quarta-feira, 22 de julho de 2009

Despindo conceitos

Potencialmente dotadas de linguagem, as roupas podem evidenciar - ou ocultar - a personalidade, o caráter, o humor e muito mais de quem as veste

Por Anderson Fernandes



Em São Paulo, meninos e meninas aderem à moda da rua japonesa Harajuku. Na imagem, o estilo Lolita de se vestir

As roupas, além de servirem como adorno e forma de expressão, exercem forte influência em nossas atitudes e comportamento. Um salto alto, por exemplo, pode deixar as mulheres com um sentimento de poder e confiança. Para os homens, o terno com a gravata exerce, por vezes, como projetor da sensação de status. Outras situações também envolvem a indumentária e a psique humana, como a dificuldade que alguns indivíduos têm de se desprender de roupas velhas, pois elas envolvem sentimentos e lembranças prazerosas. Ou, então, quem nunca teve uma peça da sorte, que só a usa em ocasiões especiais?
As peças de roupa inferem em nosso humor. Quando acordamos mal-humorados, com baixa auto-estima, seja por problemas no emprego, ou pessoal, essa condição será refletida na escolha da roupa. Conscientemente, o indivíduo escolherá a "primeira que encontrar" no armário. Contudo, essa ação exprime a necessidade inconsciente que ele tem de dizer naquele dia de que algo não está bem, por se vestir daquela maneira. O mesmo acontece com o humor contrário. Quando ele está bem, com perspectivas, a tendência é pré-selecionar peças que condizem com seu estado; geralmente são roupas com cores alegres e vibrantes, e que agradam visualmente quem a está vestindo (entenda mais sobre as cores no quadro Cores e Sentidos).
Para alguns especialistas, tratando-se de auto-imagem, algumas pessoas sofreriam de um distúrbio caracterizado por anorexia mental. Nele, a roupa é freqüentemente potencializada como zona fronteiriça entre o corpo e o mundo exterior. Ou seja, a idéia fica em mostrar que o corpo continua igual, sem engordar e sem outras deteriorações. Comumente, as peças usadas são as mais ousadas, para evidenciar as curvas.

INSERÇÃO EM TRIBOS

Criar uma identidade social também pode fazer parte do uso da indumentária. Se olharmos para algumas tribos urbanas, como os punks, que se vestem de maneira atípica, mas com uma padronagem cíclica - geralmente dotado de um visual agressivo, possuem correntes penduradas pelas peças, calças jeans, tons de preto e vermelho nas camisetas e cabelos coloridos, com cortes descompassados, ou moicanos gigantescos -, podemos enxergar que, entre eles, existem pessoas que se vestem da mesma maneira, mas não seguem suas ideologias. Esse tipo de comportamento, segundo a psicanalista Suely Gevertz, pode estar associado à busca do individuo por uma identificação.
Sobre essa interação individual/tribal, para a psicóloga e consultora editorial Paula Mantovani, o fato de haver uma relação entre o que alguém veste e o que essa pessoa sente não implica que possamos decidir sobre um sistema de significados fixos para determinados estilos ou imagens usados pelas pessoas. O caráter simbólico do ato de vestir-se permite que algo seja mostrado, mas também escondido, dissimulado, alienado, questionado, subvertido, experimentado; é sempre num exercício de sentido singular. Cabe mais tomar essa via de expressão por meio de uma pergunta, por seu caráter enigmático, quando se pretende saber algo sobre um sujeito.

