem ponta e meadas de linhas coloridas. O costurar demorou algumas aulas. Eram muitas linhas, muitos nós, muitos pontos fora do lugar, que eles queriam dar conta, incluir na sua costura. Tudo isso durou mais tempo do que imaginava. Por algumas vezes, achei que esta atividade não iria acabar nunca! Alguns alunos, por exemplo, não contiveram a sua ansiedade e necessitaram escrever vários bilhetes, costurar vários patuás.

Alguns bilhetes foram costurados nas almofadas, no patuá. Outros bilhetes ficaram guardados na memória, na história de vida de cada um. Algumas crianças não se continham e contavam os seus segredos. Outras crianças faziam confissões: "só vou abrir o meu patuá quando eu casar...".

Ao observar as crianças, suas escolhas e produções, identificava sinais que evidenciaram que eles estavam muito envolvidos, cada uma com a sua costura, com a sua história. Nesta hora, lembrei da artista plástica Fayga Ostrower (1987, p. 22): "Quando as pessoas participam ativamente da feitura de formas, vendo-as nascer sob suas mãos, não só se cria uma situação afetiva imediatamente carregada de associações, como também o exemplo concreto é sempre mais eloquente do que explicações abstratas".

Foi uma atividade estética que proporcionou um espaço de conversa sobre si, onde os fios puxados, os tecidos escolhidos, as cores privilegiadas, os bilhetes escritos falavam de cada um. Um lugar para a acolhida, para a canção que canta no coração de cada um. Sem dúvida, um momento especial para as crianças, e para mim também.

Nascimento, morte, renascimento

Outro desdobramento desta mesma atividade foi o contato com a lenda Quarup, que faz parte do ritual dos índios Kamaiurá (Xingu, Brasil), no qual celebram o ciclo de nascimento-morte-renascimento. Assistimos a um vídeo, sobre a festa dos mortos, onde toras de madeira de quarup eram levadas para a aldeia, pintadas, adornadas com penas, colares e fios de algodão. Neste momento do trabalho, tive a parceria e participação de outro professor da escola, que também trabalhava com este grupo de alunos. Após assistirmos ao vídeo, ficamos sentados em roda, no chão da sala, onde lemos em voz alta a lenda, do livro Xingu: os índios, seus mitos (Villas Bôas & Villas Bôas, 1970), para as crianças.

No primeiro momento da leitura, as crianças acharam estranho este ritual religioso e nos questionaram com perguntas do tipo: "Como assim, eles não choram quando alguém morre? Os mortos, para os índios, não morrem não? Eles voltam?". Outro menino logo foi completando, dizendo que, quando o avô dele morreu, ele também não chorou, pois ele sabe que o seu avô "está por ai...". "No céu?!", alguém perguntou. Outra criança, que tinha visto um programa na televisão sobre o dia dos mortos no México, trouxe a informação que lá eles cantam e fazem festa no cemitério: "Eu acho que é uma homenagem que as pessoas fazem para as pessoas mortas".

Naquele momento, puxamos novamente o fio da conversa para o vídeo e para a lenda, enfatizando a importância dos diferentes rituais que existem em diferentes culturas e que cada grupo social cria os seus rituais. Isso, de alguma forma, começou a fazer sentido para algumas crianças, quando permitiram olhar para si.

Depois dessas interações, iniciaram a atividade plástica, fazendo um desenho, um autorretrato. No verso do desenho, listaram as suas perdas, saudades, a falta das coisas e de pessoas. Depois disso pronto, coloriram o fundo do papel com lápis de cor e deixaram a lápis o autorretrato.

O vídeo e a leitura da lenda foram elementos que ajudaram na condução do nosso olhar estético, para os desenhos e escritas produzidos pelos alunos. Tendo o ritual indígena como referência, aproveitamos um tronco de árvore recém cortado na porta da escola, utilizando-o como suporte artístico. Olhando para este ritual, tiramos a ideia de pintar o tronco de árvore, colocar fios de algodão, pendurar os desenhos/autorretratos, com as escritas sobre nossas perdas, tristezas e ausências. Depois que todos estavam prontos com os seus desenhos e escrita, criamos o nosso ritual.

Ficamos sentados em roda e, no meio, no ponto central da roda, estava o "quarup" feito pelas crianças. Combinamos que cada criança, uma de cada vez, teria a oportunidade de entrar no meio da roda e, bem próximo ao quarup, poderia ler o que escreveu, amarrando, em seguida, o seu desenho no tronco.

Participaram desta atividade vinte crianças, que deram conta de ficar num silêncio absoluto, esperar a sua vez de ler, num impressionante clima de respeito ao outro. À medida que foram lendo e falando, instaurou-se um clima de intimidade, de convivência, de troca, com a possibilidade de um encontro consigo mesmo, resultado da "exploração de cores, luzes e sombras, a convivência com os anseios e receios, o enfrentamento dos fantasmas, o descobrimento de alegrias novas, a criação de novos processos de inventar sonhos" (Albano, 1991, p. 161).

As crianças pareciam querer isso mesmo: inventar novos sonhos, achar caminhos, novos processos para as suas perdas, tristezas e angústias. Ao ler os escritos que ficaram no verso dos desenhos, nota-se que eles falam do peixinho que morreu, da saudade que ainda existe da mamadeira, do tio que morreu e que ninguém contou, do amigo que mudou de cidade, da falta da professora, da alegria de ganhar um cachorro, do irmão que vai nascer, do avô que morreu e que o ensinou a amar. Onde estariam esses sentimentos e sentidos, se não houvesse uma proposta para sua canalização, se não houvesse uma proposta para dar forma por meio de diversas expressões?

