sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

A educação fantástica



A educação fantástica

No cotidiano escolar extraordinário, professores e alunos são de carne e osso

Gabriel Perissé*

O que seria uma educação fantástica?

Não é aquela que só existe em nossa fantasia. Uma educação sem problemas e conflitos, depurada de tudo o que incomoda na dura realidade. Uma escola feita de sonho. Uma escola bucólica, sem sinais de bullying . Uma escola de conto de fadas. Uma escola em que imperassem a pontualidade e a limpeza absolutas. A alegria e a paz. A harmonia e o amor. Professores serenos, alunos brilhantes, pais interessadíssimos. Não é nessa educação fantástica que estou pensando.

Também não me refiro a uma educação fora do comum, extraordinária, prodigiosa. Uma educação que "arrebentasse a boca do balão". Professores que fizessem o milagre da aula perfeita. Alunos geniais que estudassem tudo e ainda se esmerassem para além do obrigatório. Uma escola de ponta. Onde todo mundo lesse todos os livros de ponta a ponta. E todos tivessem a resposta certa na ponta da língua. Educação em ponto de bala!

Tampouco educação fantástica seria aquele projeto extravagante, bizarro, cheio de originalidades que nos deixassem perplexos. Professores super-heróis, professoras transformadas em mulheres-maravilha, todo mundo sobrevoando currículos, grades e parâmetros. Aulas sobre temas do outro mundo. Alunos excêntricos, superdotados. Uma escola que seria um centro de cultura transcendental, voltada para o século 25!

Nada disso. A educação fantástica em que estou pensando é a educação que temos aqui e agora. Na esquina, no bairro. Mas que pode ser vista e vivida de outro modo. De um modo fantástico .

Tentarei explicar o fantástico dessa educação com a ajuda do escritor Murilo Rubião, considerado por muitos o "Kafka brasileiro".

Todo aluno é fantástico
Quando concebo a educação fantástica, não me distancio do nosso dia a dia. O fantástico da educação real está em continuar sendo real, visível, reconhecível. Professores de carne e osso, alunos interessados, ou dispersivos, ou apáticos, ou intratáveis. Educação com altos e baixos. Escolas boas, escolas ruins, escolas médias, aulas horríveis, aulas excelentes, aulas medianas. A realidade já é fantástica!

Nos textos do escritor mineiro Murilo Rubião (1916-1991), o estranho e o sobrenatural não são coisas estranhas e sobrenaturais. Fazem parte do mundo. O absurdo é componente natural da realidade.

Num dos seus contos mais conhecidos, Teleco, o coelhinho , o encontro entre narrador e Teleco transcorre com naturalidade. Essa naturalidade é espantosa de tão natural que é.

O coelhinho se aproxima e pede um cigarro. O narrador se comove com a polidez daquele coelhinho cinzento, cujos olhos estão cheios de mansidão e tristeza. Em poucos minutos tornam-se grandes amigos. O narrador, que vive sozinho, convida o coelhinho abandonado para morar em sua casa. E o animal falante faz suas perguntas e ponderações:

- Por acaso, o senhor gosta de carne de coelho?
Não esperou pela resposta:
- Se gosta, pode procurar outro, porque a versatilidade é o meu fraco.
Dizendo isso, transformou-se
numa girafa.
- À noite - prosseguiu - serei cobra ou pombo. Não lhe importará a companhia de alguém tão instável?
Respondi-lhe que não e fomos morar juntos .

A verdade literária é que todos somos instáveis. E versáteis. Coelho, girafa, cobra e pombo são diferentes possibilidades de um mesmo ser. O perfil do aluno é apenas um contorno, uma notícia concisa, a visão limitada da complexidade que habita uma pessoa.

Educação fantástica consiste em perceber, sem fazer disso motivo de escândalo, que cada pessoa tem mais de uma face. E tem lá as suas fases, seus momentos. E diz frases contraditórias, assumindo a esperteza de uma cobra, a rapidez de um coelho, a altivez de uma girafa, ou a ingenuidade de um pombo.

Os alunos são fantásticos porque são todos diferentes e escapam das avaliações padronizadoras. Não é fantástico ver um aluno excelente em uma ou duas disciplinas, bom em outras duas, medíocre em várias e, numa terceira, pura nulidade? Fantástico e totalmente natural. Estranho mesmo é que não saibamos lidar com a realidade.

Não faltam exemplos de alunos fantásticos.

O genial cientista sueco Carlos Lineu (século 18) era visto como aluno fraco, e ainda por cima fugia das aulas para observar plantas.

O naturalista Charles Darwin (século 19) foi considerado um aluno com raciocínio lento ("travado", diríamos hoje), porque não acompanhava a evolução das aulas!

O escritor alemão Thomas Mann, ganhador do Nobel de Literatura em 1929, era apontado como um mau aluno - desprezava os professores e vivia lendo o que bem entendia.

Jean Gabin (século 20), um dos maiores atores do cinema francês (deu vida ao comissário Maigret nos filmes baseados na obra de Georges Simenon), era tachado de mau aluno durante a adolescência.

O escritor Graciliano Ramos tinha uma "reputação lastimosa" na escola, ele próprio afirmava. Menino calado, retraído, pensavam os professores que era um "quase idiota".

O inesquecível sambista e ator Adoniran Barbosa ia estudar a contragosto. Foi expulso do grupo escolar no terceiro ano primário!

Na área da educação brasileira contemporânea, professores fantásticos fizeram feio na escola: Carlos Rodrigues Brandão, Doutor em Ciências Sociais e poeta - "até perto dos 18 anos fui um típico mau aluno carioca" -; José Santiago Naud, cofundador da Universidade de Brasília - "fui um mau aluno [...], uma vez reprovado em latim e três em filologia" -; Rubem Alves, mestre de tantos professores, articulista desta revista, repete em livros e palestras, com todas as letras, que foi um mau aluno.

Curiosidade fantástica
Em outra de suas histórias, A cidade , Murilo Rubião fala de Cariba, único passageiro de um trem que, inexplicavelmente, parou numa estação e não prosseguirá viagem. Cariba é obrigado a descer. Dirige-se ao povoado mais próximo em busca de informações. Pergunta aos habitantes que encontra pelas ruas qual o nome da cidade, se é cidade nova ou velha, quem manda no município... Ninguém lhe responde nada.

A polícia vem prendê-lo. Recai sobre ele a acusação de fazer muitas perguntas. Estranhas perguntas. O delegado ouve as testemunhas. E formaliza a prisão pelo crime de "exagerada curiosidade".

Quantos alunos fantásticos, curiosos demais, não têm espaço para suas perguntas inconvenientes? E ficam presos na cadeia do tédio. Como Cariba. Que não sabe se um dia será libertado. Caminha de um lado para outro da cela, perguntando a si mesmo como foi parar ali!

* Gabriel Perissé ( www.perisse.com.br ) é doutor em Filosofia da Educação (USP), pesquisador do NPC - Núcleo Pensamento e Criatividade

Dois idiomas, uma criança

Estudos apontam que alunos bilíngues apresentam ganhos cognitivos, mas o diálogo entre as línguas ainda é delicado na alfabetização

Carmen Guerreiro

Escola Stance Dual, em São Paulo: alunos bilíngues desenvolvem melhor a atenção

Um aluno do 2º ano do ensino fundamental aparece no corredor da escola e desperta a atenção da coordenadora geral de inglês, que o interpela: "Shouldn't you be in class?" (você não deveria estar na aula?) - "I'm gonna play now!" (agora eu vou brincar!), responde ele, indo para o recreio. Em seguida, uma menina ainda mais nova passa pela coordenadora, que pergunta: "Hello, what did you learn in class today?" (olá, o que você aprendeu na aula hoje?), ao que ouve como resposta: "fossils!" (fósseis). Apesar de não demonstrar sotaque ou qualquer dificuldade para entender e se expressar em inglês, essas crianças são brasileiras, mas educadas desde cedo em uma escola bilíngue.

