quarta-feira, 30 de maio de 2012

Educar para transformar


Perfil - Paulo Freire


Com a ideia clara de que ler e aprender são condições essenciais para a cidadania autêntica e a transformação do mundo, o educador, professor de escola, pesquisador, político e inovador Paulo Freire dedicou a vida à educação e levou seu método educativo aos cinco continentes do planeta

Quando o jovem pernambucano, de Recife, entrou, aos 16 anos, no primeiro ano do ginásio - que começou tardiamente, por causa das dificuldades financeiras da família - não sabia que um dia lecionaria em Harvard, ou que colaboraria no desenvolvimento do programa nacional de alfabetização da Guiné Bissau. Paulo Reglus Neves Freire ficou muito conhecido pelo método que desenvolveu de educação para adultos, um sistema inovador e uma pedagogia revolucionária, que procurava alfabetizar utilizando elementos do cotidiano destes alunos.
Paulo Freire nasceu em 19 de setembro de 1921. O quintal da casa da Estrada do Encanamento, 724, no bairro Casa Amarela, no Recife, foi o espaço de sua alfabetização. À sombra das mangueiras, a senhora Edeltrudes, mãe de Paulo Freire, ensinou-o as primeiras palavras, que permitiriam ao menino ler o mundo à sua volta. Aos dez anos mudou-se com a família para Jaboatão dos Guararapes, na região metropolitana de Recife. Nos campos de futebol da cidade, ele conviveu com a camada mais pobre da cidade, jogando peladas com meninos camponeses e filhos de operários que moravam em morros e brincavam em córregos. Com o convívio, Paulo Freire descobriu uma forma diferente de pensar e de se expressar: a linguagem popular, que ele sempre privilegiou, e usou mais tarde em suas teorias como educador.
Depois do início tardio do primeiro ano de ginásio, Paulo Freire entrou, aos 22 anos, na Faculdade de Direito do Recife. Naquela época, o curso de direito era a única alternativa na área de ciências humanas. Nesse período, conheceu a professora primária Elza Maia Costa Oliveira, alfabetizadora, cinco anos mais velha do que ele, com quem se casou em 1944, e teve cinco filhos.
Paulo Freire iniciou a vida profissional no mesmo colégio que o acolheu como bolsista na adolescência, ao ser contratado como professor de língua portuguesa. Em 1947, assumiu o cargo de Diretor do Setor de Educação do Sesi (Serviço Social da Indústria) do Recife, em que conviveu com a questão da educação de adultos trabalhadores e percebeu a necessidade de centralizar esforços na alfabetização destes operários. Durante mais de 15 anos, entre as décadas de 1950 e 1960, Paulo Freire dedicou-se às experiências no campo da educação de adultos em áreas proletárias e subproletárias, urbanas e rurais, em Pernambuco. Seu método de alfabetização nasceu dentro do MCP - Movimento de Cultura Popular do Recife - a partir dos Círculos de Cultura, onde os participantes definiam as temáticas junto com os educadores.
A partir dessa experiência, Freire desenvolve uma de suas principais teorias: a de que a educação tem papel imprescindível no processo de conscientização e nos movimentos de massas. Ele a considerava desafiadora e transformadora, e defendia que para alcançála são essenciais o diálogo crítico, a fala e a convivência. Na sua concepção, a educação é um momento do processo de humanização, um ato político, de conhecimento e de criação.
Paulo Freire viveu intensamente o ambiente histórico-político efervescente, que vai da Revolução de 1930 e o golpe militar de 1964. Convidado por Paulo de Tarso, então ministro da educação do Governo João Goulart, o educador assumiu o cargo de coordenador do recém-criado Programa Nacional de Alfabetização, a partir do qual, utilizando seu método, pretendia alfabetizar cinco milhões de adultos em mais de 20 mil círculos de cultura. Criado em janeiro de 1964, o Programa foi extinto pela Ditadura Militar, logo depois do golpe.
Depois de ser preso por duas vezes, Freire, com 43 anos, exilou-se na Bolívia, antes do fim de 1964. A trajetória no exílio permitiu que o educador levasse suas ideias para os cinco continentes do mundo. Saiu da América do Sul em 1969, quando foi convidado para lecionar na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, onde ficou por dez meses e deu forma definitiva ao livro Ação Cultural para a Liberdade. Nesse período, escreve também dois de seus livros mais conhecidos: Educação Como Prática da Liberdade e Pedagogia do Oprimido.
Em seguida, foi transferido para Genebra, na Suíça, onde assumiu o cargo de consultor do Conselho Mundial das Igrejas. Ao lado de outros brasileiros exilados, fundou o Instituto de Ação Cultural (IDAC), cujo objetivo era prestar serviços educativos, especialmente aos países do Terceiro Mundo que lutavam por sua independência. Em 1975, Freire e a equipe do IDAC receberam o convite para colaborarem no desenvolvimento do programa nacional de alfabetização da Guiné-Bissau.
Entre 1975 e 1980, Freire trabalhou também em São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Angola, ajudando os governos e seus povos a construírem suas nações recém-libertadas do domínio português, através de um trabalho de educação popular. Nesse período, Paulo Freire levou seus conhecimentos a países dos cinco continentes, mas de modo especial à Austrália, Itália, Nicarágua, Ilhas Fiji, Índia, Tanzânia e aos países de colonização portuguesa.
Em junho de 1980, aos 57 anos, Paulo Freire desembarca no aeroporto de Viracopos em Campinas, regressando definitivamente ao país que havia deixado em 64, sob o comando dos militares. Na gestão da prefeita Luiza Erundina, Paulo Freire assume o cargo de Secretário de Educação da cidade de São Paulo, em janeiro de 1989, e promove reforma nas escolas, reestruturação dos colegiados, reformulação do currículo escolar, capacitação dos professores e formação de pessoal administrativo e técnico.
Em parceria com os movimentos populares, Paulo Freire criou o Mova-SP (Movimento de Alfabetização da Cidade de São Paulo), destinado a jovens e adultos. Era a fórmula para fortalecer os movimentos sociais populares e estabelecer novas alianças entre sociedade civil e Estado. Antes de morrer, em dois de maio de 1997, aos 75 anos de idade, Freire tornou-se um dos membros do Júri Internacional da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Apesar de todo reconhecimento internacional e a importância de sua pesquisa para a educação, Paulo Freire afirma: "Eu acho que uma das coisas melhores que eu fiz na minha vida, melhor do que os livros que eu escrevi, foi não deixar morrer em mim o menino que eu não pude ser e o menino que eu fui."

quarta-feira, 21 de março de 2012

Paulo Freire, o mentor da educação para a consciência

O mais célebre educador brasileiro, autor da pedagogia do oprimido, defendia como objetivo da escola ensinar o aluno a "ler o mundo" para poder transformá-lo

Márcio Ferrari

Paulo Freire
Paulo Freire (1921-1997) foi o mais célebre educador brasileiro, com atuação e reconhecimento internacionais. Conhecido principalmente pelo método de alfabetização de adultos que leva seu nome, ele desenvolveu um pensamento pedagógico assumidamente político. Para Freire, o objetivo maior da educação é conscientizar o aluno. Isso significa, em relação às parcelas desfavorecidas da sociedade, levá-las a entender sua situação de oprimidas e agir em favor da própria libertação. O principal livro de Freire se intitula justamente Pedagogia do Oprimido e os conceitos nele contidos baseiam boa parte do conjunto de sua obra.