Ao criarmos na escola um ambiente de acolhimento das subjetividades de cada um, criamos também um trabalho que permitiu que os alunos se reconhecessem como pertencentes a um determinado grupo social, percebessem que a dor e o sofrimento, que às vezes aparece como tema nas obras de alguns artistas, faz parte da vida, inclusive da deles, da nossa.

Penso que trabalhar com a formação humana não é um empreendimento solitário, mas um investimento que envolve o outro. E envolver o outro, como nos diz Formenti (2008), significa cuidado e zelo. Qual a dimensão do cuidado e do zelo, quando os alunos nos trazem suas lembranças, objetos, sonhos, desejos, queixas? Há escuta sensível, há acolhimento?

Essa experiência me revelou como é importante ouvir e se sentir ouvida na escola. Falar de nós mesmos cria um vínculo para aquele que fala e também para aquele que escuta. Gambini (2001) me iluminou quando destacou o enorme ganho que esse tipo de atividade pode ter para nós, educadores. Para ele, na medida em que podemos conhecer mais uma dimensão daquele ser que está à nossa frente, mais condições temos, como educadores, de mudar de lugar. Uma atividade como essa nos permite observar o aluno a partir de outro lugar: do lugar do imaginário, da subjetividade, do simbólico. Afinal, nos diz aquele autor, o inconsciente cria a disposição para aprender, abrindo portas para as experiências de vida.

Propor um trabalho de criação, a partir de diferentes culturas, possibilita-nos construir um ensino de arte que dialoga com a diversidade presente em nossa realidade, além de permitir que as diferentes experiências e histórias vividas entrem para a escola, invadam nossas salas de aula e tomem conta de nós, o que cria outra dimensão e disposição para a aprendizagem.

Incluir a memória como um ponto deflagrador de um processo artístico/afetivo/estético reafirma, também, a necessidade de fazermos com que as experiências afetivas - dores, amores, perdas, faltas, desejos - integrem as reflexões e produções de arte na escola. Na experiência aqui analisada, foram as conversas - espaço aberto ao diálogo e às narrativas do vivido, nas quais falamos e escrevemos sobre nós - e os contatos com as diferentes culturas que nos proporcionaram e nos permitiram criar peças tão preciosas e tão diferenciadas como os patuás, envoltas por simbolismos. Criações que, para além de um simples fazer artístico, carregavam e revelavam "segredos do coração" - recheados com os nossos desejos e sonhos, escritos, costurados em panos, com pequenos bilhetes, dobrados e guardados, e alinhavados.

Assim, criamos na escola um lugar do acolhimento das individualidades, das subjetividades de cada um. Exercitamos o olhar e o fazer, integrando pensamento e sentimento, sensação e intuição, afirmando a arte como espaço da totalidade, e o espaço do ensino da arte como lugar de muitos segredos...

Referências

ALBANO, A.A. O ateliê de arte na escola: espaço de criação e reflexão. In: PACHECO, E. (Org.). Comunicação, educação e arte na cultura infanto-juvenil. São Paulo: Loyola, 1991. p. 159-168.
ANDRADE, C.D. Carrego comigo. In: ANDRADE, C.D. A rosa do povo. 23. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 29-32.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, v. 1).
FORMENTI, L. A escrita autobiográfica e zelo: um olhar composicional. In: PASSEGGI, M.C. (Org.). Tendências da pesquisa (auto)biográfica. São Paulo: Paulus; Natal: EDUFRN, 2008. p. 51-71.
FOX, M. Guilherme Augusto Araújo Fernandes. São Paulo: Brinque-Book, 1995.
GALZERANI, M.C. Imagens entrecruzadas de infâncias e de produção de conhecimento histórico em Walter Benjamin. São Paulo: Cortez, 2002.
GAMBINI, R. Sonhos na escola. In: SCOZ, B. (Org.). (Por) uma educação com alma. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 102-157.
KRAMER, S. Por entre as pedras: arma e sonho na escola. São Paulo: Ática, 1993.
OSTROWER, F. Universos da arte. Rio de Janeiro: Campus, 1987.
SOUZA, E.C. O conhecimento de si: estágio e narrativas de formação de professores. Rio de Janeiro: DP&A; Salvador: UNEB, 2006.
VILLAS BÔAS, O.; VILLAS BÔAS, C. Xingu: os índios, seus mitos. São Paulo: Círculo do Livro, 1970.

* O projeto do qual resultou este artigo foi parcialmente financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e pela Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais. Agradeço ao apoio da Escola Balão Vermelho no desenvolvimento do presente trabalho, e a Luciana Ostetto, pela carinhosa leitura e sugestões.
Cadernos CEDES

A cultura midiática infantil e a construção da noção de tempo histórico


Alexia Pádua Franco

Doutora em Educação e professora da Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: alexiapadua@centershop.com.br

A construção da noção de tempo histórico nas crianças é um fenômeno A histórico-cultural que não se restringe apenas ao espaço escolar, mas também envolve vários outros espaços sociais (a mídia, através dos programas de tevê, das publicações impressas, das músicas, dos jogos eletrônicos, é um deles) que participam da formação dos sujeitos. Uma formação nem um pouco coerente, homogênea, mas perpassada por diferentes visões de mundo relacionadas a múltiplos projetos e práticas sociais. Neste sentido, vamos aqui refletir sobre como alguns produtos midiáticos voltados para o público infantil contribuem para o desenvolvimento da noção de tempo histórico e como a escola, através do ensino de História, pode e deve dialogar com as representações de tempo que aí circulam para favorecer uma formação histórica mais crítica.

O tempo histórico na mídia

Vivemos, principalmente nas democracias ocidentais, uma época de desenraizamento, em que a "tirania do novo", a desvalorização do passado, a exaltação ao imediato e efêmero geram um grande desinteresse pelas tradições culturais, pelo processo histórico, e podem "comprometer o desenvolvimento da noção de temporalidade histórica" (Siman, 2003, p. 125). Hobsbawn (1995, p. 13) afirma que

(...) a destruição do passado - ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas - é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação com o passado público da época em que vivem.

