Cristina Bruzzo
Doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (unicamp). E-mail: bruzzo@unicamp.br
Por que o cinema chegou à universidade e não alcançou ainda as escolas secundárias?". A pergunta de Guido e Teresa Aristarco (Aristarco & Aristarco, 1992, p. 9), feita antes de o cinema completar cem anos, espanta pelo menos por duas razões: parece que algo pode ser encontrado nos filmes que interessa ao ensino superior e não cabe na escola básica; por outro lado, pode-se suspeitar que interesses distintos permeiem os vários níveis de ensino, chamando à descontinuidade no percurso da escolarização.
No mesmo livro, Aldo Visalberghi previa que a introdução de filmes no ensino aconteceria no âmbito de uma "grande revolução geral na organização curricular das escolas" (idem, ibid., p. 71). Dezoito anos se passaram e as escolas não mudaram muito, nem os filmes chegam a elas com regularidade.
O júbilo, os filmes e as festas que comemoraram o centenário do cinema já foram esquecidos e agora miramos com desconfiança as redes sociais da web. Mas intriga o descompasso: a escola parece desconhecer ou julgar impróprias as obras audiovisuais das mais diversas tendências produzidas em qualquer lugar nesse mundo globalizado. Não obstante, é reconhecido que o cinema aporta inquietações sobre a condição e os fazeres humanos. Também é preciso admitir que, na maior parte da produção, encontra-se certa dose de redundâncias e inutilidades, nada diferente do que acontece com a literatura e as artes gráficas.
Em São Paulo, no começo do século XXI, um grupo de jovens professores, sensibilizados pela situação de exclusão do audiovisual das salas de aula, lançou-se ao desafio de levar o cinema às escolas, com especial carinho para aqueles filmes "sem tela", que ficam fora do circuito comercial, como parte significativa do cinema brasileiro. Considerada com algum preconceito e desconfiança pelos educadores e por boa parte do público, a produção cinematográfica do país era vista como uma promessa não realizada, que resultou em preconceito e desconhecimento dos filmes. Partindo da constatação desse distanciamento entre o cinema brasileiro e seu público potencial, o grupo de professores propôs um projeto que pudesse aproximar alunos de escolas públicas da diversidade dos filmes nacionais. O projeto "Cinema e Vídeo Brasileiro nas Escolas" resultou da vontade de descortinar um lugar para as questões candentes da nossa realidade, suscitadas pelos filmes e expressas na forma de enquadramentos e composições visuais originais.
A participação nessa experiência motivou Antônio Reis Junior, como um de seus coordenadores, a escrever sua tese de doutorado (Reis Junior, 2010) sobre o projeto de introdução do cinema brasileiro em escolas da região leste da cidade de São Paulo (2000-2005), que promoveu a constituição de videotecas, cursos de formação para os professores, mostras de filmes e produção em vídeo digital.
Sua tese, cuja defesa aconteceu no segundo semestre de 2010, tem o mérito de passar ao largo de qualquer pretensão avaliativa do projeto e de sua eficácia, que a elegância pede não seja feita por quem se envolveu tão diretamente, a fim de evitar o exercício do autoelogio ou da autopunição. Longe de justificar e julgar, Reis Junior dedica-se a relatar e refletir sobre o trabalho realizado, movendo-se entre o passado relembrado e o presente que aparece expresso no exame de dois filmes documentários que incorporam reflexões e leituras recentes.
Ficam as marcas do descompasso entre a concepção de um projeto formulado de forma objetiva e consistente e a vivência dos professores das escolas com os filmes da videoteca, vivência esta que só pode ser percebida como uma rememoração incerta. A solução para essa duplicidade do relato veio do próprio cinema, que o autor traz para o interior do trabalho, inserindo imagens dos filmes que marcaram as atividades com os professores e que ele dispôs na tese, como um comentário que complementa a redação acadêmica. Daí resulta um formato que pretende indicar a insuficiência da escrita para dar conta de uma experiência vivida de forma intensa e finita. Tal recurso confere leveza, pela forma gráfica, e provoca um desvio do texto acadêmico, ao mesmo tempo em que sugere ao leitor algumas aproximações com a filmografia brasileira. Tal conjunto de fotogramas nos lembra como desconhecemos a produção nacional e como seria bom que ela tivesse uma distribuição adequada.
O texto começa com as sua lembranças de menino, construídas pelos filmes mudos de 8 mm de curta metragem que seu pai realizou na Manaus de fins da década de 1960 e início da década de 1970, para lembrar que o amor pelo cinema veio de longe e acalentou o desejo de espalhar os filmes pelas escolas. Mas o propósito maior do projeto CVBE repousa na crença, forte na época, do reconhecimento que a imagem familiar mobiliza no jovem estudante e nos desdobramentos educativos que a produção audiovisual brasileira poderia desencadear, alimentando o sonho de que a escola pudesse ser o lugar de aproximação com uma filmografia mais autêntica, que viria encontrar seu público, até então seduzido pelo cinema comercial estrangeiro.