Ao propor uma prática de sala de aula que pudesse desenvolver a criticidade dos alunos, Freire condenava o ensino oferecido pela ampla maioria das escolas (isto é, as "escolas burguesas"), que ele qualificou de educação bancária. Nela, segundo Freire, o professor age como quem deposita conhecimento num aluno apenas receptivo, dócil. Em outras palavras, o saber é visto como uma doação dos que se julgam seus detentores. Trata-se, para Freire, de uma escola alienante, mas não menos ideologizada do que a que ele propunha para despertar a consciência dos oprimidos. "Sua tônica fundamentalmente reside em matar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade", escreveu o educador. Ele dizia que, enquanto a escola conservadora procura acomodar os alunos ao mundo existente, a educação que defendia tinha a intenção de inquietá-los.
Revista Nova Escola

terça-feira, 6 de março de 2012

O poder das imagens

Ilustrações ganham cada vez mais importância nos livros infantojuvenis e apontam para uma renovação na literatura

Laura Aguiar


A JANELA DE ESQUINA DO MEU PRIMO de Ernst T. Hoffmann: a partir do diálogo entre dois meninos sobre uma praça, o leitor acompanha o vaivém de pessoas ora a partir de aspectos particulares, ora em sua totalidade (caso da imagem acima, uma a visão panorâmica do local)

"Para que serve um livro sem figuras nem diálogos?", perguntou-se Alice, entediada, pouco antes de decidir seguir o Coelho Branco até o País das Maravilhas. Quase cento e cinquenta anos depois (o livro de Lewis Carroll foi publicado pela primeira vez em 1865), as imagens continuam centrais para a conquista de jovens leitores - tanto que, ao longo dos últimos anos, elas vêm desempenhando papel cada vez mais relevante nas narrativas infantojuvenis.

A importância da ilustração e do projeto gráfico, constatável empiricamente em qualquer visita às livrarias, é confirmada por editores e pesquisadores, que apontam a diferença entre o livro com ilustração (aquele em que a imagem é apoio, apenas reforçando o que diz o texto) e o livro ilustrado, no qual ou se prescinde da palavra escrita ou ela atua juntamente com a ilustração.

O livro ilustrado - também chamado de livro-ilustrado, livro de imagem ou, em Portugal, álbum - não é, em si, uma novidade. Encontram-se antepassados seus nos séculos 18 e 19. O livro inclinado e O livro do foguete , de Peter Newell, exemplos de interação entre conteúdo e suporte, foram publicados pela primeira vez em 1910 e 1912, respectivamente; Maurice Sendak lançou Onde vivem os monstros , um dos clássicos do gênero, em 1963. No Brasil, Ziraldo publicou o famoso Flicts em 1969; em 1976, foi a vez de Juarez Machado apresentar o seu Ida e volta , e desde a década de 1980 Eva Furnari e Ângela-Lago vêm produzindo livros com pouco ou
nenhum texto.

O que há de novo, hoje, é a quantidade de livros de imagem disponíveis (um fenômeno que se insere, e é importante destacar, em um crescimento geral da indústria do livro infantojuvenil) e o status que eles vêm conquistando. Recentemente, esses deixaram de ser apenas porta de entrada para o universo das letras e tornaram-se reconhecidos como literatura. O ilustrador, agora, não é apenas um profissional contratado para prover as "figuras" de uma história alheia: ele tem o mesmo peso do escritor, cria com ele ou é o único autor do livro. Na esteira desse movimento, o livro de imagem vem se consolidando também como campo de estudo nas universidades.

Que livro é esse?
O crítico e ensaísta inglês Peter Hunt afirma, em Crítica, teoria e literatura infantil (Cosac Naify, 2011), que o livro ilustrado é a única área da literatura infantil que evoluiu do "texto realista clássico para o genuinamente descontínuo e interativo". O fato é que, por sua própria essência, o gênero se presta à experimentação e à inovação, tanto em termos de conteúdo como de suporte: de um lado, ele propicia projetos inovadores como formatos inusitados, diferentes técnicas de desenho e uso criativo de tipologias; por outro, os recursos visuais permitem a criação de narrativas não lineares, abertas a várias interpretações.

Por essa riqueza de possibilidades, vem se diluindo a ideia de que o livro de imagens se dirige apenas às crianças menores, não alfabetizadas, pois ele pode permitir diferentes níveis de compreensão e de fruição, conforme a maturidade do leitor. Outro elemento contribui para isso: os livros muitas vezes se dirigem também ao adulto que os apresenta à criança. Em um artigo publicado em 1996 na revista espanhola Peonza , Teresa Colomer, da Universidade de Barcelona, lembra que muitos dos livros de imagem infantis trazem referências implícitas a dados culturais do mundo adulto, levando em consideração o mediador da leitura. Dessa forma, "o gênero que parecia destinado a ser o mais simples da literatura infantil é o que produziu as maiores tensões sociais e estéticas, porque aproveitou os recursos de dois códigos simultâneos e implicou duas audiências distintas".

Os exemplos de livros que transitam pelas fronteiras de idade se multiplicam. Um deles é a premiada trilogia composta pelos livros Onda, Espelho e Sombra (Cosac Naify), da sul-coreana Suzy Lee, narrativas que se desenvolvem sem palavras, baseadas apenas no traço a carvão, com economia de cores. A vida secreta das árvores , da WMF Martins Fontes, apresenta ilustrações e projeto gráfico requintados - com elaboradas gravuras de artistas indianos impressas em silk screen sobre papel artesanal - possíveis de serem fruídos como livro de arte, ao alcance de leitores de idades variadas.

Quando o livro ilustrado não apresenta uma narrativa, uma história, a determinação da idade do leitor torna-se ainda mais imprecisa. Não é difícil admitir que Zoom , do húngaro Itsvan Banyai, lançado no Brasil pela Brinque Books em 1995, seja tão atraente para uma criança quanto para um adulto: à medida que se viram as páginas, percebe-se que cada imagem apresentada é parte de um todo maior, como se o leitor estivesse reduzindo o zoom em uma fotografia.

A mesma lógica segue A janela de esquina do meu primo (Cosac Naify, 2010), do alemão Ernst Theodor Amadeus Hoffmann. Na obra, de forte diálogo com as primeiras experiências cinematográficas, o leitor tem contato, por meio da observação de uma praça, ora em sua totalidade, ora a partir de alguns de seus aspectos particulares, com os grandes temas da urbanização nas emergentes metrópoles da virada do século 19 para o 20. Nesses exemplos, a multiplicidade de possibilidades de leitura torna desimportante a determinação da faixa etária para o leitor. Algumas editoras resistem a indicar a idade ou a série ideal para os livros de seu catálogo infanto juvenil; outras consideram que as indicações são referências úteis ao professor e devem ser tomadas como sugestões.

Um aprendizado do olhar
Engana-se quem acredita que a leitura de imagens seja puramente instintiva ou fácil; compreender uma narrativa visual pressupõe uma alfabetização do olhar. Aprende-se a ler, mas também a ver - e o papel do educador é, também, mostrar como decifrar os códigos visuais, muitas vezes extremamente sofisticados. Infelizmente, nem sempre a escola sabe trabalhar com os livros de imagem. "Falta quem faça a tradução daquilo que diz a academia para a prática do professor, do bibliotecário, mesmo dos pais", diz João Luís Ceccantini, professor da Faculdade de Letras da Unesp de Assis. Os educadores subaproveitam as possibilidades de leitura, as narrativas paralelas que podem se desenrolar a partir das tensões e diálogos entre o texto e a imagem. Vanessa Gonçalves, da Cosac Naify, conta que a ansiedade dos educadores por uma bibliografia específica resultou na criação de uma linha dedicada ao tema.

Talvez não seja exagero dizer que tanto o olhar da criança quanto o do professor precisam ser educados ou despertados. Trabalhar a imagem é, em um primeiro momento, compreender o que diz o projeto gráfico, as cores, as técnicas e o estilo das ilustrações. O já citado Onde vivem os monstros traz uma longa série de "recados visuais" que, ao serem explorados, permitem um aprofundamento na compreensão do livro: as ilustrações se inserem em quadros que aumentam de tamanho à medida que a imaginação toma conta da personagem, até que rompem os limites e tomam conta de toda a página; o papel de parede do quarto se dilui, transformando-se no mundo "selvagem" em que a aventura se desenrolará (um exemplo clássico de imagem que oferece uma informação que em nenhum momento é dada pela palavra).