Paradoxalmente, vivemos também uma "febre da memória" (Huyssen, 2000, p. 35), causada justamente pelo processo de desenraizamento que nos amedronta e angustia. Huyssen argumenta que "o enfoque sobre a memória é energizado subliminarmente pelo desejo de nos ancorar em um mundo caracterizado por uma crescente instabilidade do tempo e pelo fraturamento do espaço vivido" (op. cit., p. 20). Segundo este autor, a mídia é uma das principais responsáveis por tornar a memória cada vez mais disponível para o grande público:

(...) desde a década de 1970, pode-se observar, na Europa e nos Estados Unidos, (...) a literatura memorialística e confessional, o crescimentos dos romances autobiográficos e históricos pós-modernos (...), a difusão das práticas memorialísticas nas artes visuais, geralmente usando a fotografia como suporte, e o aumento do número de documentários na televisão, incluindo, nos Estados Unidos, um canal totalmente voltado para história: o History Channel. (p. 14)

No Brasil, isso se evidencia, principalmente, a partir da comemoração dos 500 anos do país, na intensa produção e circulação de revistas, filmes, telenovelas, minisséries com temáticas relacionadas a períodos de nossa história. Publicaram-se revistas com temas históricos para o grande público (História Viva, da Duetto Editorial; Revista de História da Biblioteca Nacional; Aventuras na História, da Editora Abril), histórias em quadrinhos com enredo baseado em fatos históricos tradicionais (os gibis da Turma da Mônica, da Editora Globo, têm títulos referentes ao Descobrimento do Brasil, Independência, Inconfidência Mineira), enciclopédias e coleções de história voltadas para público de diferentes idades (o Núcleo de Revistas da Folha de S. Paulo lançou a coleção Disney Explora: 500 anos de Brasil, com 20 fascículos que abordam desde as "Grandes Navegações" até "O Fim do Império"). Foram produzidas minisséries e novelas de televisão com abordagem histórica: a Rede Globo, que habitualmente produz novelas com cenário histórico (Escrava Isaura é um exemplo tradicional), intensificou esta linha na época da comemoração dos 500 anos com a novela Terra nostra, as minisséries Invenção do Brasil e A muralha e continua produzindo, pelo menos uma vez ao ano, minisséries como JK e Amazônia. Ampliou-se também a projeção cinematográfica de filmes animados, de produção estrangeira, com algum tratamento histórico, como Pocahontas, Eldorado e Hércules.

Bittencourt (1997, p. 14), ao discutir os atuais desafios do ensino de História no Brasil, afirma que esta "história oferecida para as novas gerações é a do espetáculo, pelos filmes, propagandas, novelas, desfiles carnavalescos (...)". Huyssen (2000, p. 21), ao considerar as produções midiáticas sobre o Holocausto, também destaca essa "mercadorização e espetacularização em filmes, museus, docudramas, sites na internet, livros de fotografia, histórias em quadrinhos, ficção (...) e música popular". No entanto, ele analisa que, mesmo neste contexto atual, em que a memória e o passado são tratados como mercadorias, nem tudo é banalizado; defende que não é possível menosprezar estes produtos culturais, pois

(...) não há nenhum espaço puro fora da cultura da mercadoria, por mais que possamos desejar um tal espaço. Depende muito, portanto, das estratégias específicas de representação e de mercadorização e do contexto no qual elas são representadas (...). O problema não é resolvido pela simples oposição da memória séria à memória trivial (...).

Nesse sentido, acredito que nas produções midiáticas haja um olhar heterogêneo sobre a questão do tempo histórico e que estas, mesmo como espetáculo, participam da formação do nosso olhar histórico, devendo assim ser consideradas em nossas reflexões.

Flintstones e Hércules: a mumificação do tempo histórico

Ao analisarmos, na mídia audiovisual e impressa, produções voltadas para o público infantil, encontramos diferentes representações sobre o tempo histórico. Há desde aquelas mais tradicionais, que se baseiam no tempo contínuo, vazio e homogêneo do progresso, até aquelas "mais complexas, capazes de historicizar as práticas culturais, sociais ou sexuais que herdamos, não necessariamente para extrair lições do passado, mas para nos libertarmos dele, ou ainda para relativizá-lo a partir do contato com modos de vida diferenciados" (Rago, 2003, p. 29).

Alguns filmes animados construídos em cenários históricos não se preocupam com a alteridade cultural no tempo, ou seja, com as diferenças e semelhanças entre as múltiplas organizações sociais que existiram e coexistiram em diferentes tempos históricos, as permanências e rupturas do processo histórico. Dirigem-se ao passado apenas para explicar a origem do presente, procurando continuidades, evoluções, não percebendo as rupturas, as diferenças inconciliáveis entre um tempo e outro.

O desenho animado Flintstones, produzido pelos estúdios Hanna Barbera, constrói a ideia de passado como germe do presente, de continuidade histórica, fazendo uma apologia ao mundo capitalista, em vários aspectos: situa "homens da caverna" em cidades, com ruas, residências para cada família, enfim, anacronicamente, situa em um espaço urbanizado homens que viviam coletivamente no campo; preenche o cotidiano destes homens de objetos tecnológicos semelhantes aos de hoje, porém mais rústicos, movidos por força animal; mostra situações de trabalho assalariado, baseadas na relação capitalista patrão-empregado.