A cena, presenciada pela reportagem na escola bilíngue Stance Dual, em São Paulo, vem ao encontro de um estudo das instituições Concordia University, York University e Université de Provence, publicado em janeiro no periódico acadêmico Journal of Experimental Child Psychology. Segundo a pesquisa, crianças bilíngues não apenas não confundem os dois idiomas que aprenderam, como tendem a se focar mais em tarefas e a desenvolver uma atenção melhor do que seus pares monolíngues.

O resultado, obtido a partir da observação de um grupo de 63 crianças de dois anos de idade, pode ser explicado, segundo Diane Poulin-Dubois, pesquisadora que coordenou a experiência, pelo fato de as crianças bilíngues estarem acostumadas a prestar atenção na diferença entre as duas línguas que conhecem, tanto para ouvir quanto para se expressar.

A educação bilíngue também tem sido objeto de outros estudos no campo da educação, tendo como foco não apenas as capacidades que ajuda a desenvolver, mas os âmbitos em que a própria linguagem atua, em especial no contexto escolar formal. "Existe a linguagem social e a acadêmica. A criança que faz um curso de inglês vai aprender a se comunicar socialmente, mas não terá os conteúdos epistemológicos exigidos por uma escola internacional", conjectura Daniella Leonardi, coordenadora de educação infantil e de inglês da escola bilíngue Play Pen, de São Paulo.

Nesse sentido, a psicóloga Elizabete Flory, doutora em bilinguismo pelo Instituto de Psicologia da USP, fez um levantamento de pesquisas no mundo todo sobre educação bilíngue e constatou que esses alunos apresentam vantagens cognitivas. "A primeira é uma certa antecipação da consciência metalinguística - eles se dão conta de que o objeto tem palavras diferentes para representá-lo e diferenciam com qual língua falar com cada pessoa", explica. Outro benefício é uma possível antecipação de pensamento cognitivo em cálculos. "Isso está ligado ao desenvolvimento da lógica, pois as crianças bilíngues aceleram essa forma de pensar", afirma. Elizabete aponta, no entanto, que não é sempre que o bilinguismo é acompanhado de vantagens cognitivas. "Não dá para falar que ele aumenta a inteligência. Mas crescer falando duas línguas pode ter influências positivas em alguns aspectos da inteligência", frisa.

Alfabetização
Mas se as pesquisas hoje sobre educação bilíngue derrubaram o mito de que ensinar dois idiomas confunde as crianças, há um momento em que o diálogo entre as línguas é mais delicado: na alfabetização, período em que a criança passa pelo processo de aprendizagem dos processos de codificação e decodificação da língua escrita. Quando a criança ingressa no ensino bilíngue, a escola deve tomar alguns cuidados como escolher em qual dos dois idiomas vai introduzir a leitura e a escrita - ou se vai alfabetizar nas duas línguas ao mesmo tempo. Elizabete explica que há três tipos de alfabetização: a sequencial materna-segunda língua, a sequencial na segunda língua seguida da materna, e a simultânea, na qual ambos os idiomas são ensinados. Para ela, ainda que a opção pela alfabetização sequencial seja mais confortável, a criança que fala duas línguas já está fazendo hipóteses de como vai fazer isso na segunda língua.

Selma Moura, doutoranda em linguística aplicada pela Unicamp e mestre em educação pela USP, é adepta da ideia de que a criança faz a transferência da alfabetização em uma língua para a outra, mas crê que este é um processo bilíngue, e não simultâneo. "Não são duas alfabetizações, é uma só. Quando a criança entende o código da língua, só vai fazer uma mudança, uma transposição de som", observa. Elisabete ressalta que a transferência de conhecimentos entre línguas a partir de apenas um processo de alfabetização depende do segundo idioma. "Quanto mais próximas as línguas, mais existe a transferência do aprendizado. Se for português e japonês, ou russo, ou árabe, a criança vai ter de construir também um outro sistema", afirma Elizabete.

No Brasil, o mais comum tem sido a alfabetização no idioma materno, seguida de um processo natural de aquisição da segunda língua, sem a repetição do processo. "A alfabetização tem de acontecer na primeira língua, porque assim a criança levanta hipóteses sobre a escrita a partir do seu maior repertório, do seu contexto", afirma Gabriela Argolo, coordenadora pedagógica da Play Pen. Para ela, o aluno que se alfabetiza uma vez só, em português, transfere as descobertas que fez no código dessa língua matriz para outra que aprenda depois. Na Escola Suíço-Brasileira, em São Paulo, a alfabetização começa pela língua materna, mas como existem alunos de 24 nacionalidades na instituição (60% brasileiros e 20% suíços), cada um é alfabetizado na sua língua materna, e não necessariamente no português. No 1º ano, portanto, a criança é alfabetizada em sua língua materna, no 2º ano no alemão (ou no português, dependendo de sua nacionalidade), no 6º ano é introduzido o inglês, no 8º ano o francês e, no primeiro do ensino médio, o espanhol (a única língua optativa). "Todas as línguas são trabalhadas como ferramentas, e não como línguas estrangeiras", esclarece Bernhard Beutler, diretor da escola.

Na prática
"A criança é bilíngue, mas a aula não é bilíngue", diferencia Andrea, coordenadora da Stance Dual. Lá, como na maior parte das escolas bilíngues, ou a aula é em inglês, ou em português. Apesar de a maior parte dos professores - e alguns funcionários - falar as duas línguas, são reconhecidos pela escola como referência em uma delas. Desta forma, se falar em português com um professor com referência em inglês, ainda que o educador fale português, ele irá responder apenas em inglês. A escola utiliza o currículo nacional e distribui os conteúdos para professores com referência em inglês e português. Os alunos têm, por exemplo, aula de matemática e de "math" - o conteúdo não se repete, apenas é ensinado ora em português, por um professor, ora em inglês por outro docente. A partir disso, a escola desenvolve projetos disciplinares integrados com as duas línguas. A carga horária começa com imersão no inglês para crianças a partir de dois anos, quatro horas por dia. A partir do ensino fundamental, as aulas vão das 7h30 às 15h30 e o português entra na grade curricular.

A estratégia de imersão na segunda língua na educação infantil, para depois fazer a alfabetização na língua materna no fundamental é recorrente nas escolas bilíngues, apesar de a idade de admissão variar dependendo da instituição - geralmente de um a três anos. Depois, a carga de inglês diminui e a de português aumenta progressivamente.

O currículo, porém, não é apenas baseado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), mas também em conteúdos internacionais. A vantagem de adotar currículos de fora do país é justamente a de aumentar as chances de que os alunos saiam da escola e ingressem em instituições estrangeiras sem desvantagem de conteúdo. "Não adianta ter duas escolas, uma que segue os international standards e outra que segue os PCNs. Deve-se construir um currículo integrado. Na nossa matemática, no 4º ano do currículo brasileiro, as crianças têm frações. Depois que aprenderam o conceito de fração, vão transferir para o vocabulário do inglês. Aí, vão estudar outros conteúdos, como não exigidos pelo currículo nacional", exemplifica Daniella Leonardi, da Play Pen.

Cuidados
É preciso observar alguns aspectos na hora de trabalhar dois idiomas na escola. O primeiro passo para matricular uma criança numa escola bilíngue deve ser a escolha de uma instituição com valores e filosofia com os quais os pais se identifiquem, recomenda Elizabete. Em seguida, é preciso checar a proficiência dos professores no idioma e o número de horas que a criança ficará exposta a outra língua. Um terceiro ponto é observar se o aluno está, depois de algum tempo, adquirindo proficiência em pelo menos um dos idiomas. Introduzir a segunda língua com naturalidade e sem pressão é o que Selma Moura, da Unicamp, recomenda. Para ela, é preciso observar o interesse da criança e seu nível de desenvolvimento no idioma. "É uma postura responsável por parte da escola alfabetizar em uma língua (geralmente o português), mas acho problemático tolher a curiosidade da criança. Se ela perguntar como se escreve algo antes do tempo, ou na outra língua, o professor deve dar a informação", diz.