Ao mesmo tempo que pressupõe um aprendizado de leitura, o livro ilustrado traz também uma possibilidade de refinamento da percepção artística. O desenvolvimento técnico que resultou no grande aumento da oferta pode ter a contrapartida de trazer ao mercado livros calcados em estereótipos visuais e verbais. Em boletim da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Teresa Colomer aponta para a existência de obras "desequilibradas", com "um texto banal devorado pela imagem e outros tantos que escondem sua falta de elaboração, transferindo para o leitor a responsabilidade de dar-lhe sentido". Ceccantini concorda que entre os livros colocados nas estantes encontram-se obras banais, descartáveis, de intenção meramente didática. O risco, claro, é entrar no terreno pantanoso do gosto, ao definir o que é um "bom" ou um "mau" livro de imagem - de resto, uma tarefa tão delicada quanto a de definir o que é um bom livro infantil ou, simplesmente, um bom livro. O suporte teórico e uma familiaridade com os livros, seus códigos e objetivos, é o que dará ao educador os parâmetros para essa avaliação.

Leitor, espectador, jogador
Em 2005, o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), instituído em 1997 pelo Ministério da Educação, passou a incluir a categoria "livros de imagem" entre as obras que seleciona para distribuição nas escolas da rede pública do país. O fato, para Júlia Moritz Schwarcz, da Companhia das Letrinhas, contribuiu significativamente para o incremento da edição de livros ilustrados de alta qualidade no Brasil. Certamente, a inclusão da categoria foi também um reflexo de um movimento editorial que já vinha acontecendo, numa via de mão dupla. Pode-se relacionar o crescimento desse segmento à emersão de novas gerações nascidas e formadas sob o império da imagem?

É fácil argumentar que o interesse das crianças pela ilustração é atemporal, como atesta a própria fala da Alice de Lewis Carroll. Houve, porém, um longo caminho até que a ilustração pudesse ganhar prestígio equivalente ao do texto. Até pelo menos a metade do século 20, as ilustrações das obras literárias infantis foram secundárias, quase desprezíveis - algo como um bônus cuja ausência, se empobrecia esteticamente o livro, não comprometia seu entendimento nem seu interesse. O livro-ilustrado, caracterizado pela concisão ou pela ausência de texto, não podia ser visto com seriedade em uma cultura que sobrevalorizava a palavra. Não é mais esse horizonte que se abre aos leitores de hoje, de qualquer idade. Não apenas o uso de códigos visuais, mas a rapidez e a fragmentação das narrativas, a simultaneidade de ações, a metalinguagem - recursos típicos de grande parte dos atuais livros de imagem - parecem vir ao encontro dos interesses de crianças acostumadas ao universo visual e interativo das animações, da internet e dos games . O mercado editorial, assim, a um só tempo responde à demanda dessa "nova criança" e ajuda a forjá-la.

A intimidade da criança de hoje com a imagem pode resultar em algum conforto no manuseio do livro-ilustrado, mas não a dispensa daquele processo de educação do olhar. Ao adulto cabe ajudá-la na decifração dos códigos visuais, evitando seu consumo rápido; em outros termos, é preciso propor atenção aos detalhes, contemplação - tempo e reflexão, enfim, o que vem na contramão dos estímulos atualmente oferecidos à infância.

Apesar da imensa quantidade de recursos gráficos disponíveis, o livro de imagem é um exercício literário. Não deve ser confundido com os livros-brinquedo, aqueles que, concebidos para aproximar a criança do objeto "livro", podem acabar por distanciá-la, porque não entregam o que ele tem de essencial - o seu conteúdo. "É algo como colocar a verdura escondida no feijão", compara Júlia Schwarcz. "Escondido" sob a forma de brinquedo, aquilo que faz a essência de um livro infantil - uma narrativa contada por palavras, imagens ou pelo entrelaçamento de ambos - nunca chega ao potencial leitor.



EM ZOOM de Itsvan Banyai, cada imagem apresentada é parte de um todo maior, o que faz com que o leitor tenha a sensação de estar reduzindo o zoom em uma fotografia


Interferências tecnológicas
A exploração dos recursos visuais na literatura infantil conduz ainda a uma nova fronteira: a dos livros eletrônicos, ou e-books , território em que as editoras do Brasil e do mundo parecem ainda tatear timidamente. O desafio que se coloca a editores, escritores e ilustradores neste momento é o de usar as possibilidades da tecnologia sem transformar o livro em um longo game , num livro-brinquedo sofisticado. A Companhia das Letrinhas publicou um livro-ilustrado que aborda, com ironia, essa questão: É um livro , de Lane Smith, mostra ao leitor os encantos do objeto que não rola, não tuíta, não desconecta.

Curiosamente, um dos primeiros livros eletrônicos infantis a alcançar sucesso mundial é a versão para iPad de Alice no País das Maravilhas , vendida pela iTunes Store, que coloca movimento e cor nas ilustrações feitas por John Tenniel para a primeira edição. Alice cresce, encolhe, faz barulho, cai, derruba coisas. O "livro" pode ser chacoalhado, virado de ponta-cabeça, lido de trás para a frente. É um livro? É um jogo? É um estímulo ou um desserviço à leitura? As opiniões se dividem; o debate ainda está começando.
A menina que se aborrecia com histórias sem figuras está mais contemporânea que nunca.

Para saber mais

Livros
O amor e o diabo em Ângela-Lago, de André Mendes (Editora UFMG, 2007)

Como usar a literatura infantil na sala de aula, de Maria Alice Faria (Editora Contexto, 2004)

Crítica, teoria e literatura infantil, de Peter Hunt (Cosac Naify, 2010)

Era uma vez uma capa, de Alan Powers (Cosac Naify, 2008)

Ilustração do livro infantil, de Luís Camargo (Editora Lê, 1995)

Literatura infantil na escola: leituras do texto e da imagem, de Regina Yolanda (Instituto Teotônio Vilela, 2001)

Para ler o livro ilustrado, de Sophie Van der Linden (Cosac Naify, 2011)

Na internet (blogs e sites sobre literatura infantil ou de ilustradores, com reflexões sobre o ofício)

www.angela-lago.com.br
www.dobrasdaleitura.com
www.nelsoncruzilustrador.blogspot.com
www.ricardoazevedo.com.br
Revista Educação

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Já pediu para a mamãe comprar?

De olho no poder de persuasão dos pequenos consumidores, milhões são investidos em propaganda

MARCELO SANTOS


Foto: Marcelo Santos


Sites na internet, merchandising na tevê, atividades nas escolas disfarçadas de eventos educativos, embalagens coloridas e chamativas, colocação estratégica dos produtos nas gôndolas dos supermercados, licenciamento de personagens infantis e lanches com brindes, entre diversas outras ações de marketing. Todos os anos, uma formidável montanha de dinheiro é despejada nas agências publicitárias com um só objetivo: transformar os cerca de 50 milhões de crianças brasileiras em consumidores precoces, alavancando o lucro do mercado de produtos infantis, que movimenta mais de R$ 15 bilhões ao ano no país. De olho nessa clientela, em 2010 foram investidos R$ 288 milhões na publicidade infantil.

A economia agradece, mas os efeitos dessa prática, para as crianças, são no mínimo perversos. “A publicidade é a principal responsável pelo desenvolvimento de problemas como consumismo infantil, erotização precoce e exploração sexual, diminuição do tempo dedicado a brincar, violência, estresse familiar e, principalmente, obesidade e transtornos alimentares”, enumera Lais Fontenelle Pereira, psicóloga e coordenadora de educação e pesquisa do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana. O órgão existe há 15 anos, instalado no Jardim Pantanal, bairro da zona leste da cidade de São Paulo, onde atua na área educacional. A bandeira contra o consumismo infantil, porém, só foi hasteada há cinco anos, quando uma das educadoras recebeu uma aluna que tinha sido espancada pela mãe. A explicação para o ato de violência chocou as professoras. “A mãe ficou transtornada porque a filha descartou em apenas três dias uma boneca que ela havia comprado em dez prestações.” A publicidade direcionada às crianças mostrou, assim, sua face mais cruel. “É gerado um estresse muito grande, principalmente entre os que possuem baixa renda e não têm condições de adquirir esses bens”, lamenta Lais.

É no mundo encantado da televisão que a publicidade infantil age com mais força, apresentando soluções para qualquer necessidade. É possível colecionar amigos, tornar-se popular e dar gargalhadas de alegria. Tudo pode ser divertido, desde que se “compre” o produto oferecido na telinha. “Toda publicidade dirigida às crianças é abusiva, e elas precisam ser preservadas. Até os 12 anos de idade não se tem a consciência crítica e o entendimento de um discurso persuasivo formado”, adverte a psicóloga.

