Rosvita Kolb-Bernardes
Doutoranda em Educação na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professora efetiva na Escola Guignard, na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). E-mail: rnf.bhz@terra.com.br
Raízes de um projeto de arte
Início de ano. Novas turmas. Alguns já conhecidos. Turma agitada, cheia de questões e sugestões. Muitas meninas e poucos meninos. Logo foram me dizendo que adoram trabalhar com argila... E eu logo perguntando: sim, mas o que vocês estudaram na aula de arte do ano passado? O que vocês imaginam que crianças com 8, 9, 10 anos de idade podem aprender numa aula de arte? (Anotações do caderno, fev. 2005)
Desse início de conversa e das inquietações, tanto minhas, professora e pesquisadora, como também dessas crianças, nasceu a experiência que aqui compartilho. Os dados que trago para análise dizem respeito às atividades desenvolvidas com crianças entre 8 e 10 anos de idade, numa escola do ensino fundamental, na cidade de Belo Horizonte, durante as aulas de arte no ano de 2005. Nesse contexto, é preciso dizer que aquele foi um princípio de ano carregado de muita emoção e tristeza (sobretudo para nós professores), pois tínhamos perdido uma colega de trabalho.
De minha parte, começava o ano reconhecendo que a vida tem limites, que a morte faz parte do ciclo da vida do ser humano. Esse fato (essa consciência!) me provou tanto na minha tarefa de ser professora que, ao iniciar o ano letivo, lancei como eixo de trabalho: a memória da dor, do sofrimento, da perda, da ausência.
Poderia a escola ser um lugar para o acolhimento de histórias e memórias daqueles que a frequentam? Seria possível trabalhar o sentimento de perda, cultivar segredos, sonhos e desejos na escola? Seria possível, pois, através da atividade artística, construir um olhar e um fazer sensíveis para as histórias de cada um? A experiência que serve de base para a análise aqui proposta oferece elementos para respondermos que sim, e este texto é um convite para se pensar a escola como um espaço de acolhimento; um espaço para o diálogo com os nossos desejos, sonhos, angústias e incertezas; um lugar do afeto, da memória, de compartilhar a história de vida de cada um. Um lugar, enfim, que nos permite caminhar pelos corredores, diferenciando os cheiros vindos da cozinha, escutar os sons do pátio, correr pelo pátio, explorando os diferentes cantos, sentar aqui ou acolá, juntar-se em roda para conversar ou lanchar, subir nas árvores que compõem o cenário educativo, transformando aquele tempo e aquele espaço em tempo-espaço-vida-vivida-partilhada.
Olhar e reviver os espaços da escola como um lugar da nossa memória afetiva significa reconhecer e reviver os cantos da escola como um caminho profícuo para o resgate dos significados neles imbricados e refletidos com todos aqueles que viveram e vivem nesses espaços. Mas, até o momento em que formulei a proposta para as aulas de arte - de puxar fios e tecer as histórias de vida que os alunos traziam -, não tinha me dado conta nem da possibilidade, muito menos da importância e vitalidade que esses espaços poderiam ter na história e memória de alunos e professores.
O que é o vivido? O que é o passado? No dia a dia das escolas, é comum difundir a ideia de que o passado existe para preparar o futuro. Contudo, Benjamim (1994), em sua análise da história, fala de um passado vivo, passível de ser refeito e no qual o sujeito tem um papel fundamental. É possível refazer o passado, interligando-o com o presente. Entretanto, como é possível fazer isso na escola, se os estudantes não se colocam como sujeitos vivos e ativos na experiência de seu cotidiano, sendo privados de contar sua história? O processo de massificação nos priva da arte de narrar e empobrece nossa experiência. Em outras palavras, pessoas moldadas em série perdem sua história, deixando de ser sujeitos.
