quinta-feira, 20 de maio de 2010

Desejo de encadear letras


Desejo de encadear letras

Cristóvão Giovani Burgarelli

Doutor em Lingüística; Membro do Espaço Psicanalítico de Goiânia e Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: cgiovani@fe.ufg.br

Linguagem é o que faz falar o ser. O texto escrito pode ser tomado como equivalente ao inconsciente, pois, em suas dobras, em seus desvios, o sujeito está incessantemente convocado a forjar seu próprio ser-sujeito, suas identificações. Ler é fazer trabalhar o texto, o próprio tecido do velamento; é situar-se num vazio, que convoca um fluxo inesgotável de atribuições de sentido. A transmissão é, sobretudo, transmissão de desejo, pois há uma hiância irredutível entre o que se diz (ou se ensina) e o que se ouve (ou se aprende); ela constitui-se a partir de um esquecimento que só passa a operar em seu retorno, com a implicação, é claro, de um sujeito desejante. A escrita, ao apropriar-se dos efeitos do significante, cava sulcos no real, e a letra, porque marca o corpo, recorta no e para o ser falante tanto aquilo que do significante se forja para um sujeito (os efeitos da língua) quanto a memória de um gozo perdido, que, à revelia desse sujeito, vai-se responsabilizar pela sua verdade.

De um lado, temos que o sujeito é uma invenção a ser sustentada permanentemente e, de outro, que, das condições concretas para essa invenção, esse engendramento dinamicamente remissivo ao Outro, resta algo que não cessa de não se escrever, a verdade. No inconsciente, há um ponto nodal que se chama desejo e se situa na dependência da demanda do Outro. A coisa acontece mais ou menos assim: porque a demanda se articula em significantes, ela deixa um resto metonímico, o desejo, que correrá como que por debaixo dela e funcionará como a condição, "ao mesmo tempo absoluta e impegável" (Lacan, 1985, p. 146), para que um sujeito possa situar-se. Conforme comenta Lacan, trata-se de um elemento necessariamente em impasse, insatisfeito, impossível e desconhecido; um elemento pelo qual a pulsação do inconsciente se liga à realidade sexual, pois é a partir do ponto em que o sujeito deseja que a conotação de realidade pode-se dar na alucinação, ou seja, a partir daí a realidade, supostamente dessexualizada, só pode ser abordada com os aparelhos do gozo; como o sexual e o linguageiro vêm aí incidir-se, este será sempre um gozo interditado.

A fantasia e o desejo causam-se reciprocamente. "O sujeito se situa a si mesmo como determinado pela fantasia" (Lacan, 1985, p. 175). Quando a criança, o infans, busca reencontrar o objeto original de sua primeira satisfação, não há outra maneira de fazê-lo senão fantasiando-o, imaginando-o ou alucinando-o. O desejo se constitui nesse próprio movimento fantasmático que tem como suporte os objetos da pulsão, a que Lacan chamou de objeto a, objeto causa do desejo: o seio, as fezes, a voz e o olhar - objetos que compõem uma série.

No seminário 11, ele indaga:

Será que não vemos na metáfora freudiana encarnar-se essa estrutura fundamental - algo que sai de uma borda, que reduplica sua estrutura fechada, seguindo um trajeto que faz retorno, e de que nada mais assegura a consciência senão o objeto, a título de algo que deve ser contornado? (LACAN, 1985, p. 171.)

Nessa leitura que Lacan faz de Pulsões e destinos da pulsão, há uma indagação interessante: o que se dá na passagem de uma pulsão a outra (oral, anal, escópica, etc.)? Como situar historicamente a pulsão invocante? A partir dessas questões, ele poderá dizer que, no processo de causação do sujeito, há um ponto em que intervém algo que não é do campo da pulsão, o desejo, um ponto de reviramento da demanda do Outro. E sua leitura continua, com conseqüências. Segundo ele, a distribuição dos investimentos significantes instaura, no sujeito, hiâncias nas quais se situa o inconsciente. É o mesmo que dizer que entre a realidade e o sujeito se põe o inconsciente, ou ainda, que a pulsão tem seu papel no funcionamento do inconsciente, pois algo no aparelho do corpo é estruturado da mesma maneira: numa unidade topológica das hiâncias que se põem a jogar.

O lúdico, que se presentifica no brincar tanto com o corpo quanto com a materialidade lingüística, não é sem as referências gramaticais em cujo cerne se encontra o artifício. Desse modo, pode-se entender que a pulsão se define como um vazio, incluído no coração da demanda, que será ocupado por um sujeito. Mas esse vazio não é o nada e, sim, efeito de linguagem, efeito da palavra sobre o corpo. Eis aí, portanto, um ponto de vinculação entre a estrutura da linguagem (a sua gramática) e os atos empreendidos pelo sujeito com o seu corpo. No período de alfabetização, o que está em jogo no movimento de entrada da criança na escrita encontra-se bem vinculado ao que está em jogo também no seu próprio corpo. Trata-se do momento de a criança, na medida em que a leitura e a escrita vão-se tornando correntes, libertar-se do corpo da mãe. Na borda do Édipo, ao assumir o falo como significante, a criança se confronta com a ordem simbólica das trocas, cujo pivô é a função paterna (cf. LACAN, 1995, p. 204).

Pode-se fazer aqui uma relação com o que Bergés diz sobre a letra: "[...] é em torno desse vazio deixado pelo real da letra que a pulsão escópica do leitor vem girar no jogo incessante da cadeia significante que faz avançar no texto, e não sobre o texto: é desse movimento pulsional que o apetite da leitura se sustenta". (BERGÈS, 1987, p. 122)2

Vê-se nas letras escritas um procedimento homólogo ao do complexo de castração. As bordas dessas letras, como as do corpo, precisam ser erotizadas para que passem a formar cadeias. Há aí, portanto, algo bem diferente do que se pode ver na fala cotidiana, em que, devido à sua linearidade, as letras se apresentam como uma imitação direta da fala. Conforme comenta Pommier (1993, p. 324), trata-se de uma topologia ordinariamente invisível, mas que "permite compreender que é preciso esquecer a imagem (escópica ou acústica) para que o texto a ser lido apareça no lugar desse apagamento". É o que se dá também com a imagem do corpo, que precisa ser recalcada para que apareça em seu lugar "essa escrita do gozo perdido que é o sintoma" (p. 325). Em ambos os casos, são as bordas que fazem escrita, na medida em que um corte, um traço, incide sobre uma consistência imaginária, seja da letra-imagem, seja do corpo-sintoma.

Podem-se arriscar alguns exemplos para elucidar a discussão proposta por este texto. E pode ser interessante reportar-se primeiramente a certo grude3 muito comum entre as mães e suas crianças, sobre o qual o relato a seguir pode dar testemunho:

Fala de um filho (oito anos), conforme relatada por sua mãe:

Mamãe, eu lembro de quando eu estava dentro da sua barriga. Era tão quentinho e aconchegante. Eu não queria ter saído de lá. Mas foi ficando muito apertado e eu não podia mexer e eu tinha vontade de esticar um pouquinho, por isso que às vezes você pensava que eu estava te chutando, mas não era verdade. Eu estava só tentando espreguiçar um pouco.

Fala da mãe:

Creio que meu filho me disse isso porque tinha ouvido, dias antes, uma conversa em que eu perguntava a uma amiga, grávida, se ela já estava sentindo os chutes na barriga. Nessa ocasião, lembro-me também de ter contado a ela que, quando eu estava grávida, às vezes acordava à noite sentindo chutes na minha costela.

Com base nesse exemplo, é possível pensar, entre outras coisas, nas fantasias constitutivas, que são uma forma de a criança lidar com sua sexualidade. Como já foi dito, são essas fantasias que poderão constituir desejo, ou seja, o desejo vai-se inscrever numa fantasia que supõe poder recuperar aquilo que foi perdido; conforme Lacan, aquilo que sempre vai faltar, pois, para ele, a falta é inerente à estrutura. O sujeito se inventa nessa cena fantasmática que toma o corpo da mãe como o lugar em que se instaura a dialética essencial do objeto. Nesse momento, essa mãe funciona, para seu filho, como agente de frustração. Seus gestos, seu calor, seus odores, seu olhar, sua voz, enfim, o jogo de presença e ausência por ela introduzido já forçou a entrada desse sujeito no mundo da linguagem. Ele já é, portanto, sujeito barrado ($), mas aqui o que esse sujeito se propõe fazer é encontrar um "porto seguro" para que ele possa existir, por isso ele se fixa a determinados objetos na sua fantasia.

Para desenvolver que a falta é constitutiva da estrutura, tanto da linguagem quanto do corpo, Lacan (1985) traz o algoritmo [^], que se lê punção, e o põe no cerne de qualquer "relação do inconsciente entre a realidade e o sujeito" (p. 171-172). A partir daí, é possível dizer de um movimento incessante desse sujeito - metonímia do falta-a-ser -, bem como de instâncias em que ele se consolida, fixando-se em algum ponto cavado seja na dialética dos objetos, seja na dialética dos significantes - metáforas do ser. O relato citado parece testemunhar esses dois momentos, distintos entre si: um que é o da própria fantasia de voltar para a barriga da mãe, aqui relembrado - momento em que o sujeito dividido se consolida, apegando-se ao objeto faltoso ($^a) - e outro em que se assumem numa articulação significante tanto a impossibilidade de sua realização quanto o ter de lidar com isso, ou seja, o colocar-se num movimento pulsional.

"Eu vou aprender a ler, mas vai ser quando eu tiver seis anos mesmo, não vai ser com sete não... Sabe por quê? Porque aí eu vou aprender a dormir sozinho." Foi com essas palavras que outra criança, poucos dias após completar seis anos, pôde-se articular para dizer de sua passagem de não-leitora a leitora, de não-escrevente a escrevente, passagem que exige que o sujeito atinja a dimensão do Outro por meio do enlaçamento pulsional. Por um lado, pode-se dizer que o desejo de ler é regido pela relação que une o sujeito que fala ao objeto a, isto é, seu fantasma, mas, por outro, a substituição deste pela leitura puxa os fios de uma textura e, porque torna impossível a leitura literal, força o nascimento de um novo sujeito, ou seja, a passagem de $^ a a $^ D, um sujeito que agora se consolida na demanda do Outro.

Na leitura, é preciso que o texto permaneça extracorpo, extra-imaginário, pois o que se lê, com o movimento do olhar, é o desejo daquele que escreveu. E para que o leitor possa se jogar no jogo fálico, para fazê-lo jogar, faz-se necessário que ele vença a saturação da imagem, os diversos corpos de leitura, a iluminura. Para que sua leitura ultrapasse o nível do enunciado e se torne enunciação, em que consiste o prazer do leitor, é preciso que ele ponha em funcionamento os efeitos dessa sua entrada na estrutura simbólica, isto é, os efeitos do recalque que o constitui como tal. É retornando ao recalcado, mas, ao mesmo tempo, fazendo-o falhar que a criança poderá conjugar olhar e ouvido para decifrar um já sabido capaz de lhe aparecer agora como surpresa.

O que impede, portanto, uma criança de ler e escrever antes de certa idade não é uma incapacidade técnica, mas sim o valor psíquico de sua relação com a representação pictural. Comentando sobre isso, Pommier (1993, p. 9) propõe-se tirar conseqüências da seguinte afirmação: "os primeiros desenhos apresentam fantasmas presos ao recalcamento até o ponto em que o retorno do recalcado se escreve na letra". Pode-se dizer, portanto, de um momento em que a criança se prende ao recalque, pois, com seus primeiros rabiscos, ela se representa e apresenta os seus sonhos e de um outro em que, em retorno, os restos dessa imagem e desses sonhos serão escritos, pois, para encadear letras, o valor dessas imagens terá de retornar apenas em seu valor de significantes, encadeados conforme as leis de uma gramática.

G., cinco anos e seis meses:



Talvez esse exemplo4 possa nos ajudar a avançar um pouco com esta discussão. Grafado por uma criança de cinco anos e seis meses, a partir de seu contato com um material escolar que, além de régua, traz algumas figuras geométricas (como se pode ver na sua parte de baixo), ele foi lido da seguinte forma: "O número 1 é uma casa, e aqui embaixo um pedaço da casa; o número 2 é um homem jogando bola, e aqui embaixo a bola de novo, depois um pedaço da casa de novo; o número 3 é uma espiga de milho; o número 4 é um livro; o 5 é a noite, e aqui embaixo tem uma estrela; o número 6 é uma pipa; no 7 é uma boca; aqui (com o dedo no 8) é o D de dedo; e aqui no 9 é um coração".