A escola bilíngue Maple Bear segue o preceito de trabalhar dois idiomas respeitando o tempo de aprendizado das crianças. Para isso, aplica o conceito canadense de "instrução diferenciada", que traz flexibilidade do aprendizado. "Podem ser grupos flexíveis que progridem no seu próprio ritmo e com apoio focado do corpo docente, ou a realização, em torno de um tema, de atividades diferentes para cada aluno, respeitando seu estilo de aprender", explica Jim Leary, diretor pedagógico para a América do Sul.

Outra questão é a época de começar. Ana Paula Mariutti, presidente da Organização das Escolas Bilíngues de São Paulo, diz que não existe uma idade certa, mas sim uma idade em que a língua é tratada com mais naturalidade. "Muitos pais pensam que colocar o filho em uma escola bilíngue cedo não adianta porque ele não entende nada. Mas só aprendemos a língua quando somos expostos a ela", diz.

Internacionais ou bilíngues?
Apesar de as escolas internacionais se considerarem bilíngues e de as bilíngues muitas vezes oferecerem a oportunidade de obter um diploma internacional, tradicionalmente, uma escola internacional é aquela que está habilitada para ensinar o currículo de um outro país (o que permite que os estudantes egressos sejam aceitos por universidades estrangeiras com mais facilidade), enquanto uma escola bilíngue é aquela que usa no mínimo dois idiomas para ministrar as disciplinas tradicionais e o currículo nacional (embora muitas vezes ele seja complementado com o internacional). Se antes o público dessas escolas era praticamente todo estrangeiro, hoje é, em sua maioria, composta de brasileiros interessados em uma formação mais ampla. No Brasil, ainda existem outros três subtipos de escolas bilíngues: as interculturais indígenas, escolas para surdos e as de fronteira, que recebem docentes de países vizinhos que ministram aulas de espanhol.

Adoção gradativa
Há escolas monolíngues no Brasil que estão investindo na implantação do ensino bilíngue. O Colégio Dom Bosco, que integra o Sistema de Ensino Dom Bosco, é uma delas. Até 2016, a instituição oferecerá a opção de ensino bilíngue para as famílias. A ideia é acostumar os alunos a um segundo idioma usado no dia a dia escolar. Primeiro vão acostumar os professores (que dão aula em português) a utilizar sempre dicionários em sala de aula para trabalhar com os estudantes palavras do conteúdo em inglês. Depois, os alunos refarão provas dos anos anteriores, mas traduzidas para o inglês. Assim, gradativamente, estratégias de implantação do inglês serão introduzidas, com provas a cada seis meses para garantir que os alunos estão adquirindo vocabulário na segunda língua. O sistema recomenda às escolas que seja criado o período integral, um em português de acordo com os PCNs, outro em inglês, com os padrões internacionais. Outra experiência está sendo feita pela Systemic Bilingual, um conjunto de método, formação e material criados pelas irmãs alagoanas Fátima e Vanessa Tenório e presente em 45 escolas brasileiras, da educação infantil ao 7º ano do ensino fundamental. Um dos princípios é aumentar o custo do ensino o mínimo possível, para não haver muita diferença na mensalidade. Por isso, a Systemic trabalha com a proposta de um professor de inglês dar aulas em inglês sobre todas as disciplinas, complementando e trabalhando paralelamente com os professores especialistas. A Systemic não alfabetiza em inglês - apenas aproveita a alfabetização em português para introduzir o segundo idioma.

Pedagogia do encantamento


Escolas resgatam arte secular de contar histórias e utilizam recurso para ensinar conceitos interdisciplinares
Lívia Perozim
Causos, contos de fadas, fábulas e histórias encantadas são uma porta de entrada para o mundo da imaginação. Atentas à importância dessas narrativas maravilhosas, escolas públicas e particulares estão se apropriando cada vez mais da prática de contar histórias e se especializando nas técnicas utilizadas pelos contadores.

O Centro de Estudos e Convivência Infantil Arraial das Cores, na zona oeste de São Paulo (SP), adota o hábito de contar história há 20 anos. "As histórias são contadas todos os dias e para todas as turmas. As crianças gostam e pedem a roda de história", diz Michele Sasson Salama, diretora da escola. As histórias começam a ser contadas para crianças a partir de 1 ano de idade. "No caso das crianças mais novas, usamos livros de figuras que tenham a ver com a vivência delas"

Se muitas histórias são retiradas dos livros, por que a escolha pela oralidade e não pela leitura? Contador profissional de história há 12 anos e especialista na área, Ilan Brenman diz que a escrita é uma fabricação cultural, artificial, enquanto o ato de contar histórias existe há mais de cem mil anos. "Quando se conta uma história, muita coisa é deixada com o outro, com quem ouve. Há uma troca. Já quando se lê um livro, você o fecha e vai embora", explica Brenman. Para o especialista, a narrativa oral é parceira da literatura: "Ela serve para despertar a curiosidade, formar novos leitores. Após ouvir uma história, as pessoas querem saber de onde ela foi retirada. Os ouvintes vão atrás do livro que contém essa história."

Além do incentivo à leitura e à criatividade, a prática de contar história aumenta o repertório verbal e o nível de participação dos alunos em sala de aula, e melhora a capacidade de escuta e atenção.

A história transmite valores éticos, sedimenta conhecimento e aconselha. Isso tudo, porém, diz Brenman, só funciona se não for feito de uma maneira impositiva. "Não funciona contar uma história para ensinar que é feio bater no amiguinho, jogar lixo no chão. É preciso fazer a criança pensar, não ditar regras", alerta o psicólogo com mestrado em educação.

Para iniciar uma narração oral não é necessário usar a tão conhecida expressão "Era uma vez". Cada pessoa começa da maneira que quiser. O importante é que o professor conheça bem a história que está contando, estude e goste de seu conteúdo. Quando o educador entende a narrativa, ele pode escolher melhor para qual faixa etária a história é mais apropriada e até onde pode explorá-la.

Também não há regras para um local específico, mas é aconselhável que se arranje um espaço confortável, aconchegante e silencioso. Fazer uma roda, segundo Brenman, é mais democrático. "Numa roda não tem, por exemplo, aquela coisa de 'cadê o bagunceiro do fundo?'; todos são iguais."

Quando se fala em contar histórias, a primeira imagem que vem é de uma pessoa fantasiada, que imita vozes e usa recursos como fantoches e música de fundo. Essa é a imagem estereotipada que ficou do contador de histórias e na qual muitas pessoas acreditam.

Não existe um ritual específico para o contador de história. O uso ou não de artifícios fica a critério de cada pessoa. Alessandra Giordano, arte-terapeuta e contadora de histórias há 20 anos, faz uso de um cenário mínimo, como panos coloridos, velas e um sino tibetano."Toda vez que começo uma história, toco esse sino porque assim as portas do 'era uma vez', que é o mundo das possibilidades, se abrem", conta. Porém, a primazia, diz ela, é da palavra.

A utilização de recursos e técnicas pode funcionar como uma barreira para o educador que pretende dar os primeiros passos no mundo do faz-de-conta. O importante é manter o contato com o ouvinte. Ilan Brenman conta que usava fantasias e imitava vozes. Quando começou a trabalhar com professores e ministrar cursos, percebeu que muitos se intimidavam com o uso desses recursos. "Comecei a deixar de lado os artifícios, para a história ser protagonista. Assim os educadores perceberam que também podiam contar histórias, que todo mundo pode", explica.

No entanto, usar acessórios como fantoches, dobraduras, maquetes e marionetes, por exemplo, pode ser uma alternativa para tornar a história mais atraente e prender a atenção dos ouvintes. É o que recomenda Vânia Dohme, no livro Técnicas de Contar Histórias . A publicação é "um guia mastigadinho para os professores que querem entender e aprender mais sobre contação de história", define a autora, que trabalha há 30 anos com o desenvolvimento da técnica para adultos e professores.