Como nos diz Kramer (1993), os sujeitos alunos e professores, no momento que contam, escrevem ou falam sobre si, sobre a sua história vivida, têm a possibilidade de interagir e se inter-relacionar, refazendo caminhos, recompondo rastros e recontando suas histórias, criando um novo passado a partir da vivência coletiva do presente. Pois, se existem alunos e professores que contam histórias e têm experiências significativas, eles não poderiam dar um novo sentido para o conhecimento? Um sentido que se constrói pelo afeto, pela dimensão cultural das crianças e adultos que vivem na escola?
Souza (2006) fala da importância do estudo das histórias de vida, colocando-as como ferramentas para compreender como se constrói os saberes escolares. O sujeito aprende a partir da sua própria história e, ao narrá-la, permite-lhe um espaço onde pode falar, pensar, sentir sobre si e os outros.
Aos poucos, tomava corpo de projeto a preocupação de garantir na escola um tempo para as narrativas que os alunos me traziam, abrindo um caminho metodológico no qual as histórias vividas e compartilhadas nem sempre se apresentavam pela escrita (o caminho mais comum, entre os procedimentos escolares...). Outras formas foram propostas e provocadas para dar a conhecer os enredos construídos, apresentados em forma de desenhos, em forma de diário, com fotos de objetos; ou, sugestivamente, configurados em pequenas caixas, contendo objetos colecionados e juntados para dar sentido ou significado a sua memória, a sua história. Nesse caso, emergem sentidos extremamente simbólicos: essas caixas, "memórias encaixadas", apareciam como "caixas de tesouro" (do alemão Schatzkästlein), conforme Hebel (apud Benjamin, 1994). E haveria bem mais precioso que a vida vivida?
Nessa direção, em meu fazer fui construindo o sentido de que as aulas de arte podem oferecer aos alunos a oportunidade de recontarem sua história, reconstruírem seu passado e construírem sua identidade por meio de variados fazeres, onde a palavra une-se a outras materialidades. Nessa abordagem, o trabalho de arte foi repensado, buscando dialogar com a cultura local e com outras manifestações culturais brasileiras.
Para alimentar e instigar as crianças, trouxe para a turma o livro Guilherme Augusto Araújo Fernandes (Fox, 1995), que conta a história de um menino que ajuda uma velha senhora, moradora de um asilo vizinho a sua casa e que estava perdendo a memória, a relembrar sua vida através de diferentes objetos carregados de significados pessoais.
A leitura dessa história ajudou no exercício de rememoração e, aos poucos, os alunos foram trazendo, primeiramente nos seus escritos, suas lembranças: "Sinto saudade de quando eu era menor" (Criança, 9 anos); "Memória para mim é passado, presente e futuro, tempo hora e dia. As fotos que eu trouxe são de amigos, que me fazem lembrar do tempo de pessoas que gostamos, de amigos do passado, gente que ainda não chegou, amigos do presente e os novos que ainda vão chegar" (Criança, 10 anos); "Mas são tantas as pessoas que eu guardo no meu coração, mesmo que esquecidas, porque tudo foi vivido, sentido, tudo eu pensei, tudo eu falei, e vários 'eus' curti" (Criança, 10 anos).
Desse ponto seguimos, alinhavando nossas histórias com os fios da experiência estética, cruzando nossas referências com as culturas africana e indígena e com a tradição das bordadeiras mineiras, que tecem a sua história de vida com fios e panos. Ficou explicitamente visível como essa experiência de memória, de desejos, de segredos se tornou mais intensa quando tivemos o contato com a lenda Quarup dos índios Kamaiurá (Xingu), com o fazer dos patuás da tradição africana e com os bordados da Família Dumont e das Mariquinhas. Constituindo o núcleo do projeto elaborado, tais situações e atividades planejadas nos conduziram a universos diferenciados, ampliando o repertório dos alunos, provocando não apenas o pensamento, mas o sentimento, articulando-os intensamente em novos fazeres.
Os muitos fios da história tecida: bordados, patuás, rituais
Puxando fios: bordados e bordadeiras
Ao visitar com os alunos a exposição dos bordados das Mariquinhas, numa galeria em Belo Horizonte, ficamos encantados e também impactados. As Mariquinhas bordam as suas histórias de sofrimento e de luta pela sobrevivência. Elas moram na periferia da cidade de Belo Horizonte, de onde saem panos bordados, cerzidos e narrados, de lembranças de dificuldades, de momentos de alegria e tristeza.