Pode ser interessante pensar em como, na trama desse jogo em que vários elementos e várias séries se relacionam (números, objetos e partes de objetos), o D poderá ser tomado em seu valor de significante. No conjunto das relações entre objetos, partes do corpo e partes dos objetos, esse D pula de sua possível vinculação com boca (desenho) para um encadeamento somente possível às custas dos apagamentos: apaga-se o corpo, apaga-se o valor pictural e lê-se o que aí não está: "D de dedo". O aprendiz-leitor perde-se nos elementos (imagens) do jogo que se pôs a jogar - metonímia do desejo - e, ao mesmo tempo, cava, com a passagem ao significante, seu acesso à forma da letra - uma outra metáfora do ser. "Agora não é desenho não, é escrita mesmo." Foi o que essa criança disse, referindo-se ao D de dedo, quando mostrava sua produção a outra pessoa, também professora como a primeira.

Embora já tivesse feito tantos outros desenhos, atividades escolares de grafar o próprio nome, de preencher cabeçalhos e de reconhecer cada letra do alfabeto, por que será que essa atividade específica significou tanto para essa criança, permitindo-lhe inclusive dizer que, a partir daquele momento, iria aprender a ler e a escrever? É correto dizer, por um lado, que a criança lê antes de se tratar propriamente dos sinais convencionais da escrita, o que também permite pressupor que, antes de se tornar escrevente, ela já se encontra numa relação com a escrita - tanto a partir do suporte objetal-figurativo quanto a partir do suporte fonético -, ou seja, ela pode experimentar a relação de ausência/presença na própria modulação de sua fala. No entanto, o que esse exemplo parece testemunhar é o nascimento de um sujeito para um significante. Dos objetos, surgem traços capazes de retê-los em sua unicidade e, mais do que isso, porque um sujeito é pego na trama de suas combinatórias, esses objetos não se vêem mais senão manipulados em suas diferenças.

A letra circunscreve o texto no plano da significância e, para isso, deixa sobrar a verdade de um ponto opaco do real. Ela representa o sujeito no seu nascedouro, ou seja, no momento de sua identificação simbólica, e, porque traz a memória de um gozo perdido, inaugura a dinâmica do inconsciente, cuja marca é o processo de repetição. Já o significante é uma invenção a partir de algo que se faz presente na letra, e isso se dá por causa de um ponto em que alguma coisa, à revelia do sujeito, é remanejada pelos efeitos de retroação. Não há, portanto, um primeiro nível para depois haver um segundo, pois o suposto primeiro tempo faz, retroativamente, parte do segundo, isto é, a letra que retorna não retorna como ela foi recalcada, mas sim trazendo o traço desse recalcamento.

A letra não está toda no significante, pois ela se serve dele para constituí-lo. Porque sua estrutura apresenta dupla face, contraditória e com duplo valor, ela permanece inclusa na fala, fazendo traço do sujeito, ou seja, no gozo do som não se tem puro gozo e, sim, gozo interditado. É por isso que se pode dizer que a escrita é o próprio corte, ou seja, ela é um sulco que a linguagem cava no real do ser falante, que, a partir de determinado momento de sua constituição como sujeito, será convocado a inverter a escrita do signo para a leitura do signo, passando-se assim a tomar os objetos não mais em sua coisidade, mas apagados em certo funcionamento gramatical. A partir dessa inversão, o sujeito, já constituído pelas marcas do significante como corpo pulsional, poderá convencionalmente fazer uso da escrita, o que se dará imaginariamente a partir do suporte fonético.

Para se pensar a relação entre a criança, o professor e o texto, um ponto interessante que se pode destacar é a questão do endereçamento. Na frase "Leia este texto para mim!", visivelmente ele comparece. Em primeiro lugar, o que se vê aí senão o desejo do Outro representado pelo desejo do "auditor" (professor, mãe ou algum outro adulto)? Outro ponto que chama a atenção é que esse imperativo deverá ser atendido com uma leitura em voz alta. Do mesmo modo que ocorreu com aquela criança que foi convocada a ler como D o vazio de uma figura geométrica desenhada na régua, aqui o aprendiz-leitor vai-se perder nas imagens das letras, que precisam ser apagadas numa fonemática para que as palavras possam articular-se.

Quando ainda menor, era o olhar da mãe que constituía essa escansão, presente sobre fundo de ausência e ausente sobre fundo de presença; era o olhar da mãe que portava o desejo, constituído devido ao intervalo entre o corpo da criança e a sua criança desejada, entre o corpo que é olhado e o desejo imaginário essencialmente fálico de quem o olha. Agora, no momento dessa passagem do imaginário ao simbólico, ou então, do grafismo situado no corpo do Outro ao grafismo que recorta o próprio corpo, essa criança se vê convocada a inverter essa demanda e a assumi-la como seu desejo. Ao enfrentar esse forçamento corporal da escrita, o endereçamento também se revira: "Deixe-me ler isso para você!", "Olhe o que eu escrevi para você!"

O texto, que não é um objeto como os demais e, sim, uma instância cavada num embate difícil entre um eu e o Outro, um simbólico recortado de falhas, é, ao mesmo tempo, castração e liberdade. Uma vez que o professor se autoriza para uma criança, tomando como referência essa instância simbólica, essa esfera legal, o que ele faz, mais do que propriamente ensinar, é endereçar a ela o seu desejo, desejo de que ela deseje aprender. Suas exigências com relação à leitura, à produção textual, às correções gramaticais e aos demais jogos lingüísticos de nada adiantarão se não forem tomadas como questões pelo próprio sujeito, que, embora tenha como única opção dirigir-se a um saber que vem do Outro, só poderá deslanchar-se se o tomar em seu percurso singular. De fato, algo lhe é demandado, mas essa demanda tem de ser interpretada. Aí, sim, haverá a possibilidade de nascer um estilo, isto é, a marca de um sujeito no texto.

O que se põe em questão, portanto, pensando-se novamente na topologia, é o surgimento de um novo campo, o do sujeito, que se delineia a partir de sua dependência ao campo do Outro. Com Freud (1995/2003), pode-se falar que, nessa dialética, articulam-se, logicamente, estes três tempos do sujeito: um, ativo, em que ele vai em direção a um objeto externo; outro, reflexivo, em que ele toma como objeto uma parte do seu próprio corpo; e um terceiro, passivo, em que ele se fará objeto para um novo sujeito, ou seja, aquele nascido do enlaçamento pulsional, cuja função de artifício o fará tomar, noutro tempo, o que é próprio de um campo como sendo do outro. No movimento dessas três vozes é que poderá constituir-se uma singularidade, aquilo que o sujeito é, diferentemente de todos os outros, sua forma singular de driblar a censura que recai sobre o seu fantasma (Cf. SCOTTI, 2006, p. 161).

O que se tem, portanto, quando se pretende relacionar essas três instâncias ou posições - a criança, o professor e o texto - é que, conforme se tentou dizer, esses três pontos se ressaltam: a constituição de um corpo pulsional (corpolinguagem), o processo de causação de um sujeito do desejo e, por fim, o modo peculiar de esse sujeito situar-se e movimentar-se na estrutura simbólica. Em se tratando de escola, põe-se também em questão um saber suposto, tanto como autoridade no professor quanto como antecipação na criança. Suposição que se põe, ao mesmo tempo, na dependência do Outro e da construção a que cada sujeito se vê convocado, na medida em que escolhe oferecer-se no lugar de uma falta nesse Outro. Se, por um lado, esse saber é dependente de uma lei e do desejo que essa lei instaura, por outro, o desejo é indeterminado na linguagem e, por isso, precisa ser tomado como sabido por um sujeito.

O professor, portanto, é sujeito suposto saber, uma autoridade para a criança, e seu discurso fará sentir seus efeitos, ao passo que, numa insistência cotidiana, ele sustente junto a essa criança uma construção imaginária. Trata-se, na verdade, de sustentar a transferência. É lendo e escrevendo para ela e junto com ela, convocando-a a ler e a escrever, interpretando e interrogando sobre o que ela escreveu, enfim, é estruturando um saber que, ao se pôr em movimento, rompe com essa própria estrutura (cf. DE LEMOS, 1998) que ele desempenhará seu papel de inserir a criança no movimento lingüístico-discursivo para, a partir daí, ela talvez escrever o seu estilo.

NOTAS e REFERÊNCIAS

Educação em Revista - UFMG

Os sentidos da sensibilidade e sua fruição no fenômeno do educar


Os sentidos da sensibilidade e sua fruição no fenômeno do educar

Miguel Almir Lima de Araújo

Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor da Universidade Federal do Estado da Bahia (UNEB) e da Universidade Estadual de Feira de Santana (UFES). E-mail: malmir@uol.com.br

1. UMA COMPREENSÃO POLIFÔNICA DA SENSIBILIDADE

No bojo da tradição de nossa cultura ocidental, o modelo de pensamento que traduz a ideia de Ratio foi sedimentado com intensidade, instituindo processos civilizatórios modulados, de modo predominante, nos auspícios do saber racional. Esse paradigma que se constitui como emblema de verdade foi estatuído por uma Razão pretensamente suficiente e pura, tendo como implicação o descuido, a denegação da esfera do Sensus, da expressão do sensível, do senso de compreensão, da intuição, das afecções humanas - da Sensibilidade.

Na cultura e no existir humanos, a pertinência e a relevância da presença constitutiva da Razão (Ratio, Logos) é imprescindível como senso que potencializa a criticidade do pensamento, sua expressão como capacidade de discernimento e de indagação radical, como possibilidade de uma Razão que dialoga e que cria Sentidos. Porém, ao ser plasmada de forma isolada e desvinculada do Sensus, como se fosse o único modo de expressão do conhecimento verdadeiro, a Razão incide em processos reducionistas que desqualificam a complexidade intensiva do humano.

Essa supremacia da Ratio que a considera antagônica e superior ao Sensus desemboca em posturas caracterizadas por modos de expressão abstratos e mecânicos que privilegiam as esferas do cálculo e da técnica, da precisão e da uniformidade. Assim, prevalecem as lógicas calculistas em detrimento das expressões que revelam a plasticidade dinâmica do existir, dos fluxos sinuosos do vivido/vivente; da indeterminação e da imponderabilidade - estados ontologicamente constitutivos da complexidade da condição humana.

Os imperativos da racionalidade técnica e instrumental privi-legiaram a lógica do cálculo - a Razão calculista -, que tende a reduzir o humano à funcionalidade do metron, da medida, aos parâmetros da forma mecânica. Essa hegemonia forja lógicas monossêmicas que reduzem a complexidade do existir e da cultura apenas à esfera da retilineidade e da mensurabilidade. Ao operar essa redução, essa postura recalca as dimensões pregnantes do ser-sendo, do existir.

A tradição mítica do pensamento simbólico, mitopoético, que constituiu a Grécia arcaica, se estruturou mediante uma compreensão intuitiva, um Logos, uma Razão existencial que foi sendo gradativamente descartada com a ascensão e a hegemonia do Logos abstrato. Esse Logos privilegia "la esencia frente a la existencia (...) el ser estático frente al devenir dinámico" (ORTIZ-OSÉS, 2003, p. 88), caracterizando, assim, uma Razão incorpórea, imbuída de apatia. Para Ortiz-Osés (2003, p. 88-89), ocorre a passagem de "una filosofia dialógica como la socrática a una filosofia lógica como la platónica-aristotélica-clásica". De um Logos exis-tencial, spermatikós, que supõe pregnância e dialogia, para a universalidade desse Logos abstrato, que supõe monologia e verticalidade.

O Logos primordial, em sua acepção heracliteana, pode ser concebido como busca do Sentido anímico das coisas, do existir, no auscultar os enigmas que constituem os desvãos e paradoxos do humano (JAEGER, 1989; LEÃO, 1991; COLLI, 1996a; HEIDEGGER, 2001). Assim, um Lógos ontológico que projeta vivacidade e admiração, que, em sua condição polilógica, indaga com abertura e radicalidade e penetra com intensidade no claro enigma do humano.

Na órbita dos paradigmas que se tornaram predominantes em nossa cultura, o pathos passa a ser desqualificado e patologizado. Passa a ser tratado como zona sombria que desbota o espírito, o conhecimento verdadeiro. Essa patologização do pathos (paixão) se traduz na repulsão às intensidades das afecções, dos sentires, do mundo sensível que, como força que comove, desconserta e inquieta, deve ser controlada e enclausurada por meio do ascetismo que incide em recalcamento e purificação.