Cores e sentidos

Renata dos Santos Luz de Oliveira estuda a psicologia das cores desde 2004. Ela revela que é extremamente importante compreender que as cores são uma das ferramentas mais importantes e versáteis, sendo capazes de direcionar o olhar de um indivíduo, um observador, pois este processo deve-se ao fato de que o cérebro tende a captar áreas coloridas de uma maneira previsível, e em uma ordem logicamente definida.
O cérebro humano identifica áreas da mesma cor com importância semelhante. Em geral, o olhar é atraído para as cores chamativas e incomuns. A pessoa que faz o uso cuidadoso de uma cor se permite um maior conforto e sensação de bem-estar, ao contrário das cores sem harmonia, que podem deixar uma pessoa com ar de frustração ou até mesmo depressivo.
"Assim as cores afetam o ser humano por inteiro em suas experiências diárias, podendo representar alta distinção, nobreza, força vital, expressões significavas e grandes conseqüências", afirma Renata.
Sobre o significado das cores, Renata alega que, por toda a história, elas tiveram efeitos sobre a humanidade. Por tempos imemoráveis, foram símbolos de idéias abstratas - por exemplo, o verde em "verdes pastagens", do Salmo 23, sugere esperança e boa sorte; o vermelho indica paixão, perigo e vida (sangue). O branco no Ocidente é símbolo de inocência e pureza. No entanto, no extremo Oriente, simboliza tristeza e luto, exatamente o que seu oposto, o preto, significa no Ocidente. O amarelo é equivalente à covardia e traição, a não ser nos tons dourado e brilhante, que denotam força real e glória.
Na cultura ocidental, as cores podem ter alguns significados, alguns estudiosos afirmam que podem provocar lembranças e sensações às pessoas. Falando em sensações, Renata afirma que as pessoas são influenciadas pelas cores. "Mesmo inconscientemente, procuramos aproveitar seu benefício. Vejamos bem: numa ocasião de paixão e sedução, logo vem à mente a cor vermelha; para festas de passagem de ano, todos têm a idéia do branco; então devemos considerar a resposta emocional que essa cor nos provoca", explica.
Sendo essa resposta função do contexto cultural do usuário, o essencial é saber que estamos sujeitos à sua ação e que a preferência por determinada cor revela a sua sintonia ou até mesmo o caráter do indivíduo, seja pela sensibilidade a determinados estímulos luminosos ou pela representação psíquica que damos a elas.
As pessoas hoje estão bem atentas às cores, e, mesmo que a tendência da moda indique cores para determinadas estações, pode-se dizer claramente que, mesmo tendo uma peça dessas em seu closet, as pessoas usam por poucas vezes e sempre terá a sua cor de equilíbrio em qualquer objeto que carregue. Parte-se do princípio de que cada ser humano é único e possui características e modelos mentais diferentes. Renata salienta, porém, no que diz respeito à fisiologia das cores, que ainda não é possível mensurar com clareza os "custos fisiológicos" da definição visual relacionada às cores, embora estas sejam extremamente sugestivas quando bem utilizadas.

Tabela das cores e suas representações psíquicas:
Cinza: elegância, humildade, respeito, reverência, sutileza.
Vermelho: paixão, força, amor, velocidade, liderança, masculinidade, alegria (China), perigo, fogo, raiva, revolução.
Azul: harmonia, confidência, conservadorismo, austeridade, monotonia, dependência, tecnologia, liberdade.
Ciano: tranqüilidade, paz, sossego, limpeza, frescura.
Verde: natureza, primavera, fertilidade, juventude, desenvolvimento, riqueza, dinheiro (Estados Unidos), boa sorte, ciúmes, ganância, esperança.
Amarelo: concentração, otimismo, alegria, felicidade, idealismo, riqueza (ouro), fraqueza, dinheiro.
Magenta: luxúria, sofisticação, sensualidade, feminilidade, desejo.
Violeta: espiritualidade, criatividade, realeza, sabedoria, resplandecência, dor.
Alaranjado: energia, criatividade, equilíbrio, entusiasmo, ludismo.
Branco: pureza, inocência, reverência, paz, simplicidade, esterilidade, rendição.
Preto: poder, modernidade, sofisticação, formalidade, morte, medo, anonimato, raiva, mistério, azar.
Castanho: sólido, seguro, calmo, natureza, rústico, estabilidade, estagnação, peso, aspereza.

