segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Facetas da democratização: uma escola exigente1


Fátima Antunes

Doutoranda em Educação, Área de conhecimento de Sociologia da Educação. E-mail: fantunes@iep.uminho.pt


1. UMA ESCOLA EXIGENTE: um esboço em traço cubista1

A Escola Secundária (com 3º ciclo do Ensino Básico) Sarah Afonso (ESSA)2 está situada no norte de Portugal, numa cidade sede de distrito que vive um processo de perda de alunos (e de população) em favor de concelhos limítrofes. É uma escola com várias décadas de existência e instalações já antigas, embora genericamente em bom ou razoável estado de conservação. Em 2002/03 a ESSA tinha matriculados 880 alunos, frequentando 331 o 3º ciclo do ensino básico e 549 o ensino secundário. Quanto às habilitações acadêmicas, trata-se de um público cujo agregado familiar verifica níveis de escolarização claramente superiores aos que se observam para a população adulta portuguesa, já que 55,9% dos pais/mães completaram o ensino secundário ou superior, sendo essa discrepância ainda mais acentuada que aquela evidenciada para uma amostra de estudantes universitários inquiridos, num estudo recentemente publicado e cujos pai e mãe em conjunto dispunham de habilitações de nível secundário ou superior numa percentagem de 45,8% (54,6% para o agregado doméstico) (MACHADO et al., 2003, p. 57).

Outro dado que interessa evocar prende-se com os resultados escolares, designadamente as percentagens de transição/conclusão3: temos dados referentes aos 10º e 11º anos e para os períodos de 1997/98, 1998/99, 1999/00, 2000/01, 2001/02, 2002/03; considerando o número global de alunos que transitaram, face ao universo acerca do qual nos foi fornecida informação, ao longo desse lapso de tempo, verificamos que 68,4% transitaram do 10º e 78,9% transitaram do 11º ano para os anos curriculares seguintes; ficaram retidos (respectivamente) 20,9% e 10,3%; foram transferidos, excluídos por faltas ou anularam a matrícula cerca de 31,2% e 21,1% dos estudantes para os dois anos curriculares e os seis anos letivos considerados.

Para o país, e segundo a informação avançada pelo Instituto Nacional de Estatística, entre os anos de 1994/95 e 1997/98, coincidindo com a introdução de exames nacionais para a conclusão de ciclo, ter-se-ia verificado uma tendência para um abaixamento dramático da taxa de aprovação nos três anos curriculares do ensino secundário, de 71,9%, 90,2% e 71% para 64,4%, 79,7% e 50,8%, nos 10º, 11º e 12º anos, respectivamente, com a concomitante subida da percentagem de repetentes no ensino secundário, que triplicou em três anos, passando de 8,3% para 24,5% no mesmo período (cf. INE, 2003, p. 77). Dessa forma, os resultados escolares observados entre 1997/98 e 2002/03 na ESSA parecem não se afastar significativamente daqueles que se observam a nível nacional, designadamente quanto aos 10º e 11º anos. Em contrapartida, tal como para o conjunto do país, as taxas de conclusão relativas ao 12º ano são notoriamente mais baixas na ESSA do que em anos curriculares anteriores e esboçam uma tendência para descer, de forma bastante acentuada, registando-se pouco mais de um terço de aprovações em 2000/01 (36,9%, segundo dados do GIASE) e 2002/03 (35,3%, segundo os nossos cálculos, com base em dados fornecidos pela escola). Assim, as taxas de conclusão verificadas pela ESSA nos dois anos com informação disponível em que se verifica uma descida acentuada (2000/01, 2002/03), cifrando-se, respectivamente, nos 36,9% (segundo dados do GIASE) e 41,2% (segundo cálculos nossos, mas adotando a orientação desse organismo) estão abaixo da média registada em todas as cerca de trinta sub-regiões portuguesas, com exceção da Beira Interior Norte, com uma taxa de conclusão no 12º ano de 36,8% em 2000/01.

Algumas questões ficam, assim, por responder: por que é que as taxas de aprovação/conclusão no 12º ano na ESSA descem abruptamente face ao 11º ano, com uma discrepância de quase trinta pontos percentuais em média e variações anuais em torno de 20%, 15%, 29%, 55%? Por que se apresentam aquelas taxas tão exíguas, diminuindo ainda assim, em seis anos, de cerca de metade para pouco mais de um terço dos estudantes matriculados nesse ano curricular? Como se explicará que, contrariamente às mais que fundadas expectativas, não parece verificar-se nesta escola, em todos os anos curriculares, mas com particular acuidade para o 12º ano, a conhecida e vincada correlação entre elevados níveis de escolaridade dos pais e elevados índices de sucesso escolar dos jovens? Não teremos respostas, mas poderemos ensaiar olhar de perto os processos que geram estas e outras interrogações.

As entrevistas exploratórias realizadas traçaram-nos um incerto retrato multifacetado: uma Escola exigente, resistente ao que é percepcionado como tendência para o facilitismo e a desculpabilização, cultora do esforço, do rigor, da responsabilidade individual, que se apresenta preocupada com a educação para a cidadania, como forma de orientar comportamentos e valores, de veicular regras de convivência coletiva e contesta a sua singularidade desviante, reivindicando o estatuto de escola pública para todos4.

Num trabalho recente, argumentávamos que é visível a refundação da instituição educativa como uma escola de geometria variável (maximamente abrangente, democratizando a distribuição de diplomas de elevada escolarização, mas insidiosa e insistentemente estratificante do ponto de vista cultural). Apontávamos como momentos e componentes desse processo quer a manutenção dos traços estruturantes mais típicos e emblemáticos dos processos e conteúdos de escolarização (currículos, pedagogia, avaliação, organização da escola), sublinhada pela criação de vias diversificadas para os contingentes recém-chegados ao processo de prolongamento de escolarização, quer a simultânea universalização de frequência de um dado nível e a institucionalização de exames intencionalmente orientados para filtrar os candidatos aos percursos mais prestigiados e prestigiantes (cf. ANTUNES, 2004).

O primeiro movimento que desenharia a escola de geometria variável funda-se numa história já longa de criação de escolas (ou cursos, ou turmas...) diferentes (por exemplo, as Escolas Profissionais, os Currículos Alternativos, os Cursos de Educação e Formação), gerando um modelo institucional que identificamos como de diversificação hierarquizante, para confortar aqueles que, mais tardia e recentemente chegados aos vários níveis e setores da instituição, acabam frequentemente por ser tratados como beneficiários do direito à educação mal-amados ou apenas tolerados; sugerimos que um segundo movimento recente a sublinhar a escola de geometria variável pode passar pela celebração da escola exigente, entendida esta não como uma instituição que, em seu funcionamento, orientações e padrões de atuação, se rege pela defesa ética e profissional dos direitos humanos, sociais e individuais, dos cidadãos a quem se dirige, em particular do direito a aprender e à educação, mas antes exige deles qualidades, características, condições e padrões que frequentemente se exprimem de diferentes modos entre a população que acolhe.

A escola exigente e a escola diferente esboçariam assim também duas modalidades (e constelações de processos) de escolarização siamesas que dariam corpo à escola de geometria variável. Aquelas podem organizar-se tanto dentro quanto fora de uma organização concreta: aqui podemos encontrar espaços em que funciona a escola diferente, enquanto noutros se estabelece a escola exigente; num mesmo local podemos ter uma rede em que, mais ou menos socialmente polarizadas ou miscigenadas, as escolas desenvolvem graus e matizes diversos de exigência e de diferença em torno dos seus públicos. Entre outras características, e de forma fundamental, se bem que frequentemente trivializada, aqueles espaços sociais que se constituem como escolas diferentes e escolas exigentes distinguem-se entre si pelos seus públicos. Corresponderiam a lugares que concentram dispositivos de gestão das desigualdades (cf. SANTOS, 1995, p. 8-22; MAGALHÃES; STOER, 2000) e materializam a topologia do espaço social que aqueles geram; são também imagens que celebram metaforicamente (e às vezes euforicamente) alguns dos sentidos que revestem esse constante (re)fazer das clivagens sociais, numa instituição em incessante mutação.

Neste texto, queremos ainda sugerir que o processo histórico que conhecemos como de democratização da educação5, apresentando os limites, contradições e irregularidades discutidos e estudados desde há décadas, continua desenhando inesperadas facetas e metamorfoses, hoje relacionadas, por exemplo, como veremos, com pressões sociais e políticas dilemáticas em torno de determinadas versões de excelência acadêmica numa escola para todos. Pode ainda perguntar-se se, nos seus próprios termos, as construções institucionais e as práticas que discutimos constituem cristalizações em processo de lutas culturais dos nossos dias em torno da educação.