Um anúncio a cada dois minutos

No país em que as crianças passam mais tempo diante da televisão no mundo, com uma média diária de 4 horas e 54 minutos (para 4 horas e 26 minutos na escola), a publicidade infantil é voraz. No dia 1º de outubro do ano passado o Instituto Alana apurou a quantidade de inserções comerciais em sete canais com programação infantil. Entre o período das 8 às 18 horas foram contabilizadas 1.077 propagandas.

Curiosamente, os canais de tevê por assinatura, que supostamente seriam bancados por mensalidades, foram aqueles que mais exibiram anúncios. O Cartoon, que tem público-alvo formado por crianças entre 6 e 12 anos, por exemplo, veiculou 274 propagandas, com média de uma a cada dois minutos de programação. O Discovery Kids, que atrai crianças ainda na primeira infância, apresentou 227 anúncios. Talvez isso justifique o insistente “Compra, mãe!” ouvido por toda parte nas semanas que antecederam o Dia das Crianças. A ONG apurou que, entre os 390 produtos anunciados, 295 eram brinquedos, 30, peças de vestuário e 25, alimentos. A média de preço desses produtos era de R$ 160.

No primeiro semestre de 2010, o instituto Datafolha realizou uma pesquisa para medir a percepção de pais com filhos entre 3 e 11 anos a respeito dos reflexos das propagandas direcionadas às crianças. A intenção era descobrir se a publicidade exerce pressão de compra, causa mudanças alimentares e se, na opinião dos pais, deve sofrer algum tipo de restrição.

Descobriu-se que 80% das crianças das famílias pesquisadas tinham como atividade de lazer principal assistir televisão e 57% acessavam a internet com frequência, principalmente os sites de jogos on-line (40%) e canais infantis (21%). A rede de relacionamentos Orkut vinha na terceira posição, com 16% dos acessos das crianças.

De cada dez pais ouvidos, sete afirmaram ser influenciados pelos filhos na hora da compra de qualquer produto (não apenas os infantis) e oito disseram acreditar que a propaganda é determinante na escolha dos presentes pedidos pelas crianças. “A publicidade dirigida às crianças gera um consumo irrefletido. Cria-se um problema quando se começa a incutir nas crianças a ideia de que, para existir socialmente, devem possuir determinado objeto”, alerta Lais.

Legislação

Não existem leis específicas que impeçam a propaganda direcionada às crianças no país. Cabe ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) disciplinar as campanhas. Em 2006 o órgão proibiu o uso de verbos no imperativo, como “compre isso”, “não perca”, entre outros. Contudo, por se tratar de um conselho formado pelos próprios anunciantes, sua competência é questionada por especialistas na área de infância.

Preocupadas com os efeitos da publicidade nas crianças, 150 instituições lançaram, no fim de 2009, o “Manifesto pelo Fim da Publicidade e da Comunicação Mercadológica Dirigida ao Público Infantil”, que já reúne cerca de 13 mil assinaturas. Segundo o documento, a propaganda deve ser voltada aos pais ou responsáveis. “A utilização da criança como meio para a venda de qualquer produto ou serviço constitui prática antiética e abusiva, principalmente quando se sabe que 27 milhões de crianças brasileiras vivem em condição de miséria e dificilmente têm atendidos os desejos despertados pelo marketing”, adverte o manifesto.

No Congresso Nacional tramitam mais de 200 projetos de lei propondo restrições e até a proibição de propaganda para crianças. O mais emblemático é o PL 5.921/01, do deputado federal Luiz Carlos Hauly (PSDB/PR). “Em 2001, meu filho, à época com 11 anos, não parava de me pedir as novidades anunciadas através da televisão. Decidi promover o debate sobre o tema e radicalizei”, justificou em sua página na internet.

De acordo com Vidal Serrano Junior, promotor de justiça do Ministério Público de São Paulo e professor titular de direito constitucional da Pontifícia Universidade Católica, também na capital paulista, mesmo sem uma legislação específica sobre o tema a propaganda direcionada às crianças pode ser contestada a partir da leitura da Constituição Federal e do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Partidário de uma regulamentação sobre a publicidade infantil na mídia, ele cita o artigo 37 do CDC (lei federal 8.078/90), que proíbe toda propaganda enganosa ou abusiva, deixando claro no parágrafo 2º que “é abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança”.

Conforme Serrano explica, “o elemento essencial da publicidade é a persuasão. E, justamente em razão de seu intuito puramente comercial, a mensagem publicitária é elaborada para atingir o emocional daquele a quem se dirige, na medida em que é notório que o convencimento acontece de forma muito mais bem-sucedida quando o público consumidor é guiado pela emoção e não pela razão”. Daí a necessidade de preservar a criança, que, lembra ele, “não possui predicados sensoriais suficientemente formados para a plena intelecção do que seja a publicidade, de quais os seus objetivos e de como dela se proteger”.

Já na opinião do consultor em marketing infantil e professor universitário Arnaldo Rabelo, é um equívoco culpar a propaganda pelo consumismo infantil. “Os pais devem se manter na função de educar seus filhos e dar limites, evitar excessos e tomar a decisão final por produtos que sejam bons”, avalia. A seu ver, todos têm o direito de ser informados sobre os lançamentos de novos produtos e os fabricantes têm o direito de divulgar a existência deles. “É um princípio democrático. A proposta de proibição tem implícito que as crianças não distinguem um comercial de um programa de entretenimento e que os pais não são capazes de decidir o que é melhor para seus filhos. Vários estudos mostram que as crianças sabem quando uma mensagem é publicitária”, argumenta.

Diretor da Associação Brasileira de Licenciamento (Abral), ele considera que os mecanismos já existentes no Estatuto da Criança e do Adolescente, no CDC e no Conar sejam suficientes para coibir abusos dos anunciantes. “Fica claro que quem defende a proibição da publicidade infantil não compreende mais a fundo o assunto”, provoca.

Natália, de 9 anos, não entende bem do tema. Também não sabe se é contra ou a favor de propagandas para crianças. Apesar de estar com sobrepeso, ela adora comerciais de produtos alimentícios infantis. “Dá mais vontade de comer quando vejo a televisão”, admite. Suas refeições acontecem sempre diante da telinha. “Eu me sinto um pouco culpada ao negar, quando ela me pede para comer algo não saudável. É difícil dizer não quando a gente fica fora de casa o dia todo”, explica a mãe da menina.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados através da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) em agosto de 2010 estimam que uma em cada três crianças de 5 a 9 anos está acima do peso recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Os personagens do universo infantil nas embalagens são um chamariz e um estímulo para o consumo do alimento”, adverte a sanitarista Silvia Vignola, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Segundo ela, heróis do imaginário infantil estão se transformando em verdadeiros vilões ao ajudar a vender produtos com alto teor de sódio, açúcar e gordura. Foi o que ela constatou ao pesquisar 44 itens de 20 marcas diferentes, cujas embalagens mostram personagens infantis como super-heróis de filmes e desenhos em quadrinhos.

No dia 17 de dezembro passado, Silvia comandou uma mesa de debates na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. O evento marcava o lançamento da Frente pela Regulação da Publicidade de Alimentos. “Além de educar a população sobre o consumo de alimentos não saudáveis e a importância do exercício físico, precisamos cercear o incentivo ao consumo desse tipo de produto. Por isso essa frente tem um papel muito importante para o futuro deste país, especialmente no que respeita à saúde das crianças”, explica a especialista.

A iniciativa é uma resposta à decisão judicial que suspendeu a resolução nº 24/10 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que obrigava as propagandas de bebidas com baixo teor nutricional e de alimentos com elevadas quantidades de açúcar, gordura saturada ou trans e de sódio a conter mensagens alertando que seu consumo em excesso pode ser prejudicial à saúde. A regra entraria em vigor a partir de dezembro passado, mas a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia) conseguiu sua suspensão na Justiça.