Em alguns momentos, as crianças ficaram confusas e acharam que os bordados não eram de verdade. Acharam que as histórias bordadas eram imaginárias e, no caminho de volta para escola, comentaram que era muito sofrimento, muita dor para um bordado só, e para uma pessoa só...
Com a Família Dumont, que mora no norte de Minas, na cidade de Pirapora, aprendemos a dialogar com as linhas, tecidos e bordados que trazem uma força e sensibilidade plástica/visual, onde a delicadeza é o grande diferencial. São memórias repletas de poesia da vida vivida e, outras vezes, com a referência na literatura.
Patuás: dando forma e construindo um lugar para a dor
Em visita à exposição Mostra do Descobrimento Brasil + 500, em São Paulo, chamou-me a atenção a obra "Parede de Memória", da artista plástica Rosana Paulino. É uma obra composta por 850 pequenas fotos do seu álbum de família. São fotos desbotadas num tom apagado, que nos remetem a sua história. É como se ela articulasse o passado com o presente, falando da sua vida, relacionada as suas condições histórico-sociais. A partir do catálogo da exposição, e da poesia "Carrego comigo", de Carlos Drummond de Andrade, veio a inspiração para a proposição de confecção de patuás com as crianças. Símbolos de sorte e de proteção, os patuás são pequenas almofadas costuradas, contendo alguma erva aromática, um bilhete com os desejos, sonhos e o que carregamos na nossa bagagem ao longo da vida. Ao olharmos mais de perto a obra da referida artista, no catálogo que levei para a aula, as crianças e eu observamos detalhes: havia fotos de pessoas impressas nas pequenas almofadas costuradas. À medida que tivemos mais contato e mais informações, descobrimos que a artista é de descendência afro-brasileira, o que possivelmente lhe deu suporte para o trabalho com os patuás. Talvez sim, talvez não, mas o certo é que, olhando sua obra, pensamos em seguir pelo caminho nela evidenciado: para o nosso trabalho plástico naquele momento, traríamos o significado dos patuás, construiríamos patuás, pois precisávamos dar forma para os sentimentos, para a dor visível naquele início de ano, que já não cabia mais em nós.
A poesia de Carlos Drummond foi um presente! Ela nos permitiu um mergulho na força e profundeza das palavras, das coisas ditas e não ditas. Entendidas ou não. Ao ler a poesia, os versos do poeta fizeram sentido para as crianças.
Carrego comigo há dezenas de anos, há centenas de anos o pequeno embrulho. Serão duas cartas? Será uma flor? Será um retrato? Um lenço talvez? Já não me recordo onde o encontrei. Se foi um presente ou se foi furtado. Se os anjos desceram trazendo-o nas mãos, se boiava no rio, se pairava no ar. Não ouso entreabri-lo. Que coisa contém, ou se algo contém, nunca saberei. Como poderia tentar esse gesto? O embrulho é tão frio e também tão quente. Ele arde nas mãos, é doce ao meu tato. Pronto me fascina e me deixa triste. Guardar um segredo em si e consigo, não querer sabê-lo ou querer demais. Guardar um segredo dos seus próprios olhos, por baixo do sono, atrás da lembrança. (Andrade, 2001, p. 29-32)
Após a leitura do poema, dei para cada criança um pedaço de papel onde poderiam, individualmente, de uma forma bem livre e espontânea, do jeito que davam conta, escrever sobre si, sobre as suas perdas, segredos, sonhos e desejos...
Algumas optaram por se deitarem no chão para escrever. Outras se esconderam debaixo da mesa, atrás das cortinas, e outras sentaram no lugar de sempre... De repente, uma pergunta: "Alguém vai ler o que vamos escrever? Segredos são segredos, e se eu for ler para alguém, já não são mais segredos...". Entendi que esta criança estava reivindicando um lugar especial para esta escrita, um espaço para sua intimidade, onde pudesse escrever para si e não para o outro. Na escola, aprendemos que sempre escrevemos para alguém. A fala desta criança veio ao meu encontro, reforçando que o que estávamos vivenciando naquele momento pedia um lugar especial.