"O caráter simbólico do ato de vestir-se permite que algo seja mostrado, mas também escondido, dissimulado"


Algumas significações das cores mudam na cultura Ocidental para a Oriental, mas ambas culturas exercem a mesma influência

"É claro que isso não exclui que, parafraseando Freud, 'por vezes um cachimbo não é mais que um cachimbo'. De forma geral, é muito difícil supor que seja possível reduzir o sujeito a uma simbologia estática, como se houvesse, externo a ele, um sistema de significados, portanto de classificação", explica Paula.
No movimento punk, por exemplo, está envolvido um posicionamento político, até mesmo uma reivindicação, por mais que hoje, em alguns casos, o que tenha restado disso possa ser apenas uma estética; ainda assim, nem por isso cabe tal reducionismo. Ao contrário, talvez caiba justamente implicar cada um, singularmente, naquilo que transmite, naquilo que escolhe usar.
As questões ideológicas intrínsecas às tribos urbanas também geram controvérsias. Se antes havia um sentido político engajado em atitudes isoladas, criando tribos de interesses em comum, que determinavam signos de diferenciação social, tanto em maquiagem, cabelos e indumentária, hoje, este sentido é escasso, senão inexistente.
Paula explica que, de um modo geral, a época do surgimento das grandes ideologias, dos grandes mestres, terminou, ainda que seja inegável que as ideologias de direita se mantêm de forma organizada e crescente. Embora os problemas que vemos surgir hoje nas grandes metrópoles não comportem mais a tomada de posição surgida na França, no final do século XVIII, entre as tendências de gauche (esquerda) e droite (direita), em que se estabeleceu, por essa via, a posição política de cada sujeito, um movimento que em nossa cultura se mantém, também apoiado em idéias surgidas no século XIX.
Desta forma, é claro que também surjam, muitas vezes e de forma tácita, na moda, ou seja, naquilo que o sujeito irá escolher "vestir-se", interesses veiculados dessa direita, que tem hoje como ilustração maior o capitalismo. O psicanalista Mauro Mendes Dias, em seu livro Moda: divina decadência, trabalha de forma genial a idéia da moda como discurso, como certa organização que engendra as formas de vínculo social.
Portanto, em uma perspectiva mais ampla, a estética parece ter prevalecido sobre a ética criada pelas ideologias. Como exemplo disto, podemos considerar a mudança rítmica de estilos na região de Harajuku, no Japão, onde as famosas jovens adotam estilos diferentes, por vezes chocantes, apenas para se tornarem centro de referência e de especulação.

Psicanálise e moda


Evidenciando a íntima ligação entre Psicanálise e a moda, o livro Dispa-me, o que nossa roupa diz sobre nós (Zahar, 2007) traz relatos cotidianos, como a relação entre adolescentes e a roupa, anorexia, narcisismo, complexo de Édipo, seguido por uma análise psicanalítica minuciosa da cena. A obra estreita a relação do individuo com o corpo, narrando fatos corriqueiros que podem facilmente ser assimilados com empatia pelo leitor. Durante a leitura, surgem exclamações para incógnitas tão casuais que acabam despercebidas, como por exemplo, a razão do por que um individuo usa apenas roupa preta, ou o motivo do vestido de noiva ser tão importante para certas mulheres.

As mulheres são vítimas dos editoriais de moda. Algumas por vezes contraem patologias como anorexia mental
"Moda consigna uma das expressões mais contundentes do sentimento de pertença, isto é: o traje carimba nÍveis de adesão a um determinado Grupo"