O Sensus, como sentimento e como significação, se estrutura, originariamente, a partir do húmus, do orgânico, da pregnância das humidades do ser-sendo. Projeta-se na nervura da carne, no senciente da corporeidade, no fremir das vivências humanas, a partir da plasticidade sinestésica da expressão originária dos feixes dos cinco sentidos - do pentassensorial - e dos perceptos que emergem de nossas camadas sensíveis mais sutis e vastas - o multissensorial (ZUKAV, 1992). Na proporção em que cuidamos das potencialidades do multissensorial, tecendo a relação de coexistência e de interdependência existente entre os diversos perceptos, dos tons de suas singularidades, descortinamos a vastidão dos vãos de nosso universo sensível, urdimos o espectro da Sensibilidade em suas dimensões seminal e anímica. Assim, o Sensus emerge dos horizontes do sensório, dos perceptos sensíveis, do senso intuitivo, em suas expressões pregnantes, se expande e se prolonga nos sensos do imaginário, da consciência compreensiva, da Razão-Sentido.

Para Abbagnano (1962, p. 840), o sensível "é o que pode ser percebido pelos sentidos" e a Sensibilidade está na "esfera das operações sensíveis do homem", revela a "capacidade de receber sensações e de reagir aos estímulos (...), de participar das emoções alheias ou de simpatizar". Barbier (2001, p. 136) concebe Sensibilidade como estado "que dá sentido a todos os sentidos", compreendendo "sentido como universo de significados existencialmente encarnado e não susceptível a uma explicação, mas somente a uma compreensão multirreferencial e transdisciplinar a partir de uma implicação pessoal" (BARBIER, 2001, p. 136-137). Assim, Sensibilidade como amálgama que agrega os sensos perceptivos na tecelagem dos Sentidos pregnantes e anímicos do existir.

A dis-posição do estado sensível nos possibilita o estar-sendo-no-mundo-com-os-outros, de modo encarnado e radical, mediante os processos de percepção e de compreensão em que podemos tocar, cheirar, escutar, saborear e olhar o mundo, bem como, conjuntamente, pensar, meditar por meio de nossa relação direta e originária com ele. Essa dis-posição desemboca em formas de saber - sapere - imbuídas do elã do vivido-vivente que traduzem um "enraizamento dinâmico".

Destarte, o universo do estésico, do sensível - o Sensus -, se entretece, no dinamismo de sua plasticidade, como instância policrômica, como dis-posição de nosso ser senciente e pensante que, desse modo, pode vivenciar e compreender com vigor os fenômenos, a vida. Merleau-Ponty (1984, p. 228) proclama que "O sensível (...) como a vida, é um tesouro sempre cheio de coisas a dizer" na intensidade da membrura, da carnalidade do existir, "na juntura onde se cruzam as múltiplas entradas do mundo" (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 235, grifos do autor), nas dobras de suas encruzilhadas.

Nessa perspectiva, o Sensus se traduz na expressão plástica dos perceptos sensíveis que plasmam as afecções, o imaginário, e que, conjuntamente e de modo implicado, plasma a consciência compreensiva, o senso meditativo, impregnando o existir de mais Sentidos, de Sentidos vivos e originários. Swimme (1991, p. 80) proclama que "o universo é sensível - é um reino de sensibilidade". Assim, quanto mais exercitamos as potencialidades sensíveis, mais e melhor podemos apreender, compreender e vivenciar a dinamicidade dos fluxos do universo, os ritmos sincopados do existir, das coisas; mais podemos cultivar nossas potencialidades ad-mirantes, mirando com despojamento e implicação, com vivacidade e alumbramento.

O cuidado com a Sensibilidade se traduz e se descortina na abertura despojada, na dis-posição de nossas potencialidades humanas, de nossos sensos perceptivos, pela relação coexistencial entre a corporeidade e a espiritualidade e se desdobram em processos compreensivos e vivenciais. Processos que vislumbram a inteireza in-tensiva da condição humana. Dis-posição para a percepção, a compreensão dos fenômenos, da complexidade e da inteireza do existir.

O estado de dis-posição do espectro da Sensibilidade nos implica com os enigmas do ser, do existir e do coexistir; nos cumpliciza com as coisas que nos afetam, de modo acolhedor, em que nos simpatizamos e nos empatizamos coimplicativamente. O estado de solicitude da Sensibilidade incide numa atitude de não-resistência aos desafios do devir, de superação das posturas defensivas. Incide em abertura para os influxos dos fenômenos, para os fluxos tensoriais do existir. Esse estado nos con-voca por inteiro, de modo penetrante, para processos in-tensivos de buscas que incidem em desafios altaneiros; para a percepção e a ad-miração das silhuetas do existir mediante o mirar vasto e espirituoso da alma e do coração. Dessa forma, a abertura sensível faz emergir o pasmo do estado nascente que leva a processos ad-mirantes de encantação.

A esfera do sentir/sensível, não é nem apenas estimulante nem apenas coadjuvante, mas, sobretudo, estruturante nos processos de sedimentação do saber/conhecer, dos Sentidos, conjuntamente com a esfera do racional. O sentir e o inteligir são dois modos e níveis diferenciados de um mesmo processo de percepção, de apreensão e de compreensão. Existe uma codeterminação/coimplicação originária entre sensível e inteligível. Pensamos sentindo e sentimos inteligindo, simultânea e alternadamente. A inteligência é um compósito híbrido de senciente e de pensante. O sentir é inerente ao próprio inteligir.

Essa abertura, essa dis-posição de nossa condição de ser sensível, de nossa Sensibilidade, nos proporciona uma percepção penetrante da porosidade, dos ritmos, das ranhuras, das texturas, das espessuras, das dobras, da pulsação, das expressões viscerais do que é vivo, dos recurvamentos e das ambiguidades dos fenômenos, do existir, em seus estados de vibração e de movência. Os perceptos dis-postos nos levam a farejar, a apreender os fenômenos, as coisas, em sua pregnância originária. O olhar, o escutar, o tocar, o sorver, o cheirar, que perfazem a percepção atenta e sensível, nos dis-põem a perceber e a apreender com proximidade, desde dentro, as vicissitudes da heterogeneidade do vivido/vivente, em seus flancos ponderáveis e imponderáveis. Assim, podemos compreendê-los melhor, em seus limites e possibilidades, com expansividade, rigor e vigor.

A substância sensível - o homo/húmus, o mundus sensibilis - impulsiona o pathos que impele o estado de perplexidade e de admiração. Provoca o espanto originário que arrepia e co-move, que instala momentos inaugurais na composição dos processos de compreensão e de invenção do existir, dos agenciamentos de Sentidos encharcados com o elã do anímico. Heidegger (2001, p. 25) fala do "espantar-se com o porvir do princípio", do estado nascente e admirável das coisas. Afirma que "é preciso espantar-se diante do simples, e assumir esse espanto como morada" (HEIDEGGER, 2001, p. 229), como a morada extraordinária da singeleza do humano. Espanto que enreda perplexidade e que aponta para a radicalidade in-tensiva das buscas e dos desafios extraordinários.

Para Heidegger (1989, p. 21), o pathos - paskhein - conota "deixar-se con-vocar por". Traduz o dispor-se, o abrir-se aos apelos que a relação de espantamento para com os fenômenos nos provoca. A plasticidade do sensível, da estesia, nos co-move, nos aproxima e nos adentra nas sinuosidades, nas reentrâncias e nos feixes pregnantes do vivido/vivente, nas curvaturas que cingem as trajetórias humanas; nos compele a ultrapassar os estados de anestesiamento que comprimem o humano e nos enredam nas in-tensidades do ser-sendo.

Muitas vezes, na trama das relações cotidianas, pelos influxos das experiências vividas, sobretudo no mundo contemporâneo, a esfera do sensível é veiculada e canalizada por práticas instituídas que tangenciam o corpo, as emoções, os sentimentos - a dimensão afeccional - com propósitos de anestesiamento, de massificação e de controle. Numa sociedade que privilegia a lógica do mercado - a mercado-lógica -, a supremacia do utilitário, da esfera do ter, com a onda avassaladora do consumismo que leva à consumação do próprio existir humano, as expressões originárias da Sensibilidade passam, em grandes porporções, a ser aplastadas e homogeneizadas de modo grotesco.

1.1 A Sensibilidade como estado de dis-posição pregnante e anímico

Uma compreensão ontológico-policrômica da Sensibilidade a concebe como expressão originária e matricial (matriz geradora) do Sensus que implica e coimplica o senso noético, o horizonte dos Sentidos, a consciência compreensiva e o senso afeccional, a textura da corporeidade, o elã do pathos. Sensibilidade como estado pregnante e anímico que emerge desde dentro, das nascentes do existir, que se traduz na radicalidade e na amplitude da dis-posição e da abertura existenciais para as transitudes do ser-sendo. Dis-posição que proporciona a compreensão e a vivência da inteireza do ser-sendo no dinamismo de suas in-tensidades e incompletudes. Esse estado de despojamento nos con-voca para os processos de coimplicação para com os fenômenos, para com os influxos do jogo do existir, do coexistir; para o cuidado e o desvelo com a heterogênese do entramado da condição humana.

Nesse horizonte compreensivo, a Sensibilidade é concebida como estado de dis-posição do corpo e do espírito, como constitutivos ontológicos da inteireza híbrida do ser-sendo, que, de modo coexistencial, nos conduzem à fruição do sentimento do mundo na expressão de sua vastidão incomensurável. Desse modo, com o farejar dessa abertura empática da Sensibilidade, podemos perceber, sentir e fruir o estado de entrelaçamento que nos interliga com todos os seres do universo/ pluriverso, mediante o elã da sinergia que nos interpenetra e que nos implica com a anima mundi (alma do mundo). Assim, podemos com-partilhar a sutileza dos sentimentos que nos sinergizam com todos os seres do universo; podemos nos enredar na simpatia do todo.

A Sensibilidade se configura no estado de abertura estésica que implica inerência e aderência ao coração da experiência vivida/vivente e incide na expressão do pasmo que espanta e se desborda na ad-miração. Ad-miração que nos co-move diante das in-tensidades e da plasticidade dos fenômenos, do existir. Estado que nos con-voca e nos implica por inteiro para processos de coexistência; que leva a perceber e a compreender as reentrâncias do emaranhado que perfaz a teia mestiça dos fenômenos do existir; que se descortina numa abertura aurorescente para a crepuscularidade do ser-sendo, em sua radicalidade originária, em seu fundo sem fundo. Abertura para a trama de seus cruzamentos e hibridações, paradoxos e enigmas, para os fluxos tensoriais do existir.

Os feixes que plasmam a aragem da Sensibilidade nos arremessam nos flancos do aberto, desse fundo sem fundo que revela vastidão incontornável. Propiciam o estado de abertura originária e indeterminada para o suceder dos acontecimentos, das coisas sendo, dos fluxos das contingências. Os estados de despojamento e de dis-ponibilidade do espírito e do coração nos lançam nas curvaturas das travessias e das itinerrâncias do ser-sendo; nos levam a per-correr os riscos dos desafios que co-movem e implicam posturas audaciosas na transitude movediça do existir. Assim, o cuidado com a Sensibilidade nos conduz à percepção e à compreensão do arco de nossos limites e possibilidades existenciais, de nossas fragilidades e forças, de nossas incompletudes; leva-nos a identificar nossas próprias insensibilidades. Torna-nos não-indiferentes diante das contingências, das dores do mundo.

Sensibilidade como estado com-preensivo que nos precipita no transitar pelos caminhos do deserto, sob o regime do solar, com suas trajetórias mais contornadas e, conjunta e implicadamente, no transitar pelas veredas da floresta, sob a penumbra do lunar, com suas trajetórias mais incontornáveis. Assim, o espectro da Sensibilidade nos incursiona pelas encruzilhadas de Sentidos existenciais constituídos por desertos e por florestas, pela aragem do lusco-fusco, do solunar.

Esse cuidado com o dinamismo do espectro da Sensibilidade implica o cultivo de um senso fino e acurado de percepção e de compreensão que nos conduz ao esprit de finesse (espírito de fineza) como estado de fruição da fineza do ser-sendo. Estado que, assim, aguça o senso perspicaz de discernimento e de compreensão da constituição híbrida dos fenômenos e do existir; fomenta o senso espirituoso e afetual que, ao com-preender, se implica e se coimplica com o existir e com as coisas, com os fenômenos e os seres, com cordialidade e simpatia, com desprendimento e generosidade; que proporciona o cultivo do sentimento do mundo.

Na mitologia grega, Hermes representa a ponte, a encruzilhada, o deus estradeiro que interliga e entrecruza, o condutor de almas. É o mediador entre os deuses e os humanos. Íris traduz o arco-íris como expressão exuberante que, em sua policromia inefável, estampa os tons mestiços que trançam e interpenetram as dimensões diversas do existir e da cultura humanas em sua unitas multiplex (unidade na multiplicidade). Íris representa o arco de união entre o céu e a terra, entre deuses e humanos. "A Íris é a flor primaveril" que estampa a cromaticidade de seus matizes entrelaçados (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994, p. 507).