2. PERFORMATIVIDADE E DIVERSIDADE: facetas da democratização

Num certo sentido, a ESSA, na sua faceta de escola exigente, traduz uma estratégia possível de ser construída no seio de uma escola para lidar, por um lado, com os desafios da democratização associada à expansão da frequência, e, por outro lado, com as condições impostas pela gestão da diversidade dos alunos, agora num contexto sociopolítico de pressão por resultados. É assim que a performatividade e a diversidade podem ser os termos que condensam as realidades de uma equação cuja articulação vem a desembocar numa construção simbólica e organizacional representada como uma escola exigente. Aqueles configuram-se também como temas polarizadores dos testemunhos colhidos nas entrevistas6. Nas diversas dimensões apreendidas, essa construção testemunha ângulos precisos e particulares de facetas manifestadas hoje pelo processo de democratização da instituição escolar vivido ao longo das últimas três décadas em Portugal.

Esta é a interpretação que propomos para as perspectivas, testemunhos e orientações enunciados pelos catorze inquiridos através de entrevista sobre a Escola Secundária Sarah Afonso (oito docentes, cinco estudantes e uma encarregada de educação)7.

2.1. Uma cultura de performatividade competitiva? Fragmentos...

2.1.1. A experiência dilacerada

A ênfase nos resultados e a pressão por resultados, como medida de "qualidade", instala as escolas numa "nova cultura de performatividade competitiva" que, entre outras consequências, coloca, para algumas instituições, em primeiro plano, a "luta pela sobrevivência (...) no mercado educacional" e, para todas, "o pragmatismo e o autointeresse" como valores-guia das práticas quotidianas e das relações com os alunos, entre os professores, com escolas ou outras entidades (BALL, 2002, p. 8). As "novas organizações performativas" criam as condições para que se desenvolvam cisões, que podem ser profundas, entre o que os professores julgam ser "boas práticas pedagógicas" ou "as necessidades dos estudantes" e a prática docente requerida para responder "aos rigores do desempenho" (BALL, 2002, p. 12). Dessa forma, podem organizar um ensino baseado naquilo que são as aprendizagens avaliadas no exame, abandonando a educação e aprendizagem "improdutivas" em termos dos resultados avaliados, por muito relevantes que se apresentem para a formação dos jovens; este ensino orientado para o exame (GEWIRTZ, 2002) é identificado de forma mais ou menos impressiva ou explícita por professores e alunos, tanto mais que as provas de exame, as publicações nelas baseadas e as indicações em torno da suas preparação e exigências abundam e multiplicam-se numa remissão mútua circular cuja interrupção parece inatingível.

Quer os jovens, quer os docentes testemunham o desenvolvimento de orientações e práticas quotidianas referenciáveis àquela cultura de performatividade competitiva e as tensões aí vividas, ainda que de modos distintos e não-lineares. Assim, os docentes evocam dilemas no desenvolvimento das práticas pedagógicas enquanto os estudantes enunciam contradições e sofrimentos experimentados sobretudo na interação, na integração e na coesão grupal e social e na relação com o seu trabalho. São, em qualquer caso, os constrangimentos, orientações e comportamentos induzidos ou requeridos para responder aos "rigores do desempenho"; os resultados perseguidos - os padrões e as escalas que lhes dão significado, os critérios e os dispositivos que os fabricam - tornam-se um poderoso e multiforme complexo de processos que organizam e deixam marcas no quotidiano da escola vivida por esses sujeitos.

Uma prática docente sitiada entre convicções e resultados

A experiência docente surge, desse modo, recortada por tensões identificadas entre:

Concepções educativas e obstinação pelo desempenho;
Orientações pedagógico-didáticas e produção de resultados;
Convicções profissionais e controle externo8.
Assim, há docentes que registram discrepâncias importantes entre o que consideram serem "as necessidades dos estudantes", a sua missão de educadores no desenvolvimento intelectual e global, no crescimento interior, na formação e na estimulação do potencial de fruição cultural dos jovens e os produtos, exigências e padrões impostos pelos resultados a alcançar como condição de sucesso escolar; é o império cego das notas de múltiplas formas, veementemente ou resignadamente, denunciado como pernicioso por alguns docentes.

Uma experiência estudantil dilacerada entre a solidariedade e a danação

Por sua vez, os estudantes dão conta de uma experiência e uma aprendizagem sociais intensas e marcadas por vezes por grande dramatismo emergente das condições de escolarização com que se confrontam. A cultura (e experiência) de performatividade competitiva encontra nos seus testemunhos uma saliência e uma complexidade inapreensíveis de modos mais distanciados. As cisões, contradições, ambiguidades e conflitos surgem sublinhadas a traço grosso, sobretudo entre:

A cooperação e a concorrência entre colegas;
A convivialidade e o isolamento (por vezes, grupal);
O imperativo do sucesso e o fracasso como danação (o sucesso como obsessão e o fracasso como desespero);
A competição universal e a aniquilação do outro;
O controle externo e a alienação da aprendizagem.
Assim, uma jovem conta quer o ambiente concorrencial, quer a cooperação construídos, ao longo de dois anos de percurso conjunto na turma que frequenta8. Outra estudante contrasta com termos fortes a luta de todos contra todos na turma "de Ciências" que conheceu e o laço de um por todos e todos por um que experimenta na turma "de Artes"9.

Por outro lado, a experiência de certa alienação parece inerente a esta múltipla realidade de aprender progressivamente, ser avaliado periodicamente pelo professor e ter um exame externo final. Curiosamente, esses diversos processos e temporalidades aparecem não só fragmentados como cindidos e mesmo conflituais. O estilhaçamento da experiência de aprendizagem emerge da paradoxal separação entre "a aula", "os testes" e "o exame"10.

2.1.2. O império da nota e o peso do exame final

O império da nota, como princípio maior na orientação das decisões de certo tipo de estudantes e enquanto simulacro dessa cultura de performatividade que elege o desempenho como alvo primeiro dos indivíduos, conduz à produção de estratégias manipulativas face às instituições que se inserem numa estratégia global orientada para alcançar uma formação performativa e garantir um desempenho facilitador em termos de objetivos futuros. Assim, é recorrente, e quantitativamente não negligenciável, o número de estudantes que se matricula na ESSA em busca do que pensam ser "bases para ir para a faculdade", pedindo transferência, em momentos mais ou menos próximos do final de ciclo e do exame final, para escolas, públicas ou privadas, que, respectivamente, "se cortem" menos "a dar notas" (Filipa, estudante) ou onde "as notas para medicina são dadas, são muito altas, basta esforçar-se um bocado" (Florbela, estudante).

Nesse sentido, encontramos nos testemunhos desses jovens a ilustração dos fenômenos e processos enunciados por Beck em torno da individualização das biografias, compreendendo a assunção da vida como projeto reflexivo, o imperativo da decisão de escolha, o planejamento estratégico das decisões (que escola? até quando? que percurso escolher?) e a manipulação das condições sociais de existência, tomando-se o indivíduo como centro daquele planejamento (frequentar a instituição que dá bases, a que dá notas ou combinar as duas em função das metas individuais) (cf. BECK, 1992; GIDDENS, 1997; ANTUNES, 2004, p. 95-101).

Fragmentos dessa cultura de performatividade competitiva perpassam nos testemunhos e são percepcionados por professores e alunos como marcantes, quer nas práticas dos docentes, quer nas atitudes e nos comportamentos dos estudantes. Uns e outros enunciam interpretações dos respectivos comportamentos e relações que dão conta da impregnação da relação pedagógica e do quotidiano escolar por elementos dessa cultura: o império da nota, a obstinação do desempenho, o imperativo dos resultados, a obsessão da competição, a corrosão ética, a degradação da convivialidade, a adulteração da vida são evocados em múltiplos depoimentos.

Uns e outros dão conta do peso do exame final na orientação da aprendizagem dos alunos, nas práticas pedagógicas e no desenvolvimento curricular, em três áreas:

(i) a socialização cognitiva "colocar os meninos, os alunos a redigirem quer respostas de desenvolvimento, quer respostas de opinião" (Joana, docente);

(ii) a socialização comportamental "os alunos vão (...) adquirir uma estratégia, uma maneira de estar e, sobretudo, diminuir um pouco aquela ansiedade, não é, do exame final, o que é que vai ser" (Dora, docente);

(iii) o enquadramento/delimitação pedagógico-didático e curricular "a formação, a preocupação que o aluno tem, deverá ter uma formação global, acaba por ser adulterada pela importância que tem o exame para eles" (Joana, docente).