Os caracteres de jogo e simulacro, como as indumentárias típicas de um grupo, passam a ser parte da experiência corrente do indivíduo, como se pudessem estabelecer campos de vivências sem implicações do sujeito, sem conseqüências para este. Para Paula, talvez seja por essa exata via, onde pessoas adotam estilos sem se importar com os conceitos embutidos neles, que assistimos diariamente ao aumento do número de estados de depressão entre nós, que alardeiam o esvaziamento de sentidos, característicos dos tempos de contemporaneidade.
"Em 2005, acompanhamos o episódio em que o príncipe Harry pedia desculpas públicas por ter usado uma suástica - símbolo de boa sorte ou da vitória nazista - para uma festa a fantasia. E o fez justamente dias antes das comemorações do aniversário do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, e também próximo ao dia do Holocausto. Isso se relaciona com essa idéia de simulacro, de uma possibilidade de existência sem implicação, sem considerar até mesmo a história de seu próprio país, como podemos notar, sem se lembrar das conseqüências dos bombardeios nazistas em Londres, durante a Segunda Guerra Mundial", ressalta Paula. Para as jovens no Japão, não importa que os estilos estejam intimamente ligados à rebeldia punk inglesa dos anos 1960 e suas motivações políticas. Basta apenas adotá-los, uma vez que chamam atenção e são irreverentes à sociedade japonesa.
Ainda no caso de Harry, Paula reflete que o importante é considerar a história não somente como a condução de homens a seus propósitos, mas considerar, numa outra história, a impossibilidade de disjunção de fatos que trazem conseqüências indeléveis para toda a humanidade, independentemente de seus desdobramentos, conquistas e fracassos históricos, como é o caso do nazismo. Uma vez que isso atingiu não apenas os judeus, mas cada um de nós.

COMUNICAÇÃO VISUAL

O psiquiatra Joel Rennó Jr. outorga que se vestir é um fenômeno de tensão cultural, que oscila do pertencimento ao espaço público ao conjunto de regras estéticas, inconstantes enquanto moda e duradouras enquanto estéticas, ao que caracteriza de narcisismo do grupo. Com vista a reconhecer-se nesse grupo, cada um traz à lume demarcações pessoais por meio do narcisismo individual. A estruturação das grandes cidades contemporâneas rende vênias aos narcisismos coletivos, por multiplicar os âmbitos de convergência dos agregados, esses, sensíveis ao culto da "reciclagem do corpo". Alguns estudos deixam claro que a moda consigna uma das expressões mais contundentes do sentimento de pertença, isto é: o traje carimba níveis de adesão a um determinado grupo ou a vários grupos, uma vez que há grupos principais e secundários. Pela forma de vestir, as pessoas se alojam em núcleos diferenciados. Para exemplificar este cenário, um breve apanhado da história da moda brasileira resgata esse sentimento de pertença a um grupo (veja quadro Historicidade e pertença).

Historicidade e pertença

A loja de departamentos mudou o comportamento das mulheres das classes altas de São Paulo


No livro Moda e sociabilidade: mulheres e consumo na São Paulo dos anos 1920, a professora Maria Claudia Bonádio, da Escola São Paulo e do Mestrado em Moda, Cultura e Arte do Centro Universitário Senac, fala sobre o impacto da instalação da primeira loja de departamentos, no início do século XX, na cidade de São Paulo.
Maria Claudia afirma que, naqueles tempos, a loja Mappin era uma casa elegante de moda e voltada para um público consumidor que pertencia às elites e às camadas médias da população. As roupas vendidas pelo Mappin, na ocasião, eram ou fabricadas pela própria loja ou importadas de afamadas casas de costura parisiense. Um dos fatores mais instigantes é que, na época, a própria loja se encarregava de produzir e anunciar no jornal que vendia, por exemplo, bijuterias originais da casa de luxo francesa Chanel ou Worth, e também "cópias exatas" do mesmo modelo.
Para a professora, a cópia era "institucionalizada", representando, portanto, que se apresentar num vestuário fora de moda era socialmente mais constrangedor do que usar uma cópia. A prática da reprodução fiel a artigos de luxo, por mais contraditória que pareça, era comum dentro das grandes casas de moda, como a Casa Canadá, principal estabelecimento de moda de luxo no Rio de Janeiro dos anos 1940-1950, que, além de comercializar vestidos criados pelos mais famosos costureiros parisienses, também vendia uma cópia de cada modelo. Segundo Mena Fiala, diretora da casa, o principal cuidado nesses casos era não vender cópia e original para mulheres do mesmo Estado, a fim de evitar encontros constrangedores. Fica em evidência a idéia de que atrelados às roupas estão os sentidos femininos ligados ao status social, tanto das elites que desejam exibir o traje original e importado, distanciando-se da margem já preestabelecida de deselegância e inferioridade financeira, quanto das classes abastadas que aderem à mesma moda, nos mesmos moldes, a fim de ocultar sua real condição e transparecer socialmente um estado melhor, mesmo com indumentárias copiadas e mais baratas.