Nesse prisma de compreensão, a Sensibilidade é hermesiana e arco-írica ao se configurar como espectro de uma ponte, de uma encruzilhada que entrelaça e interpenetra as policromias e polifonias dos Sentidos humanos mediante processos pregnantes e anímicos de percepção, de compreensão e de vivenciação do existir, do coexistir. A Sensibilidade traduz a in-tensidade da coexistência originária entre a abertura dos sentidos e da intelecção, entre Intuição e Razão, entre anima e animus, entre luzes e sombras. Daí sua condição e sua estrutura êntrica, sua pertinência como metáfora da androginia.

Dessa forma, o cuidado com a Sensibilidade se configura como a busca de um perceber e de um compreender arco-írico e hermesiano que desborda as ressonâncias da policromia de seus feixes. Feixes que traduzem as interpenetrações das silhuetas dos matizes que estampam o existir e o coexistir. Uma compreensão hermesiana e arco-írica que re-vela a plasticidade dos fenômenos humanos nos fluxos tensoriais que se plasmam na composição de sua harmonia conflitual. Compreensão que, assim, afirma a inteireza in-tensiva das encruzilhadas mestiças do existir e do coexistir, na hibridação iridescente que amalgama o pregnante, a terra - o ctônico - e o anímico, o céu - o urânico.

Assim, Sensibilidade como mirada e morada constelada de policromias e de polifonias que descortinam o estado pregnante e anímico de dis-posição de nossos sensos afeccionais (emoções, sentimentos) e noéticos (pensamento). Dis-posição para uma com-preensão e uma vivência vasta e funda nas in-tensidades da teia do ser-sendo-com-os-outros pela fruição de Sentidos con-sentidos em nosso copertencimento planetário - uma ecosensibilidade.

2. O FENÔMENO DO EDUCAR COMO UM RITO DE INICIAÇÃO AO ADVENTO DA SENSIBILIDADE

Compreendo o educar como ação que se descortina nas mais diversas instâncias de nosso estar-sendo-no-mundo-com-os-outros, desde as esferas mais institucionais e formais às esferas mais aleatórias e informais nos influxos do coexistir cotidiano. Portanto, as meditações aqui plasmadas se norteiam nessa compreensão pluralista de educar e pontuam, sobretudo, a especificidade da ação educativa nas práticas das instituições escolares/acadêmicas. Porém, analogicamente, essas meditações também atravessam as demais instâncias educativas, considerando as similaridades que existem entre estas, apesar de suas diferenças, no transcurso de nosso processo civilizatório.

Há duas vertentes etimológicas que apresentam conotações distintas para o vocábulo Educação/educar que são as expressões latinas educare e educere (DEBESSE; MIALARET, 1974; FULLAT, 1995). Educare significa ação de formar, nutrir, guiar e instruir. Educere conota tirar para fora de, conduzir, levar e criar. Educare apresenta características mais externas que configuram uma ação de cunho instrucional, de transmissão de saber que se processa de modo assimilativo. Refere-se mais à formação técnica e implica posturas mais funcionais, que concebem o educar como processo de transmissão, de reprodução de saberes de modo relativamente estático e mecânico.

Educere incide em processos educacionais que emergem desde dentro e, com seu dinamismo e in-tensidade, fomentam o espírito de criticidade e de inventividade, o senso intuitivo e a imaginação criante dos indivíduos. Processos que também implicam a transmissão e a assimilação dos saberes e dos valores instituídos, mas, sobretudo, implicam sua expansão, criação e recriação, nas in-tensidades dos fluxos moventes da cultura, pela renovação e pela instituição de novos saberes e sentires. Desse modo, a ação de educar incide no cuidado com a iniciação aos Sentidos humanos, de modo teórico e vivencial. Descortina processos que fomentam as potencialidades criantes de cada indivíduo imerso em seus contextos culturais, no ethos vivo, redivivo.

O eixo semântico de educere traduz processos de condução, ou seja, partindo do lugar existencial em que estamos circunscritos no mundo, na contextura dos entre-lugares, somos impulsionados às aventuras das buscas e descobertas, dos processos de renovação e de criação de valores e de Sentidos que afirmam e robustecem a condição humana. Assim, educar traduz uma aventura inaugural, alterativa, no horizonte aberto dos Sentidos. Nesses fluxos, mobilizamos nossas potencialidades criantes proporcionando a afirmação e a construção dos Sentidos do existir, da saga de nossa destinação no mundo.

Con-duzir conota caminhar com, coparticipar dos processos, dos deslocamentos, das travessias, de modo co-laborativo. Portanto, não significa uma postura de passividade e de apatia em que alguém, de modo vertical, impõe saberes sobre os outros, monológica e autocraticamente. Educar supõe a química do aprendizado das relações, da relacionalidade, de modo horizontal e coimplicado, em que os en-volvidos na ação co-operam e co-participam dialogicamente, mediante os matizes das singularidades e as inter-relações das diferenças nas in-tensidades dos processos de co-aprendência. Assim, muito mais que ensinança, educar conota aprendência, co-aprendência. Toda aprendência, em seu sentido mais vasto, traduz co-aprendência nos interfluxos da coexistência.

Educação como rito de iniciação implica uma compreensão desta como ação viva, tecida de modo teórico e vivencial, nos processos de afirmação e de renovação dos Sentidos humanos. Ou seja, pela articulação de saberes/conteúdos (repertórios culturais), de processos de meditação e de ruminação teórica e, conjuntamente, de forma simultânea e alternada, por meio de experiências vivenciais em que os saberes são mediados por momentos e processos de fruição em que o corpo e o espírito copulam com in-tensidade.

Assim, podemos tecer saberes (sapere) que incidem em buscas de sabedorias que podem ser sorvidas na pregnância das vivências cotidianas. Aprendemos e compreendemos de forma mais intensa aquilo que atravessamos e que nos atravessa por inteiro, na nervura das experiências vividas/viventes. Aprendência como apropriação e reapropriação de Sentidos provados pelos sensos perceptivos.

As ações de educar que se configuram como ritos de iniciação são realizadas de modo teórico-vivencial e proporcionam aprendências que nos marcam por inteiro, pelas mais diversas formas de vivenciação destes, em que corpo e espírito se enredam de modo coexistencial. Essas iniciações mobilizam de forma ampla nossos sensos perceptivos e compreensivos, bem como a imaginação e o espírito criantes para as in-tensidades dos desafios, para a criação de Sentidos anímicos.

O que nos atravessa desde dentro, mobilizando a corporeidade, a pregnância dos sentires e, de modo implicado, a consciência compreensiva, a espiritualidade, inspira e infunde o elã do anímico, a polifonia dos Sentidos do existir. Ao ritualizar, re-atualizamos, elaboramos internamente, de modo pregnante e anímico, operando a fruição das aprendências, da afirmação, da criação dos Sentidos. Assim, os sensos perceptivos e compreensivos, a consciência e o imaginário ruminam e decantam, projetando saberes e sentires encarnados, impregnados de elã vital. Saber eivado de sapere, encharcado de húmus, com o gosto do viver e que implica a busca espirituosa de sabedoria.

2.1 A predominância das práticas educativas instrucionais

As práticas educativas instituídas em nossa sociedade se configuram, de modo predominante, como práticas instrucionais, na proporção em que privilegiam a pragmaticidade e a funcionalidade, vislumbrando a (in)formação técnica dos indivíduos para o exercício de suas funções profissionais, de seus papeis sociais. Dessa forma, as práticas instrucionais se caracterizam como processos mecanizados de trans-missão dos saberes tecnocientíficos instituídos por meio de procedi-mentos de natureza técnica e instrumental em que as demandas do ter são superestimadas em detrimento dos valores do ser, incidindo em processos sistemáticos de desumanização. Investe-se em processos instrucionais de caráter informativo que funcionalmente instruem os indivíduos para o cumprimento de seus papeis sociais. Papeis que, em si mesmos, se configuram como representações externas, como máscaras que projetam os modelos empadronados pelas instituições.

Desse modo, as práticas instrucionais "preparam" "recursos humanos" como entes competentes para funcionalizarem as máquinas e os modos de produção socioeconômicos, garantindo, assim, a eficácia dos aparatos tecno-burocráticos dos poderes instituídos pela cadência de sua ordem monocórdica, que privilegia os princípios do ter, a posse das coisas. Inclusive a posse dos próprios seres humanos que, nessa esfera, são reduzidos aos formatos de seus papeis profissionais, sendo, assim, expropriados de si mesmos. Profissionais que, com a eficiência no cumprimento de seus papeis, garantem a eficácia da ordem estabelecida na compulsão de processos que uniformizam e coisificam. Desse modo, os seres humanos são convertidos em meros recursos, em coisa, sob os ditames dos poderes que operam a tecnociência, as estruturas socioeconômicas, funcionalizando as instituições com seus sistemas produtivos.

Destarte, as pedagogias instrucionais instituem processos de empadronamento dos indivíduos aos estatutos de suas lógicas homogeneizantes. As diferenças são comprimidas e pretensamente diluídas para que esses indivíduos sejam docilizados e conformados pela uniformidade de suas lógicas. Instala-se, assim, uma "pedagogia de rebanho", que pretende reduzir os indivíduos a seres bem-comportados e controlados pelo aparato de suas leis e normas aprisionantes.

A predominância dessas práticas instrucionais descamba no que podemos chamar de caducação da educação, ou seja, ao denegar e comprimir a dinâmica da plasticidade do educar, como processo in-tensivo e vivo que fomenta a expressão do elã vital, das capacidades criantes dos indivíduos, as práticas instrucionais tendem a desfigurá-lo por meio de suas posturas homogeneizantes; tendem a se desertificar na esterilidade de seus métodos e conteúdos desprovidos de vitalidade.

2.2 O educar como processo de fruição da Sensibilidade

Os espaços em que acontecem as ações do educar são constituídos, geoculturalmente, como entre-lugares em que os indivíduos, em sua condição biocultural, se encontram para com-partilhar e expandir a diversidade de seus saberes e sentires. São encruzilhadas mestiças em que se entrecruzam, com in-tensidade, a pluralidade de valores e de crenças dos indivíduos e grupos humanos e que potencializam fluxos tensoriais de relações dialógicas que podem enriquecer, aproximar e entrelaçar.

Esses entre-lugares fomentam a perspectiva da unidade na diversidade mediante o reconhecimento dos Sentidos humanos atinentes à singularidade de cada indivíduo e de seus grupamentos, bem como a consciência da relevância dos processos de compartilhamentos in-tensivos das diferenças. Isso pode ocorrer pelo cultivo e pelo cuidado para com os elos que nos agregam naquilo que é comum à nossa condição humana, ou seja, mediante as interligações das semelhanças que nos proporcionam a coexistência como seres humanos, no garimpar as pequenezas e as grandezas, os enigmas dos tesouros da alma e do coração.

Essa compreensão do educar, em suas diversas modalidades, considera este como um rito vivo de iniciação que ocorre nesses entre-lugares como encruzilhadas em que se interpenetram os diversos saberes e sentires, as crenças e os valores que constituem os repertórios de seus protagonistas. Esses processos de iniciação podem proporcionar a afirmação das singularidades dos indivíduos e grupos, despertar o senso de interculturalidade, de com-partilhamento e de enriquecimento mútuo.

Desse modo, podemos instalar processos de aprendência e de co-aprendência em que nos aprendemos uns com os outros, uns aos outros. Em que rendamos a estampa da rede in-tensiva da coexistência humana. Assim, aprendemos a ser nós mesmos, na proporção em que urdimos a aprendência do ser-com-os-outros, em que nos aprendemos.

Dessa forma, o educar implica, sobretudo, uma con-vivência com o outro, efetiva e afetivamente. Con-vivência que proporciona processos in-tensivos de autoeducação, heteroeducação e de eco-educação (PINEAU, 1999). Assim, tecemos os fios da autoeducação mediante as aprendências do si mesmo, da autoaprendência; da heteroeducação mediante as aprendências coletivas com os outros seres humanos; da ecoeducação no enredar as coaprendências na teia ecossistêmica mediante nossa relação com todos seres do planeta. Educamo-nos, em todas essas perspectivas, por meio da relação in-tensiva conosco mesmos e com os outros seres humanos, como também com os demais seres com os quais estamos vinculados em planos diversos como seres interdependentes.