A cultura de performatividade competitiva identificada, documentada e evidenciada por autores e estudos encontra múltiplos afloramentos e manifestações desigualmente marcantes no estudo que desenvolvemos na ESSA. Ainda, segundo algumas pesquisas desenvolvidas em outros contextos, os professores podem procurar evitar ser responsabilizados por estudantes pouco performativos, desencorajando ou recusando a sua matrícula na escola, reforçando a seletividade da avaliação ou, de qualquer outra forma, favorecendo a sua retirada, por meio da transferência para outra escola ou da anulação de matrícula; podem, ainda, investir menos do que desejariam na elevação do nível do seu ensino, para, assim, liberarem tempo e energia para as outras atividades e resultados exigidos em outras áreas da profissão (gestão, investigação, promoção de iniciativas...). São, assim, produzidas as condições que criam situações em que a experiência docente se aproxima da "esquizofrenia individual" (BALL, 2002, p. 12) pelo esvaziamento de sentido ético e profissional vivenciado na assunção de uma prática profissional que contraria convicções e compromissos pessoais e se desenvolve obedecendo a imperativos de cuja bondade se suspeita ou que abertamente se nega11. Também, por meio dessas e outras práticas, se luta nas instituições pela manutenção ou pela conquista das vantagens competitivas no mercado educacional, procurando fabricar uma versão da escola favorável à apreciação de "audiências externas" (BALL, 2002, p. 18); nessa medida, a imagem de "escola de excelência" é ciosamente alimentada, reforçada e "abrilhantada", não só acomodando e modelando as práticas pedagógicas e de avaliação às exigências dos resultados, como perseguindo, através das formas possíveis, a atração de um público com as propriedades escolares e sociais necessárias à obtenção de elevada performance e a concomitante repulsão, também pelas formas discretamente aceitáveis, de alunos indesejáveis.

2.2. A gestão da diversidade dos públicos escolares

Ora os resultados, porque medidos de um modo tão sumamente grosseiro quanto as classificações dos alunos em exames, ou, ainda mais falacioso, medidos segundo a classificação final das disciplinas, correlacionam-se estreitamente com, e traduzem de uma forma quase linear, a composição sociocultural do público escolar (fato que, mesmo quando referido, se torna irrelevante face àquilo que realmente conta: quem fica melhor colocado na luta concorrencial pelo ensino superior? Quem obtém mais vantagens? A resposta não pode deixar de ser: aqueles que alcançam as classificações mais altas; e estes concentram-se nas escolas privadas e públicas caracteristicamente frequentadas por jovens de famílias com habilitações e rendimentos bem acima da média da população). Para obter essas altas classificações as escolas precisam de garantir que o seu público, em particular os seus candidatos a exame, exiba essas características num número suficiente de indivíduos e se afaste delas no menor número de casos possível. A escola tem de atuar no campo do recrutamento de alunos.

Sob a pressão de resultados são intensificadas as condições para que se multipliquem os mecanismos de fabricação do público escolar de uma escola, bem como da sua categorização segundo atributos escolarmente valorizantes/estigmatizantes e se desenvolvam os processos de consolidação do tratamento seletivo das diferentes categorias fabricadas (cf. GOMES, 1987).

A aceitação de matrículas, a formação das turmas, a elaboração dos horários, a distribuição dos professores, a gestão dos currículos e programas (o ritmo alucinante que implica apoio extraescola, explicações em regra, para poder ser seguido com aprendizagem...), a avaliação são outros tantos domínios em que tem lugar a gestão da diversidade do público escolar.

Por outro lado, é também nesses domínios que a escola pública pode ser cooptada e, nessa medida, colonizada, em benefício de interesses particulares, assumindo, relativamente a algumas facetas, o caráter de espaço privado. Os pais das franjas mais estáveis das classes trabalhadoras e das classes médias desenvolvem "estratégias de 'colonização'" da escola pública, ampliando o alcance da sua voz, por meio da participação em órgãos de administração e gestão da escola (cf. SILVA, 2003; MARTINS, 2003; SÁ, 2004) e procurando garantir "bons ambientes" para os seus filhos em turmas e escolas tendencialmente homogêneas e segregadas, do ponto de vista social e acadêmico (cf. VAN ZANTEN, 2002, p. 299). Esse é um processo de exclusão de caráter dual (WHITTY, 2001): por um lado, pela constituição de ambientes exclusivos, protegidos e academicamente favorecidos "colonizados" por franjas ativas das classes trabalhadoras e médias, por outro lado, pela concentração da população em situação social e escolar difícil ou menos favorável em grupos ou escolas próprias, facilmente isoláveis e estigmatizáveis.

2.2.1. Verdadeiros estudantes e alunos obrigados: percepções e descrições de públicos escolares

Deste conjunto de questões incidentes no tópico da diversidade e heterogeneidade de públicos escolares hoje (e sobretudo desde há cerca de vinte anos, como é claramente testemunhado por vários dos docentes) acolhidos pela instituição, nos falaram os sujeitos entrevistados enunciando perspectivas e concepções, orientações e práticas, percepções, pessoais, individuais e coletivas, que (co-)habitam, organizam e estruturam o (seu) quotidiano e/ou a (sua) experiência escolar.

Os enunciados evidenciam uma grande simplicidade quanto à descrição dos públicos, mesmo tomando em consideração que não foi pedido, em nenhum momento, um desenvolvimento dessa apresentação: são, geralmente, contrastados dois tipos de públicos, usualmente em torno de um ou dois atributos. Dos oito professores entrevistados e dos cerca de vinte enunciados produzidos em torno desse tópico, todas as referências feitas por seis docentes têm as características aduzidas.

Assim, a descrição dos públicos escolares apresenta uma forma dicotômica em torno de categorias que revelam um pólo positivo e outro negativo, sem geralmente sugerir matizes, combinações, elementos híbridos, graus ou posições intermédios (conferir quadro). A compilação de enunciados revela uma apreensão dos públicos escolares que tende a valorizar públicos desejáveis e identifica públicos problemáticos; os jovens são, no entanto, evocados por meio de qualidades fixas, como se imunes à relação e ação pedagógica; ainda que, por vezes, o sentido do problema da educabilidade esteja presente, o olhar em que são fixados os sujeitos impede a, e demite-se da, ação pedagógica, assumindo a perenidade dos obstáculos e, consequentemente, a derrota antecipada. Por outro lado, e não menos importante, a descrição apreende os indivíduos e os públicos em causa por meio de categorias na base das quais dificilmente pode ser concebida e construída uma relação e ação pedagógicas. Os termos utilizados tendem a revelar-se pouco úteis e relevantes, senão mesmo desmobilizadores e incapacitantes para a ação pedagógica. A percepção dos públicos escolares nos termos que nos foram comunicados tende a desvanecer a sua dimensão de sujeitos de aprendizagem, em aprendizagem e em desenvolvimento, dimensão que nos parece matricial quando o contexto de referência e de ação é a escola e os autores do retrato atuam na qualidade de professores. Quando um(a) docente, quando a escola olham para os alunos, em que consiste esse olhar primeiro, básico e essencial em que irão entroncar todos os outros? São as dimensões, as características envolvidas com a aprendizagem que são procuradas? Ou são outras vagas e diversas qualidades?

Os testemunhos recolhidos sublinham o desempenho, o grau de identificação cultural, qualidades morais, comportamentos, características de natureza social (conferir quadro); o campo de ação da pedagogia surge relativamente minimizado, sobretudo no que toca às categorias olhadas como mais problemáticas do ponto de vista escolar. Para a pedagogia, parece restar um duplo papel de confirmação das qualidades e valor escolar dos públicos e, consequentemente, de relativa impotência face àqueles que se revelam em dificuldades do ponto de vista escolar.

O quadro traçado sobre os alunos suscita perplexidade em dois sentidos: por um lado, reduz de forma acentuada e incompreensível a diversidade social, cultural e humana da população que hoje a escola acolhe, desenhando um universo irreconhecível de alunos que querem ser engenheiros e alunos que querem ser cabeleireiros, verdadeiros estudantes e alunos obrigados; por outro lado, exclui e oculta, no discurso que comunica e reflete, a complexidade da realidade da escola e da prática profissional e pedagógica dos docentes, já que estas estão bem longe de se organizar e construir em sintonia com uma realidade constituída por aquelas estranhas dicotomias, assumindo antes formas, modalidades e cambiantes complexas e incertas face à heterogeneidade que modela a interação pedagógica. Da constituição das situações referidas não estarão ausentes os processos vivenciais, formativos e sociais que conduzem à mobilização de relações e práticas pedagógicas e profissionais envolvidas com o daltonismo cultural e o perfil de professor monocultural (STOER; CORTESÃO, 1999). A questão que fica é: o que significa a aparente dificuldade desses docentes em perceber e falar da diversidade dos seus alunos (e das suas práticas pedagógicas) e, sobretudo, de apreender e traduzir a primeira por meio de categorias úteis e pertinentes para a ação e relação pedagógicas e profissionais?