Depois da escrita dos bilhetes, que foram guardados em lugares supostamente seguros para elas, como no bolso da calça, no estojo, seguimos para a confecção dos patuás. Era a hora de olhar para os tecidos, para os retalhos, para as cores. Entre os materiais à disposição, tinha de tudo. Eram tecidos lisos, sedosos, finos e aveludados. Chegavam aos montes, trazidos de suas casas pelas crianças. Cada um escolheu o seu pedaço. No seu retalho, a sua cor. As escolhas foram as mais diversas. Algumas preferiam as cores mais claras, outras as mais escuras, e outras crianças ficaram em dúvida, pois queriam relacionar a cor com a escrita do bilhete... Em momentos como este, de escolha frente aos materiais a serem utilizados, é que a percepção estética se manifesta; neste caso, se defrontavam com a escolha dos diferentes tecidos, suas texturas, cores, tamanhos. As crianças falavam sobre suas percepções no contato com os materiais, como, por exemplo: "Eu gostei tanto deste pano... ele é tão macio, e as cores são tão leves. Ele é lindo!".
Depois da escolha dos tecidos, uma nova etapa: costurar o patuá e recheá-lo com o bilhete. Trabalhamos com agulhas grossas sem ponta e meadas de linhas coloridas. O costurar demorou algumas aulas. Eram muitas linhas, muitos nós, muitos pontos fora do lugar, que eles queriam dar conta, incluir na sua costura. Tudo isso durou mais tempo do que imaginava. Por algumas vezes, achei que esta atividade não iria acabar nunca! Alguns alunos, por exemplo, não contiveram a sua ansiedade e necessitaram escrever vários bilhetes, costurar vários patuás.
Alguns bilhetes foram costurados nas almofadas, no patuá. Outros bilhetes ficaram guardados na memória, na história de vida de cada um. Algumas crianças não se continham e contavam os seus segredos. Outras crianças faziam confissões: "só vou abrir o meu patuá quando eu casar...".
Ao observar as crianças, suas escolhas e produções, identificava sinais que evidenciaram que eles estavam muito envolvidos, cada uma com a sua costura, com a sua história. Nesta hora, lembrei da artista plástica Fayga Ostrower (1987, p. 22): "Quando as pessoas participam ativamente da feitura de formas, vendo-as nascer sob suas mãos, não só se cria uma situação afetiva imediatamente carregada de associações, como também o exemplo concreto é sempre mais eloquente do que explicações abstratas".
Foi uma atividade estética que proporcionou um espaço de conversa sobre si, onde os fios puxados, os tecidos escolhidos, as cores privilegiadas, os bilhetes escritos falavam de cada um. Um lugar para a acolhida, para a canção que canta no coração de cada um. Sem dúvida, um momento especial para as crianças, e para mim também.
Nascimento, morte, renascimento
Outro desdobramento desta mesma atividade foi o contato com a lenda Quarup, que faz parte do ritual dos índios Kamaiurá (Xingu, Brasil), no qual celebram o ciclo de nascimento-morte-renascimento. Assistimos a um vídeo, sobre a festa dos mortos, onde toras de madeira de quarup eram levadas para a aldeia, pintadas, adornadas com penas, colares e fios de algodão. Neste momento do trabalho, tive a parceria e participação de outro professor da escola, que também trabalhava com este grupo de alunos. Após assistirmos ao vídeo, ficamos sentados em roda, no chão da sala, onde lemos em voz alta a lenda, do livro Xingu: os índios, seus mitos (Villas Bôas & Villas Bôas, 1970), para as crianças.