Avento uma prática educativa que busca o cuidado primoroso com a corporeidade, em sua constituição orgânica e simbólica, como estofo que traduz a pregnância e a animicidade dos Sentidos humanos. Um cuidado que implica o trato com as afecções e energias humanas, partindo do pentassensorial, dos cinco sentidos primários, pelo cultivo e pela lapidação destes, em que aprendemos a cheirar, a escutar, a degustar, a olhar e a tocar com fineza as expressões do existir.

Ao procurarmos cuidar da corporeidade, das afecções, afirmando suas potências que vivificam e humanizam, podemos potencializar posturas e relações imbuídas de despojamento e de simpatia que implicam tanto os processos de crescimento pessoal quanto interpessoal, e que projetam ambientes, relações e ações educativas estimuladoras e aprazíveis. Podemos instalar entre-lugares educativos em que a simpatia e a empatia nos co-movem mediante a tecelagem de teias abertas que enredam ritos de iniciação às aprendências da afetividade humana. Afetividade humana em suas expressões afirmadoras da cromaticidade e das in-tensidades afeccionais do existir, do coexistir.

Como rito de iniciação ao advento da Sensibilidade, a ação de educar penetra nas in-tensidades do entramado multicor dos símbolos mitopoéticos que plasmam nossos imaginários, garimpando e se nutrindo do vigor de seus mananciais. O dinamismo das imagens, dos símbolos que estruturam o mitopoético, revela estruturas arquetípicas primordiais. Estruturas que se alojam em nossas camadas mais internas e inconscientes, marcadas pela intuição, pelas afecções, pela memória coletiva. Desse modo, o espectro do mitopoético traduz crenças, desejos e sonhos fundos e projeta a polifonia dos Sentidos implicados com o vivido/vivente mediante a potência ligante dos símbolos.

Destarte, o cultivo do imaginário simbólico, do mitopoético na ação de educar, implica o descortinar de ações iniciáticas encharcadas com o elã do imaginal, da força inspiradora e nutridora das metáforas, dos símbolos, dos feixes do mítico e do poético. Esse cultivo incide no fomentar as potencialidades criantes do espírito e da imaginação dos indivíduos na fruição da poeticidade dos fenômenos, do existir, do senso intuitivo e afeccional. Dessa forma, os saberes e sentires são ruminados mediante a expressividade de suas dimensões prosaicas e poéticas em que os Sentidos são sorvidos em sua constituição polifônica e em sua implicação com a pregnância do vivido/vivente. Os feixes do mitopoético infundem ao educar estados de fruição da poeticidade do existir.

A presença da Razão-Sentido na ação de educar se traduz como possibilidade que fomenta a expressão da inquietude do espírito interrogante que desafia e problematiza os fenômenos, o existir, com seu senso vasto de com-preensão dialógica, de ponderação espirituosa, com seu tino de discernimento e seu pensar encarnado.

A Razão-Sentido re-vela a altivez do espírito audacioso. Espírito que transita pelas pedras do caminho como oportunidades estimulantes, como momentos impulsionadores das buscas de Sentidos, em que este pode se descortinar de modo altaneiro. Espírito-águia que se nutre do húmus da terra, do telúrico, das finitudes das contingências do cotidiano, mas que alça seus voos pelos horizontes da infinitude. Que, desde dentro do visível, da imanência, da tangibilidade do existir, penetra pelo invisível, pela transcendência e pela intangibilidade.

Assim, o fulcro da Razão-Sentido projeta o pensamento inter-rogante, que, com seu senso de criticidade, busca problematizar e dis-cernir, compreender com radicalidade as expressões da cultura humana, os fenômenos do existir, a complexidade do educar. Uma Razão-Sentido como Razão compreensiva, que escuta e dialoga, que se implica com os fenômenos, com o existir e o coexistir.

A tecedura da plasticidade da ação do educar como cuidado com a Sensibilidade supõe uma relação de coexistência entre a Ética e a Estética, a interpenetração entre o bem e o belo, a dignidade e a beleza. Uma ação educacional que pretende iniciar os seres humanos no advento de seu ser-sendo pregnante e anímico opera esse entrecruzamento in-tensivo entre a consciência Ética e a fruição Estética. Assim, promove o cuidado com os valores primordiais da solidariedade, da justiça, da paz, da liberdade, do bem, etc. e compreende que estes se fragmentam e se desbotam se prescindem da delicadeza, da elegância, das estampas do belo, da fineza da beleza. Freire (1996, p. 26) realça que a prática educativa deve ser "estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade". A coexistência entre Ética e Estética traduz a busca primorosa do advento da inteireza in-tensiva do humano em seus estados de grandeza e de fineza. Busca que instaura uma morada humana tanto vistosa quanto benfazeja, tanto bonita quanto digna.

Como as aprendências das experiências apontam, essa iniciação aos territórios entrecruzados da Ética e da Estética não pode fecundar apenas na esfera estrita do plano teórico, nas articulações abstratas de saberes. Carece da iniciação teórico-vivencial, da nervura do vivido/ vivente, por meio de ações desafiadoras que mobilizam conjuntamente corpo e espírito. Dessa forma, podemos nos iniciar existencialmente nessas aprendências anímicas. Apenas a esfera do saber teórico pode instruir e in-formar, mas não implica, de modo geral, processos de iniciação ao existir cotidiano, nas buscas de sabedoria. O mero saber se confina apenas às práticas instrucionais, ao âmbito funcional da técnica. Não penetra no horizonte existencial dos Sentidos.

O cuidado com o advento dos valores humanos, da Sensibilidade, mediante os ritos vivos de iniciação, implica um processo pedagógico que se lastreia no pathos do amoroso. Os feixes do amoroso nos abrem e nos dis-põem para vivências in-tensivas conosco mesmos e com os outros, suscitando entrelaces que nos aproximam e que compelem aos abraços que ecofraternizam. A sinergia do amoroso implica a fruição dos sentires que co-movem, que jorram in-tensidade e alumbramento. A vibração do amoroso desborda a simpatia e a empatia dos laços afetivos que nos coimplicam no com-partilhar as diferenças. Assim, podemos celebrar os elos que nos unem e engrandecem, que fazem expandir o sentimento do mundo, a sinergia do ser-sendo-com-os-outros. Naranjo (2005, p. 155) fala de "una educación del sentimiento de humanidad", do sentimento de copertencimento à humanidade.

O amor como princípio educativo, potencializa o desbordar do advento da condição humana, em suas fragilidades e limites, na vastidão de sua magnitude, no cultivo dos valores que enobrecem - da Sensibilidade; acende as flamas da alma e do coração, conduzindo à floração do ser-sendo-com-os-outros no tecer o desafio da ecofraternização, de nosso copertencimento planetário - a Ordo Amoris. Assim, podemos ultrapassar os valores e posturas egocêntricos - o espectro da egocidadania - e nos enredar pelos desafios dos valores e posturas ecocêntricos - no espectro do ecocidadania. Ou seja, podemos fazer a travessia que nos leva do egoísmo, que mutila e encaverna, para a postura compassiva do ecoísmo, que religa e planetariza em nossa condição de seres interdependentes.

Esses processos dialógicos se desdobram a partir dos mananciais de sabedorias da humanidade, na afirmação de posturas que manifestam solidariedade, amorosidade e dignidade. Mas, sobretudo, busca ultrapassar os humanismos que superestimam o ser humano, considerando-o como o centro do universo - o antropocentrismo -, secundarizando e redu-zindo os outros seres à condição de periféricos. Assim, urge instaurar a perspectiva policêntrica do ecohumanismo, que vislumbra a relação de coexistência in-tensiva e interdependente entre os seres humanos e todos os seres do universo/pluriverso, na singularidade irredutível de cada presença, afirmando a diversidade da teia mestiça que nos une ecossistemicamente. Nessa perspectiva policêntrica, inexistem centros exclusivos e deterministas e há, sim, uma teia entrelaçada em que todos os seres, em suas singularidades, se constituem como coexistentes e codeterminantes, portanto, uma cosmovisão ecocêntrica em que o centro se encontra em toda parte e a circunferência em nenhum lugar.

Dessa forma, propugno um educar para a Sensibilidade ecológica/ecossistêmica - uma ecosensibilidade - que compreende a composição do dinamismo dessa rede que entrelaça todos os seres e que, assim, pode nos levar a posturas que afirmam essa cosmovisão. Cuidar da cosmovisão ecohumanista implica a instauração de uma postura ecofraternizante, em que procuramos nos fraternizar com os seres humanos e a diversidade dos seres que povoam o cosmos com os quais somos interdependentes. Implica ultrapassar os ditames do patriarcado, ousando instaurar o fratriarcado, instituindo, assim, modos de relação inter-humana e eco-humana inspirados no sentimento de fraternização. Sentimento que, cordialmente, reconhece e acolhe a todos, na magnitude de suas singularidades, fomentando o com-partilhamento da coexistência que ecofraterniza ao nos implicar e nos coimplicar uns com os outros.

Como processo que pode conduzir aos compassos de re-encantação da vida, do mundo, a ação de educar carece de invenção e de reinvenção constantes, tanto em seus modos e formas quanto nos repertórios de seus conteúdos. Carece de processos que conduzam à admiração, ao espanto, que implicam constante renovação. A alquimia desses processos de renovação supõe espíritos e corações despojados, para que possam estar constantemente se recriando e se reinventando no suceder das contingências educacionais e existenciais.

A presença do senso intuitivo do existir é uma das expressões mais fecundas mediante a articulação da ação de educar como rito de iniciação na dinamização de seus processos de criação. O desvelo e a escuta do senso intuitivo, com as sutilezas de suas tonalidades e texturas internas, fomenta a imaginação criante, nos revela insights que propor-cionam estalos espirituosos. O farejar da intuição implica o auscultar interior que leva a percepções penetrantes e que alargam a consciência compreensiva e engravidam processos inventivos na emergência do surpreendente.

A intuição, o senso intuitivo, leva a cavucar as reentrâncias e as espessuras dos fenômenos do educar, penetrando em suas opacidades e imponderáveis. Permite captar indícios internos que levam a uma compreensão minuciosa das curvaturas das ações educativas. O cuidado atencioso com a intuição possibilita percepções perspicazes e sentires fundos que brotam desde dentro do dinamismo das relações entre educadores e educandos, das texturas e porosidades das interrelações: dos gestos, dos movimentos difusos, dos silêncios, dos humores...

A percepção intuitiva capta meandros das atitudes e dos fenômenos que escapam ao senso lógico-formal tidos como aparentemente insignificantes. Meandros que, pelo primor dessa mirada, pelos estalos de seus insights, se configuram como aspectos e detalhes bastante relevantes para a ação de educar na perspectiva da escuta sensível, do senso com-preensivo, da simpatia e da empatia.

Inspirado nessa compreensão ontológica da Sensibilidade, o educar implica ações de cunho libertário que apontam para processos heterogêneos de conquista das liberdades humanas primordiais, de ações que envidem uma transgressão inteligente dos modelos e estruturas dos poderes instituídos com seus círculos viciosos. Essas formas de poder impregnadas em nossa sociedade, como sabemos, são bastante presentes nas práticas educativas, desde expressões mais difusas às mais visíveis.

Desse modo, muito mais do que mera busca de saber, educar supõe busca de sabedoria na afirmação e na recriação de Sentidos que dão cromaticidade e vivacidade ao existir. As práticas educativas que se limitam ao âmbito da técnica, do saber formal, que se encerram na pragmaticidade do funcional, nos fragmentos da teia do existir e da cultura se confinam, como vimos, a meras práticas instrucionais. A ação de educar, como iniciação e como fruição da Sensibilidade, vislumbra o horizonte de Sentidos, que constitui a dinamicidade das relações da inteireza in-tensiva da teia do humano, do inter-humano.

O fenômeno do educar como rito de iniciação ao advento dos Sentidos humanos, mediante os fulcros estruturantes do Mitopoético, da Razão-Sentido, da Corporeidade, da Afetividade e da Intuição, vislumbra a compreensão e a vivência da inteireza in-tensiva do ser-sendo; instala processos de compreensão e de vivenciação dos Sentidos que implicam a expressão pregnante e anímica de nosso ser andrógino, no enxerto de suas ambiguidades e simbioses; implica o cuidado do ser-sendo como poiesis que se borda e se desborda, com seu pathos criante, nas in-tensidades dos feixes das contingências. Assim, na plasticidade dos fenômenos do existir, podemos incrementar um educar para o espanto e para perplexidade, para a inventividade e para a amorosidade, no urdir das aprendências e coaprendências.