O trabalho organiza-se em dois eixos: o projeto CVBE e o exame detalhado de dois filmes nacionais. O entrelaçamento desses dois percursos busca dar sustentação à tese central de que a produção nacional oferece a possibilidade de interrogar o país pelo olhar dos cineastas, cujas obras desenham panoramas e interpretações sobre o Brasil, sendo necessário, para tanto, o encontro mediado com os filmes no espaço escolar para estimular uma predisposição de jovens, crianças e professores para a diversidade de nosso cinema.
O primeiro capítulo detalha a situação singular de uma filmografia estranha a seu público, que resulta na existência de uma vasta produção de filmes sem distribuição condizente com sua variedade e pertinência. As causas desse alijamento são examinadas e oferecem o contexto adequado para se entender os propósitos do projeto e as escolhas metodológicas levadas a cabo para desenvolvê-lo, apresentadas no segundo capítulo.
O terceiro capítulo, provocativo, relata o envolvimento na produção audiovisual de professores e alunos de uma das escolas vinculadas ao projeto, que se sentiram estimulados pelos filmes assistidos e discutidos nas oficinas de produção, muitos realizados nas décadas de 1960 e 1970 por jovens diretores brasileiros interessados em denunciar as mazelas sociais e desejosos de mobilizar o público a pensar o país. O filme Excola (produção coletiva de professores, 2004) inspira-se nessa proposta e exprime a apropriação, por parte de seus realizadores, da ideia do cinema como possibilidade de afirmação política. Entretanto, ao final da produção, a divulgação do filme foi abortada por decisão dos próprios professores. Tal episódio, examinado com delicadeza por Reis Junior, evoca as considerações do cineasta e pesquisador de cinema Jean-Louis Comolli (2004) sobre a força do cinema militante, que arregimentou cineastas em muitos países, colocados a serviço de causas, palavras de ordem e ideais políticos. Mesmo que tenham sido concebidos para a defesa de ideias que o tempo isolou, os filmes mostraram-se mais duradouros do que os sonhos de então e o mundo filmado parece ser "uma utopia mais poderosa" do que as utopias políticas que os inspiraram. Mobilizados por esse cinema, os professores e alunos quiseram exprimir a insatisfação com o aqui e agora. Contudo, assombrados pelo resultado e temerosos de possíveis represálias, preferiram condenar o filme e o Excola não teve divulgação. Relembrar esse episódio talvez seja uma boa maneira de buscar a resposta para a ausência dos filmes na escola, apontada por Aristarco e Aristarco (2005).
O tempo decorrido entre as ações efetivas realizadas no projeto CVBE e a reflexão motivada pelo estudo acadêmico permite que se perceba como a escolha de documentários prevalecia nas práticas realizadas. O intuito dos formadores foi estimular a visão crítica dos professores, recorrendo à explicitação dos recursos da linguagem com a finalidade de denunciar a ilusão de que a câmera seja um dispositivo transparente e neutro de registro da realidade. Ao mesmo tempo, buscavam com esses filmes levar os professores a reconhecer a capacidade de o cinema representar a identidade nacional, a "brasilidade". Esse paradoxo estimula Reis Junior a realizar a análise de dois filmes, na qual procura explorar as contradições e os limites do documentário. Um deles, Socorro nobre (Walter Salles Jr., 1995), visto e discutido inúmeras vezes na época do projeto, traz as marcas das análises levadas a cabo nas aulas daquele período.
Com o filme Estamira (Marcos Prado, 2004), sem vínculo com aquelas exibições, são apontados os dilemas, impasses e sonhos de quem opera máquinas de filmar. O autor se detém nas ambiguidades e inquietações despertadas pelo atrito entre as imagens e as palavras; entre a objetiva da câmera que registra e o diretor que insiste em mostrar aquilo em que crê, e o espaço entre um fotograma e o seguinte, no qual o espectador navega. Esse exercício conclui a tese e pode ser entendido a partir do alerta de Comolli (2004) sobre a necessidade de o espectador acreditar que a máquina-cinema mostra o "mundo como ele é", ainda que ele saiba tratar-se de uma percepção enganosa.
A tese de Antônio Reis Junior poderia ser descrita como a sinopse de um filme: de como o cinema permitiu a um menino sonhar o pai que perdeu cedo, vendo-o e revendo seus rolos de filmes em super 8. Adulto, o menino de sempre seguiu sonhando que os filmes poderiam ajudar outras crianças a pensar seu país e a realizar um Brasil melhor.
Referências
ARISTARCO, G.; ARISTARCO, T. (Org.). Il cinema: verso il centenario. Bari: Dedalo, 1992.
COMOLLI, J.-L. Voir et pouvoir l'innocence perdue: cinéma, télévision, fiction, documentaire. Paris: Verdier, 2004.
REIS JUNIOR, A. Cinema brasileiro na escola pública: reconhecimento na diferença. 2010. Tese (Doutorado em Educação) Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
VISALBERGHI, A. Un progetto per la scuola. In: Aristarco, G.; Aristarco, T. (Org.). Il cinema. Verso il centenario. Bari: Dedalo, 1992, p. 68-72.
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