O filme animado Hércules, produzido pela Disney em 1997, também provoca esta confusão entre passado e presente, naturalizando as características da sociedade capitalista, em vários aspectos, e reforçando uma representação de tempo histórico que torna homens e mulheres do presente prisioneiros de um passado homogeneizado, dificultando-lhes a possibilidade de acreditar em transformações radicais em sua maneira de viver. A cidade da Grécia, onde se desenrola a história, tem trânsito organizado como o nosso, com faixas para pedestre; o vendedor de rua usa um relógio Rolex. Quando as musas cantam as vitórias de Hércules, o sucesso do herói é representado como o de hoje, em que tudo vira objeto de consumo: Hércules deixa sua marca na "calçada da fama", dá autógrafos, são espalhados outdoors com sua imagem, produz-se e se consome em larga escala (como se houvesse produção fabril na Grécia antiga) sandálias, potes de cerâmica, bonecos, copos, refrigerantes com o logotipo H. Alguns objetos vendidos são como aqueles produzidos na Antiguidade (sandálias de tiras, potes de cerâmica), outros são como os nossos (refrigerante, copo de plástico com canudo, bonecos em miniatura). Enfim, mistura-se a Antiguidade grega e o presente capitalista, compondo o "samba do crioulo doido". Além disso, constrói-se um cenário que cria a sensação de que o consumismo sempre existiu, incentivando as crianças a comprarem mais os produtos da Disney que são semelhantes aos consumidos, no filme, pelas crianças gregas. Como observa Giroux (1995, p. 60),

(...) conectando de forma bem sucedida os rituais de consumo com o hábito de ir ao cinema, os filmes animados da Disney fornecem um "mercado da cultura", uma plataforma de lançamento para um infindável número de produtos e mercadorias que incluem fitas de vídeo, discos com trilhas sonoras, roupas infantis, móveis, brinquedos e novas atrações nos seus parques de diversão.

Flintstones (onde o passado é o "presente rústico") e Hércules (onde o passado é mais que o embrião do presente; é a sua cópia fiel) reforçam a noção de tempo histórico que, conforme Oliveira (2003, p. 164), é mais comum entre as crianças: "tudo o que elas conhecem sempre existiu no passado, só que de forma diferente". Como percebido por Piaget (1998), para grande parte dos meninos e meninas entre 7 e 10 anos, tudo o que há no presente já existia no passado, só que de forma mais rústica, embrionária. Em outras palavras, estes filmes animados reforçam um olhar histórico que mumifica a vida, fossiliza o tempo, podendo gerar um sentimento de desesperança, depreciando a possibilidade de criação e transformação, amputando o novo e a utopia.

Revista Recreio: do tempo linear às múltiplas temporalidades

A Revista Recreio, publicada semanalmente pela Editora Abril, aborda historicamente diferentes temas relacionados ao cotidiano das crianças ou à sua curiosidade, a personagens históricos, cientistas e artistas, e também a acontecimentos históricos que têm sido foco de novelas, filmes e desenhos infantis, ou são vinculados a eventos culturais ou datas comemorativas tradicionalmente veiculadas na mídia e na escola.

Estes artigos (Recreio, 1999-2005) ficam em uma seção voltada especificamente para a questão da História - Túnel do Tempo -, ou em outras seções (Pelo Mundo, Esportes, Escola, Fique Ligado, Ciência), onde se enfoca de maneira transdisciplinar um determinado assunto. A maioria deles tem um viés temático, ou seja, apresenta um mesmo tema em diferentes espaços e épocas históricos.

Poucos representam o passado da forma tradicional ao construir uma narrativa histórica baseada numa sequência cronológica linear, que se inicia no passado mais remoto e, a partir dele, inventa os acontecimentos que conduziram ao momento que se quer explicar e, até mesmo, legitimar. Para não romper essa sequência, detêm-se no passado, não relacionando os momentos históricos estudados com problemas da atualidade. Este é o caso das biografias que falam da história individual de personalidades e de seus feitos, sem nem relacioná-los com o contexto da época. É o caso também de artigos que tratam de tempos mais distantes ou fatos históricos tradicionais, como o artigo Sonho de liberdade: saiba por que Tiradentes foi tão importante para o Brasil, que se restringe a uma competente síntese das causas da Inconfidência Mineira, da origem e destino de seus participantes mais ilustres, de outros movimentos que lutaram pela Independência do Brasil durante os séculos XVIII e XIX e suas consequências.

No entanto, nem sempre os tradicionais fatos da história e datas comemorativas são enfocados desta forma. Na maioria das vezes, além de sintetizar o processo que desencadeou o acontecimento em questão, faz-se uma leitura crítica dele e das suas fontes históricas: o artigo Dia de Festa analisa o quadro de Pedro Américo sobre a Independência do Brasil, destacando diferentes partes deste para mostrar como "a cena ficou diferente do que realmente aconteceu, para que a pintura ficasse mais bonita e mostrasse dom Pedro como herói". Relaciona-se passado e presente de grupos sociais que viveram experiências semelhantes, discute-se mudanças e permanências, diferentes sujeitos históricos envolvidos, propõe-se reflexões sobre questões da atualidade relacionadas ao fato estudado. Um exemplo é o artigo O fim da escravidão, que trata da vinda dos africanos para o Brasil colonial, de suas difíceis condições de trabalho, das várias leis criadas na tentativa de diminuir o uso do trabalho escravo e seus limites, da assinatura da Lei Áurea não como "uma decisão pessoal da princesa", mas resultado de movimentos organizados, de rebeliões escravas e pressão internacional. Discute a ineficácia desta lei para melhorar as condições de vida dos negros libertos, as lutas existentes até hoje pela "igualdade de direitos e oportunidades para brancos e negros", além de propor pesquisas e discussões em grupo sobre questões como: "será que pessoas de raças, religiões e origens diferentes ainda enfrentam preconceito em muitos lugares do mundo?".