Avento um ato de educar que se configura como educação pática (pathos), que se plasma como processo de sedução - se-ducere -, em que educandos e educadores são con-vocados pela simpatia e pela empatia que os fascina e os entrelaça. Como se-ducere, o educar se associa ao mexer alquímico do tacho que infunde um gosto que enfeitiça, tornando-se, assim, uma ação entusiasmante e humanada que desborda processos de encantação e de re-encantação. Dessa forma, os estados de sedução implicam a qualidade de experiências que podem resvalar na alquimia da fruição dos valores supremados que robustecem os Sentidos do humano; que podem instalar, de forma prazenteira, relações educativas animadas por processos de fruição e de criação encharcados das humidades do existir. Uma educação pática, imbuída de afetividade, que faz desbordar o amoroso, que potencializa a coexistência.

O pathos do entusiasmo decorrente do se-ducere, mediante a interligação do apolíneo e do dionisíaco, da lucidez e da ludicidade, dos pensares e dos sentires, nos co-move e con-voca aos desafios das sendas do extraordinário; faz despontar as in-tensidades dos Sentidos existenciais que infundem encantação e re-encantação ao existir humano e ao coexistir planetário. O elã criante do pathos erotiza o educar, a relação com os saberes e sentires, os processos de aprendência e de co-aprendência, podendo vicejar o humano na transitude de suas travessias mestiças; instala os feixes do estésico que dão graça e contornam o admirável. Freire (1996, p. 160) arremata: "Ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria". Portanto, um educar que fascina e co-move, desbordando admiração e contenteza, converte-se em rito de iniciação que leva à celebração da vida.

Um educar que implica o cuidar do estado de dis-posição de nossos sensos afeccionais e noéticos, da inteireza in-tensiva de nosso ser andrógino para a expressão do pathos criante, do elã vital; que implica a afinação do sentimento do mundo, da fruição da anima mundi, da simpatia do todo, em que podemos aprender a cuidar, com primor, da harmonia conflitual que constitui nosso copertencimento planetário. Um educar que compele ao cuidado esmerado de nossa condição de pontes no dinamismo e na heterogeneidade da teia ecossistêmica; de nossa condição de seres êntricos, interdependentes.

Enfim, como processo de fruição da Sensibilidade, o fenômeno do educar, ao nos conduzir à relação de coexistência entre a Ética e a Estética, potencializa a busca de sabedoria que entrelaça a dignidade e a beleza; faz desbordar as in-tensidades da policromia dos feixes arco-íricos que constituem as ambiguidades e as curvaturas, os paradoxos e os enigmas das sagas do existir e do coexistir humanos.

3. POR UMA PEDAGOGIA DO ENCANTAMENTO

Concebo o estado de encantamento, com seus matizes pedagógicos, em sua expressão de entusiasmo e de apaixonamento, de contenteza e de alumbramento, como expressão das in-tensidades existenciais em que jorra o elã do pathos que co-move e con-voca; que, assim, faz despontar o espanto e a admiração impulsionando a imaginação e o espírito criantes. Portanto, não me refiro a um estado de encantamento que se confina apenas na sua expressão de deslum-bramento como mero desbunde extático, como borbulhação espumante que pode anestesiar e cegar, que se dissolve em si mesmo.

Nesse horizonte, compreendo o encantamento como um estado constituído a partir de um "enraizamento dinâmico" e que se enrama em processos in-tensivos de fruição e de criação por meio de ações pedagógicas tocadas com apaixonamento e audácia. Ações que revelam estados de inquietude, de mobilidade e de implicação. Assim, um encantamento que agrega e interpenetra a pregnância da corporeidade, do dionisíaco e a animosidade da espiritualidade, do apolíneo.

Encantamento como expressão do estado de jorrância do impulso vital, do pathos criante, dos feixes da anima mundi, do logos spermatikós; como estado de humor que infunde animação ao existir, nos co-movendo e nos con-vocando para os desafios das ações altaneiras. Estado que emerge das fontes e das nascentes inspiradoras do onírico, do imaginário mitopoético, com a plasticidade de suas potências mobili-zadoras de nossos sentires e desejos; que nos precipita na trans-gressividade.

O dinamismo da plasticidade do estado de encantamento constela as centelhas do entusiasmo que nos inspiram e irradiam. Como foco irradiante, o estado de encantamento nos toca e arrebata, de modo penetrante. Compele o corpo e a alma às aventuras e às travessias de espantamento do extraordinário com seu vigor seminal. Parodiando Espinosa, quanto mais prazer e radiância, mais fruição e criação.

Estado de encantamento que se traduz num estado de êxtase, no extático, com seu dinamismo mobilizante, e não como estado estático que anestesia e imobiliza. Assim, uma Pedagogia do Encantamento que articula o educar como fruição da poiesis, como fazer sensível e criante, imbuído de inventividade e que conduz a novos lugares, entre-lugares e Sentidos. Que faz jorrar o estésico, o admirável, numa relação de coexistência e de coimplicação originária e originante com os fenômenos, com o existir no ser-sendo-com-os-outros; que entrelaça a Ética e a Estética, o bem e o belo.

Avento uma Pedagogia do Encantamento que, como expressão orgânica das in-tensidades da cotidianidade do educar, afirma a conflitividade do viver, que revela os fluxos tensoriais inerentes à ação do educar e que dão vivacidade a esta. Uma Pedagogia errante, itinerrante, e, portanto, aprendente, ao singrar a aventura das sagas recurvadas da transitude do educar. Assim, concebo que é de suas in-tensidades e instabilidades que podem emergir aprendências e coaprendências que tocam fundo com a força motriz/matriz do pathos criante. Pathos que impulsiona ações educativas germinais que renovam os Sentidos humanos, que instituem o extraordinário.

Uma Pedagogia do Encanctamento que, cravada na nervura do vivido/vivente, inspirada nas inquietudes internas, se faz interrogante na radicalidade do pensamento problematizador, do espírito que medita e cria; que, de modo entusiasmante, interpenetra o lúcido e o lúdico, a prosa e a poesia. Que, assim, impulsiona a dis-posição para o aberto, atravessando as ambivalências e ambiguidades do ser-sendo nas in-tensidades da tragicomicidade dos acontecimentos humanos; que entrecruza caos e cosmos, desordem e ordem, operando o dinamismo do jogo que en-volve os processos de criação. Pedagogia do Encantamento que compreende o educar como esse rito vivo de iniciação aos paradoxos, enigmas e ambivalências da condição humana, aos Sentidos humanos.

Nesse horizonte compreensivo, avento uma Pedagogia do Encantamento que compreende o educar como se-ducere, como sedução que fascina e impulsiona o advento do estado da ad-miração e do espanto mobilizadores, de conteneza e de prazerosidade. Estado que constela momentos educativos supremados, em que o espírito e o coração, entrelaçados, podem garimpar a busca da sabedoria, a fruição da beleza. Uma Pedagogia do Encantamento como fruição e como celebração dos Sentidos pregnantes e anímicos do existir, do coexistir, que se descortina arco-írica nas estampas da policromia dos Sentidos.

REFERÊNCIAS

Educação em Revista - UFMG

Horizontes de diálogo em Educação Ambiental: contribuições de Milton Santos, Jean-Jacques Rousseau e Paulo Freire


Horizontes de diálogo em Educação Ambiental: contribuições de Milton Santos, Jean-Jacques Rousseau e Paulo Freire

Sandro de Castro PitanoI; Rosa Elena NoalII

IDoutor em Filosofia da Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Professor Adjunto do Instituto de Ciências Humanas (ICH) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e do Programa de Pós-Graduação em Geografia - Mestrado (FURG/UFPel). E-mail: spitano.unipampa@ufpel.tche.br
IIDoutora em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP); Professora Adjunta do Instituto de Ciências Humanas (ICH) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e do Programa de Pós-Graduação em Geografia - Mestrado (FURG/UFPel)



Introdução

O diálogo interdisciplinar com referenciais teóricos da Geografia1, da Educação e da Filosofia permeia este ensaio, através do qual buscamos sistematizar e propor novas perspectivas de análise para a "Educação Ambiental", ancoradas no pensamento político e pedagógico de Milton Santos, Jean-Jacques Rousseau e Paulo Freire. A abordagem é interdisciplinar no sentido de propor a complementação entre áreas do conhecimento reconhecidamente dialógicas e justifica-se pela afinidade que os aspectos epistemológicos e metodológicos, tipificantes de cada uma das ciências arroladas, revelam diante do objeto de estudo, enriquecendo sua análise. A Geografia se destaca porque, tendo como preocupação central as relações entre os seres humanos e o seu meio, não apenas oportuniza o surgimento de novos modos de enfrentamento das questões ambientais no campo educacional, como por essência o exige. Além disso, como disciplina obrigatória nos ensinos fundamental e médio, representa uma possibilidade constante de diálogo junto às novas gerações acerca dos problemas socioambientais, quiçá sob um enfoque crítico e problematizador, considerando a educação escolar tal como está sendo. Perspectiva crítica que se robustece pelo vigor da análise filosófica, amalgamando as contribuições de cada ciência, superando particularismos e evitando estatuir quaisquer traços hierárquicos nas reflexões que logramos desenvolver.

Com relação aos autores, acredita-se que Rousseau, Santos e Freire oferecem subsídios capazes de elevar o debate educacional, no que diz respeito às questões ambientais. Diante da imperiosa necessidade de avançarmos nesse terreno, adentramos primeiro no pensamento rousseauniano, dedicando especial ênfase à sua concepção de homem, natureza e sociedade. Tudo isso sem minimizar a contundente crítica que desenvolve acerca da educação escolar que lhe foi contemporânea (cujos resquícios talvez ainda se façam presentes). A seguir, Milton Santos embasa as reflexões sobre a ocupação e a transformação do espaço, em uma abordagem geográfica radicalmente crítica e comprometida com as problemáticas sociais do tempo presente. E Freire, finalmente, não apenas por ter demonstrado uma intensa e vigorosa atitude combativa aos problemas resultantes da ação desumana sobre o meio em seus últimos escritos (À sombra desta mangueira, Pedagogia da autonomia e Pedagogia da indignação), cuja apreensão histórica da existência jamais dissocia a libertação humana da busca por um planeta sustentável. Sua análise mantém em relevo a ideia de que os problemas ambientais, na sua maioria, não são mero resultado de fenômenos naturais ou de forças divinas, mas, sim, de intervenção humana, cujas intencionalidades respondem a um modelo de vida predatório, produzido ao longo dos tempos. Tampouco somente pela sua rigorosa concepção de natureza humana, em processo de vir-a-ser no mundo e com o mundo, fazendo-se pela educação que, respeitosa dessa natureza, é problematizadora em sua radicalidade. Mas é, sobretudo, pelo profundo respeito que nutre pela vida em todas as suas formas que constitui uma referência indispensável para este estudo.



Rousseau e as relações entre homem, sociedade e natureza

O desenvolvimento (histórico) da humanidade possui como característica constante a apropriação e a transformação do espaço (com exceção dos contextos habitados pelos povos indígenas, cujo modo de vida em linhas gerais se baseava na harmonia de aprender, fazer e usufruir, ligados de forma respeitosa à Terra). O processo acelerado de industrialização, que lança raízes desde os séculos XVII e XVIII, teve como marca trágica o desrespeito aos fenômenos e aos elementos naturais. Possuindo uma dinâmica extensiva e intensiva, por ampliar concomitantemente a expansão territorial e as condições tecnológicas para a sua exploração, esse processo jamais teria feições equânimes no que diz respeito aos diferentes grupos espalhados pela superfície terrestre. Tornou-se cada vez mais desigual diante do distinto ritmo de seus desenvolvimentos. Como resultado, avançamos da apropriação e da exploração do espaço para uma ação paralela de exploração dos outros seres humanos, como destaca Rousseau (1999a, p. 213):

Mas, a partir do instante em que um homem necessitou do auxílio do outro, desde que percebeu que era útil a um só ter provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se transformaram em campos risonhos que cumpria regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e medrarem com as searas. (ROUSSEAU, 1999a, p. 213)

Conforme o autor, em sua fase primitiva, o ser humano teria vivido em um estágio pré-social - o estado de natureza -, em que homem e ambiente mantinham uma relação de plena harmonia2. Nessa época, o homem vivia em paz consigo mesmo, solitário, tranquilo e ocioso, guiado por instintos e preocupado somente com a própria conservação. As transformações na paisagem eram insignificantes, pois a interferência da ação humana no espaço correspondia ao instintivo e reduzido grupo de necessidades básicas a serem supridas. Entretanto, a ocorrência de significativos fenômenos de ordem climática sobre o ambiente teria provocado uma ruptura, seguida de transformações radicais no modo de vida da humanidade, que culminaram com o início da convivência coletiva. As alterações causadas pelos fenômenos climáticos sobre o habitat dos homens impuseram-lhes novas necessidades vitais, obrigando-os a desenvolver condições cada vez mais artificiais para tornar possível a subsistência e a consequente continuidade da espécie, as quais seriam possíveis somente através da vida coletiva - a associação. O que o autor do Contrato Social chama de "bondade natural" corresponde ao sentido de conservação da espécie, voltado tanto para o indivíduo (autoconservação) quanto para os demais seres humanos, manifestado pela "repugnância natural a ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível, principalmente os nossos semelhantes" (ROUSSEAU, 1999a, p. 154), ao que denominou piedade. Ambos os sentimentos são inerentes ao homem e sempre estiveram nele presentes por natureza, antecedendo a razão e, consequentemente, a sociabilidade. Constatando os princípios sensíveis da espécie em estado natural, ele ainda agrega um terceiro, não menos relevante para a conservação humana face às dificuldades físico-espaciais enfrentadas, a perfectibilidade, faculdade inata de poder aperfeiçoar-se.