Em nota à revista Problemas Brasileiros, Edmundo Klotz, presidente da Abia, disse entender que a resolução 24 de 2010 “é inócua para o fim ao qual se destina, por não considerar o conjunto de alimentos ingeridos diariamente por um indivíduo, além de não educar o consumidor sobre como se alimentar adequadamente”. Além disso, a Abia considera a resolução inconstitucional. “Alimentos e bebidas não alcoólicas não constam da lista de produtos sujeitos a advertências definida pelo parágrafo 4º do artigo 220 da Constituição Federal, que contempla tabaco, medicamentos e terapias, bebidas alcoólicas e agrotóxicos. Logo, produtos alimentícios não podem ser objeto de alertas de malefícios”, afirma o texto.

Tal interpretação, no entanto, é equivocada, segundo o advogado Igor Rodrigues Britto. Professor da Faculdade de Direito de Vitória e autor do livro Infância e Publicidade: Proteção dos Direitos Fundamentais da Criança na Sociedade de Consumo, ele diz que o texto da Constituição nunca pode ser entendido de forma literal, mas com base nos princípios constitucionais, ou seja, nenhum artigo deve ser lido isoladamente e sim de acordo com o que é juridicamente chamado de “interpretação sistêmica”.

O professor explica que a Constituição prega como valor maior a proteção da vida e da saúde dos indivíduos. A intenção do legislador na redação do artigo 220 foi dizer que “deve haver restrição à publicidade de produtos que possam colocar em risco a saúde dos consumidores”. Na época da Assembleia Constituinte, foram incluídos aqueles que a ciência então reconhecia como perigosos. “Hoje, esse conceito foi ampliado, e a lista, estendida”, acrescenta.

Quanto à questão da educação do consumidor, o professor Carlos Augusto Monteiro, titular do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e um dos signatários da Frente pela Regulação da Publicidade de Alimentos, explica que a crescente troca de alimentos tradicionais como arroz, feijão, carne, ovos e verduras na mesa do brasileiro por produtos não saudáveis e industrializados se deve justamente ao marketing. “As campanhas publicitárias milionárias são extremamente eficazes em amplificar as ‘vantagens’ dos alimentos ultraprocessados, promovendo sua hiperpalatabilidade e sua conveniência e estimulando o consumo compulsivo”.

Com efeito, levantamento do IBGE feito entre os anos de 2003 e 2009 e divulgado em dezembro de 2010 confirma que o consumo anual por pessoa de alimentos como arroz e feijão diminuiu, ao passo que o dos processados, como embutidos, refrigerantes e refeições prontas, subiu. “A não regulação do marketing desses produtos no Brasil permite sua oferta e propaganda em todos os ambientes, como escolas, hospitais e farmácias, promoção por celebridades, uso de alegações saudáveis sem base científica comprovada, descontos na compra de grandes porções, uso de personagens e heróis do universo infantil e inclusão de brindes, entre tantas técnicas da publicidade”, explica Monteiro. O especialista lamentou a decisão da Justiça ao conceder a liminar à Abia. “O marketing molda normas sociais. Diz que o tamanho certo de um refrigerante, por exemplo, é de médio para grande. Há várias maneiras de fazer isso, e nossos publicitários são os mais competentes”.

Na casa do educador, escritor e músico Gerson Borges Martins, de 41 anos, a decisão foi radical. “Optamos por eleger a segunda-feira como o dia da televisão desligada. No começo as crianças estranharam, mas a gente sempre encontra outra atividade para se divertir”, explica. Casado com a professora Rosana Marcia Borges e pai de Bernardo e Pablo, ele procura os espaços públicos de lazer em sua cidade, São Bernardo, para levar os filhos. “É preciso pôr um freio nesse consumo desenfreado proposto pelas mídias, que gera crianças problemáticas e adultos emocionalmente infantilizados.”

A experiência foi inspirada em seu pai, ainda na cidade do Rio de Janeiro, onde nasceu e passou a infância. “Ele era um homem simples, operário, mas muito sábio. Um dia radicalizou, tirou a televisão de casa. O efeito disso foi que aos 6 anos de idade eu já estava alfabetizado. Canalizei a criatividade para a música e a leitura.” Na casa de Gerson o efeito é semelhante. Bernardo, aos 6 anos, lê e adora mangás. “Hoje em dia não há como evitar o acesso às mídias. Temos de ser criteriosos e vigilantes”, diz o pai.


Como o mundo cuida das crianças

Algumas regras sobre publicidade infantil

• Alemanha – Os programas infantis não podem ser interrompidos por publicidade e não se devem usar crianças para apresentar vantagens especiais e características de produtos não adequados a elas.

• Áustria – A publicidade é proibida nas escolas.

• Bélgica – Não são permitidas propagandas voltadas a crianças menores de 12 anos na região flamenga. Cinco minutos antes ou depois dos programas infantis, não se pode veicular nenhum tipo de publicidade.

• Canadá – Pessoas ou personagens conhecidos pelas crianças não podem promover ou endossar produtos ou serviços. Há limite de 8 minutos de publicidade comercial a cada hora de programação para crianças. Na província de Quebec a publicidade de produtos direcionados a crianças menores de 13 anos não é permitida em nenhuma mídia.

• Dinamarca – É proibido todo tipo de publicidade durante programas infantis e cinco minutos antes ou depois.

• Estados Unidos – Limite de 10 minutos e 30 segundos de publicidade por hora, nos fins de semana. Durante a semana são 12 minutos por hora. É proibida a vinculação de personagens infantis à venda de produtos nos intervalos de programas desses mesmos personagens.

• Holanda – As tevês públicas não podem interromper programas infantis dirigidos a crianças menores de 12 anos com publicidade.

• Inglaterra – Proibidos, na televisão, anúncios de alimentos com alto teor de gordura, sal e açúcar para menores de 16 anos. Também não é permitida publicidade para crianças que ofereça produtos ou serviços por telefone, e-mail, correio, internet ou celular. Antes das 21 horas não são autorizadas propagandas apresentadas por personalidades ou personagens que despertem interesse particular das crianças, como fantoches, marionetes ou bonecos. Também são proibidos efeitos especiais que induzam a pensar que o produto faz mais do que na realidade.

• Irlanda – Proibida qualquer publicidade durante os programas infantis nas tevês abertas.

• Itália – Proibida a publicidade de qualquer produto ou serviço durante a programação de desenhos animados.

• Luxemburgo – Publicidade proibida nas escolas.

• Noruega – A publicidade não pode ocupar mais de 15% da programação diária da tevê. Peças direcionadas a crianças menores de 12 anos são proibidas. Durante a exibição da programação infantil não pode haver publicidade.

• Suécia – Proibida a publicidade na tevê dirigida a crianças menores de 12 anos até as 21 horas. Não há comerciais durante a programação infantil, nem imediatamente antes ou depois.

Fonte: Cartilha “Por Que a Publicidade Faz Mal para as Crianças?”, do Projeto Criança e Consumo
Revista Problemas Brasileiros

Professor - Do prestígio ao desgaste e desencanto



Foi-se o tempo em que o professor era tratado com respeito e admiração.
Hoje lecionar chega a ser perigoso

SILVIA KOCHEN



Em 1958, Maria Aparecida Justa da Silva Schoenacker realizava o grande sonho de sua vida. Aos 19 anos, assumia o cargo de professora primária efetiva em Barra do Chapéu, uma localidade afastada que na época era um distrito do município de Apiaí, no vale do Ribeira (sul do estado de São Paulo). Ela tinha acabado o curso normal, que formava professores primários, e passado no concurso. A pequena comunidade rural não tinha conforto, mas o salário era bom e ser professor era estar entre as figuras mais prestigiadas do local, no mesmo nível que o padre, o tabelião, o delegado ou o juiz.

“Hoje, Barra do Chapéu é um município de 5 mil habitantes, mas naquela época só se conseguia chegar lá a cavalo ou de jipe”, lembra a professora, atualmente aposentada. “Quando chovia, então, ficava-se sem condições de usar a estrada por 30 ou 40 dias e o contato daquela comunidade de 400 pessoas com o resto do mundo só era possível por meio de dois radinhos de pilha, uma vez que não havia energia elétrica.” Maria Aparecida conta que seu pai a levou para lá quando ela foi assumir a vaga, mas quis trazê-la de volta imediatamente ao ver o local. A jovem professora bateu o pé e ficou.