Para fazer com que as crianças entendam a linguagem das fábulas e contos, não é preciso simplificá-los ou mudar as palavras para facilitar a compreensão. Os especialistas afirmam que o ideal é deixar as crianças compreenderem o sentido da história pelo seu contexto."Émuitoimportante manter a história fiel à estrutura do texto. No entanto, é necessário avaliar quais livros são interessantes para cada faixa etária", defende a diretora Michele.

Outra questão que gera dúvidas é o que fazer após contar uma história. A máxima da "moral da história" deve ser praticada? Deve-se fazer alguma atividade, como, por exemplo, desenhar a história? Para a contadora Alessandra Giordano, é importante que haja um momento de reflexão após a sessão de história, que as crianças tenham liberdade de dizer o que entenderam ou não. É nesse momento, "do compartilhar", ela explica, que surgem as questões: "As crianças mostrarão o que conseguiram captar. Algumas não têm amadurecimento suficiente para entender o que você está querendo colocar. É nessa hora que o educador tem de fazer seu papel."

Deixar fluir a imaginação da criança nesse momento é fundamental, mas a diretora Michele ressalta também a necessidade de dar um fim à história: "As crianças interagem, falam de suas experiências. A gente tem que ouvi-las, mas tem também que voltar para a história, para que saibam que ela tem um fim."

Para contar boas histórias
· Ler muito
· Escolher uma boa história
· Estudar o texto e conhecê-lo bem
· Incorporar a história
· Arranjar um espaço silencioso
· Adaptar o local à narrativa
· Prestar atenção na platéia
· Ouvir comentários dos alunos
· Dar um fim à narrativa

Os tempos do humor


Os tempos do humor

Após se transformar ao longo da Antiguidade e da Idade Média, riso chega à modernidade para mascarar a incerteza dos tempos atuais

Paulo de Camargo

Veja esta versão anônima do Gênesis, tirada de um papiro alquímico do século III. "Tendo riso Deus, nasceram os sete deuses que governam o mundo... quando ele gargalhou, fez-se a luz... Ele gargalhou pela segunda vez: tudo era água. Na terceira gargalhada, apareceu Hermes; na quarta, a geração; na quinta, o destino; na sexta, o tempo. Antes da sétima gargalhada, Deus inspira profundamente, mas ri tanto que chora, e de suas lágrimas nasce a alma".



Essa enigmática visão, na qual o verbo da bíblia cristã é substituído pelo riso descontrolado do Criador, dá uma boa medida das inúmeras relações entre o ato de rir e os diversos âmbitos da existência humana. O riso está na mitologia, na filosofia, na literatura, na política, na psicologia e no cotidiano - é o que mostra uma das obras referência sobre o tema, História do riso e do escárnio, do pesquisador Georges Minois (Editora Unesp, 2003).
As visões - de uma impressionante multiplicidade, desde a Antiguidade - ajudam a entender os diferentes lugares ocupados pelo riso ao longo dos séculos. Os filósofos estóicos viam no riso a vulgaridade, e também a impotência e o fracasso. Platão desconfiava da ambivalência do riso, que pode estar ligado ao prazer e à dor, ao bem e ao mal, ao gosto e ao desgosto.

A referência mais célebre da filosofia da época, no entanto, vem de Aristóteles, que afirmou ser o homem o único animal que tem a capacidade de rir. Mas esse que foi uma das principais influências do pensamento do mundo ocidental não era também um fã incondicional do humor. Para Aristóteles - como seria politicamente correto hoje -, não se deve rir dos defeitos dos outros, como os sinais físicos. Tampouco é bem vista a zombaria agressiva. Para ele, o riso deve ser fino, comedido.

Uma citação do filósofo, compilada por Minois, não deixa de ser um retrato da época. "Aqueles que, provocando o riso, vão além dos limites são, parece, bufões e pessoas grosseiras, agarrando-se ao ridículo em todas as circunstâncias e visando antes a provocar o riso que levar em conta o propósito de não ofender os que são alvos de suas zombarias", escreve Aristóteles, em A Ética em Nicômaco. Mas, ao mesmo tempo, condena quem nunca brinca como "rústicos e rabugentos".

Séculos mais tarde, outra referência importante chega por um pensador de incontestável importância para a cultura contemporânea: o pai da psicanálise, Sigmund Freud (1835-1930). Em alguns momentos de sua obra, Freud debruça-se sobre o riso, no qual vê uma vitória do "eu", que se recusa a "admitir que os traumatismos do mundo exterior consigam tocá-lo". No apêndice do livro A palavra de espírito, apresenta o humor como uma defesa psíquica contra a dor - a mais sublime delas, pois trabalha a favor da saúde psíquica. Freud explica: "o humor não se resigna, ele desafia, implicando não apenas o triunfo do eu, mas também o princípio do prazer, que assim encontra o meio de se afirmar apesar de realidades exteriores desfavoráveis".

Os três grandes tempos do riso
O riso não mudou, mudaram os tempos, lembra Georges Minois. Provavelmente hoje se ri das coisas do cotidiano quase do mesmo modo como se fazia em tempos imemoriais, e por isso somos capazes de rir de um texto de Aristófanes ou de Molière. Mas o lugar do humor na sociedade, sim, sofreu grandes variações. Na exaustiva arqueologia do riso que faz, o pesquisador estabelece três grandes etapas, que chama de riso divino, riso diabólico e riso humano.

A Antiguidade é o tempo da visão divinizante do riso. Em diferentes mitologias, os deuses riem à beça, em diferentes culturas. A concepção é positiva, e o riso está nas festas dionisíacas, na criação e na recriação do mundo, no Olimpo, nas peças pregadas pelos deuses nos mortais, nas sátiras. "Se os deuses riem, é porque eles tomam distância deles mesmos e do mundo. Eles não se levam a sério. E, se os homens riem, isso é para eles uma maneira de sacralizar o mundo, de conformar-se com suas normas, escarnecendo de seus contrários. É também uma forma de endossar o terrível peso do destino, de exorcizá-lo, assumindo", escreve Minois.

Após o advento do cristianismo, no entender do autor, o riso passa a ser coisa demoníaca. A constatação é feita a partir de uma premissa fundamentalista: os evangelhos não fazem menção a nenhum riso de Jesus Cristo. A gravidade da existência e o temor do inferno pesam sobre os cristãos. O riso - feio, grotesco, subversivo - é a "desforra do diabo", explica Minois.

Por fim, na divisão do autor, vem o riso interrogativo e humano pós-medieval, quando entram em questionamento os fundamentos de tudo aquilo em que se acreditava até então. "...O recuo das certezas é acompanhado por uma ambígua generalização do riso, que se insinua por todas as novas fissuras do ser e do mundo. Como um navio em perigo, com o casco furado, a humanidade se enche de riso", escreve. Entram na mira dos engraçadinhos a religião, a política, os diferentes sistemas de poder.

E hoje? Bem, diz Minois, o riso moderno é incerto e "existe para mascarar a perda de sentido". Se antes a força do humor vinha da seriedade do ambiente onde estava inscrito, ou seja, construía-se contra certezas, hoje o riso seria pura evasão. "Ele não é mais nem afirmação, nem negação, antes, é interrogação, flutuando sobre um abismo em que as certezas naufragaram", reflete. Mas é justamente por isso, conclui Minois, que o riso se tornou mais indispensável do que nunca.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A Educação Infantil na Idade Média




A Educação Infantil na Idade Média [1]

Ricardo da Costa
Prof. Adjunto de Hist. Medieval da UFES
Universidade Federal do Espírito Santo.
Home-page: www.ricardocosta.com
riccosta@npd.ufes.br

No Brasil, a Idade Média ainda é citada por muitos néscios como um tempo de ignorância e barbárie, um tempo vazio, um tempo em que a Igreja escondeu os conhecimentos que naufragaram com o fim do Império Romano para dominar o “povo”. Nesse movimento consciente e ideológico em direção às trevas, o clero teve como aliado principal a nobreza feudal. Juntos, nobreza e clero governaram com coturnos sinistros e malévolos todo o ocidente medieval, que permaneceu assim envolto em uma escuridão de mil anos, soterrado, amedrontado e preso a terra num trabalho servil humilhante [2] .