No primeiro momento da leitura, as crianças acharam estranho este ritual religioso e nos questionaram com perguntas do tipo: "Como assim, eles não choram quando alguém morre? Os mortos, para os índios, não morrem não? Eles voltam?". Outro menino logo foi completando, dizendo que, quando o avô dele morreu, ele também não chorou, pois ele sabe que o seu avô "está por ai...". "No céu?!", alguém perguntou. Outra criança, que tinha visto um programa na televisão sobre o dia dos mortos no México, trouxe a informação que lá eles cantam e fazem festa no cemitério: "Eu acho que é uma homenagem que as pessoas fazem para as pessoas mortas".
Naquele momento, puxamos novamente o fio da conversa para o vídeo e para a lenda, enfatizando a importância dos diferentes rituais que existem em diferentes culturas e que cada grupo social cria os seus rituais. Isso, de alguma forma, começou a fazer sentido para algumas crianças, quando permitiram olhar para si.
Depois dessas interações, iniciaram a atividade plástica, fazendo um desenho, um autorretrato. No verso do desenho, listaram as suas perdas, saudades, a falta das coisas e de pessoas. Depois disso pronto, coloriram o fundo do papel com lápis de cor e deixaram a lápis o autorretrato.
O vídeo e a leitura da lenda foram elementos que ajudaram na condução do nosso olhar estético, para os desenhos e escritas produzidos pelos alunos. Tendo o ritual indígena como referência, aproveitamos um tronco de árvore recém cortado na porta da escola, utilizando-o como suporte artístico. Olhando para este ritual, tiramos a ideia de pintar o tronco de árvore, colocar fios de algodão, pendurar os desenhos/autorretratos, com as escritas sobre nossas perdas, tristezas e ausências. Depois que todos estavam prontos com os seus desenhos e escrita, criamos o nosso ritual.
Ficamos sentados em roda e, no meio, no ponto central da roda, estava o "quarup" feito pelas crianças. Combinamos que cada criança, uma de cada vez, teria a oportunidade de entrar no meio da roda e, bem próximo ao quarup, poderia ler o que escreveu, amarrando, em seguida, o seu desenho no tronco.
Participaram desta atividade vinte crianças, que deram conta de ficar num silêncio absoluto, esperar a sua vez de ler, num impressionante clima de respeito ao outro. À medida que foram lendo e falando, instaurou-se um clima de intimidade, de convivência, de troca, com a possibilidade de um encontro consigo mesmo, resultado da "exploração de cores, luzes e sombras, a convivência com os anseios e receios, o enfrentamento dos fantasmas, o descobrimento de alegrias novas, a criação de novos processos de inventar sonhos" (Albano, 1991, p. 161).
As crianças pareciam querer isso mesmo: inventar novos sonhos, achar caminhos, novos processos para as suas perdas, tristezas e angústias. Ao ler os escritos que ficaram no verso dos desenhos, nota-se que eles falam do peixinho que morreu, da saudade que ainda existe da mamadeira, do tio que morreu e que ninguém contou, do amigo que mudou de cidade, da falta da professora, da alegria de ganhar um cachorro, do irmão que vai nascer, do avô que morreu e que o ensinou a amar. Onde estariam esses sentimentos e sentidos, se não houvesse uma proposta para sua canalização, se não houvesse uma proposta para dar forma por meio de diversas expressões?
Ao criarmos na escola um ambiente de acolhimento das subjetividades de cada um, criamos também um trabalho que permitiu que os alunos se reconhecessem como pertencentes a um determinado grupo social, percebessem que a dor e o sofrimento, que às vezes aparece como tema nas obras de alguns artistas, faz parte da vida, inclusive da deles, da nossa.
Penso que trabalhar com a formação humana não é um empreendimento solitário, mas um investimento que envolve o outro. E envolver o outro, como nos diz Formenti (2008), significa cuidado e zelo. Qual a dimensão do cuidado e do zelo, quando os alunos nos trazem suas lembranças, objetos, sonhos, desejos, queixas? Há escuta sensível, há acolhimento?