Como se tratava de uma típica escola rural, tinha também um anexo que servia de moradia, mas já havia um professor solteiro na casa. Então, Cida (como Maria Aparecida costuma ser chamada) foi morar com a tabeliã do local. “Eu era muito urbana, mas aprendi a conviver com o pessoal de lá”, conta ela. Um dos artifícios dessa convivência foi permitir que os alunos incorporassem o vocabulário local nos trabalhos escolares. Um exemplo é a expressão “passar de vereda”, que significa passar de lado. “Mas tive de fazer um ‘dicionário’ com os termos normalmente aceitos para que eles usassem quando o inspetor de ensino viesse fazer os exames.”

Cida conta que ganhava muito bem, mas economizava 80% de seu salário e passava fome por um único motivo: não havia onde gastar. Suas refeições se resumiam a feijão com farinha e de vez em quando frango. “Nós três, eu, a tabeliã e o outro professor, éramos as pessoas mais importantes do local”, diz ela, orgulhosa. Como era jovem, recebeu inúmeras propostas de casamento por lá, mas tinha outros planos: quase dois anos depois, passou no vestibular da Universidade de São Paulo (USP) e foi fazer graduação em ciências sociais, recebendo o salário de professora.

Durante a faculdade, Cida prestou concurso para lecionar no segundo grau (atual nível médio) e acabou deixando o cargo de professora primária. Com o marido, também professor de nível médio, ela comprou em 1967 uma casa a prestações, hoje avaliada em R$ 500 mil. Ambos tinham qualidade de vida e se obrigavam a acompanhar os jornais, os lançamentos de cinema, teatro e tudo o que de importante havia para atualizar constantemente o nível de informação que ofereciam aos alunos.

Antes e agora

A situação dos professores atualmente é bem contrastante com aquela que se via há cinco décadas. Hoje eles enfrentam uma jornada estafante, salários baixos, falta de infraestrutura para dar aulas (de escassez de material didático a prédios com infiltrações) e, o pior, indisciplina generalizada, que frequentemente chega ao desrespeito e a agressões, verbais ou mesmo físicas.

Jaime Guimarães é professor de inglês. Praticamente, como todos os colegas, entrou na profissão por acaso. “Na verdade, nunca sonhei em dar aulas.” Ele começou a estudar desenho industrial, mas se desencantou após um semestre. Buscou, então, o curso de letras, porque tinha a intenção de se tornar jornalista mais tarde e achava que assim teria uma boa base em português, redação e cultura em geral. Acabou, porém, se interessando pelas teorias de educação que viu na faculdade e virou professor há 13 anos.

A maioria dos colegas de Jaime, no entanto, não encara o magistério como uma profissão para sua vida. “Muitos professores que fazem licenciatura [curso universitário que forma professores de disciplinas específicas do ensino fundamental e médio] não pretendem seguir o magistério ou, se muito, desejam ficar por apenas algum tempo; estão sempre procurando oportunidades de trabalho fora da sala de aula”, diz ele, que também chegou perto de abandonar as aulas para fazer outra faculdade, mas resolveu “dar outra chance à educação”.

Jaime conta que, no começo, teve muita dificuldade para lidar com os alunos, todos adolescentes. Seu maior obstáculo, porém, foi a distância entre o que se aprendia sobre educação na faculdade e a realidade que ele encontrava na escola, entre a teoria apresentada nos livros e o contexto em que ele trabalhava na prática. “Tive de lidar com alunos agressivos – não em termos físicos, mas verbais – e com um sistema que engessava qualquer tentativa de mudança na concepção de aula e educação.”

Ele conta uma história para explicar por que acha que o sistema é avesso a mudanças e a experiências que se afastem do quadro-negro tradicional. Há 11 anos em Salvador, o professor leciona inglês nas redes estadual e municipal e tem uma turma noturna de educação de jovens e adultos (EJA) – o mesmo que supletivo – em uma escola da periferia da cidade. Esses alunos estão acostumados ao esquema tradicional, em que o professor “enche” o quadro de conteúdo, passa exercícios, corrige e pronto. A primeira dificuldade de Jaime é convencer seus alunos de que é importante estudar inglês, idioma que está presente no dia a dia com termos como bacon, light, diet, rock’n’roll... Então, ele busca trabalhar com o ponto forte dos alunos, que é a oralidade.

Certa noite, ele levou para a classe um disco com a música Hello, Goodbye, dos Beatles, apropriada para iniciantes em inglês. Depois de dar explicações sobre o grupo e o contexto da época, o professor disse que iriam cantar em inglês. Os alunos – que tinham de 20 a 50 anos e voltaram à escola depois de interromper os estudos na infância ou adolescência – duvidaram e até debocharam da proposta. Ao final da aula, estavam todos cantando, empolgados, “you say goodbye, and I say hello...” A vice-diretora da escola, ao ouvir o zum-zum-zum na saída, foi perguntar a eles como fora a aula. Eles responderam que não tinha havido aula, mas sim cantoria. “Ou seja, eles não tiveram de copiar um quadro cheio de palavras nem escreveram nada, então, não houve aula”, observa o professor.

A vida de Jaime não é fácil. Ele dá cerca de 60 aulas por semana – de manhã, à tarde e à noite – para conseguir se sustentar. Diz que lecionar em escola pública, apesar do salário, é melhor do que em escola particular e cita um caso ocorrido com uma amiga para justificar. Ela lecionava em um colégio de porte médio em Salvador, que já fechou as portas, e um aluno do primeiro ano do ensino médio perguntou o significado de uma palavra, que na hora ela não sabia. Foi o que bastou para esse aluno humilhá-la em sala de aula. “Você já foi a Miami? E a Nova York? Eu vou todos os anos. E você? Acho que você nunca foi nem ao Paraguai.” A professora, que de fato nunca tinha tido oportunidade de viajar ao exterior, manteve-se firme, enquanto outros alunos se juntavam ao primeiro. Ao final, foi obrigada a ouvir: “Meu pai é quem paga o seu salário, que é menos do que o do porteiro lá do meu prédio”.

Para muitos professores, a escola particular não é melhor do que a pública em geral. Tem os mesmos problemas: drogas, violência, bullying. Porém, devido ao marketing e ao fato de os alunos serem vistos como clientes, há todo um esforço para que a informação sobre isso não ultrapasse os muros da escola.

Menos professores

Qual a explicação para as condições de indisciplina e as agressões que os docentes sofrem diariamente no trabalho? Praticamente todos falam em mudanças de valores. Antigamente, o professor era o exemplo a ser seguido e o responsável pelas lições inesquecíveis que se recebiam nos primeiros anos de vida. Hoje, com a televisão, o modelo é o jogador de futebol, o pagodeiro, a atriz... Valoriza-se aquele que obteve ascensão social, e o professor é considerado um fracassado em termos de dinheiro e fama.

Não surpreende que o número de docentes que se formam nas universidades brasileiras caia a cada ano. De 2005 a 2009, o total de graduandos nos cursos de pedagogia e normal superior, que formam educadores para os primeiros anos do ensino fundamental, caiu de 103 mil para 52 mil, segundo o Censo da Educação Superior, realizado anualmente pelo Ministério da Educação (MEC). Nesse período, o contingente de pessoas que terminaram cursos de licenciatura também diminuiu, de 77 mil para 64 mil. Vale ressaltar que no mesmo intervalo o número de estudantes que concluem o ensino superior brasileiro a cada ano cresceu 15%, de 717 mil para 826 mil. Quando se observa a ociosidade das vagas de pedagogia no ensino superior brasileiro, verifica-se que a situação é realmente crítica: em 2009, apenas 90 mil alunos começaram uma graduação na área, que tem 200 mil vagas disponíveis em todo o país.

Além de cada vez menos professores se formarem, muitos deles deixam a carreira, desencantados com o salário, as condições de trabalho e a falta de perspectivas na maioria dos estados brasileiros. Por isso, teme-se pela falta desses profissionais no Brasil. O resultado já pode ser visto em diversos locais. Em boa parte, os docentes em atividade hoje não são formados e muitos atuam no magistério apenas enquanto procuram um emprego melhor. Para tentar reverter essa situação, o MEC resolveu adotar uma política de formação e valorização de professores.