Quem ainda acredita piamente nesse amontoado de tolices ficará agradavelmente surpreso, espero, com o tema desse trabalho, que não poderia ser mais propício. Minhas perguntas básicas serão: existiu educação na Idade Média? E ciência? E as crianças? É incrível, mas há quase quarenta anos atrás o próprio Jacques Le Goff perguntou: “teria havido crianças no Ocidente Medieval?” [3] Seguindo a trilha deixada por Philippe Ariès [4] , ele buscou a criança na arte e não a encontrou. É verdade. Apressadamente concluiu então que a criança foi um produto da cidade e da burguesia [5] e, portanto, o mundo rural não a conheceu. Pior: a conheceu sim, mas a desprezou, marginalizando-a [6] .

Deixo claro então que minha perspectiva será bastante diferente. Responderei sim a todas àquelas perguntas, opondo-me a Jacques Le Goff e a Philippe Ariès [7] . Para provar isso, dividi minha narrativa em duas partes: primeiro, busquei a condição infantil registrada pela História na Alta Idade Média (séculos V-X) para, a seguir, tratar da estruturação das ciências que Ramon Llull (1232-1316) apresentou a seu filho Domingos quando, em um ato de puro amor paterno, escreveu um livro para ele, a Doutrina para crianças [8] .

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Falei há pouco de amor paterno. O amor é uma forma muito profunda e especial de afeto, difícil de ser descrito, difícil de ser registrado a não ser nas emoções daqueles que o compartilham. Por isso, a História registra sempre o que se veste, onde se vive, o que se come, mas dificilmente narra como se ama, especialmente a intensidade e a forma do amor [9] . Os tipos de textos consultados pelos historiadores - as Crônicas, por exemplo - estão mais atentos aos acontecimentos importantes, aos personagens e à política. Assim, ofereceram pouco espaço para o mundo infantil, deixando muitas perguntas que não puderam ser respondidas satisfatoriamente. Por exemplo: como pais e filhos exprimiam seus carinhos, suas incompreensões? De que forma as crianças apreenderam o mundo existente? Como reagiram à escola e aos estudos?

De qualquer maneira, o fato é que, historicamente, o papel da criança sempre foi definido pelas expectativas dos adultos [10] , e esse anseio mudou bastante ao longo da história, embora a família elementar e o amor tenham existido em todas as épocas [11] . Vejamos então o caso medieval.

A primeira herança da Antigüidade não é nada boa: a vida da criança no mundo romano dependia totalmente do desejo do pai. O poder do pater familias era absoluto: um cidadão não tinha um filho, o tomava. Caso recusasse a criança - e o fato era bastante comum - ela era enjeitada. Essa prática era tão recorrente que o direito romano se preocupou com o destino delas [12] . E o que acontecia à maioria dos enjeitados? A morte [13] .

A segunda herança que a Idade Média herda da Antigüidade, a cultura bárbara, foi-nos passada especialmente por Tácito. Ele nos conta que a tradição germânica em relação às crianças era um pouco melhor que a romana. Os germanos não praticavam o infanticídio, as próprias mães amamentavam seus filhos e as crianças eram educadas sem distinção de posição social [14] . O povo germânico era composto por um conjunto de lares, com dois poderes distintos: o matriarcal, exercido no seio da família, e o patriarcal, predominante na política e na organização social [15] . No entanto, o destino das crianças naqueles clãs, como na cultura romana, também dependia da vontade paterna (direito de adoção, de renegação, de compra e venda). A criança aceita ficava aos cuidados dos parentes paternos (agnatos) e o destino dos bastardos, órfãos e abandonados era entregue aos parentes maternos, especialmente a tios e avós maternos [16] .

Dessas duas tradições culturais que se mesclaram e fizeram emergir a Idade Média, concluo que o status da criança naquelas sociedades antigas era praticamente nulo. Sua existência dependia do poder do pai: se fosse menina ou nascesse com algum problema físico, poderia ser rejeitada. Seu destino, caso sobrevivesse, era abastecer os prostíbulos de Roma e o sistema escravista [17] . Até o final da Antigüidade as crianças pobres eram abandonadas ou vendidas; as ricas enjeitadas - por causa de disputas de herança - eram entregues à própria sorte [18] .

Nesse contexto histórico-cultural é que se compreende a força e o impacto do cristianismo, que rompeu com essas duas tradições [19] . O Cristo disse:

Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se tornar pequenino como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus. (Mt 18, 1-4).

A tradição cristã abriu, portanto, uma nova perspectiva à criança, uma mudança revolucionária [20] . No entanto, foi um processo bastante lento, um processo civilizacional levado a cabo pela Igreja. Primeiro, por força das circunstâncias. Por exemplo, dos séculos V ao VIII, na Normandia, o índice de mortalidade infantil era muito elevado, 45%, e a expectativa de vida bem pequena, 30 anos [21] . À primeira vista, esses dados arqueológicos poderiam sugerir ao historiador um sentimento de descaso para com a criança: a regularidade da morte poderia criar nos espíritos de então uma apatia, um medo de se apegar a algo tão frágil que poderia morrer à primeira doença [22] .

Paradoxalmente, ao invés disso, a documentação nos mostra que havia um grande apego dos pais aos filhos, apesar da mortalidade infantil. Em sua História dos Francos, Gregório de Tours nos conta o sentimento de tristeza e a lamentação de Fredegunda (concubina e depois esposa do rei dos francos Chilperico), quando da morte de crianças:

Essa epidemia que começou no mês de agosto atacou em primeiro lugar a todos os jovens adolescentes e provocou sua morte. Nós perdemos algumas criancinhas encantadoras e que nos eram queridas, a quem nós havíamos aquecido em nosso peito, carregado em nossos braços ou nutrido por nossa própria mão, lhes administrando os alimentos com um cuidado delicado [...] O rei Chilperico também esteve gravemente doente. Quando entrou em convalescença, seu filho mais novo, que não era ainda renascido pela água e pelo Espírito Santo, caiu enfermo. Assim que melhorou um pouco, seu irmão mais velho, Clodoberto, foi atingido pela mesma doença, e sua mãe Fredegunda, vendo-o em perigo de morte e se arrependendo tardiamente, disse ao rei: “A misericórdia divina nos suporta há muito tempo, nós que fazemos o mal, porque sempre ela nos tem advertido através das febres e outras doenças, mas sem que nos corrijamos. Nós perdemos agora os nossos filhos, eis que as lágrimas dos pobres, as lamentações das viúvas e os suspiros dos órfãos os matam e não nos resta esperança de deixar os bens para ninguém. Nós entesouramos sem ter para quem deixar. Os tesouros ficarão privados de possuidor e carregados de rapina e maldições! Nossas adegas não abundam em vinho? Nossos celeiros não estão repletos de trigo? Nossos tesouros não estão abarrotados de ouro e de prata, de pedras preciosas, de colares e outras jóias imperiais? Nós perdemos o que tínhamos de mais belo! Agora, por favor, venha! Queimemos todos os livros de imposições iníquas e que nosso fisco se contente com o que era suficiente ao pai e rei Clotário.” (Gregório de Tours, Historiae, V, 34) (os grifos são meus) [23]

Pois bem. Fredegunda, uma das mulheres mais cruéis da História, apesar de filha de seu tempo bárbaro, chora a morte de seus filhos e afirma que perdeu o que tinha de mais belo [24] . Mesmo nessa aristocracia merovíngia rude e cruel – no pior sentido da palavra [25] – há espaço para amor materno.

Por sua vez, fora do mundo secular, um espaço social lentamente impôs uma nova perspectiva à educação infantil: o monacato [26] . Os monges criaram verdadeiros “jardins de infância” nos mosteiros [27] , recebendo indistintamente todas as crianças entregues [28] , vestindo-as, alimentando-as e educando-as, num sistema integral de formação educacional [29] .