Perrenoud, um dos autores que tem estudado longa e aprofundadamente os processos sociais envolvidos na relação do sistema educativo com as diferenças entre a população discente, afirma que

Em cada classe, existe uma parcela significativa de diferenciação selvagem, da qual os professores têm uma vaga consciência e a qual não dominam. Ela nasce da pressão da situação, da urgência, das solicitações, das personalidades e das culturas em jogo, do fato de que, em nenhuma interacção social, pode-se tratar os interlocutores exactamente da mesma maneira. (...) A diferenciação involuntária pode ter todo o tipo de efeitos em relação ao fracasso escolar. Por vezes, espontânea e intuitivamente, o professor interessa-se pelos alunos que mais precisam dele, mesmo que não solicitem a sua ajuda. Outras vezes, a diferenciação selvagem tende a aumentar as variações. (PERRENOUD, 2000, p. 26, grifos no original)

A sugestão que é feita é que, sendo as interações e práticas pedagógicas diferenciadas, esta diferenciação é geralmente espontânea, impensada, incontrolada e não-refletida, o mesmo sucedendo com a percepção e a categorização dos públicos escolares e das características (e metamorfoses) que oferecem e fundam aquelas. Talvez esta constitua uma explicação plausível, ainda que parcial, das inesperadas vagueza e simplicidade das percepções e descrições dos públicos escolares apresentadas nos testemunhos recolhidos junto dos docentes entrevistados na ESSA.

Evocando outro ponto de vista e numa tentativa para levar mais longe a compreensão das possíveis fundamentos e implicações da percepção da diversidade dos públicos escolares pelos docentes, é igualmente estimulante confrontar o quadro obtido nos testemunhos recolhidos com análises que lançam ângulos de luz inesperados sobre o modo como conhecemos a realidade. Dessa forma,

As operações de classificação que, nesse ponto do cursus escolar, são operações de cooptação, investidas de uma função análoga àquela que incumbe às estratégias de sucessão em outros universos, são, sem dúvida, o lugar privilegiado onde se revelam os princípios organizadores do sistema de ensino no seu conjunto, quer dizer, não somente os procedimentos de selecção dos quais as propriedades do corpo professoral são, entre outras coisas, o produto, mas também a hierarquia verdadeira das propriedades a reproduzir; portanto, as "escolhas" fundamentais do sistema reproduzido. (...) as formas escolares de classificação (...) são transmitidas, em essência, na e pela prática, fora de toda a intenção propriamente pedagógica. (BOURDIEU; SAINT-MARTIN, 1998, p. 188)

A esta luz, é possível encarar as categorias produzidas e enunciadas pelos docentes em relação aos públicos escolares como detendo um significado que não se esgota nessa descuidada espontaneidade e aparente quase-negligência em relação a um conhecimento mais fino e aprofundado dos mesmos, mas antes como resultado de (quase?) sistemas práticos de classificação que teriam como efeito exatamente realçar, de modo mais ou menos explícito ou eufemizado, certas características e os seus portadores, desconhecendo aquelas face às quais o sistema de ensino tende a cultivar uma cegueira obstinada. Por exemplo, o que significa ser disponível ou ser fechado, não saber estar na escola, uma turma amorfa: exprimem tais categorias "'escolhas' fundamentais" do ensino secundário? Se sim, em que sentidos?

2.2.2. Os que vêm juntos devem ficar juntos?

A diversidade dos públicos escolares exprime-se de múltiplas formas nas interações e na vida quotidianas das salas de aula e das escolas: marca, irrompe, é ignorada, reconhecida, tratada e organizada explícita ou obscuramente, constituindo aí uma incontornável presença. Os testemunhos recolhidos junto de professores e estudantes da Escola Secundária Sarah Afonso dão-nos conta de algumas das formas pelas quais esses processos são desenvolvidos, com particular saliência no que toca a formação das turmas; esta parece ser uma área decisiva no processo de gestão da diversidade dos públicos no contexto da escola, já que se trata de constituir o agrupamento-base do processo de aprendizagem, da relação pedagógica e da vida quotidiana de alunos e professores; na atual organização do processo de escolarização, a turma constitui um grupo tendencialmente fixo ao longo de um ano curricular e a unidade na base da qual são organizados (isto é, distribuídos) outros recursos: humanos (professores), físicos (tempos-horários e espaços), simbólicos e culturais (conhecimentos, sob a forma de disciplinas, projetos...). A formação de turmas parece, assim, obedecer a um conjunto de critérios/princípios e orientações (cf. MATEUS, 2002) cuja diversidade não diminui a prevalência da lógica que anima boa parte desses parâmetros: a criação de grupos e ambientes de aprendizagem tão homogêneos quanto possível, juntando o que é semelhante ou próximo e separando o que é diferente. Essa lógica exprime-se ou desenvolve-se por meio de processos diferenciados e com resultados também distintos: assim, no ensino secundário, as turmas são formadas com base nas opções dos estudantes pelos vários agrupamentos, cursos e disciplinas específicas, produzindo grupos com perfis sociais e acadêmicos mais ou menos próximos ou heterogêneos (intra e interturmas) conforme a natureza da opção, o número de turmas formado com o mesmo plano curricular (a homogeneidade interna das turmas tende a elevar-se em função do número de turmas), a relação vagas/candidatos, etc.; se a margem de ação da escola se inscreve neste quadro curricular, há opções aí tomadas, mais visíveis nos agrupamentos mais numerosos.

É, ao que parece, ao nível do ensino básico que mais vincadamente as escolhas feitas pelas escolas e a lógica enunciada (juntar os semelhantes e separar os diferentes) se consolidam por meio de dois princípios: o equilíbrio e a continuidade dos grupos de aprendizagem13.

Se, indiscutivelmente, um e outro critérios baseiam orientações defensáveis e legítimas, menos fundado parece ser que sejam por regra tomados como absolutos e incontornáveis em lugar de serem combinados com outros, capazes de esbater e contrariar as consequências reconhecida e intensamente discriminatórias que resultam da sua aplicação em exclusividade. Na verdade, é já prática em algumas poucas escolas a formação de turmas combinando grupos com origens (institucionais, geográficas, sociais...) diferentes, salvaguardando a permanência de um conjunto de relações estáveis já existentes entre os alunos, sem favorecer as tendências homogeneizantes e segregadoras atualmente dominantes. De igual modo - ainda que se admita que, no contexto das atuais formas de organização da escolarização, distâncias etárias muito vincadas possam ser vividas de modos negativos e ter efeitos a evitar para as crianças e jovens envolvidos -, será muito discutível o abandono dessa orientação, dentro de limites etários mais ou menos próximos, optando pelo procedimento alternativo que consiste em concentrar os alunos mais velhos em algumas turmas, excluindo-os absolutamente de outras geralmente escolhidas. Essa é a questão, aliás colocada por docentes quando referem o caso dos repetentes como uma situação em que a opção mais frequente quanto à organização dos grupos na escola não dá resposta à situação e cria muitos outros problemas; na verdade, o caso dos repetentes pode ser visto como um analisador crítico elucidativo da complexidade das situações e das escolhas mais frequentes e dos seus resultados, que, desta vez, falham gritantemente, tornando claras as lógicas e as consequências de opções que, em outras situações, permanecem mais discretas. É exatamente esse excesso de visibilidade e amplitude de consequências que é identificado e salientado pela docente sob a forma do dilema enunciado ("Isto é um pau de dois bicos, não é?" Ana, docente). Daí que se verifique a oscilação e o ensaio de cursos de ação segundo princípios e lógicas divergentes: a combinação ou a separação de situações e características em grupos de aprendizagem plurais versus homogêneos14.

A organização e a gestão das turmas e da integração dos indivíduos e dos coletivos são objeto de cuidados, reflexões, debates e decisões em que os docentes procuram interpretar, compatibilizar e combinar interesses, perspectivas, princípios e lógicas, emanando de condições, orientações e finalidades distintas e/ou perfilhadas por membros de instituições ou culturas diversas15.

O interesse de um coletivo, a vontade ou a indicação de um pai, o desejo ou a procura do bem-estar de um jovem constituem uma miríade de situações singulares, objeto de procedimentos formais e informais em que se procura ajustar e efetuar acertos, frequentemente mobilizando o conhecimento, o cuidado, a experiência e a atenção inerentes ao exercício de um trabalho (quase artesanal) cujos saberes e competências dificilmente acedem à enunciação e à transmissão verbais ou à formalização conceptual. Assim, se os princípios e orientações produzidos e convocados para gerir a diversidade dos públicos na área da formação das turmas parecem ativar uma lógica prevalecente de homogeneidade intragrupos/discrepância ou distância intergrupos, sugerindo como palavras-chave pureza e fronteira entre grupos, fica também claro que aquela lógica se consubstancia num contexto em que são mobilizados múltiplos critérios e orientações que atuam com intensidades diversas em situações também elas diferenciadas.

2.2.3. Tensões e ambiguidades

De resto, o tópico relativo à distribuição de recursos fundamentais (docentes, tempos e espaços) no interior da escola proporciona testemunhos em que novamente nos encontramos com a miscelânea, a combinação, a complexidade e a incerteza dos princípios e das orientações adotados que sustentam, de modos contraditórios, a coexistência de diversas lógicas, com prevalência ou não de uma ou algumas delas.

Nessa área, é evocado um amplo leque de princípios e orientações cuja mobilização depende das situações, das conjunturas, dos atores e suas relações, evidenciando a multiplicidade e a conflitualidade de lógicas, interesses e valores inscritos nos contextos, a complexidade dos conhecimentos e das exigências requeridas. Segundo os entrevistados, aqueles critérios envolvidos na gestão de recursos humanos na ESSA incluem: a rotatividade ou a especialização (entre básico e secundário), a continuidade pedagógica (de docência à turma ao longo de um ciclo) ou a especialização (dos docentes em determinados anos curriculares, programas, áreas), a posição hierárquica ou o perfil profissional16.