Essa experiência me revelou como é importante ouvir e se sentir ouvida na escola. Falar de nós mesmos cria um vínculo para aquele que fala e também para aquele que escuta. Gambini (2001) me iluminou quando destacou o enorme ganho que esse tipo de atividade pode ter para nós, educadores. Para ele, na medida em que podemos conhecer mais uma dimensão daquele ser que está à nossa frente, mais condições temos, como educadores, de mudar de lugar. Uma atividade como essa nos permite observar o aluno a partir de outro lugar: do lugar do imaginário, da subjetividade, do simbólico. Afinal, nos diz aquele autor, o inconsciente cria a disposição para aprender, abrindo portas para as experiências de vida.
Propor um trabalho de criação, a partir de diferentes culturas, possibilita-nos construir um ensino de arte que dialoga com a diversidade presente em nossa realidade, além de permitir que as diferentes experiências e histórias vividas entrem para a escola, invadam nossas salas de aula e tomem conta de nós, o que cria outra dimensão e disposição para a aprendizagem.
Incluir a memória como um ponto deflagrador de um processo artístico/afetivo/estético reafirma, também, a necessidade de fazermos com que as experiências afetivas - dores, amores, perdas, faltas, desejos - integrem as reflexões e produções de arte na escola. Na experiência aqui analisada, foram as conversas - espaço aberto ao diálogo e às narrativas do vivido, nas quais falamos e escrevemos sobre nós - e os contatos com as diferentes culturas que nos proporcionaram e nos permitiram criar peças tão preciosas e tão diferenciadas como os patuás, envoltas por simbolismos. Criações que, para além de um simples fazer artístico, carregavam e revelavam "segredos do coração" - recheados com os nossos desejos e sonhos, escritos, costurados em panos, com pequenos bilhetes, dobrados e guardados, e alinhavados.
Assim, criamos na escola um lugar do acolhimento das individualidades, das subjetividades de cada um. Exercitamos o olhar e o fazer, integrando pensamento e sentimento, sensação e intuição, afirmando a arte como espaço da totalidade, e o espaço do ensino da arte como lugar de muitos segredos...
Referências
ALBANO, A.A. O ateliê de arte na escola: espaço de criação e reflexão. In: PACHECO, E. (Org.). Comunicação, educação e arte na cultura infanto-juvenil. São Paulo: Loyola, 1991. p. 159-168.
ANDRADE, C.D. Carrego comigo. In: ANDRADE, C.D. A rosa do povo. 23. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 29-32.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, v. 1).
FORMENTI, L. A escrita autobiográfica e zelo: um olhar composicional. In: PASSEGGI, M.C. (Org.). Tendências da pesquisa (auto)biográfica. São Paulo: Paulus; Natal: EDUFRN, 2008. p. 51-71.
FOX, M. Guilherme Augusto Araújo Fernandes. São Paulo: Brinque-Book, 1995.
GALZERANI, M.C. Imagens entrecruzadas de infâncias e de produção de conhecimento histórico em Walter Benjamin. São Paulo: Cortez, 2002.
GAMBINI, R. Sonhos na escola. In: SCOZ, B. (Org.). (Por) uma educação com alma. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 102-157.
KRAMER, S. Por entre as pedras: arma e sonho na escola. São Paulo: Ática, 1993.
OSTROWER, F. Universos da arte. Rio de Janeiro: Campus, 1987.
SOUZA, E.C. O conhecimento de si: estágio e narrativas de formação de professores. Rio de Janeiro: DP&A; Salvador: UNEB, 2006.
VILLAS BÔAS, O.; VILLAS BÔAS, C. Xingu: os índios, seus mitos. São Paulo: Círculo do Livro, 1970.
* O projeto do qual resultou este artigo foi parcialmente financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e pela Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais. Agradeço ao apoio da Escola Balão Vermelho no desenvolvimento do presente trabalho, e a Luciana Ostetto, pela carinhosa leitura e sugestões.
Cadernos CEDES
Tu arte bonita...
ResponderExcluiradorei o texto. eu tb já fui professora estou agora reformada
ResponderExcluirkis .=)