A aparência externa individual sinaliza o pertencimento comunitário: o cabelo, os adereços, o perfume, o porte, a indumentária traduzem símbolos de ligação que somente reforçam a noção de pertencimento, noção indispensável à construção de personalidades individuais e coletivas.
A identidade se forma no seio da relação infantil com a mãe, cujo olhar sobre o filho participa da elaboração da imagem interna da criança. Uma imagem sobre si mesmo, que seja fraca, pode ser conseqüência de falhas nessa relação mãe-filho. Essas falhas podem se dar por inúmeros motivos, como uma mãe pobre que precisa passar o dia todo trabalhando, enquanto a criança fica em casa, como segundo plano em sua vida. Acontece então que o olhar dos outros se torna importante para reparar a falta deste primeiro olhar materno. O sujeito busca sua identidade no olhar de terceiros porque não dispõe de uma identidade formada e estável no seu interior.
Então, o papel da roupa é o de permitir que esse indivíduo possa agrupar as diferentes imagens de si mesmo em uma entidade única, que ele poderá fixar mentalmente. Essa imagem fixada, por sua vez, serve como apresentação mental de si mesmo, e não deve ser modificada para assegurar a permanência da identidade adquirida. Por isso, vemos pessoas inseridas em grupos e tribos, sem necessariamente estar ideologicamente ligadas a eles.
Segundo Catherine Joubert e Sarah Stern, psiquiatras e psicanalistas especializadas em crianças e adolescentes, ainda há aquelas pessoas que seguem tendências e clichês midiáticos para manter uma estabilidade mental. Por exemplo, uma jovem que compra todas as revistas femininas da banca, e segue à risca o que sugerem os editoriais de moda, é refém da moda.
As adolescentes se adaptam aos clichês das revistas e ficam fascinadas pelo poder de sedução das imagens que compõem a obra. Desta forma, as meninas tentam reproduzir tais representações e, quanto mais parecidas com elas e alienadas em um semblante, mais se saciam. A satisfação surge quando o indivíduo se torna um personagem dentro do roteiro - o da moda. Ele encarna o poder de sedução, inerente aos clichês. Tais poderes provêm de referência a uma fantasia, relato organizado que põe esses arquétipos em cena. Recorrer a si mesmo em fotografia de revistas é muito comum na adolescência, mas não deixa também de ser prática de adultos.
Nesse conceito, os editoriais das revistas se mostram ditatoriais, incontestáveis e unânimes, e, para entender por que adolescentes e mulheres os têm como modelo, podemos pegar Freud e o problema da feminilidade. Segundo ele, quando a menina percebe que não possui o objeto capaz de satisfazer o desejo da mãe, ela se afasta e passa a seguir o semblante daquele que parece possuir o objeto: o pai. Ela o oferta uma grande demanda de amor e espera receber um filho como presente do pai. Nesta fase, a garota se transforma em mulher.
Uma das hipóteses abertas por ele é que a menina se afasta da mãe porque ela lhe mostra o caminho ao designar um outro - diferente da criança -, como objeto para seu desejo. Neste caso, o pai também tem várias vertentes e caminhos a seguir: ele pode responder a essa demanda de amor da filha, levando-a em conta, desprezando-a ou, até mesmo, mostrando-se sedutor.
Desta narrativa do pensamento de Freud, é possível entender que, para a garota que não consegue constituir uma identidade própria, a ponto de procurá-la nos tais editoriais de moda, em sua formação alguma coisa não fluiu corretamente na circulação do desejo entre pai, mãe e filha.