Entre os artigos com viés temático, há aqueles que, ao abordarem a história dos meios de comunicação (Alô, Alô! Tem alguém aí), do dinheiro (O dinheiro tem cada história!), do relógio (Que horas são?) e outras invenções, tratam da alteridade cultural no tempo com preconceitos e de forma etnocêntrica. Olham o ontem a partir do hoje e, por isso, consideram-no "inferior", como um tempo ainda não beneficiado pelo progresso do presente e, por não ter a tecnologia e os costumes de hoje, repleto de dificuldades. São artigos construídos com expressões como "dava um trabalhão", "nem sempre foi tão fácil", "antigamente, as pessoas tinham que usar a imaginação", "foram milhares de anos de confusão".

Há também artigos que, ao olhar o ontem a partir do hoje, apesar de não hierarquizar os grupos que viveram em diferentes épocas, são anacrônicos, pois procuram entender os hábitos de uma comunidade com referências de outra, de outro tempo. Em Beleza colorida, olha-se para o passado para mostrar como, desde longínquos tempos, em diferentes organizações sociais, as pessoas já usavam maquiagem "para ficarem bonitas". Nesta busca da continuidade, chega-se ao paradoxo de denominar de "um dos primeiros produtos de beleza", uma pasta avermelhada passada nos lábios pelos homens das cavernas para deixar "os guerreiros com cara de bravos" e "assustar os inimigos".

A grande maioria dos artigos da revista Recreio que traz alguma abordagem histórica o faz relacionando passado e presente de uma forma menos linear, etnocêntrica e anacrônica do que as analisadas até aqui. Eles mostram, mesmo que de forma bem sintética, em artigos pequenos voltados para atrair a leitura infantil, diferenças e semelhanças, mudanças e permanências entre várias épocas e lugares históricos.

Algumas vezes, relaciona-se passado-presente para mostrar como hábitos, costumes e objetos que existem atualmente já existiam no passado. Na construção deste conhecimento, encontramos duas abordagens concomitantes ou não. Uma que, em artigos iniciados com as expressões "descubra como surgiram...", "saiba como foram inventados...", "descubra como nasceu...", busca o germe do que há hoje, destacando as descobertas e necessidades humanas que levaram a algumas mudanças nestes costumes e a evolução tecnológica dos objetos. Outra que, além disso, observa como grupos sociais de outros espaços e tempos atribuíam significados e usos diferentes ao que temos na atualidade. Nestes artigos, as diferenças, ao invés de serem classificadas como melhores ou piores, são entendidas como relacionadas a diferentes interesses e condições de vida. Assim, nos artigos sobre crianças em diferentes tempos e lugares (Viagem no tempo) e sobre a história dos talheres (Como se come?), há, respectivamente, comentários como

(...) Que tal viajar ao passado e conhecer crianças de diferentes épocas e lugares do mundo. Só não adianta levar o seu videogame na mala: ninguém vai saber jogar. Mas não tem problema, você vai descobrir novos jeitos de brincar (...).

(...) antigamente, não existiam pratos e talheres e quase todo mundo comia com as mãos, colocando os alimentos sobre o pão. Mesmo depois da invenção dos talheres, pouca gente os utilizava, porque se acreditava que interferiam no sabor da comida (...). Na Europa, as pessoas ricas se serviam com garfos, colheres e facas de ouro, prata e bronze e as pobres só tinham utensílios feitos de madeira e osso (...).

Há também passagens em que as diferenças são ressaltadas como aspectos curiosos e exóticos de povos que não vivem como nós, o que pode construir a ideia de que a normalidade está no hoje; o ontem é "maluquice", reforçando preconceitos, pensamentos etnocêntricos. Por exemplo, o artigo Escolas bem malucas tem frases como "já pensou ter de aprender 700 letras (Egito antigo)...?", "Há muitos anos se usava nos Estados Unidos uma cartilha engraçada: as letras eram paezinhos e, depois de aprender uma delas, o aluno podia comê-la como prêmio!" (grifo nosso).

Em outros artigos que relacionam passado e presente, é ressaltado como nos apropriamos de fatos, hábitos do passado, dando a eles usos culturais diferentes ao criar expressões de linguagem, e até acarretando a permanência, ao menos simbólica, de costumes que nem existem mais. Por exemplo, o artigo Caiu a ficha? mostra a relação de expressões muito usadas por nós - como "caiu a ficha", "disque-pizza", "colocar o carro na frente dos bois", "andar na linha", "pegar o bonde andando" - com meios de transporte e comunicação que já quase desapareceram: telefones públicos que funcionavam com o uso de fichas e não de cartões magnéticos, telefones de disco no meio e não de teclas, carro de boi, trem, bonde.

Há também aqueles artigos que representam não só as semelhanças entre as várias organizações sociais existentes ao longo do tempo, mas principalmente suas singularidades. Enfocam modos de vida do passado, preocupando-se em destacar como as pessoas viviam de forma diferente - nem melhor, nem pior - do que hoje estamos acostumados. O artigo Trabalhos diferentes aborda profissões que não existem mais, mas eram importantes para outros povos. Em Aí vem um novo século são destacados diferentes calendários. Enfim, são artigos que se aproximam timidamente do desafio proposto por Rago (2003, p. 29):

(...) a historicização das formas predominantes de organização da vida social no presente permite desnaturalizá-las e relativizá-las, o que é condição sine qua non para invenção de novos modos de vida (...). A História pode mostrar racionalidades e experiências muito distintas das contemporâneas, não necessariamente para nortear nossa existência na atualidade, mas para inspirar-nos a pensar diferentemente, (...) estabelecendo outros nexos e conexões (...).

