
A necessidade de insistir na diversidade para romper com ‘silenciamentos’ e desigualdades.
Fiz a opção de subverter a ordem das coisas na estreia desta seção. Em lugar de tratar especificamente do meu trabalho como mulher na ciência, decidi falar das mulheres na ciência. Melhor, das mulheres negras brasileiras na ciência.
Em 2016, após ter visto o filme Hidden Figures (dirigido por Theodore Melfi, que no Brasil ganhou o título de Estrelas Além do Tempo), saí do cinema me questionando sobre a presença de mulheres negras brasileiras na ciência. Quem foram as personagens escondidas no campo científico, mulheres com significativa contribuição ou com participação importante em projetos e que são completamente desconhecidas de nós? Elas existiram?
Ainda que a presença de mulheres em carreiras acadêmicas no Brasil venha aumentando, o número daquelas na chefia de laboratórios ou de projetos de pesquisa ainda é pequeno, em relação aos homens, nas universidades e centros de pesquisa. Para fazer frente a esse cenário, em escala global, empresas e organizações internacionais têm trabalhado para diminuir a desigualdade de gênero no mundo da ciência e dar maior visibilidade à contribuição de mulheres na área, como é o caso da premiação anual For Women in Science – organizada pela Unesco e L’Oreal–, que homenageia jovens pesquisadoras renomadas em todo o mundo. Mas, não podemos esquecer, mulheres são várias – negras, brancas, pobres, ricas etc. – e, quando não pensamos na diversidade que essa categoria engloba, podemos contribuir para perpetuar ‘silenciamentos’ e desigualdades.
Numa simples pesquisa on-line sobre a presença de ‘mulheres nas ciências’, aparecerão europeias e americanas que se destacaram em pesquisas nas áreas das ciências exatas, biológicas e tecnológicas. Se a busca for feita por ‘mulheres brasileiras cientistas’, aparecerão nomes de mulheres brancas que se dedicaram basicamente às referidas áreas.
No livro Pioneiras da Ciência no Brasil, foram selecionados os nomes de 19 mulheres, apenas duas ligadas à área de humanidades. As demais são das ciências exatas e da terra (matemática, física, química), ciências biológicas, ciências da saúde, ciências agrárias, engenharias e ciências sociais aplicadas, em ordem decrescente. O de conceito’ciência’ nesse livro de memória das cientistas do Brasil privilegiou as chamadas áreas duras e tecnológicas, mas, como se sabe, as ciências têm vários ramos que não se restringem aos citados.
A maior parte dessas mulheres era descendente de europeus e pertencia à elite econômica ou intelectual brasileira, recebeu formação no exterior ou em instituições do Rio de Janeiro e São Paulo, com exceção de duas, que estudaram na Bahia e no Pará. A expressa maioria também desenvolveu suas carreiras em universidades e instituições de pesquisas do Rio de Janeiro e São Paulo, o que demonstra as disparidades regionais de nosso país, reforçadas pela concentração dos recursos para pesquisa nos estados do Sudeste e Sul.
As cientistas elencadas no referido livro atuaram na pesquisa, no ensino e na produção de artigos para divulgar os resultados de suas investigações científicas. Contudo, outras mulheres participaram de processos importantes, mas não assumiram postos de comando, fosse em razão da discriminação de gênero ou em decorrência da discriminação racial do período.
Importante notar a ausência absoluta de mulheres negras nesta lista. Isso se explica pelo preconceito, que fazia das universidades ambientes (quase) exclusivamente masculinos e brancos, reservados para a formação dos quadros da elite brasileira, da mesma cor e gênero.

Hoje, podemos atualizar o quadro de cientistas brasileiras, incluindo negras pioneiras que, atuando como pesquisadoras em universidades, produzem artigos, livros, assumem cargos de liderança em suas instituições e fazem a diferença, porque pensam uma ciência mais inclusiva e democrática.
Na imagem: Virgínia leone Bicudo
Aqui deve ser lembrado, como exceção, no âmbito das ciências sociais, o nome de Virgínia Leone Bicudo (1910-2003). Negra, nascida em São Paulo, estudou psicanálise na Escola de Sociologia Política de São Paulo. Escreveu, sob orientação do sociólogo estadunidense Donald Pierson, a dissertação ‘Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo’ (1945), defendida na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. No mesmo ano, começou a lecionar nessa instituição. Bicudo escreveu vários artigos sobre a intrínseca relação entre condições sociais/meio ambiente e psicanálise e empenhou-se na divulgação da psicanálise no país. Participou da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, foi diretora do Instituto de Psicanálise (1961-1975), fundou o Grupo Psicanalítico de Brasília (1970) e, depois, o Instituto de Psicanálise de Brasília.