Nesse contexto, parece delinear-se uma compatibilização ou combinação tensas conforme as situações entre uma lógica de reconhecimento e dominância da hierarquia profissional que prevalece na adoção do princípio da escolha e preferência individuais dos docentes como base para a distribuição das turmas ou dos níveis (básico/ secundário) e uma outra lógica, de natureza pedagógica, que assume a continuidade da docência ao longo de um ciclo como princípio primeiro ou o perfil pessoal e profissional dos docentes como fundamento para a atribuição de responsabilidades.

Do mesmo modo, os testemunhos dão conta da coexistência de situações de contornos distintos em que se assiste à compatibilização ou à combinação de uma lógica de continuidade pedagógica ao longo do ciclo com uma outra que favorece a especialização dos docentes em determinados programas ou áreas ou ainda à prevalência desta segunda. Se a continuidade da docência às mesmas turmas ao longo do ciclo pode prevalecer no ensino básico, a potenciação da competência técnico-científica decorrente da especialização afigura-se como obtendo importância acrescida, senão dominante, no ensino secundário; a combinação ou compromissos diversos entre as duas lógicas podem também ter lugar. A distribuição de recursos face à diversidade dos públicos pode, assim, assumir, nesta escola, equações e configurações diversas. De entre estas, não se encontra excluída, face à informação recolhida, a possibilidade de ocorrência das conhecidas situações de favorecimento dos mais favorecidos (BOURDIEU, 1998) resultantes da escolha pelos professores situados em posições hierárquicas superiores, tendencialmente aqueles já estabilizados na escola, os mais experientes, os mais reconhecidos pelos estudantes, das turmas constituídas por estudantes com desempenho acadêmico mais elevado e perfil sociocultural mais promissor ao nível da gratificação profissional e realização intelectual dos docentes; são também reportadas pelos docentes entrevistados orientações que vão no sentido de garantir que situações mais desafiantes e complexas para professores e estudantes, como aquelas inerentes à implementação de alterações curriculares em curso há alguns anos, são assumidas pelos "docentes da casa", potenciando os benefícios decorrentes da estabilidade, da experiência, da competência profissionais, bem como da formação de equipes docentes tendencialmente mais sólidas com base em laços de interconhecimento, interajuda, cooperação, apoio e trabalho coletivos. Desse modo, se não dispomos de dados sustentavelmente conclusivos quanto à definição precisa do quadro de princípios, práticas e lógicas dominantes, de forma a identificar a tipologia de situações assim geradas, quanto à gestão de recursos fundamentais na ESSA face à diversidade dos públicos, julgamos, no entanto, poder afirmar que o traço mais marcante neste domínio é a existência de tensões e compromissos, e também ambiguidades, frequentes entre princípios e lógicas que ordenam os cursos de ação; nesse contexto, os desafios colocados pela diversidade dos públicos escolares constituem um tópico face ao qual não nos foi reportada qualquer política de gestão de recursos humanos explícita.

3. RETRATOS COMPÓSITOS: UMA ESCOLA EXIGENTE DIVIDIDA FACE À EXCELÊNCIA

Face ao atual ambiente de escrutínio, publicitação e espetacularização compulsivos em relação às escolas (NÓVOA, 2005) - numa perversa versão proporcionada pela busca de legitimação do sistema educativo e dos governos que o tutelam, pelos poderes políticos -, as escolas devem, agora, também canalizar recursos para cultivar a sua imagem exterior; nesse sentido, também a imagem que do seu interior constroem os seus membros tende a ser reordenada. Os nossos entrevistados produziram depoimentos em que uma narrativa e um retrato da ESSA são, a múltiplos e vagos traços, percorridos. Os tópicos escola exigente e escola de excelência são glosados de forma discordante e surgem desfiados em variados tons e sentidos. Se algumas convergências podem ser descortinadas entre as versões dos sujeitos, temos diante de nós variações assíncronas sobre temas e objetos, em suma, o que poderíamos hipoteticamente considerar como um tópico identitário17 variável em torno de um modelo compósito: uma escola exigente dividida quanto à sua excelência.

3.1. Um guião identitário: uma escola exigente

O tópico escola exigente surgiu, como antes se anotou, associado à ESSA pela voz de um dos seus porta-vozes oficiais, a Presidente do Conselho Executivo; apareceu ainda espontaneamente reiterado pelos primeiros estudantes inquiridos. Convidados a discorrer perante essa imagem, outros dos entrevistados acentuam distintos aspectos que, do seu ponto de vista, fundam a justiça e a justeza da identificação da ESSA com o atributo exigente. Encontramos quatro principais sentidos para esse guião identitário; em três desses significados é vincada a ideia de uma instituição em que vigoram elevados padrões de referência destinados a ordenar: (i) a avaliação do desempenho dos estudantes; (ii) os modelos e normas disciplinares e de regulação da vida coletiva; (iii) o contributo da instituição para a vida social; uma outra interpretação para essa visão da escola considera-a infundada, fictícia e baseada em aspirações e obsessões equivocadas e irrealistas, por parte de alguns alunos e encarregados de educação, em torno dos padrões e classificações escolares.

3.1.1. A avaliação do desempenho dos estudantes

Um conjunto de sujeitos associa o epíteto escola exigente, assumindo a sua justeza ou trivializando tal consideração, a certa raridade e dificuldade de atribuição de classificações elevadas por parte dos professores. Há estudantes que afirmam então a sua perplexidade e incompreensão e docentes que frisam o caráter controverso, interessado, vago e relativo de tais apreciações18.

A identificação da ESSA como escola exigente, não sendo unânime, é, no entanto, frequente e facilmente reconhecida por docentes e estudantes entrevistados. Os sentidos dessa atribuição passam pela definição interna do que são considerados elevados padrões de referência, no que toca ao perfil acadêmico e ao desempenho dos estudantes, eventualmente inacessíveis a alguns dos seus membros ou aspirantes a tal19.

Reencontramos nesses testemunhos a ideia de que de múltiplas formas a escola pode contornar a responsabilização pelos estudantes pouco performativos (face a padrões interna e/ou externamente estabelecidos): estes acabam por abandonar a ESSA ou ser reprovados, elevando assim os níveis conhecidos de desempenho dos alunos da escola, quando medidos pelos resultados em exames nacionais. Nesse sentido, ser uma escola exigente pode significar a tendência para uma certa exclusividade quanto ao perfil acadêmico necessário para corresponder aos requisitos que garantem um posicionamento como estudante bem-sucedido, sobretudo nos escalões das classificações mais elevadas, isto é, a percepção e/ou a ocorrência de que tal colocação será inacessível para muitos daqueles que frequentam ou desejariam frequentar a escola; terá, portanto, o sentido de uma seleção apurada e restritiva dos méritos e desempenhos acadêmicos dos alunos.

3.1.2. A educação para a cidadania e a construção da ordem interna

Uma outra vertente da identificação da ESSA como uma escola exigente é aquela que remete para o domínio da construção da ordem interna; alguns entrevistados referem o fato de se tratar de uma instituição caracterizada pela estabilidade, disciplina e sentido de autoridade. São sublinhados, sobretudo, os fatos de as regras, normas e modelos de comportamento serem claras e efetivas, quer para os docentes no exercício da profissão, quer para os estudantes, na convivência institucional quotidiana. A estabilidade, a clareza e a segurança proporcionadas por uma ordem interna assim definida são ainda reforçadas e simbolicamente ampliadas pela assunção da educação cívica como uma missão primordial da escola e dos seus profissionais. Os testemunhos de docentes frisam a convicção de que esse domínio de ação, designado também como educação para a cidadania, e que se prende com a socialização para as normas e padrões de comportamento adequados em diversas situações e contextos da vida coletiva, se constitui como uma componente importante da percepção interna e externa da ESSA como uma escola exigente; encontramos, assim, interpretações e realizações locais da dimensão socializadora da instituição como parte da sua identidade20.

3.1.3. A guardiã do princípio meritocrático

Há, ainda, por parte de algumas docentes, a convicção de que a ESSA é exigente para corresponder àquilo que a sociedade espera dela na formação de elites (intelectuais, profissionais), isto é, a produção e a certificação da excelência, averiguando rigorosamente se aqueles que aspiram ascender às mais elevadas posições sociais dão provas da excelência que justifica e legitima tal privilégio ("É preciso mostrar que se é alguém. Verdadeiramente."). Ser exigente detém agora o sentido de assunção convicta, por parte da instituição, e, segundo os docentes entrevistados, da função avalizadora (e, portanto, legitimatória) das elites meritocráticas; isto é, na perspectiva desses inquiridos, a escola revê-se como guardiã do princípio (e da ideologia, pode acrescentar-se) meritocrático suscetível de legitimar as elites numa sociedade constituída e organizada de acordo com as regras e os valores da democracia representativa 21.