Assim, essas passagens da revista Recreio podem incentivar o leitor a pensar sobre a heterogeneidade, a historicidade do que parece natural, uno, absoluto; criar a perspectiva de que não há um caminho certo e único para o futuro, podendo estimular os indivíduos a abandonarem o comodismo e o ceticismo e a (re)pensarem diferentes alternativas de transformação social.

Outros artigos, como Viagem à Idade da Pedra, ao contrário dos já discutidos, além de expor como os homens do passado viviam de forma diferente de nós, ressalta as contribuições que eles deram à humanidade - como o controle do fogo, a invenção de ferramentas, a domesticação de animais, a agricultura -, concluindo que, "com essas descobertas todas, a vida de todos foi mudando (...). Depois disso, não pararam mais de ter ideias novas e de desenvolver invenções para melhorar a vida de todo mundo". Enfim, representa o passado sem desqualificá-lo, destacando como os homens sempre buscaram alternativas para vencer os desafios que enfrentavam. Assim, pode contribuir para amenizar o pessimismo marcante de nossos tempos e desenvolver a crença de que somos capazes de criar um mundo melhor.

Observamos, então, que, em uma mesma revista infanto-juvenil, há uma diversidade de olhares sobre a alteridade cultural no tempo, o que também, com certeza, acontece entre os desenhos e filmes animados. Aqui analisamos Flintstones e Hércules, que têm um olhar semelhante, mas se pode pesquisar outros, encontrando outras perspectivas.

Vamos agora pensar como o ensino de História pode aproveitar a contribuição destes vários olhares midiáticos sobre o tempo histórico.

O ensino de História e os olhares midiáticos sobre o tempo histórico

Quando defendemos que a educação histórica desenvolvida na escola precisa levar em conta as experiências das crianças, não devemos nos limitar àquelas vividas junto aos grupos sociais como família, escola, bairro, mas também considerar aquelas vividas no consumo dos produtos midiáticos.

Tais produtos precisam ser levados para a sala de aula não apenas para torná-la "mais interessante" ou para ilustrar uma informação, mas para discutir suas representações e confrontá-las com outras. O objetivo disso não é negá-las ou desqualificá-las como menos verdadeiras ou sérias, mas ajudar os alunos a perceberem que vivem em um jogo de representações que precisam ser entendidas criticamente para que eles possam construir um pensamento autônomo.

Para isso, é importante considerar e discutir os diferentes sentidos que os alunos constroem ao verem um determinado filme ou lerem um artigo de revista, considerando que os produtos midiáticos não formam noções de tempo histórico nas crianças de maneira totalizante. Leitores e telespectadores reelaboram de diferentes maneiras estes tempos, conforme sua bagagem cultural, os outros espaços de formação de que participam, seus interesses (Martín-Barbero, 1995).

Entre os produtos midiáticos aqui analisados, alguns (Hércules, Flintstones, certos artigos da revista Recreio) podem reforçar a visão etnocêntrica do aluno, fazendo-o olhar para outros tempos e espaços com base nos seus valores e parâmetros de julgamento, o que dificulta a percepção da possibilidade de transformar, de ser diferente. No entanto, há aqueles que podem contribuir para um movimento de descentração, ao tratar das mudanças e permanências, diferenças e semelhanças entre vários lugares e épocas históricas. Em sala de aula, as professoras podem confrontar estes diferentes olhares midiáticos sobre o passado, desconstruindo-os junto aos alunos para perceber que existem várias maneiras de se entender o passado e que, cada um delas, favorece formas diferentes de agir no presente e pensar o futuro - conformistas ou não. Ao trabalhar estes artigos, que são, na sua maioria, temáticos, é preciso ter cuidado para não fragmentar a história, ou seja, para não considerar o tema em questão de forma descontextualizada, como mera curiosidade. Para isso, é importante cruzar várias fontes, no sentido de contextualizar o tema discutido, mostrando sua relação com outros aspectos da vida humana nos tempos e lugares históricos estudados.

Esta proposta caminha na contramão do que Tuma (2003) percebeu em uma pesquisa realizada junto a professores das séries iniciais do ensino fundamental, as quais norteiam sua prática docente conforme

(...) um arquétipo do tempo repetitivo, organizado, disciplinado e controlado que se mescla ao tempo cíclico na busca da homogeneização temporal, para anulação da diferença e da desordem (...) um tempo racional, homogêneo, mecânico, evolutivo, uniforme, métrico, produtivo, linear e cumulativo. (p. 236)

Assim, para professores e professoras contribuírem no processo de apropriação crítica das noções de tempo histórico presentes nos produtos midiáticos, é preciso que eles próprios desconstruam esta sua noção de tempo predominante na atualidade urbano-industrial e, inclusive, nas escolas. É preciso entender, como Miranda (2003, p. 201), que "para o aluno, sair do presente significa se descentrar, deixar de tomar seus valores e parâmetros de julgamento, para analisar outras realidades e outras culturas. A História é (...) a disciplina que potencializa, como poucas outras, tal movimento de descentração".

Vale enfrentar este desafio, pois este é o papel da escola e, em particular, do ensino de História: não ensinar verdades prontas, mas levar os alunos a refletirem sobre os múltiplos e contraditórios olhares que fazem parte de sua vivência e de sua formação, para que possam, autonomamente, apropriar-se com criticidade destes e pensar na sua atuação social e política.