Para estimular os jovens, o ministério estabeleceu políticas como o piso nacional salarial (R$ 950 por uma jornada de 40 horas) e o Plano Nacional de Formação de Professores, que deve beneficiar 332 mil educadores em exercício na rede pública de ensino até o final deste ano. Os institutos federais de educação, ciência e tecnologia estão investindo na formação de docentes da educação básica e devem reservar 20% de suas vagas a cursos de licenciatura em matemática, física, química e biologia, para ajudar a suprir a demanda por professores dessas disciplinas.

O MEC também instituiu mudanças no Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) para favorecer a formação de docentes. Os professores das redes públicas de educação básica que cursaram ou estejam cursando uma licenciatura com empréstimo do Fies poderão abater 1% da dívida ao mês, sem que o valor seja debitado de seu salário, desde que trabalhem no mínimo 20 horas semanais. Outra facilidade para que os professores obtenham o diploma de nível superior vem do Programa Universidade para Todos (ProUni). Docentes da rede pública de educação básica que concorrem a uma bolsa em curso de licenciatura, normal superior ou pedagogia não precisam cumprir o critério de renda, desde que estejam em efetivo exercício e integrem o quadro permanente da escola.

Porém, o principal entrave na política de valorização do professor e do ensino público adotada pelo MEC está na autonomia da atuação das unidades da federação. O MEC pode dar as diretrizes, mas a responsabilidade pela gestão da rede pública de ensino fica a cargo dos governos estaduais e municipais. Assim, nem todos os estados têm uma política salarial ou um plano de carreira capaz de estimular docentes a continuar em sala de aula.

Na Bahia, por exemplo, o salário de um professor de nível médio é de cerca de R$ 600 por 20 horas-aulas, mas chega a R$ 900 quando se incluem vários adicionais, como auxílio-transporte e gratificação por tempo de serviço. A situação em São Paulo, o estado mais rico do país – com 220 mil docentes, em uma rede de 5,3 mil escolas – não é muito melhor. O piso salarial para o professor que leciona matérias específicas a partir da quinta série do ensino fundamental é de R$ 1.844,15 para uma jornada de 40 aulas semanais. No final da carreira, com uma série de bônus, alguns concedidos através de avaliações, esse mesmo professor, segundo a Secretaria da Educação paulista, pode no entanto chegar a ganhar R$ 6 mil.

Vale lembrar que o magistério é uma das profissões com regulamentação especial pela Consolidação das Leis do Trabalho, com jornada de trabalho e tempo de aposentadoria diferenciados dos das demais categorias de trabalhadores, por causa do estresse e das responsabilidades que implica. A função exige atenção integral durante todo o tempo em turmas que muitas vezes chegam a 50 crianças, entonação de voz diferente para fazer com que todos ouçam, atividade fora do expediente para corrigir provas e trabalhos ou preparar material para os alunos...

Em tais condições, os professores dificilmente chegam ao fim da carreira em sala de aula. Muitos sofrem com depressão, problemas de voz ou de audição, síndrome de burnout (esgotamento que acomete profissionais que sofrem pressão do público – como médicos, professores, atendentes de telemarketing etc.). Assim, é comum mudarem de profissão, ou então passarem a prestar serviços fora da sala de aula – na biblioteca ou secretaria da escola, por exemplo.

Transformações

A doutora Neide Noffs, diretora da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), afirma que antigamente a sociedade respeitava o professor, mas hoje ele fala e os pais de alunos duvidam. Atualmente, segundo ela, a desconfiança permeia a relação entre a escola e a família, e o professor precisa aprender a lidar com a mudança de valores que ocorreu nas últimas décadas.

Neide conta que começou a trabalhar na década de 1970 como professora de educação infantil da Escola Experimental da Lapa e teve um choque com a realidade, pois o que havia estudado dificilmente servia em sala de aula. “Como fazer os alunos entenderem que eu tinha autoridade sem ser autoritária? Como mantê-los entretidos por quatro horas seguidas? O que fazer quando uma criança sai correndo pelo pátio?” Para vencer o desafio de sua falta de experiência, ela contou com o apoio da equipe da escola.

Em 40 anos de prática, Neide observou muitas mudanças, uma das quais foi o deslocamento do foco do ensinar para o aprender. O professor, antes única e máxima autoridade do conhecimento, passou a ser instrumento do saber e, também, um ser que está em constante aprendizado. A relação entre educador e aluno, que era vertical, tornou-se horizontal. A escola elitista de outrora deu lugar a uma instituição mais inclusiva.

Essas transformações se deram através de um longo caminho. A expansão do ensino, a partir dos anos 1970, ajudou a mudar muita coisa. Antes, no Brasil, a escola se destinava aos ricos e havia um modelo de ensino em que se pressupunha que o estudante tinha acesso a livros e tudo o que fosse preciso dentro de sua casa. O aluno pobre tem uma série de necessidades – de materiais escolares e fontes de informação, para citar algumas – que só começaram a ser atendidas muito recentemente, mas acabam gerando conflitos com professores que não sabem lidar com diferenças e deficiências. A questão da postura do educador continua em aberto, uma vez que, embora o autoritarismo de antigamente tenha sido banido, muitos professores, por não saberem se colocar, acabam assumindo posições autoritárias, como explica Neide.

A diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP acredita que as coisas andam melhorando um pouco e cita a nova legislação, de 2006, sobre a formação do pedagogo, como um avanço. A partir daí, os cursos passaram a focar a preparação do professor, com orientações para organizar aulas, manter um clima amistoso com os alunos e mediar o relacionamento da escola com a família.

Atualmente, trabalha-se com conhecimento articulado em concepções biopsicossociais, analisando-se uma situação sob diversas perspectivas (psicológica, social etc.), algo bem diferente de antes, quando havia matérias estanques de sociologia, psicologia, teoria do desenvolvimento e outras, mas não existiam elementos para que esse conhecimento fosse aplicado em situações reais, diz Neide. “Antigamente, se pensava no professor de educação infantil como uma pessoa que iria cuidar de crianças, mas hoje ele é um profissional que vai estimulá-las em seu processo de aprendizado.”

Segundo Neide, a degradação salarial contribuiu para afastar talentos do magistério e criou-se a ideia, falsa, de que pedagogia seria o curso superior mais fácil. Assim, ele passou a ser procurado por pessoas de baixa renda com o objetivo não de ensinar, mas de obter ascensão social. Houve uma evasão muito grande de profissionais, que foram para outras áreas, e o magistério se tornou uma ocupação predominantemente feminina.

“O governo precisa assumir uma política de valorização do professor, com aumentos de salário, acesso a internet, segurança e medidas que ajudem a melhorar o ensino público”, diz Neide. Ela lembra que não existe escola gratuita porque o sistema público é custeado por toda a sociedade e, por isso, é preciso ter o mesmo cuidado que se tem com outros serviços essenciais.

Sem estímulo

Vera Cambrea, professora de prática de ensino em ciências e supervisora de estágios dos cursos de licenciatura da Universidade Metodista de São Paulo, confirma que as condições de trabalho dos professores atualmente são muito pesadas, com problemas relacionados a disciplina, salário e estrutura física das escolas. “Como alguém vai querer ser professor se não há como trabalhar decentemente?”, pergunta. Ela observa que a maioria de seus alunos, licenciandos na área de ciências, não querem ser professores, eles apenas buscam o diploma. “Felizmente, essa visão acaba mudando ao longo do curso”, relata.

Com um histórico de supervisão de cerca de 200 estágios, Vera conhece bem a realidade das escolas paulistas. Na rede pública, encontramos violência, indisciplina e professores omissos, que não querem dar aulas. A falta de respeito é cada vez maior, diz ela, atribuindo o problema à ausência de diálogo e de orientação familiar. “Quando há um evento de indisciplina, primeiro tenta-se conversar com o aluno, depois com os pais, mas normalmente estes não comparecem à escola quando chamados, o que prejudica o diálogo”, diz Vera. “Faltam limites; os jovens não têm noção do que é o seu espaço e o do outro e por isso as relações se tornam conflituosas.”