Por outro lado, é o dissenso relativamente às normas e hierarquias de excelência que encontramos vincadamente presente entre os professores entrevistados, quando se trata de práticas educativas desenvolvidas na escola22. Entre os docentes que consideram inadequado, porque irrelevante, falar da ESSA como escola de excelência, uns afirmam que um tal julgamento releva de um mito, outros de uma coincidência. Alguns, no entanto, identificam-se fortemente com a ideia de que a ESSA é uma escola de excelência, ainda que em sentidos distintos: com base na qualidade superlativa das práticas que aí se desenvolvem ou, num peculiar sentido, a excelência é a competitividade, revelando-se no superior posicionamento alcançado face ao exterior.

4. FACETAS DE DEMOCRATIZAÇÃO: uma escola exigente

4.1. Uma escola exigente: performatividade e diversidade em equação

Relendo, agora, os testemunhos dos inquiridos à luz da tipologia de culturas de ensino-aprendizagem (cf. MAGALHÃES; STOER, 2002, p. 47-62), voltamos a encontrar um quadro bifacetado: (i) por um lado, a cultura de performatividade competitiva (BALL, 2002, p. 8) parece percorrer e encontrar-se bem estabelecida na ordenação do quotidiano escolar; (ii) por outro lado, a atenção a necessidades de estudantes; a prossecução de objetivos de formação e desenvolvimento intelectuais, morais e cívicos dos jovens; o envolvimento persistente na criação de laços de apoio e afeto emocional e de solidariedade e convívio, por parte dos jovens e dos professores; a resistência, ou a dúvida prudente, face a modelos impostos de normas de excelência e das hierarquias inerentes sugerem que a abordagem à pedagogia centrada no sujeito (MAGALHÃES; STOER, 2002) deixa também a sua marca nos cotidianos e nas relações pedagógicas vividos nesta escola.

Sugerimos, assim, que a leitura dos testemunhos recolhidos permite delinear facetas do processo e da obra de democratização do sistema educativo e da instituição escolar em Portugal, designadamente ao longo dos últimos trinta anos. Nesse sentido, propomos que o tópico escola exigente pode ser interpretado como um guião identitário, isto é, como uma construção simbólica e organizacional que resulta da negociação daquele processo de democratização no contexto das condições confrontadas por esta escola específica (os públicos que a procuram e frequentam; os docentes que atrai e nela se fixam; a oferta curricular que constrói e logra fixar; a pressão social e política por resultados...). Nessa medida, aquela construção identitária pode ainda ser vista como uma resposta situada, concreta e particular à equação colocada pelos desafios simultâneos da prossecução da excelência acadêmica numa escola para todos.

Os testemunhos dos inquiridos revelam orientações, práticas, experiências e interpretações dificilmente unificáveis. Secundando a narrativa solar, clara e linear de uma escola exigente, desenrola-se ainda um novelo de estórias inacabadas. A identificação da ESSA como uma escola exigente sublinha estritos padrões de referência destinados a ordenar: (i) a avaliação do desempenho dos estudantes; (ii) os modelos e normas disciplinares e de regulação da vida coletiva; (iii) o contributo da instituição para a vida social. Nesse contexto, sobressaem: (i) a menção a uma certa exclusividade e à seleção apurada dos méritos e desempenhos acadêmicos dos alunos; (ii) a ênfase numa ordem interna baseada na disciplina, no sentido de autoridade e na dimensão socializadora da instituição entendida como educação cívica reguladora da convivência coletiva; e (iii) a assunção de uma missão de guardiã dos princípios meritocráticos fundadores da constituição de elites assim legitimadas.

Por outro lado, o atual contexto político-educativo, que alguns autores consideram caracterizado por uma cultura de performatividade competitiva, traduz-se em experiências de docentes e estudantes em que avultam dilemas e tensões, acompanhados de perplexidades, paradoxos e ambiguidades; os relatos sobre as orientações e práticas face à diversidade dos públicos que a ESSA acolhe sugere-o de modo igualmente vivo. Dessa forma, o quadro traçado a partir desse ângulo de visão fica já distante da clareza com que o perfil de escola exigente se apresenta.

Assim, este guião identitário de escola exigente está associado a uma gestão da diversidade dos públicos escolares que apreendemos segundo dois filamentos:

(i) por um lado, a mútua exterioridade entre a percepção dos alunos e a relação pedagógica, ou o divórcio entre o quadro da ação pedagógica e a descrição, por parte dos docentes, dos públicos que a escola acolhe; isto é, os alunos são percebidos e descritos por categorias que aparecem como seus atributos e que se revelam escassamente relevantes quando encarados do ponto de vista da ação e da relação pedagógicas, que constituem o quadro em que ocorre o encontro entre os jovens e os docentes23;

(ii) por outro lado, a ausência de uma política explícita face à diversidade dos públicos escolares sustenta lógicas e princípios de organização interna, no que toca ao agrupamento dos alunos e à distribuição de recursos humanos, que enunciam a procura da homogeneidade possível intraturmas, associada geralmente à distância ou discrepância interturmas, num contexto em que podem ser mobilizados múltiplos critérios e orientações.

Assim, o modo como é olhada, lida, categorizada e organizada a diversidade de públicos acolhidos nessa escola deixa-nos antever uma faceta complementar da adesão ao guião da escola exigente: face a uma diferenciação pedagógica predominantemente espontânea e não planejada, as "escolhas" fundamentais do ensino secundário podem alinhar-se, num contexto em que, na população escolar, são dominantes as classes médias, pelo cultivo de altos padrões de desempenho e de disciplina e ordem interna, resguardando ainda a missão de guardiã dos princípios meritocráticos por meio de uma exigência seletiva que, de múltiplas formas (reprovação, transferência, anulação de matrícula, desencorajamento da matrícula), afasta e tende a desresponsabilizar a escola por estudantes que se revelem pouco performativos nos termos e segundo os padrões estabelecidos. Nesse contexto e conjuntura, o tópico escola exigente enuncia então "escolhas" fundamentais para o ensino secundário, compagináveis com a exigência seletiva que distingue o sucesso dos mais performativos, silenciando o sacrifício dos estudantes academicamente mais frágeis. Que parte da explicação para os modestos resultados, traduzidos nas medianas taxas de transição nos 10º e 11º anos e nos elevados níveis de reprovação verificados no 12º ano nesta escola (sobretudo se pensarmos no contraste entre a composição do seu público e a população portuguesa), radicará nestas "escolhas"?

A questão que desponta é: o guião de escola exigente é um mosaico que combina práticas e orientações de organização e funcionamento e abordagens à pedagogia congruentes com: (i) opções, profissionais e pedagógicas, coletivas e individuais dos docentes face à educação dos seus alunos e (ii) escolhas das famílias das classes médias para a educação dos seus filhos? Nesse sentido, aquele guião expressa, nos seus termos próprios, lutas e disputas sobre a educação no Portugal de hoje?

NOTAS

1 Este texto apresenta uma parte da discussão realizada num capítulo relativo ao estudo que desenvolvi integrado num projeto de pesquisa, Excelência Académica e Escola Para Todos? EXACET?, coordenado pelos Professores Luiza Cortesão e Steve Stoer e financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, entre 2003 e 2006, e que é apresentado no relatório agora em publicação em Portugal. Quero manifestar o meu reconhecimento pela cooperação de todos na ESSA, com destaque para a professora Clementina Silva, sem a qual este estudo não teria sido possível. Agradeço ainda a oportunidade rara de beneficiar da relevante discussão e dos pertinentes comentários e sugestões dos dois avaliadores anônimos da Educação em Revista.

2 O ensino não-superior em Portugal inclui os seguintes níveis e subsetores: Educação Pré-Escolar (abrange crianças dos 3 a 5/6 anos); Ensino Básico, obrigatório, com duração de nove anos (1º ciclo de quatro anos, tendo como referência a faixa etária dos 5 aos 9/10 anos; 2º ciclo, 5º e 6º anos, abrange o intervalo dos 9 aos 11/12 anos; 3º ciclo, 7º, 8º e 9º anos, destinado à classe etária dos 11 aos 14/15 anos), Ensino Secundário (ciclo de 3 anos, 10º, 11º, 12º, tendo como referência a faixa etária dos 15 aos 18 anos). A chamada rede escolar passou por múltiplas alterações desde os anos 1970, com particular intensidade para os anos noventa, em que foi institucionalizada a escolaridade básica e obrigatória de nove anos e se difundiu a tipologia de Escolas Básicas com 2º e 3º ciclos, EB 2,3, a par de Escolas Secundárias (10º, 11º e 12º anos de escolaridade) e Escolas Secundárias com 3º ciclo; hoje, a tipologia de escolas e a rede escolar continuam a sofrer mudanças assinaláveis. Embora a ESSA seja uma escola secundária com 3º ciclo, acolhendo, portanto, jovens que frequentam desde o 7º ao 12º anos de escolaridade do sistema de ensino português, este estudo incide sobre o ensino secundário (10º, 11º e 12º anos curriculares), pelo que, se nada for dito em contrário, os dados e análises avançados terão por referência aquele ciclo de ensino.