As comunidades monásticas célticas foram as que mais avançaram nesse novo modelo de educação, pois se opunham radicalmente às práticas pedagógicas vigentes das populações bárbaras, que defendiam o endurecimento do coração já na infância [30] . Pelo contrário, ao invés de brutalizar o coração das crianças para a guerra e a violência, os monges o abriam para o amor e a serenidade [31] .

As crianças eram educadas por todos do mosteiro até a idade de quinze anos. A Regra de São Bento prescreve diligência na disciplina: que as crianças não apanhem sem motivo, pois “não faças a outrem o que não queres que te façam.” [32] Toco aqui em um ponto importante e de grande discussão na História da Educação. O sistema medieval e monástico previa a aplicação de castigos. Na Bíblia há passagens sobre os castigos com vara que devem ser aplicados aos filhos [33] ; na Regra de São Bento há várias passagens (punição com jejuns e varas [34] , pancadas em crianças que não recitarem corretamente um salmo [35] ), e esse ponto foi muito destacado e criticado pela pedagogia moderna, que, no entanto, não levou em consideração as circunstâncias históricas da época [36] . Por exemplo, Manacorda interpreta os castigos do período antigo e medieval como puro sadismo pedagógico [37] , linha de interpretação que permaneceu ao lado da imagem do monge medieval como uma pessoa frustrada e desiludida amorosamente e que, por esse motivo, buscava a solidão do mosteiro [38] .

Naturalmente isso se deve a um anacronismo e preconceito que não condizem com a postura de um historiador sério. Basta buscar os textos de época que vemos a felicidade dos egressos dos mosteiros pelo fato de terem sido amparados, criados e educados. Darei apenas dois breves exemplos. Ao se recordar do mosteiro onde passou sua infância, São Cesário de Arles (c. 470-542) diz:

Essa ilha santa acolheu minha pequenez nos braços de seu afeto. Como uma mãe ilustre e sem igual e como uma ama-de-leite que dispensa a todos os bens, ela se esforçou para me educar e me alimentar. [39]

Por sua vez, Walafried Strabo (806-849), então jovem monge, nos conta em seu Diário de um Estudante:

Eu era totalmente ignorante e fiquei muito maravilhado quando vi os grandes edifícios do convento (...) fiquei muito contente pelo grande número de companheiros de vida e de jogo, que me acolheram amigavelmente. Depois de alguns dias, senti-me mais à vontade (...) quando o escolástico Grimaldo me confiou a um mestre, com o qual devia aprender a ler. Eu não estava sozinho com ele, mas havia muitos outros meninos da minha idade, de origem ilustre ou modesta, que, porém, estavam mais adiantados que eu. A bondosa ajuda do mestre e o orgulho, juntos, levaram-me a enfrentar com zelo as minhas tarefas, tanto que após algumas semanas conseguia ler bastante corretamente (...) Depois recebi um livrinho em alemão, que me custou muito sacrifício para ler mas, em troca, deu-me uma grande alegria... [40]

Esses são apenas dois de muitos exemplos que contam a felicidade e a alegria que os medievais sentiram com o fato de terem tido a sorte de serem acolhidos em um mosteiro. Assim, devemos sempre confrontar em retrospecto as regras com a vida cotidiana, o sistema institucional com o que as pessoas pensavam dele, para então construirmos um juízo de valor mais adequado e menos sujeito a anacronismos.

Para completar o entendimento do sentido civilizacional dos mosteiros medievais, basta confrontarmos sua vida cotidiana - de educação e disciplina voltada para uma formação ética e moral das crianças - com o mundo exterior. Por exemplo, no período carolíngio (séculos VIII a X), apesar do avanço da implantação da família conjugal simples (modelo cristão) com uma média de 2 filhos por casal e um período de aleitamento de dois anos, a prática do infanticídio continuava comum, a idade média dos casamentos era muito baixa (entre 14 e 15 anos de idade), a poligamia e a violência sexual eram recorrentes, pelo menos na aristocracia [41] e ainda havia a questão da escravidão de crianças [42] . Confronte você, caro leitor, essa realidade com a vida de uma criança em um mosteiro.

Por sua vez, os bispos carolíngios do século IX tentaram regulamentar o casamento cristão, redigindo uma série de tratados (espelhos) [43] . Neles, o casamento era valorizado, a mulher reconhecida como pessoa com pleno direito familiar e em pé de igualdade com o marido e a violência sexual denunciada como crime grave e do âmbito da justiça pública [44] . Para o nosso tema, o que interessa é que as crianças também foram objeto de reflexão nesses espelhos: a maternidade foi considerada um valor (charitas) e o casal tinha a obrigação de aceitar e reconhecer os filhos [45] .

Assim, a ação da ordem clerical foi dupla: de um lado, os bispos lutaram contra a prática do infanticídio, de outro, os monges revalorizaram a criança, que passou por um processo de educação direcionada, de cunho integral e totalmente igualitária – por exemplo, as escolas monacais carolíngias davam preferência a crianças filhas de escravos e servos ao invés de filhos de homens livres, a ponto de Carlos Magno ser obrigado a pedir que os monges recebessem também para educar crianças filhas de homens livres [46] . Estes séculos da Alta Idade Média foram cruciais para a implantação do modelo de casamento cristão conhecido por todo o mundo ocidental, para a valorização da mulher como parceira e igual do marido e para a idéia de criança como ser próprio e com necessidades pedagógicas específicas [47] . Por fim, a sociedade era pensada como o conjunto de pessoas casadas (ordo conjugatorum), e a criança tinha um papel fundamental nessa estrutura, pois era o fim último da união.

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Mulher, criança, minorias revalorizadas na Idade Média em relação à Antigüidade. Para completar esse quadro compreensivo, quero responder à terceira pergunta feita no início: qual era o conceito de educação que alicerçava esse novo sistema pedagógico medieval? Essa é uma resposta relativamente mais simples. Para os homens da época, as palavras eram transparentes: havia um prazer muito grande em saborear o sentido etimológico delas. Os intelectuais de então diziam que o homem é um ser que esquece suas experiências. Ele consegue resgatá-las através da linguagem [48] . Assim, a expressão educação era entendida como estando associada à sua raiz etimológica latina: educe, “fazer sair”. Como o conhecimento já existia inato no indivíduo, restava responder à seguinte pergunta: de que modo o estudante era conduzido da ignorância ao saber? [49] Como o aluno aprendia? Essa era a questão básica dos educadores medievais. Preocupados com a forma da aquisição, os pedagogos de então tiveram uma importante consciência: cabia ao professor “acender uma centelha” no estudante e usar seu ofício para formar e não asfixiar o espírito de seus alunos [50] . Muito moderna a educação medieval! [51]

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[1] Este artigo é dedicado ao meu amigo e colega de trabalho, Prof. Josemar Machado Oliveira (UFES), que certa vez presenteou-me com um belo livro (GIMPEL, Jean. A Revolução Industrial da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977) e aproveitou o ensejo para dizer-me que não existiu ciência na Idade Média!

[2] Um excelente livro que apresenta estes mitos e os destrói completamente é HEERS, Jacques. A Idade Média, uma impostura. Porto: Edições Asa, 1994.

[3] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, vol. II, p. 44.

[4] ARIÈS, Philippe. L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime, Paris, 1960.

[5] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval, op. cit., p. 45.

[6] LE GOFF, Jacques. “Os marginalizados no ocidente medieval”. In: O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, p. 169.

[7] Le Goff recupera o tema da criança como não-valor em sua biografia São Luís (Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 84), citando uma farta bibliografia como apoio à sua tese mas somente uma fonte: João de Salisbury (“Não há a necessidade de recomendar muito a criança aos pais, porque ninguém detesta sua carne” - Policraticus, ed. C. Webb, p. 289-290), justamente uma passagem de um texto medieval onde se afirma o amor dos pais em relação aos filhos como algo comum!