Graças à universalização do ensino no Brasil, mulheres negras têm ocupado o lugar de produtoras de novos saberes em diversas áreas do conhecimento científico, aqui entendidas as diversas disciplinas, inclusive as ciências humanas. Hoje, podemos atualizar o quadro de cientistas brasileiras, incluindo negras pioneiras que, atuando como pesquisadoras em universidades, produzem artigos, livros, assumem cargos de liderança em suas instituições e fazem a diferença, porque pensam uma ciência mais inclusiva e democrática.
Assim, alguns nomes pioneiros devem ser aqui mencionados, como o das professora de artes Zélia Amador de Deus (Universidade Federal do Paraná) e Leda Martins (Universidade Federal de Minas Gerais); as especialistas em educação e relações étnico-raciais Petronilha B. Gonçalves e Silva (Universidade Federal de São Carlos), Maria Nely Santos (Universidade Federal de Sergipe) e Ana Célia da Silva (Universidade do Estado da Bahia); as especialistas em literaturas africanas de língua oficial portuguesa Maria Nazareth Fonseca (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) e Laura Cavalcante Padilha (Universidade Federal Fluminense); as historiadoras Mundinha Araújo (Arquivo Público do Estado do Maranhão) e Marilene Rosa Nogueira da Silva (Universidade do Estado do Rio de Janeiro); a socióloga Luiza Bairros, a poetisa, ensaísta, romancista e especialista em literatura e educação Conceição Evaristo; e a especialista em antropologia e educação Josildete Gomes Consorte (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), entre muitas outras.
Nota-se, no entanto, uma concentração de mulheres dessa geração no campo de humanidades, a sugerir uma abertura maior para a incorporação da diversidade racial e de gênero nessa área do que nas ciências exatas, biológicas etc. Essas mulheres pioneiras podem ser vistas como fundadoras de uma genealogia intelectual imaginária, que hoje floresce com força entre pesquisadoras negras, apesar dos obstáculos ainda vigentes numa sociedade caracterizada pela discriminação de gênero e raça. Circunstância, aliás, que tende a se agravar em razão do ‘desinvestimento’ em ciência, tecnologia e educação superior que caracteriza o governo federal nos últimos dois anos, apontando nessa direção para o futuro.
Trajetória de luta
Os passos fortes dados pelas mulheres negras citadas neste artigo na produção de conhecimento abriram caminhos para outras, mais jovens, que hoje ocupam importantes lugares na construção de novos saberes, nos diversos ramos do conhecimento, em diálogo com interlocutores nacionais e internacionais. A demonstrar a presença significativa da mulher negra entre pesquisadoras atuando em instituições de ensino superior e de pesquisa, remeto àquelas reunidas em entidades como a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros/ABPN – cujo cargo de presidente é ocupado hoje por uma cientista negra, a doutoraem química Ana M. Canavarro Benite (Universidade Federal de Goiás) – e o Grupo de Pesquisa de Intelectuais Negras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Mulher negra, sou herdeira dessa longa trajetória de luta. Fiz a graduação em História na Universidade do Estado da Bahia, no campus de Jacobina, minha cidade natal. Com mestrado em História pela PUC-SP e o doutorado em história social pela USP, desde 2010, sou professora adjunta de História da África Pré-Colonial, do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, onde ministro aulas na graduação e pós-graduação, além de orientar pesquisas. Minha entrada na UFMG coincidiu com a criação da disciplina de História da África na universidade. E vejo crescer o interesse de estudantes em realizar pesquisas nessa área. Entre 2010 e 2018, orientei cerca de 7 dissertações e teses de doutorado e há mais 9 em andamento. Orientei cerca de 10 estudantes de iniciação científica, do Brasil e de outros países. Em 2012, foi criado na universidade o Centro de Estudos Africanos, que dirigi entre 2014 e 2018.Desde 2013, integro o Comitê Científico da UNESCOpara o Projeto História Geral da África.

Vanicléia Silva Santos
Departamento de História
Universidade Federal de Minas Gerais
Revista Ciência Hoje
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