3 Este valor refere a percentagem de alunos que transitaram/concluíram determinado ano curricular em relação ao número de alunos inscritos no mesmo; este valor é diferente daquele que, sob a designação de taxa de conclusão/transição, é calculado pelo GIASE (Gabinete de Informação e Avaliação do Sistema Educativo), considerando os inscritos no final do ano e, portanto, excluindo os alunos transferidos, que anularam a matrícula e foram excluídos por faltas. Neste trabalho, como se pode observar, as percentagens de transição/conclusão são por nós calculadas com base no total de alunos inscritos no início do ano. Quando usamos os valores do GIASE, utilizamos também a terminologia adotada por esse organismo.

4 Para uma discussão mais detalhada destes dados, consultar o capítulo em que apresentamos este estudo no já referido relatório de investigação em publicação em Portugal (CORTESÃO et al., 2006).

5 Assume-se aqui, sem discutir mais, um conteúdo elementar para o conceito de democratização enquanto incorporação de novas categorias sociais à instituição escolar por ação de políticas (sociais) igualitárias que, de alguma forma, afirmaram o direito à educação como direito humano e social básico. Temos consciência de que este debate tem profundidades e meandros muito mais vastos que não aproximamos sequer neste trabalho.

6 A pesquisa empírica realizou-se entre 2003 e 2005 e assentou na recolha de informação através das seguintes fontes e técnicas:
A. Informação estatística recolhida pela escola e dados estatísticos publicados pelo Ministério da Educação.
B. Um conjunto de dezessete (3+14) entrevistas semiestruturadas a docentes, estudantes e uma encarregada de educação. Não se pretendeu construir qualquer amostra, nem basear o estudo na representatividade estatística dos inquiridos, mas antes aceder a informantes que, na sua diversidade, conjugassem atributos importantes dos atores da escola, em termos de: duração do vínculo àquela escola específica; disciplinas e áreas de docência; fileiras e cursos lecionados; gênero, para os docentes; fileiras, cursos, anos curriculares frequentados e gênero, para os estudantes.
C. Análise documental de: Projecto Educativo de Escola, Plano de Actividades 2002/2003 e 2003/2004; Regulamento Interno da Escola.
Foram ainda observadas, de forma não-participada e objeto de notas de trabalho de campo, seis reuniões de diversos órgãos da escola. As entrevistas foram integralmente transcritas, constituindo um corpus de mais de 250 páginas, percorrendo os procedimentos necessários ao tratamento de dados segundo a técnica de análise de conteúdo.

7 Assim, na análise do conteúdo das entrevistas, o tema da performatividade agrega os enunciados cujo sentido se organiza em torno da noção de desempenho (performance); o tema da (percepção, valorização, gestão da...) diversidade agrega os enunciados que tomam como referência organizadora de sentido a heterogeneidade (as diferenças individuais e grupais/coletivas entre categorias) dos públicos.

8 "Porque, como eu já lhe disse, eu...os exames têm sempre um papel um bocadinho dúbio, não é, eles ...hum...alteram um pouquinho, bastante até o sentido que deve ter o ensino secundário a formação, a preocupação que o aluno tem, deverá ter de uma formação global, acaba por ser adulterada pela importância que tem o exame p'ra eles, portanto a importância que tem aquela nota para entrar na faculdade (...) portanto esse espírito do trabalho de investigação, de.. de desenvolvimento intelectual não da tal memorização mas sim de uma ... dos desafios que o aluno se coloca a ele próprio e para os quais precisa de tempo. Isso irá ficar relegado para segundo plano (...) Portanto, realmente (...) com determinados alunos nota-se muito muita resistência relativamente a...desenvolver competências que não são testadas em exame, que é isso que nós estamos a falar. Alguns dizem: "olhe, eu só quero saber o que vou precisar para o exame". E eu tenho que lhes dar muito mais do que isso porque p'ra mim a aprendizagem de uma língua ou o ensino de uma língua, na minha perspectiva, é muito mais do que prepará-los para fazer um exame" (Joana, docente). "É uma pergunta que eu aliás me ponho a mim mesma, porque cada vez mais isso é verdade: 'porque é que eu me vou estar a preocupar com a oralidade, sobretudo neste ano, se não consigo em dois anos que eles aprendessem (...) e se continuam a fazer erros na oralidade...se eles vão ser avaliados apenas pela escrita?' Se eu vou estar de alguma forma a prejudicá-los, apesar do peso grande, que eu acho que devia ser o peso principal, não é? A oralidade...Eles dizem: a língua deve ser ensinada numa perspectiva comunicacional?. Ora a comunicação é...predominantemente oral, não é? Pelo menos, quantos daqueles alunos que não forem para a área (...) vão precisar de escrever (...) alguma vez na vida? Bom, portanto, devo dizer que eu me questiono...(...) E eu penso que, pronto, no 12º ano, em línguas, é capaz de ser fatal (...) ...pois eles vão ser avaliados pela escrita! Quem sou eu, não sou mais papista que o Papa" (Elena, docente).

9 "há muita competição a nível de notas, querem sempre tirar mais e melhores, não ajudam, não há ajuda mútua (...) Mas na minha turma até nem é, das que conheço, que seja muito assim. Por acaso é uma turma que se ajuda muito. (...) Tenho uma impressão do 12º que para entrar na faculdade e alguns que vão para a [universidade] privada porque não têm notas para entrar na [universidade] pública e outros que querem tirar melhores notas para conseguir entrar" (Diana, estudante).

10 "[Em Ciências] Juntavam-se todos dentro de um grupo, tiravam 18, 19 dentro de um grupo pondo-nos de parte, como estavam todos juntos começou-se a formar outro grupo, juntaram-se todos e começavam a estudar e formou-se esse grupo. Os outros diziam mal deles porque tiravam más notas, depois eram as dúvidas das aulas, um fazia uma pergunta o outro começava a mandar vir a dizer que o professor já explicou e que ele já está farto de ouvir a mesma coisa... (...) Por exemplo quando aqueles, mas é incrível, quando aqueles alunos que tiram más notas e os que são bons tiram por exemplo, imagine que tiram 18 no teste e depois vai tirar um 14 ou um 13, eles ficam todos contentes porque... e às vezes até tiram melhor nota e chegam com o teste: 'olha, estás a ver, tirei melhor nota do que tu não te armes em esperto' (...) nós [em Artes] somos todos um grupo e defendemos todos uns aos outros por isso é que estamos sempre a falar, se um manda vir, o outro também manda vir e defendemo-nos todos uns aos outros, é por isso que os professores começam a complicar" (Florbela, estudante). A mesma jovem, Florbela, num testemunho que outros relatos corroboram, pinta em cores vivas o modo como os jovens vivem a obsessão pelo sucesso de topo da escala das classificações e o desespero que invade aqueles que se veem derrotados nesse campeonato implacável. O imperativo do sucesso individual nos termos definidos para a competição vive-se como uma norma absoluta e essencial em face da qual a salvação e a danação estão reservadas aos escolhidos e merecedores. Por isso, a assunção de uma e outra condição são tão profundas e definitivas. Vencedores e vencidos são o nome e o destino dos que, pelas notas, se salvam ou condenam. Por isso também a humilhação pública do outro e a arrogância do vencedor completam a celebração extremada dessa liturgia de competição e vitória. Florbela assume sem disfarces as agruras deste mundo que herdou, mas resiste e quer, assim mesmo, construir um modo de viver com os outros que suporte laços de afeto e cooperação e coloque a convivialidade bem no centro da sua vida. Ela parece resistir a render-se à teologia da competição.

11 "E os professores, às vezes até têm mais a paranóia do que nós, dos exames. Nós não, nós não ligamos muito a isso, sabemos que vamos ter, preocupamo-nos mas dizemos: 'um ano de cada vez, primeiro isto depois os exames', eles não, eles às vezes parecem que têm a nossa idade, ficam mais preocupados do que nós e dizem: 'isto exame, exame, estudem que isto sai no exame' e nós ficamos: 'e no teste o que é que sai?"' 'isto é no exame', e nós: 'está bem pronto, e no teste?"' Eles ficam problemáticos mesmo, querem que a gente tire boas notas e querem dar tudo por tudo para nós entrarmos na faculdade (...) Não sabem distinguir muito bem, dão a aula, mas há aqueles momentos que falam sobre o exame e nós aprendemos a aula e aprendemos o que sai no exame, temos já aquela noção de exame. Há perguntas que nós sabemos já que vai sair, ainda estamos no 11º ano mas já sabemos que tipo de pergunta sai e que resposta é que temos que dar. Sabemos as aulas, sabemos, ao mesmo tempo estamos a aprender duas coisas diferentes" (Florbela, estudante).