[8] Utilizarei minha tradução feita a partir da edição de Gret Schib. RAMON LLULL. Doctrina pueril. Barcelona: Editorial Barcino, 1957.

[9] MARQUES, A H. de Oliveira. A Sociedade Medieval Portuguesa - aspectos de vida quotidiana. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1987, p. 105.

[10] BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Editora Unesp, 2002, 71-72.

[11] Interessante afirmação do antropólogo Jack Goody. Citado em GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”. In: BURGUIÈRE, André, KLAPISCH-ZUBER, Christiane, SEGALEN, Martine e ZONABEND, Françoise (dir.). História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. Lisboa: Terramar, 1997, p. 18.

[12] ROUSSELL, Aline. “A política dos corpos: entre procriação e continência em Roma”. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.): História das Mulheres no Ocidente. A Antigüidade. Porto: Edições Afrontamento / São Paulo: Ebradil, s/d, p. 363.

[13] VEYNE, Paul. “O Império Romano”. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges (dir.). História da vida privada I. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 23-24.

[14] “Limitar o número de filhos ou matar algum dos recém-nascidos é crime; assim seus bons costumes podem mais que as boas leis em outras nações. De qualquer modo, eles crescem desnudos e sem asseio até chegarem a ter esses membros e corpos que admiramos. Os filhos são nutridos com o leite de suas mães, nunca de criadas ou amas-de-leite. Não há distinção entre o senhor e o escravo em nenhuma delicadeza de criança. Passam a vida entre os mesmos rebanhos e na mesma terra até que a idade e o valor distingam os nobres.”― TÁCITO. “Germania”. In: Obras Completas. Madrid: M. Aguilar, Editor, 1946, p. 1026.

[15] GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”, op. cit., p. 24.

[16] GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”, op. cit., p. 28.

[17] DE CASSAGNE, Irene (PUC - Buenos Aires - Argentina). Valorización y educación del Niño en la Edad Media, p. 20 (artigo consultado em www.uca.edu.ar)

[18] ROUSSELL, Aline. “A política dos corpos: entre procriação e continência em Roma”, op. cit., p. 364.

[19] Um dos melhores ensaios a respeito é de JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001, especialmente as páginas 11-148.

[20] DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 20.

[21] ROUCHE, Michel. “Alta Idade Média ocidental”. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges (dir.). História da vida privada I. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 442-443.

[22] Essa idéia - da indiferença como conseqüência do mau hábito - está muito bem expressa no conceito de banalização do mal criado por Hannah Arendt em sua obra Origens do Totalitarismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1990).

[23] Tradução de Edmar Checon de Freitas (doutorando em História Medieval pela UFF) a partir da versão francesa de R. Latouche (GRÉGOIRE DE TOURS. Histoire des Francs. Paris: Les Belles-Lettres, 1999, p. 295-296).

[24] “Fredegunda foi concubina de Chilperico (neto de Clóvis). Ele casou-se com Galasvinta, filha do rei visigodo Atanagildo, e sua irmã, Brunilda, desposou Sigisberto, meio-irmão de Chilperico (Hist., IV, 27-28). Galasvinta acabou assassinada por ordem de Chilperico, ficando Fredegunda como sua primeira esposa (Hist., IV, 28); Gregório insinua uma influência de Fredegunda na morte da rival. Chilperico e Fredegunda figuram nas Historiae como um casal malévolo e sanguinário. A passagem sobre a morte de seus filhos tem de ser lida nesse contexto. Contudo, é importante destacar a forma escolhida pelo autor para sublinhar o castigo divino: a perda dos filhos e herdeiros. O tema da morte das crianças era caro a Gregório. Por sua vez, no capítulo V (22), é narrada a morte de Sansão, outro filho pequeno de Chilperico e Fredegunda. Nascido durante um cerco sofrido por Chilperico - em guerra com o irmão Sigisberto - ele foi rejeitado pela mãe (que temia sua morte). O pai salvou-o e Fredegunda acabou batizando a criança, que morreu antes dos 5 anos. Mais tarde nasceu um outro filho do casal, Teuderico, ocasião na qual o rei libertou prisioneiros e aliviou impostos (Hist., VI, 23, 27). Novamente a desinteria vitimou a criança, com cerca de 1 ano de vida (Hist., VI, 34). O único herdeiro de Chilperico, Clotário, nasceu já no fim de sua vida (Hist., VI, 41; ele foi assassinado em 584). Tornou-se ele rei sob o nome de Clotário II, tendo unificado o regnum Francorum. Chilperico teve outros filhos, de sua primeira mulher, Audovera. Teodeberto morreu no campo de batalha (Hist., IV, 50); Clóvis e Meroveu (Hist., V, 18) foram mortos a mando do pai, o primeiro sob a instigação de Fredegunda. Na ocasião, ela suspeitara de malefícios contra seus filhos, recentemente mortos, nos quais Clóvis estaria envolvido; ela também ordenou a tortura de algumas mulheres suspeitas (Hist., V, 39).” ― FREITAS, Edmar Checon de.

[25] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, vol. I, p. 58-60.

[26] JOHNSON, Paul. História do Cristianismo, op. cit., especialmente as páginas 167-188.

[27] DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 21.

[28] “Sabe-se que as escolas dos mosteiros acolhiam tanto os nobres rebentos da aristocracia quanto os pobres filhos dos servos.” ― NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média. São Paulo: EDUSP, 1979, p. 113.

[29] Mesmo Manacorda, um crítico do período, afirma que “...devemos reconhecer que, na pedagogia cristã, ela (a maxima reverentia) é um elemento novo de consideração da idade infantil” ― MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 1989, p. 118.

[30] Por exemplo, em sua Guerra Gótica, o historiador bizantino Procópio de Cesaréia († 562) nos conta que “...nem Teodorico permitira aos godos enviar os filhos à escola de letras humanas, antes dizia a todos que, uma vez dominados pelo medo do chicote, nunca teriam ousado enfrentar com coragem o perigo da espada e da lança (...) Portanto, querida soberana - diziam a ela - manda para aquele lugar esses pedagogos e põe tu mesma ao lado de Atalarico alguns coetâneos: estes, crescendo junto com ele, o impelirão para a coragem e a valentia segundo o uso dos bárbaros (I, 2)” ― Citado em MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 135-136.

[31] ROUCHE, Michel. “Alta Idade Média ocidental”, op. cit., p. 446.

[32] Regra de São Bento (depois de 529 d.C.), cap. 70. Documento consultado na INTERNET: http://www.ricardocosta.com/bento.htm

[33] “O que retém a vara aborrece a seu filho, mas o que ama, cedo o disciplina.” (Prov. 13:24); “Não retires da criança a disciplina, pois, se a fustigares com a vara não morrerás. Tu a fustigarás com a vara e livrarás a sua alma do inferno.” (Prov. 23.13-14)

[34] “Os meninos e adolescentes ou os que não podem compreender que espécie de pena é, na verdade, a excomunhão, quando cometem alguma falta, sejam afligidos com muitos jejuns ou castigados com ásperas varas, para que se curem.” ― Regra de São Bento, cap. 30 (http://www.ricardocosta.com/bento.htm)

[35] “As crianças por tal falta recebam pancadas” ― Regra de São Bento, cap. 45.

[36] Mesmo nesse aspecto, o das surras, há de se relativizar: um dos maiores sucessos editoriais no Brasil, o livro Meu Bebê, Meu Tesouro, de DELAMARE, defendia que as crianças deveriam levar uma surra todos os dias!

[37] MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 119. Naturalmente Manacorda se refere ao sadismo por parte de quem aplicava o castigo, isto é, os monges. Falo isso porque, certa vez, ao ler parte desse texto em sala de aula na UFES, uma aluna ficou em dúvida se o sadismo era por parte de quem batia ou de quem apanhava!