Nos estabelecimentos privados, o problema é pior. Vera, que já deu aula em escolas públicas e particulares e hoje se dedica apenas à universidade, conta que muitos estudantes dizem que pagam e é inútil o professor reclamar do comportamento de alguns deles. Ela lembra que, certa vez, um aluno fez uma montagem com a foto de um professor, colocando sua cabeça sobre um corpo nu, e publicou-a na internet, além de levar cópias impressas da figura para a escola. Os educadores descobriram uma dessas folhas e, assim, souberam do acontecido. Recolheram as cópias e conseguiram tirar a foto montada da internet. Contudo, não foi tomada nenhuma outra providência, e ambos continuaram na escola. “Creio que, se fosse hoje, o professor teria recorrido à delegacia de crimes virtuais e buscado uma indenização”, afirma. Ela sabe, no entanto, que os estabelecimentos particulares, principalmente os menores, relutam em tomar uma atitude por medo de perder alunos e, consequentemente, dinheiro.

Vera diz que a situação das escolas públicas paulistas parece ter melhorado um pouco nos últimos quatro anos porque atualmente elas recebem material didático que tem, inclusive, sugestões de atividades práticas e todo o necessário para que elas sejam realizadas. “Há professores que não gostam desse material, mas muitos sentem que agora há um direcionamento.”

Apesar desse quadro lamentável, Vera diz que, se pudesse, voltaria para as salas de aula do ensino fundamental e médio. Ela foi professora substituta e eventual na rede pública por um bom tempo, porque decidiu não assumir a vaga que conquistou por concurso. “Ficava muito longe de minha casa e eu já trabalhava em uma escola particular.” Hoje, dá aulas apenas na universidade, mas sente saudades. “Não tem nada igual a ensinar e ver aquele brilho no olhar das crianças, aquele espanto quando faço uma experiência e elas dizem que parece mágica, aquela coisa de o aluno pedir conselho e tentar se espelhar na figura do professor.”
Revista Problemas Brasileiros - SESC-SP

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Pais e professores, uma relação difícil

São comuns os conflitos acerca da responsabilidade de cada um na formação das crianças. A solução está na aproximação entre as partes
Nathalia Goulart


(Thinkstock)


A relação entre pais e professores inclui, já faz algum tempo, boa dose de tensão. O assunto voltou à tona com força no fim do ano passado, quando um professor americano chamado Ron Clark resumiu as reclamações de boa parte dos mestres da seguinte maneira: professores não são babás de alunos, ao contrário do que pensam seus pais. Ele acusa os pais de repassar à escola suas responsabilidades, recusando, contudo, as regras impostas pela instituição educadora. Seu artigo, chamado "O que os professores realmente querem dizer aos país", tornou-se o segundo mais compartilhado no Facebook em 2011 (o primeiro trata do desastre da usina de Fukushima, no Japão), trocado mais de 630.000 vezes – prova de que a discussão é, no mínimo, pertinente. O texto ecoou em outros países e também no Brasil. "Por aqui, os pais perderam a habilidade de impor limites a seus filhos. Agora, tentam impor limites à escola, interferindo na atividade dos professores", diz a educadora Tânia Zagury, autora do livro Escola sem Conflito: Parceria com os Pais. De acordo com uma pesquisa realizada pela escritora, 44% dos professores apontam a ausência de limites como causa principal da indisciplina em sala de aula: um quinto dos profissionais responsabiliza a família pelo problema.


Do outro lado da linha, os pais também reclamam de intromissões da escola em disposições que acreditam justas. É o que vive a empresária Marcela Ulian, de 34 anos, mãe de um garoto de 6 anos – o nome dele, assim como o da instituição, um renomado colégio privado paulistano, serão omitidos a pedido da empresária. Há alguns meses, Marcela contesta uma determinação da escola que proíbe alunos de portar dispositivos eletrônicos, como celular ou tablet, no interior da instituição. "As crianças não podem ficar alheias às novas tecnologias. Acho inclusive que os professores podem ensinar que aqueles aparelhos podem servir como material educativo", diz Marcela. Não houve acordo. Para a escola, é em casa que as crianças devem aprender a fazer uso dos aparelhos. "Continuo não concordando com a escola e seguirei tentando provar que estou certa."

Não raro, as queixas de um lado e de outro são mais severas; outras revelam exageros flagrantes. Há, por exemplo, relatos de professores contestados por pais porque atribuíram uma nota baixa a um aluno, ou por tê-lo repreendido por comportamento inadequado. Preocupados com as reclamações de parte a parte, educadores se debruçaram sobre a questão. Descobriram duas razões principais para os desentendimentos. A primeira é uma transformação sofrida pela engrenagem familiar, fruto das mudanças sociais dos últimos 50 anos. Um exemplo disso: nesse período, as mulheres, tradicionalmente encarregadas de acompanhar o crescimento das crianças em casa, ganharam definitivamente o mercado de trabalho, distanciando-se da antiga função. "A consequência disso é que as escolas passaram a ser responsáveis também pela educação moral das crianças. A família moderna demandou isso delas", diz Maria Alice Nogueira, educadora e especialista em sociologia da educação.

A segunda razão envolve um movimento em sentido oposto: a intromissão dos pais em assuntos sobre os quais as escolas antes mantinham monopólio. À medida que as famílias perceberam que a ascensão nos bancos escolares é sinônimo de ascensão social e econômica, passaram a cobrar mais de instituições e professores, que antes davam as cartas na sala de aula – não por acaso, "mestre" é uma designação que quase não se aplica mais a professores. "O êxito proveniente da educação formal levou a família a interferir nos assuntos escolares", diz Maria Alice.

Excetuados os exageros, os educadores de olho na questão alertam que a nova realidade exige nova atitude. "O que ouço dos docentes em momentos como esse é aquela velha história de que, antigamente, eles eram mais respeitados", diz a educadora Elaine Bueno. "Esse é um discurso velho, pois os tempos mudaram: os pais não enxergam mais o professor e a escola como autoridades inquestionáveis. Eles precisam aceitar isso e prestar contas de seu trabalho."

O caminho da convivência harmoniosa exige trabalho intenso de pais e professores, garantem escolas que já o perseguem. Entre as lições aos professores (confira o quadro abaixo), estão orientações como jamais desqualificar ações dos pais diante dos filhos. É o que prega Sylvia Figueiredo, sócia-fundadora do colégio Castanho Lourenço, de São Paulo. Certa vez, ela descobriu que uma mãe fazia o dever de casa do filho. "Em nenhum momento, desmereci a atitude da mãe diante do menino, apesar de estar certa de que a conduta dela interferia negativamente no desempenho dele", conta. O assunto foi tratado em uma conversa a portas fechadas, cara a cara, entre a educadora e a mãe. "É preciso muito treinamento para lidar com os pais. A relação é uma bomba-relógio e pode explodir a qualquer momento se você puxa o fio errado na hora de desarmá-la." Aos pais, em situações como essa, cabe a lição de ao menos ouvir atentamente a posição do educador.

O esforço vale a pena. A harmonia entre as partes é valiosa para a educação – é o que apontam estudos na área. Uma pesquisa encabeçada pela Fundação Getulio Vargas, por exemplo, mostra que os efeitos da presença dos pais na vida escolar se fazem notar por toda a vida adulta. Na infância e na adolescência, a participação da família está associada a notas até 20% mais altas e riscos de evasão até 64% inferiores. "Gostamos de deixar claro aos pais que a interferência deles no processo educativo é saudável. Mas ambas as partes precisam estar abertas ao diálogo", diz Celina Cattini, diretora geral do Colégio Visconde de Porto Seguro. "Muitos professores sentem saudade do tempo em que os pais respeitavam a autoridade da escola. Mas é preciso lembrar que aqueles eram tempos em que havia respeito, mas não havia interação entre escola e família: isso não é bom para as crianças." Celina tem razão.

Revista Veja

Os maiores mitos sobre o cérebro dos adolescentes

Nas últimas duas décadas, os cientistas conseguiram mapear as mudanças neurais verificadas ao longo desse período central do desenvolvimento...