12 Poder-se-ia defender que se assiste, no seio das instituições, a um recuo dos valores e práticas vinculados à igualdade de oportunidades, à promoção, justiça e democratização sociais, que perderam terreno e força ideológica e anímica mobilizadora de vontades face à onda avassaladora de imperativos de afirmação pública, atracção de públicos, evidência de resultados e de elevados desempenhos. A educação, o ensino e a aprendizagem parecem ter-se tornado termos demasiado obscuros e modestos para significar as atividades dos professores e dos alunos nas escolas que necessitam ser vertidas em todo um vocabulário aparentemente rejuvenescido segundo os cânones da época que vibra com palavras vestidas de sentido de novidade, imediatamente reconhecível e rapidamente utilizável: projetos, relatórios, candidaturas, intercâmbios, concursos, redes, selos de qualidade, mostras, eventos são outros tantos nós (cegos) que testemunham esta necessidade de estar, ser notada, aparecer, sublinhar o marginal, o extracurricular, o não-letivo, o não-rotineiro.

13 "No básico em que é fácil entender: as primeiras turmas à partida são sempre as turmas em que se tenta encontrar um equilíbrio do nível etário e o aproveitamento também que o aluno faz, muitas vezes ou até o espaço sociocultural donde é oriundo" (Dora, docente). "Isso aí já obedece normalmente à lei e a lei diz que os meninos devem vir... aqueles que vêem juntos e que pedem para ficar juntos devem ficar juntos, e portanto aí já se obedece a isso e, normalmente, aí não há grande capacidade de gerir as coisas (...) e no 7º não há grandes regras a alterar em relação àquilo que está na lei" (Ilda, docente).

14 "Portanto, há por exemplo, o caso dos repetentes. Já se fez de várias formas cá na escola. Já se tentou numa altura em que havia muitos repetentes...que havia poucas turmas e muitos repetentes, o que é que aconteceu? Pensou-se de uma maneira: "Então nós vamos, vamos ter turmas com um número elevadíssimo de repetentes. Vamos fazer uma experiência. Vamos fazer uma turma só de repetentes". Não resultou. Isto foram experiências que foram feitas. Fomos adaptando (...) portanto há esses critérios para tentar...Mas isso também faz parte de melhorar o trabalho, não é? E isso é fundamental na escola!" (Ilda, docente).

15 "Sei, por exemplo, que nós depois no final dos 7ºs anos, naquelas reuniões finais de ano, normalmente deixamos sempre indicações de como é que devem ser feitas as turmas no 8º e do 8º para o 9º e por aí fora. Principalmente quando há alunos que nós achamos que estão muito desajustados e que temos conhecimento das turmas todas (...) quer dizer, nós temos conhecimento quase todos das turmas: "Olha se calhar este aluno está um bocado desajustado, no 8º ano vai ficar nesta turma assim, assim porque vai-se integrar melhor". Portanto, normalmente nós deixamos sempre essas indicações" (Eliana, docente).

16 "Nós, no nosso grupo temos uma prática que é, como somos todos efectivos (...), não usamos a hierarquia para ficar só com (...) rodamos entre nós básico e secundário, portanto no ano passado, por exemplo, eu tive só básico e este ano tenho secundário (...) então nós, entre nós, consideramos que nós nos devíamos especializar mais em determinados programas em determinadas áreas. (...) Não deve, quer dizer, é um erro estar a atribuir a um professor uma disciplina para que ele não está ou bem preparado ou que tem (..) e portanto aí há recomendações que são feitas muito delicadamente. E nós todos acabamos por ver como é que cada um funciona. Depois também é evidente que nos grupos há a hierarquia de grupo, não é? (...) portanto o que é que acontece? Todas as pessoas que estão na escola secundária desejam veementemente terem turmas do secundário. Que é onde nós muitas vezes nos realizamos intelectualmente. Não quer dizer que o contacto com os miúdos a nível do básico dá outras, digamos, dá outras compensações, mas em termos intelectuais nós somos muito mais puxados numa turma secundária. (...) Muito mais" (Ilda, docente).

17 Não pretenderíamos aqui discorrer em torno das complexas problemáticas envoltas com identidades (ABRANTES, 2003), culturas (TORRES, 2004) ou ethos (STOER; ARAÚJO, 1992) de escola, que dispõem já de um acervo de estudos cuja dimensão se encontra bem para além da ambição desta seção do presente estudo. Queremos apenas assinalar que o tópico escola exigente constitui um atributo e um recurso simbólico pelo qual diversos dos docentes e estudantes da Escola Secundária Sarah Afonso que entrevistamos identificam esta escola e a distinguem de outras; nesse sentido, sugerimos estar em presença de processos identitários em torno deste tópico, sem avançarmos para a sua descrição, definição, dinâmicas, atores, delimitação e articulações.

18 "Pronto, mas esta escola sempre me disseram que tinha fama de se cortar a dar notas. É verdade! É verdade! (...) Porque eu tenho plena consciência que eu era capaz de ter notas muito melhores, só que aqui... pronto, não sei, não percebo. (...) Vou mostrar noutra escola que sei. (...) Por exemplo numa disciplina eu, às vezes, acho que escrevo bem e que disse as coisas certas, só que depois dão aquela desculpa: "ah, não está completamente bem, não está tudo completo". Mas o que é que é estar tudo completo?" (Filipa, estudante). "Nós éramos confrontados com os pais sempre a reclamar que nós não dávamos as notas necessárias aos meninos, que éramos muito agarrados nas notas. Olhe eu não sei há quanto tempo estive no Conselho Directivo, daqui a pouco faz 15, 16 ou 17, eu recordo-me que uma das primeiras reuniões que eu tive com pais, fomos confrontados com os pais a dizer...Imagine!! Já lá vão (...) que nós que éramos muito agarrados". (Ilda, docente). "Quanto a mim carece de uma definição mais clara. Exigente... Como? Porquê? (...) pronto....somos mais unhas-de-fome a dar classificações? (...) Os pais gostavam realmente que todos tivessem 20" (Nuno, docente da ESSA).

19 Como nos foi referido, "esta escola é muito exigente aliás, como eu disse, é uma escola que trabalha, é uma escola que agarra em projectos, uma escola interveniente. Ora, pessoas com estas características estão à espera de um determinado nível de exigência no trabalho, não é? (...) Pois, eu estou a dizer que eles de facto estudem determinados conteúdos, que os saibam e que saibam tratar deles, que saibam expor...." (Joana, docente). "A escola quer que os alunos que saiam dali sejam os melhores, que tenham notas para entrar nas faculdades directamente e há alunos que chegam ao 11º e que já sabem as dificuldades que vão ter no 12º, os professores aí puxam imenso por os alunos tirarem óptimas notas, todos os professores querem dezoito, dezanove que é para entrarem nas faculdades logo de seguida e alguns alunos têm medo e então mudam de escola" (Florbela, estudante).

20 "Era uma escola onde os professores, e ainda é, é uma escola onde os professores faltavam muito pouco. Faltava-se pouco, cumpria-se...havia....houve sempre uma certa disciplina. (...) o Executivo neste caso, ela [a Presidente] tem tido um papel muito importante naquilo que eu acho que é fundamental na escola, que é a educação cívica dos alunos, acho que independentemente da discussão e do problema da preparação para os exames eu acho que aquilo que é...que tem marcado esta escola e que talvez...que talvez tenha levado à degradação de outras escolas foi, em certa medida, a manutenção do sentido de autoridade dentro da escola. Que não tem a ver com autoritarismo mas tem a ver com regras que têm de ser cumpridas" (Ilda, docente da ESSA).

21 "os miúdos desta escola, muitos deles têm expectativas de vida que não passam por exercer na sociedade ofícios menores se me permite a expressão. Não tem nenhuma carga negativa; portanto, nas perspectivas de vida deles está ser aquilo que eles acham ser algm não é só ter mordomias. É preciso mostrar que se é alguém. Verdadeiramente. E isso passa por educação, passa por instrução a sério, passa por competências, ou então nós não vamos ser alguém. Claro que eu não posso, eu não posso, nomeadamente a nível do básico exigir determinado tipo de excelência. Não posso! Porque não têm competências para isso, as capacidades às vezes não são tantas, a perspectiva de vida deles é diferente. Agora, quando um aluno de facto quer ter um percurso não se pode deixar de ser exigente com essa pessoa" (Ilda, docente).

22 Para uma discussão aprofundada sobre a fabricação da excelência (escolar), processos em que assenta, normas e hierarquias, consultar Perrenoud (1984, p. 35-40).

23 Esta exterioridade ocorre em dois sentidos: por um lado, as categorias que organizam a percepção e descrevem esses públicos não resultam do contexto da ação e relação pedagógicas; por outro lado, essas mesmas categorias não podem ser mobilizadas e revelam-se pouco capazes para inspirar e fundar a ação pedagógica.

Contato:
Instituto de Educação
Universidade do Minho
Campus de Gualtar
Braga - Portugal
CEP 4710-057

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