Referências

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GIROUX, H.A. A disneyzação da cultura infantil. In: SILVA, T.T.; MOREIRA, A.F.B. (Org.). Territórios contestados: o currículo e os novos mapas culturais e políticos. Rio de Janeiro: Vozes, 1995. p. 49-81.
HOBSBAWN, E. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HUYSSEN, A. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
MARTÍN-BARBERO, J. A América Latina e os anos recentes: o estudo da recepção em comunicação social. In: SOUSA, M.W. (Org.). Sujeito: o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense; ECA-USP, 1995. p. 39-68.
MIRANDA, S.R. Reflexões sobre a compreensão (e incompreensões) do tempo na escola. In: DE ROSSI, V.L.S.; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem!. Campinas: Alínea, 2003. p. 173-188.
OLIVEIRA, S.R.F. O tempo, a criança e o ensino de História. In: DE ROSSI, V.L.S.; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem!. Campinas: Alínea, 2003. p. 145-172.
PIAGET, J. Psicologia da criança e o ensino de História. In: PARRAT, S.; TRYPHON, A. (Org.). Sobre a pedagogia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. p. 89-95.
RAGO, M. O historiador e o tempo. In: DE ROSSI, V.L.S.; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem!. Campinas: Alínea, 2003. p. 25-48.
RECREIO. São Paulo: Abril, 1999-2005. (CD-ROM).
SIMAN, L.M.C. A temporalidade histórica como categoria central do pensamento histórico: desafios para o ensino e aprendizagem. In: DE ROSSI, V.L.S.; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem!. Campinas: Alínea, 2003. p. 109-144.
TUMA, M.M. Tempo disciplinar escolar: representações de professoras. In: DE ROSSI, V.L.S.; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem!. Campinas: Alínea, 2003. p. 205-239.
Cadernos CEDES

O cinema brasileiro em busca de seu público na escola

filme Estamira (Marcos Prado, 2004)

Cristina Bruzzo

Doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (unicamp). E-mail: bruzzo@unicamp.br

Por que o cinema chegou à universidade e não alcançou ainda as escolas secundárias?". A pergunta de Guido e Teresa Aristarco (Aristarco & Aristarco, 1992, p. 9), feita antes de o cinema completar cem anos, espanta pelo menos por duas razões: parece que algo pode ser encontrado nos filmes que interessa ao ensino superior e não cabe na escola básica; por outro lado, pode-se suspeitar que interesses distintos permeiem os vários níveis de ensino, chamando à descontinuidade no percurso da escolarização.

No mesmo livro, Aldo Visalberghi previa que a introdução de filmes no ensino aconteceria no âmbito de uma "grande revolução geral na organização curricular das escolas" (idem, ibid., p. 71). Dezoito anos se passaram e as escolas não mudaram muito, nem os filmes chegam a elas com regularidade.

O júbilo, os filmes e as festas que comemoraram o centenário do cinema já foram esquecidos e agora miramos com desconfiança as redes sociais da web. Mas intriga o descompasso: a escola parece desconhecer ou julgar impróprias as obras audiovisuais das mais diversas tendências produzidas em qualquer lugar nesse mundo globalizado. Não obstante, é reconhecido que o cinema aporta inquietações sobre a condição e os fazeres humanos. Também é preciso admitir que, na maior parte da produção, encontra-se certa dose de redundâncias e inutilidades, nada diferente do que acontece com a literatura e as artes gráficas.

Em São Paulo, no começo do século XXI, um grupo de jovens professores, sensibilizados pela situação de exclusão do audiovisual das salas de aula, lançou-se ao desafio de levar o cinema às escolas, com especial carinho para aqueles filmes "sem tela", que ficam fora do circuito comercial, como parte significativa do cinema brasileiro. Considerada com algum preconceito e desconfiança pelos educadores e por boa parte do público, a produção cinematográfica do país era vista como uma promessa não realizada, que resultou em preconceito e desconhecimento dos filmes. Partindo da constatação desse distanciamento entre o cinema brasileiro e seu público potencial, o grupo de professores propôs um projeto que pudesse aproximar alunos de escolas públicas da diversidade dos filmes nacionais. O projeto "Cinema e Vídeo Brasileiro nas Escolas" resultou da vontade de descortinar um lugar para as questões candentes da nossa realidade, suscitadas pelos filmes e expressas na forma de enquadramentos e composições visuais originais.

A participação nessa experiência motivou Antônio Reis Junior, como um de seus coordenadores, a escrever sua tese de doutorado (Reis Junior, 2010) sobre o projeto de introdução do cinema brasileiro em escolas da região leste da cidade de São Paulo (2000-2005), que promoveu a constituição de videotecas, cursos de formação para os professores, mostras de filmes e produção em vídeo digital.

Sua tese, cuja defesa aconteceu no segundo semestre de 2010, tem o mérito de passar ao largo de qualquer pretensão avaliativa do projeto e de sua eficácia, que a elegância pede não seja feita por quem se envolveu tão diretamente, a fim de evitar o exercício do autoelogio ou da autopunição. Longe de justificar e julgar, Reis Junior dedica-se a relatar e refletir sobre o trabalho realizado, movendo-se entre o passado relembrado e o presente que aparece expresso no exame de dois filmes documentários que incorporam reflexões e leituras recentes.

Ficam as marcas do descompasso entre a concepção de um projeto formulado de forma objetiva e consistente e a vivência dos professores das escolas com os filmes da videoteca, vivência esta que só pode ser percebida como uma rememoração incerta. A solução para essa duplicidade do relato veio do próprio cinema, que o autor traz para o interior do trabalho, inserindo imagens dos filmes que marcaram as atividades com os professores e que ele dispôs na tese, como um comentário que complementa a redação acadêmica. Daí resulta um formato que pretende indicar a insuficiência da escrita para dar conta de uma experiência vivida de forma intensa e finita. Tal recurso confere leveza, pela forma gráfica, e provoca um desvio do texto acadêmico, ao mesmo tempo em que sugere ao leitor algumas aproximações com a filmografia brasileira. Tal conjunto de fotogramas nos lembra como desconhecemos a produção nacional e como seria bom que ela tivesse uma distribuição adequada.