Hipoteticamente salientadas pelo autor, tais dificuldades teriam surgido no decorrer da história evolutiva, agregando coerência ao seu pensamento acerca das transformações que provocaram a saída do homem do estado de natureza para o de sociedade. Embora soe contraditório, Rousseau entende que mesmo em sociedade os homens mantêm tais sentimentos, aos quais se somaram a sociabilidade e a razão, donde emanaram tantos outros. E a inexplicável e imprevisível interação de todos caracteriza e diferencia de forma incisiva o homem social do homem natural. É importante salientar que, dos três princípios originais (bondade natural, piedade e perfectibilidade), uns acabam minimizados, ao passo que outros ganham vulto maior e determinam, por isso, uma diversidade tão ampla entre os dois estágios da história humana, bem como entre os homens já em sociedade. É bem provável que os sentidos de conservação da espécie corporificados pela preferência de si mesmo, tenham se sobreposto à piedade, ocorrendo o mesmo com a perfectibilidade.

Portanto, frente ao espaço vital que antecede sua capacidade reflexiva e impulsionado por necessidades inesperadas, o homem se associa, produzindo meios técnicos para, de forma mais efetiva, intervir nesse espaço e imprimir-lhe uma paisagem humanizada. A multiplicação das necessidades artificiais desenvolveu no ser humano o gosto pelo supérfluo, representado pelo luxo, que provocou desde então uma competição desigual pela sua obtenção, ou seja, os conflitos sociais. E assim como os territórios e os recursos neles contidos são vistos como "espaço a se ganhar" (MORAES, 1994, p. 37), as pessoas também passam a ser consideradas instrumentos dessa conquista. Em consequência, para resolver os constantes conflitos entre os indivíduos, foi preciso instituir um sistema de normas regulamentadoras para as associações iniciantes. Para Rousseau, esse procedimento teria partido dos poderosos com o fito de garantir e ampliar, se possível, suas posses. Os homens, em sua maioria, foram iludidos para que assinassem um pacto de direitos amplamente seletivos e desfavoráveis aos fracos. Porém, não se deve concluir, apressadamente, que a sociedade seja considerada má por essência, já que ela é um ente necessário face ao progresso do gênero humano. O que ela precisa é ser bem-formada, considerando como um dos seus pilares básicos a liberdade, fruto da justa igualdade entre as pessoas. E a formação de uma sociedade igualitária, logo, mais justa, estaria vinculada à formação moral dos seus membros, tarefa que compete, indiscutivelmente, à educação.

Ao produzir o Emílio3, Rousseau estabelece as bases de uma educação capaz de formar o verdadeiro homem, pois "apesar de tantos escritos", lembra ele, "a primeira de todas as utilidades, que é a de formar os homens, ainda está esquecida" (1999b, p. 4). Assim, formar o homem é a primeira tarefa, a segunda é formar o cidadão, "pois não se pode fazer os dois ao mesmo tempo". Refutando a educação praticada na sua época, que "só serve para criar homens de duas faces" (1999b, p. 13), o autor expõe aquilo que é, para ele, a maneira ideal de educar o ser humano, de formá-lo. Com efeito, descreve no Emílio a evolução de um aluno desde a infância até a vida adulta, sempre baseado na natureza como metodologia de ensino. Sua obra pedagógica é composta por um conjunto de métodos, princípios educativos que objetivam garantir ao educando uma formação individual solidamente virtuosa, para que ele pudesse enfrentar a sociedade tal como ela é. É por isso que Rousseau propõe educar o indivíduo de acordo com a natureza, para atingir posteriormente o social. Educando o homem (Emílio), a sociedade dificilmente seria capaz de corrompê-lo. Emílio seria, assim, um selvagem para viver nas cidades. Entretanto, seguindo a linha pedagógica proposta, Rousseau o deixaria enfrentar a vida social somente quando tivesse consciência suficiente para julgar as relações temerárias que se estabelecem não só entre seus semelhantes, mas também destes em relação ao próprio espaço vital. Percebe-se que a perspectiva antropológica rousseauniana contempla uma nova ruptura ontológica no ser humano, alterando sua natureza de forma dialética, segundo a qual os sentimentos naturais fossem conservados e transformassem sua concepção de todo, anteriormente existente enquanto existência individual, em uma ideia de parte indivisível de um todo maior, que é a existência social4. Esse é o papel que cabe à educação no pensamento rousseauniano: formar o homem de acordo com sua nova condição, permitindo-lhe harmonizar-se com os semelhantes, respeitando-os, ao mesmo tempo em que a consciência de uma evolução tecnológica se torna item elementar na formação moral, no intuito de, novamente, garantir a continuidade da espécie. Parece que Rousseau antevia a possibilidade da ocorrência de novos cataclismos provocados pelo próprio agir humano sobre o seu meio vital. As condições contemporâneas de vida em sociedade assim o revelam, como expressa Mendonça (1994):

Ao lado do crescente contingente populacional, o desenvolvimento da ideologia do consumismo pós anos 50 tem exacerbado as diferenças entre condições de vida, o que tem gerado extremos na qualidade da miséria humana e ao mesmo tempo a concentração de riquezas, ilustrada pelo aparecimento de verdadeiros magnatas. (MENDONÇA, 1994, p. 12)

As sociedades cujo modo de vida se enquadra na perspectiva "ocidental" tendem a considerar o "natural" como inferior diante do cultural, o que demonstra uma posição de radical estranhamento entre os seres humanos e a natureza. Rousseau se coloca na contramão dessa corrente, afirmando que tanto a ciência quanto as artes são maléficas diante da natureza humana originária. O curioso é que, embora emergindo no auge da Revolução Industrial (séc. XVIII), esse posicionamento vai de encontro à tese que sustentaria desde então todo o desenvolvimento do sistema capitalista: a dominação da "natureza" como meio de garantir o progresso da humanidade. Talvez o filósofo genebrino antevisse que, sendo o homem também natureza, dominá-la acarretaria (e justificaria) a dominação recíproca do ser humano pelos próprios semelhantes. Seu posicionamento apologético do convívio harmônico entre as espécies, ainda no final da vida, reflete a identificação profunda com a natureza:

As árvores, os arbustos, as plantas são o enfeite e a vestimenta da terra. Nada é tão triste como o aspecto de um campo nu e sem vegetação, que somente expõe diante dos olhos pedras, limo e areias. Mas, vivificada pela natureza e revestida com seu vestido de núpcias no meio do curso das águas e do canto dos pássaros, a terra oferece ao homem, na harmonia dos três reinos, um espetáculo cheio de vida, de interesse e de encanto, único espetáculo do mundo de que seus olhos e seu coração não se cansam nunca. (ROUSSEAU, 1995, p. 93)

Ao não considerar o homem social por origem, mas que acaba se tornando, artificialmente, durante o processo histórico, Rousseau contraria a concepção corrente, tão cara ao pensamento ocidental desde Aristóteles, que compreende o humano como um ser originalmente social. O ponto de vista rousseauniano também é compactuado por Freire (2000a, p. 28) quando este, discordando (em parte) de Aristóteles, afirma que "continuamos a ser, sim, aquilo em que nos tornamos: animais políticos".



Avanço tecnológico, desigualdade e meio

Baseado no até então exposto, cremos ter evidenciado que o fator determinante para o esgotamento dos elementos vitais da natureza e das condições de sustentabilidade da vida na terra é resultado das relações estabelecidas entre os homens, em sistemas sociais culturalmente heterogêneos. Por esse prisma há um deslocamento do foco, que passa a ser não mais a dinâmica ser humano x natureza e, sim, sociedade x natureza. Não esqueçamos de que o ser humano é e sempre será parte da "natureza", considerando-a como fonte, existência primeira de tudo o que há no mundo. O que ocorre é um gradativo afastamento entre os modos de vida natural e social, principalmente no que se refere às necessidades atuais e aquelas originárias da espécie. As necessidades foram sendo multiplicadas artificialmente sem que fossem avaliadas as possibilidades que o meio teria para provê-las. Ao colocar a questão ambiental nos termos de sociedade e não mais de homem, problematiza-se não apenas o viés tecnicista, mas também o aspecto político, o que salienta, de imediato, a responsabilidade do modo de produção capitalista e o seu objetivo maior - o lucro, elemento determinante na exploração do espaço em sua totalidade, incluindo homens e mulheres. Como afirma Casseti (1991):

À medida que a propriedade privada é desenvolvida (apropriação privada da natureza), o acúmulo de capital se torna conseqüência, o que além de responder pelo processo de degradação ambiental, responde pelo antagonismo de classe. (CASSETI, 1991, p. 25)

Com o advento e o aprimoramento das técnicas, cujo processo em si não pode ser responsabilizado pelo nosso modo de vida exploratório e poluidor, a humanidade foi gradativamente transformando o espaço vivido. Primeiro, como vimos, de forma lenta e sutil, imprimindo maior velocidade e profundidade à medida que as técnicas, entendidas como o "conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço" (SANTOS, 2002, p. 29), foram sendo aprimoradas. Os objetos contidos em nosso meio não mais se determinam por si mesmos, sendo valorados e organizados segundo a lógica da ação humana para o seu uso. E o meio (antes "natureza") acaba se constituindo num sistema de objetos em que tudo possui intencionalidade e valor.

Em síntese, no meio natural as relações humanas com a natureza eram pautadas pela "harmonia socioespacial (...) respeitosa da natureza herdada, no processo de criação de uma nova natureza" (SANTOS, 2002, p. 236). Com o advento da mecanização, a ação antrópica sobre o espaço (e não mais sobre a natureza em seu sentido original) tornou-se cada vez mais poderosa. Essa artificialização do modo de interferir no espaço, transformando-o, funda o que o geógrafo brasileiro denomina de meio técnico, que, por sua vez, inaugura o desequilíbrio ambiental:

Os objetos técnicos e o espaço maquinizado são locus de ações "superiores", graças a sua superposição triunfante às forças naturais. Tais ações são, também, consideradas superiores pela crença de que ao homem atribuem novos poderes - o maior dos quais é a prerrogativa de enfrentar a Natureza, natural ou já socializada, vinda do período anterior, com instrumentos que já não são prolongamento do seu corpo, mas que representam prolongamentos do território, verdadeiras próteses. Utilizando novos materiais e transgredindo a distância, o homem começa a fabricar um tempo novo, no trabalho, no intercâmbio, no lar. Os tempos sociais tendem a se superpor e contrapor aos tempos naturais. (SANTOS, 2002, p. 236)

Desde o vertiginoso desenvolvimento científico percebido após a Segunda Guerra Mundial, as técnicas vêm se tornando cada vez mais eficientes em relação à intencionalidade do mercado, seu gestor principal. Aliadas à capacidade informacional que multiplica e aprofunda a ação transformadora do espaço, globalizando as relações de produção e consumo, as técnicas transformam-se "no meio de existência de grande parte da humanidade" (SANTOS, 2002, p. 239). O local, subordinado ao global, passa a ser explorado economicamente por atores externos, justificando por que, não raro, o desequilíbrio socioambiental pode aumentar em paralelo ao crescimento econômico de um lugar. Ao mesmo tempo em que o capital globalizado se torna extraterritorial, os problemas ambientais gerados localmente respondem a intencionalidades distantes, o que Santos (SANTOS, 2002, p. 254) denomina a "desterritorialização do desastre ecológico". Toda essa dinâmica desnuda o problema socioambiental em sua radicalidade: a ideologia dominante propagando, contraditoriamente, o desenvolvimento ilimitado e o comportamento consumista, mesmo diante de uma base finita de recursos.