O ato de comprar pode se tornar compulsivo por diversos motivos. Um deles é pela necessidade do indivíduo se sentir notado, de estar em evidência e sempre na moda

Nos anos 80, Madonna mesclou vários estilos e criou sua identidade. Na época, várias garotas se vestiam como ela e adotavam seu comportamento


Objeto transicional


Winnicott fez um estudo sobre o "objeto transicional". A psicanalista Suely Gevertz explica que a maioria das pessoas tem esse objeto, que caracteriza uma fantasia, como proteção, por exemplo. Pode ser um amuleto ou até mesmo uma peça de roupa. Gevertz alerta que pode se tornar um comportamento patológico se a pessoa não conseguir ficar sem este objeto, usando-o indiscriminadamente.

COMPULSÃO ESTÉTICA

A memória de infância exerce uma grande força para as escolhas que fazemos por nossos adornos. Mas nem sempre nossas escolhas são tão simples e tão fúteis como muitos imaginam. Algumas pessoas desenvolvem distúrbios sérios que afetam outros setores de suas vidas, que não o mental. Por exemplo, os compradores compulsivos de roupa, que acabam gastando o que não têm, ou acabando com tudo aquilo que conquistou.
A psicóloga Paula explica que, como em toda relação de compulsão, há sempre a suspeita de que o objeto esteja no comando da cena. De qualquer forma, a compulsão é um modo de ancorar o laço social com o outro, mais precisamente, talvez, de se livrar da relação com o outro e seu desejo, numa tentativa de, por meio da posse do objeto, "ter o ser", ter aquilo que o completa, capaz de eliminar a condição faltante em si. "Nesse sentido, me servindo de uma expressão de Ricardo Goldemberg, realizam-se os 'consumidores consumidos', e, assim, o imperativo de gozo impõe-se ao apagamento do desejo, que para manter-se exigiria suportar a condição faltante", afirma Paula, endossando a afirmação de que a compulsão é a busca doentia de algo que falta.
Porém, o dr. Joel Rennó explica que nem todos se tornam compradores compulsivos. A moda subseqüentemente detém uma dimensão paradoxal - a de selar pactos coletivos e, a partir da consistência dos pactos, galgar patamares individuais de expressão exterior. Simmel, um grande autor do século XIX, a define como um sistema de contrastes entre a sua ampla difusão e o seu rápido envelhecimento - rito de alta mutação -, o que permite ao sujeito social apoderar-se do direito de ser infiel à moda. A rotatividade sazonal do estilo acata a síndrome da traição. Com isso, esse sociólogo alemão reforça o poder coesivo da moda, mesmo em face da célere movimentação estilística: ora de um jeito, ora de outro. Mas sempre colada a um corpo desejante de exposições públicas. Trocando em miúdos: a moda age como força coercitiva e coesiva e faculta ao indivíduo a possibilidade de distinguir-se dentro do grupo, mesmo traindo as tendências dos figurinos de épocas anteriores.

"A compulsão é um modo de ancorar o laço social com o outro, numa tentativa de ter aquilo que o completa"

Cresce então o fenômeno de confusão e deturpação do sistema de moda. Ora se seguem modelos estabelecidos como determinantes para a estação, ora quebram-se esses conceitos para destacar-se socialmente. Atrelados a esse paradoxo, estão a decadência do império da moda e o aclive dos seus preceitos, que regem e codificam comportamentos, mesmo que subjetivamente, em forma de roupa, acessório, tatuagem, calçado ou atitude.


Revista Psique

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