O texto começa com as sua lembranças de menino, construídas pelos filmes mudos de 8 mm de curta metragem que seu pai realizou na Manaus de fins da década de 1960 e início da década de 1970, para lembrar que o amor pelo cinema veio de longe e acalentou o desejo de espalhar os filmes pelas escolas. Mas o propósito maior do projeto CVBE repousa na crença, forte na época, do reconhecimento que a imagem familiar mobiliza no jovem estudante e nos desdobramentos educativos que a produção audiovisual brasileira poderia desencadear, alimentando o sonho de que a escola pudesse ser o lugar de aproximação com uma filmografia mais autêntica, que viria encontrar seu público, até então seduzido pelo cinema comercial estrangeiro.

O trabalho organiza-se em dois eixos: o projeto CVBE e o exame detalhado de dois filmes nacionais. O entrelaçamento desses dois percursos busca dar sustentação à tese central de que a produção nacional oferece a possibilidade de interrogar o país pelo olhar dos cineastas, cujas obras desenham panoramas e interpretações sobre o Brasil, sendo necessário, para tanto, o encontro mediado com os filmes no espaço escolar para estimular uma predisposição de jovens, crianças e professores para a diversidade de nosso cinema.

O primeiro capítulo detalha a situação singular de uma filmografia estranha a seu público, que resulta na existência de uma vasta produção de filmes sem distribuição condizente com sua variedade e pertinência. As causas desse alijamento são examinadas e oferecem o contexto adequado para se entender os propósitos do projeto e as escolhas metodológicas levadas a cabo para desenvolvê-lo, apresentadas no segundo capítulo.

O terceiro capítulo, provocativo, relata o envolvimento na produção audiovisual de professores e alunos de uma das escolas vinculadas ao projeto, que se sentiram estimulados pelos filmes assistidos e discutidos nas oficinas de produção, muitos realizados nas décadas de 1960 e 1970 por jovens diretores brasileiros interessados em denunciar as mazelas sociais e desejosos de mobilizar o público a pensar o país. O filme Excola (produção coletiva de professores, 2004) inspira-se nessa proposta e exprime a apropriação, por parte de seus realizadores, da ideia do cinema como possibilidade de afirmação política. Entretanto, ao final da produção, a divulgação do filme foi abortada por decisão dos próprios professores. Tal episódio, examinado com delicadeza por Reis Junior, evoca as considerações do cineasta e pesquisador de cinema Jean-Louis Comolli (2004) sobre a força do cinema militante, que arregimentou cineastas em muitos países, colocados a serviço de causas, palavras de ordem e ideais políticos. Mesmo que tenham sido concebidos para a defesa de ideias que o tempo isolou, os filmes mostraram-se mais duradouros do que os sonhos de então e o mundo filmado parece ser "uma utopia mais poderosa" do que as utopias políticas que os inspiraram. Mobilizados por esse cinema, os professores e alunos quiseram exprimir a insatisfação com o aqui e agora. Contudo, assombrados pelo resultado e temerosos de possíveis represálias, preferiram condenar o filme e o Excola não teve divulgação. Relembrar esse episódio talvez seja uma boa maneira de buscar a resposta para a ausência dos filmes na escola, apontada por Aristarco e Aristarco (2005).

O tempo decorrido entre as ações efetivas realizadas no projeto CVBE e a reflexão motivada pelo estudo acadêmico permite que se perceba como a escolha de documentários prevalecia nas práticas realizadas. O intuito dos formadores foi estimular a visão crítica dos professores, recorrendo à explicitação dos recursos da linguagem com a finalidade de denunciar a ilusão de que a câmera seja um dispositivo transparente e neutro de registro da realidade. Ao mesmo tempo, buscavam com esses filmes levar os professores a reconhecer a capacidade de o cinema representar a identidade nacional, a "brasilidade". Esse paradoxo estimula Reis Junior a realizar a análise de dois filmes, na qual procura explorar as contradições e os limites do documentário. Um deles, Socorro nobre (Walter Salles Jr., 1995), visto e discutido inúmeras vezes na época do projeto, traz as marcas das análises levadas a cabo nas aulas daquele período.

Com o filme Estamira (Marcos Prado, 2004), sem vínculo com aquelas exibições, são apontados os dilemas, impasses e sonhos de quem opera máquinas de filmar. O autor se detém nas ambiguidades e inquietações despertadas pelo atrito entre as imagens e as palavras; entre a objetiva da câmera que registra e o diretor que insiste em mostrar aquilo em que crê, e o espaço entre um fotograma e o seguinte, no qual o espectador navega. Esse exercício conclui a tese e pode ser entendido a partir do alerta de Comolli (2004) sobre a necessidade de o espectador acreditar que a máquina-cinema mostra o "mundo como ele é", ainda que ele saiba tratar-se de uma percepção enganosa.

A tese de Antônio Reis Junior poderia ser descrita como a sinopse de um filme: de como o cinema permitiu a um menino sonhar o pai que perdeu cedo, vendo-o e revendo seus rolos de filmes em super 8. Adulto, o menino de sempre seguiu sonhando que os filmes poderiam ajudar outras crianças a pensar seu país e a realizar um Brasil melhor.

Referências

ARISTARCO, G.; ARISTARCO, T. (Org.). Il cinema: verso il centenario. Bari: Dedalo, 1992.
COMOLLI, J.-L. Voir et pouvoir l'innocence perdue: cinéma, télévision, fiction, documentaire. Paris: Verdier, 2004.
REIS JUNIOR, A. Cinema brasileiro na escola pública: reconhecimento na diferença. 2010. Tese (Doutorado em Educação) Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
VISALBERGHI, A. Un progetto per la scuola. In: Aristarco, G.; Aristarco, T. (Org.). Il cinema. Verso il centenario. Bari: Dedalo, 1992, p. 68-72.

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