Diante do exposto, pode-se afirmar que atualmente não existe mais um espaço natural; mesmo as regiões mais remotas da terra, cujas condições de vida se mostram extremamente adversas, impedindo a habitação humana, são delimitadas territorialmente, mapeadas. Tal constatação sugere que o termo "natureza" seja ressignificado, pois vivemos num espaço repleto de objetos técnicos, o meio geográfico. Se mesmo elementos considerados "naturais", como um rio ou mesmo o ar, foram apropriados e revestidos de intencionalidade pela ação humana, acaba sendo incoerente continuarmos insistindo em duas abordagens usuais no momento: a primeira, que trata as agressões causadas pela sociedade em seu meio como "problema ambiental", e a segunda, complementar, que afirma ser preciso repensar e reordenar a ação do homem (sociedade) sobre a natureza. Ora, o termo "ambiental" escamoteia o aspecto social, que inclui, obrigatoriamente, as relações predatórias mantidas entre os próprios homens. Ao centralizar a análise dos objetos "naturais", esse discurso "nada ingênuo" promove um reducionismo na capacidade crítica daqueles que com tais problemas se revoltam após compreendê-los mais radicalmente. Por fim, despolitizado, provoca mais um "encurtamento" temporal, como se os problemas não fossem, assim como os homens, históricos. Como a realização concreta da história, adverte Santos (2002, p. 101), "não separa o natural e o artificial, o natural e o político, devemos propor outro modo de ver a realidade, oposto a esse trabalho secular de purificação, fundado em dois pólos distintos". Aliás, com relação à historicidade, cabe ainda salientar que a "natureza" em si é a-histórica - a história é memória, consciência temporal que os humanos possuem em relação aos fatos passados, que, aliados à capacidade de reflexão, possibilita relacioná-los com acontecimentos do presente, vislumbrando, por fim, o futuro. Como salienta Freire (2000a, p. 20), "a história que se processa no mundo é aquela feita pelos seres humanos".

Paulo Freire e a visão crítica da Educação Ambiental

Por toda a sua vasta obra, Freire sustenta a tese de que somos, concomitantemente, sujeitos e objetos do meio vital (geográfico). Logo, como agente determinante da própria transformação, cabe ao homem assumir a responsabilidade sobre seus atos. Nesse imperativo reside a "ética universal do ser humano", que, segundo Freire (1996):

Condena a exploração da força de trabalho do ser humano, que condena acusar por ouvir dizer, afirmar que alguém falou A sabendo que foi dito B, falsear a verdade, iludir o incauto, golpear o fraco e o indefeso, soterrar o sonho e a utopia, prometer sabendo que não cumprirá a promessa [...] é por esta ética inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos, que devemos lutar. (FREIRE, 1996, p. 17)

Essa ética, ao longo do processo de convivência social, pode tomar dois caminhos: um que a ratifica e outro que a nega. Consequentemente, é pela primeira possibilidade que a educação precisa se pautar, não apenas em sua vertente socioambiental, mas como um todo. Interdisciplinar por essência, a educação denominada socioambiental5, de inspiração freireana, implica construir coletivamente uma consciência crítica acerca do presente vivido que promova "a denúncia de como estamos vivendo e o anúncio de como poderíamos viver". Tanto o que "poderá vir se retificações forem feitas nas políticas denunciadas como o que pode ocorrer se, pelo contrário, tais políticas se mantiverem" (FREIRE, 2000b, p. 118-19). É interdisciplinar, uma vez que a sua efetivação inclui a compreensão da história, o esclarecimento dos "porquês" mais radicais do real percebido, abrigando, ainda, uma visão global da inter-relação das forças econômicas, sociais, espaciais e ideológicas, entre outras, que uma análise como essa requer. Afinal, como assevera Santos (2002, p. 20), "uma disciplina é uma parcela autônoma, mas não independente, do saber geral".

Acreditamos que à educação socioambiental cabe promover, entre outros aspectos, a conscientização do quanto é importante a participação política de cada membro da sociedade no que diz respeito tanto ao uso do espaço público quanto do privado, em se tratando das normas que o regulamentam. Pois o que se processa em um ambiente privado pode repercutir no público, bem como o inverso, constatação que salienta a necessária responsabilidade da ação humana sobre todo e qualquer espaço, juntamente com os objetos nele contidos (em especial os chamados "recursos naturais"). Esse engajamento pode auxiliar na ampliação necessária do debate em torno dos problemas ambientais e sociais, evitando concentrá-los apenas na esfera governamental e nas ONGs, instituições que vêm se multiplicando nos últimos tempos.

A ação dos homens, mais precisamente da sociedade, em seu modo de produção e consumo sobre o meio geográfico, para Freire, é característica da sua própria natureza (o termo natureza usado no sentido de essência, definindo o humano como um ser de relação com os outros e com o mundo). Somos os únicos capazes de objetivar e agir sobre o nosso meio de forma intencional, transformadora. Entretanto, como vimos, a ação seguida de transformação em escala mais significativa está reservada a poucos indivíduos, enquanto a grande maioria resta imersa na ação ingênua, mecânica e controlada ideológica e politicamente pelos "opressores". Para haver uma ruptura com essa constatação, chamamos a atenção, a partir de Freire, para a Educação Problematizadora e sua possível ação conscientizadora.

A concepção problematizadora da educação é aquela que respeita a natureza do homem, percebendo-o como o ser (unicamente) capaz de objetivar o espaço que o cerca através da práxis, união entre a teoria (pensar) e a prática (agir), construindo sua própria leitura acerca do real. A ação tem correspondência na encarnação do dever ser constitutivo do humano, concretude da existência. Compreender a vida como evento em curso acentua a ação histórica, definidora de verdades e constituidora de sujeitos, em que participar se traduz em transformar, concomitantemente, a mim mesmo e ao entorno, lembrando que "para viver, preciso ser inacabado" (BAKHTIN, 2003, p. 11). Por sua vez, essa compreensão da realidade em permanente processo constitui no homem a sua consciência, que pode ser tal qual a realidade lhe é apresentada. Diante disso, a conscientização representa um aprofundamento da tomada de consciência através de um novo processo de apreensão da realidade em sua relação com o estar sendo daquele que a observa - o sujeito. Isso implica transcender o mero espontaneísmo de espectador passivo diante dos fatos, uma vez que são muitos os meios dispostos a trazê-los até nós, através de uma ação mediadora.

Sendo um conhecimento interno, a conscientização6 possui dois focos de ação: um em relação a si próprio e outro em relação aos demais seres humanos, considerando todos em seu meio de vida (meio geográfico). A primeira dimensão compreende o sujeito histórico, o "eu no mundo", capaz de trazer a realidade percebida para dentro de si e refleti-la, agindo coerentemente com um "pensar certo". Por estar voltada para si, nessa dimensão a conscientização é autoconhecimento. Porém é forçoso que esse conhecimento também ocorra na esfera dos outros seres humanos, do "eu" em relação aos outros, entendendo-os como semelhantes em sentimentos, necessidades, direitos e deveres na sociedade: é o reconhecimento ao mesmo tempo de si e do outro. Finalmente, complementando o ato de conhecer-se e reconhecer-se, a conscientização como um processo histórico de busca e de libertação encontra seu ápice na ação transformadora da realidade. Fiori (2002, p. 10), no prefácio da Pedagogia do Oprimido, aponta que a "conscientização não é apenas conhecimento e reconhecimento, mas opção, decisão, compromisso". E a ação que os seres humanos efetuam sobre o meio geográfico constitui um processo dialético de constante transformação mútua entre consciência e mundo. Por sua vez, sendo a consciência uma capacidade unicamente humana que possibilita conhecer e reconhecer, agir e transformar, é igualmente possível inferir um sentido de responsabilidade que resulta dos seus atributos. Freire (2000a) destaca que o homem tem na responsabilidade uma exigência fundamental para o exercício da sua liberdade, pois condicionado, e não simplesmente determinado, pode ser visto como um ser de decisão e de ruptura, logo, de intervenção no mundo.

A responsabilidade a que Freire se refere faz parte de um conjunto de valores indispensáveis para que este mundo, resultado da intervenção humana, venha a ser constituído de acordo com o sonho utópico: mais justo, livre da miséria e da opressão. A favor da vida, "entendida na totalidade da extensão do conceito e não só vida humana" e contra toda e qualquer prática que a negue. Quer seja "poluidora do ar, das águas, dos campos, ou devastadora das matas" (FREIRE, 2000b, p. 132).

5. Considerações finais

Do conjunto de reflexões desenvolvidas e ainda inacabadas, restamos convictos de que a superação dos dualismos enraizados culturalmente, como é o caso da formulação natureza-ser humano, dependerá da transformação das consciências. E essa é uma tarefa que cabe ao processo educativo, seja escolar, familiar, formal ou não-formal. Vimos que, através da Educação "Problematizadora", Freire estabelece princípios com o fito de romper com as injustiças sociais, historicamente construídas concomitantemente à evolução tecnológica e forçosamente apartadas de seu vínculo com as questões ambientais. Essa perspectiva educacional estrutura e fomenta a capacidade de luta e de indignação do oprimido em qualquer contexto, metas audaciosas que sugerem questionar em que medida podem ser alcançadas. A educação possui uma dimensão política que pretende, ao prover o indivíduo de condições intelectuais autônomas, despertar a perspectiva de reconhecer-se como sujeito ativo do todo, que é a sociedade civil.

Salientamos a emergência de novos questionamentos, reveladores da complexa teia de elementos envolvidos na análise da qual nos ocupamos. Com relação ao vigor da ação conscientizadora, será que homens e mulheres, vivendo o rigor de uma realidade miserável, sem perspectivas de futuro, conseguirão se reconhecer como atores dentro da sociedade? Que tipo de reação provoca no indivíduo humilhado diariamente a reflexão sobre si mesmo, sobre sua situação? E ainda, quais as vinculações ideológicas possíveis de serem desenvolvidas entre as questões ambientais e o problema da injustiça social? Afinal, homens e mulheres não dependem mais somente das possibilidades naturais para sobreviver. Vivem em função de condições artificiais, criadas pelos humanos, provocadoras de novas necessidades e dependências, não pouco geradoras de submissão e exploração mútuas.

Para além das muitas indagações suscitadas, constata-se que, para Rousseau, Santos e Freire, evolutivamente, homens e mulheres continuaram sendo oprimidos e explorados frente às relações entre suas necessidades (básicas e supérfluas) e as diferentes capacidades para satisfazê-las. Estruturou-se uma organização social que se sustenta exatamente nesta contradição: a coexistência da diferença (desigualdade) social, oprimidos e opressores, como aponta Freire. Fomentando a acumulação para poucos perante a miséria de muitos, continua repartindo desigualmente as riquezas socialmente produzidas, escamoteando o fato de que "as mesmas forças produtivas que produziram, na forma do sistema de mercado, a crise ecológica e a crise das relações entre os sexos são responsáveis por um desemprego em massa, crescente e global" (KURZ, 1997, p. 51). Toda essa dinâmica contraditória, embora hegemônica, provoca o desejo contínuo pela igualdade de condições de consumo. E essa igualdade não é, certamente, aquela de que falam tanto Rousseau quanto Freire, pois, na atualidade, corresponde ao sujeito do consumo, celebrado pela parcela dominante das relações de produção.

A partir de Freire, destacamos que conhecimento e reconhecimento, imbricados no processo de conscientização, são imperativos paralelos na construção de uma práxis cada vez mais coletiva acerca dos problemas ambientais e sociais em conjunto, provocados e sentidos no meio, entendido como espaço de vida em comum. Ao harmonizar indivíduo, sociedade e meio geográfico, a Educação Problematizadora revela-se a corrente educacional capaz de proporcionar a educandos e educadores uma nova forma de pensar os problemas ambientais, considerados então como socioambientais. Salientando o caráter ideológico do conhecimento e a necessidade de problematizá-lo, o educador pernambucano ratifica o pensamento de Santos (2002, p. 238), para quem a "união entre técnica e ciência vai dar-se sob a égide do mercado". Entendem ambos que o poder do capital implica transformações espaciais a partir de intencionalidades unilaterais, dirigidas por uma ótica exploratória e sem limites.

Consequentemente, a educação socioambiental, amparada pela concepção problematizadora, transcende o ecologismo preservacionista em sua visão reducionista dos contextos vividos, visando à construção de um novo paradigma, através da ruptura com a racionalidade do mercado. Preocupa-se em reverter os quadros de resignação de grande parte da sociedade diante dos desequilíbrios por ela mesma provocados, em um momento de globalização e urbanização crescentes. Para além de um ambiente ecologicamente equilibrado, sadio, a educação socioambiental que propomos contempla (como autêntico dever-ser) uma qualidade de vida digna para todos, sustentada por uma sociedade radicalmente justa e democrática, coerente com a unidade entre homem e natureza, a ser recontextualizada nos diferentes tempos e espaços vividos.

Referências

Educação em Revista - UFMG

Os maiores mitos sobre o cérebro dos adolescentes

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