[38] “Pode haver, com efeito, alguns casos particulares desses tipos. Mas os monges são pessoas que fizeram e fazem livremente a sua opção pela vida silenciosa e penitente, por amor a Deus que transborda na caridade para com o próximo.” ― NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média, op. cit., p. 91-92.

[39] San Cesáreo de Arles, Sermo ad monacho, CCXXXVI, 1-2, Morin, t. II, p. 894. Citado em DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 22.

[40] Citado em MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 135. Esse belo texto medieval também é analisado em NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média, op. cit., p. 157-159 (SÖHNGEN, C. J. De medii aevi puerorum institutione in occidente. Diss. Amsterdam 1900).

[41] TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”. In: BURGUIÈRE, André, KLAPISCH-ZUBER, Christiane, SEGALEN, Martine e ZONABEND, Françoise (dir.). História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. Lisboa: Terramar, 1997, p. 69-84.

[42] “O comércio de escravos fora rigorosamente interdito em 779 e 781 (...) mas continuou, não obstante (...) Agobardo mostra-nos que este comércio vinha de longe (...) conta-nos que no começo do século IX chegara a Lião um homem, fugido de Córdova, onde tinha sido vendido como escravo por um judeu de Lião. E afirma a este propósito que lhe falaram de crianças roubadas ou compradas por judeus para serem vendidas.” ― PIRENNE, Henri. Maomé e Carlos Magno. Lisboa: Publicações Dom Quixote, s/d., p. 228.

[43] Christopher Brooke analisa a história do casamento (O casamento na Idade Média. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d) sem, contudo, tratar da ética conjugal dos espelhos carolíngios, preferindo fazer seu recorte nos séculos feudais (XI-XII).

[44] “O modelo conjugal que a elite religiosa procura então impor como regulador da violência social implica, além disso, um reconhecimento da mulher enquanto pessoa, enquanto consors de pleno direito na sociedade familiar (...) A perfeita igualdade entre os cônjuges é um dos temas mais constantes da literatura matrimonial, em plena concordância com a legislação que, desde meados do século VIII, não cessa de proclamar que a lei do matrimônio é uma só, tanto para o homem como para a mulher.” ― TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”, op. cit., p. 87. Também é desnecessário dizer que a violência sexual da época era contra a mulher.

[45] “Esta temática deverá ser relacionada com a luta que nessa época se travava contra as práticas contraceptivas, o aborto provocado e o infanticídio. Comporta igualmente um dever de educação cristã que tem como resultado, em Teodulfo de Orleães, uma definição do officium paterno e materno.” ― TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”, op. cit., p. 87.

[46] “Que ajuntem e reúnam ao redor de si não só filhos de condição servil, mas também filhos de homens livres.” ― Da Admonitio generalis, cap. 72. In: BETTENSON, H. Documentos da Igreja cristã. São Paulo: ASTE, 2001, p. 168.

[47] Todos esses avanços jurídicos em relação à mulher e à criança foram acompanhados, paradoxalmente, por um discurso clerical anti-feminino! Para esse tema, ver especialmente DUBY, Georges. Eva e os padres. Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. De qualquer modo, é fato que a mulher moderna ocidental hoje desfruta de uma posição social melhor que no Oriente, especialmente nos países de cultura islâmica.

[48] “O gosto que os autores medievais tinham pela etimologia derivava de uma atitude com relação à linguagem bastante diferente da que geralmente temos hoje. Na Idade Média, ansiava-se por saborear a transparência de cada palavra; para nós, pelo contrário, a linguagem é opaca e costuma ser considerada como mera convenção (e nem reparamos, por exemplo, em que coleira, colar, colarinho, torcicolo e tiracolo se relacionam com colo, pescoço).” ― LAUAND, Luiz Jean. Cultura e Educação na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 106.

[49] Esse é um ponto no qual a pedagogia medieval difere enormemente da moderna, pois é quase senso comum hoje afirmar que as crianças são receptáculos vazios (tabula rasa) e o educador enche-as de conteúdo.

[50] PRICE, B. B. Introdução ao Pensamento Medieval. Lisboa: Edições Asa, 1996, p. 88.

[51] Este trabalho é a primeira parte da palestra intitulada "Reordenando o conhecimento: a educação na Idade Média e o conceito de ciência expresso na obra Doutrina para Crianças (c. 1274-1276) de Ramon Llull" proferida na II Jornada de Estudos Antigos e Medievais: Transformação social e Educação - 10 e 11 de Outubro de 2002 - Universidade Estadual de Maringá (UEM), evento coordenado pela Profª Drª Terezinha Oliveira.
http://www.hottopos.com/

Meninos na educação infantil: o olhar das educadoras sobre a diversidade de gênero



Isabel de Oliveira e SilvaI; Iza Rodrigues da LuzII

IDoutora em Educação, Professora da Faculdade de Educação da UFMG/Núcleo de Estudos Infância e Educação Infantil – NEPEI. isabel.os@uol.com.br
IIDoutora em Educação, Professora da Faculdade de Educação da UFMG/Núcleo de Estudos Infância e Educação Infantil – NEPEI. izaluz@bol.com.br

As crianças e suas experiências nos contextos escolares nos primeiros anos de vida vêm se constituindo em objetos do interesse de pesquisadores e pesquisadoras de diferentes campos, especialmente o da educação que, desde 1996 (BRASIL, 1996), incorporou, em sua legislação específica, a responsabilidade pelo cuidado e educação das crianças de zero até seis anos de idade.

De uma área de estudos que focalizou a criança inicialmente pelas faltas, sustentando suas análises nas idéias de carência e de preparação para a escolaridade futura, a Educação Infantil – educação da criança de 0 a 6 anos – vem tomando, nos últimos anos, cada vez mais, as crianças – e a infância ou infâncias – como sujeitos e como objeto a ser conhecido, por meio de lentes teóricas que se afastam de concepções essencialistas e universalistas desses atores e dessa fase da vida (Rocha, 2007; Silva; Luz; Faria Filho, 2010).

Fruto de um movimento social que colocou as crianças no centro da cena pública, argüindo sua condição de sujeito de direitos (Craydy, 1994; Silva, 2008), a produção acadêmica da área da Educação Infantil vem procurando, nos últimos anos, analisar os processos vivenciados pelas crianças nas relações entre si e com os adultos em diferentes contextos, dentre os quais se encontram as instituições de Educação Infantil.

Embora a área de estudos ainda seja intensamente dominada pelas questões relativas às funções dessa etapa da educação – como a tradução do sentido de cuidar e educar para a construção de políticas públicas e práticas pedagógicas – o sujeito criança ganha espaço em um território em que, por vezes, essas mesmas práticas e políticas deflagram conflitos entre os interesses e necessidades das crianças e dos adultos por elas responsáveis – familiares e professoras (Rosemberg, 2001). As reflexões de Faria (2006:282) expressam a complexidade desse ambiente:

Assim, com uma história completamente diferente da história da escola, a creche é um direito à educação também diferente. Ela é constituída por três atores: pais e mães, professoras e crianças. Articula o direito à educação das crianças pequenas com o direito trabalhista dos seus pais e mães. Neste espaço da sociedade vivemos as mais distintas relações de poder: gênero, classe, idade e, lógico, étnicas. Ainda estão para serem melhor e mais estudadas e investigadas as relações no contexto da creche onde confrontam-se adultos – entre eles, professor/a, diretora, cozinheira, guarda, pai, mãe, secretário/a de educação, prefeito/a, vereador/a, etc. –; confrontam-se crianças, entre elas: menino, menina, mais velha, mais nova, negra, branca, judia, com necessidades especiais, pobre, rica, de classe média, católica, umbandista, atéia, "café com leite", "quatro olhos", etc; e confrontam-se adultos e crianças – a professora e as meninas, a professora e os meninos, o professor (percentual bastante baixo, mas existente e com tendência a lento crescimento) e os meninos, o professor e as meninas, o professor e a mãe da menina...

Nesse ambiente, as experiências proporcionadas aos meninos e às meninas vêm sendo, cada vez mais, objeto da análise e da construção de propostas pedagógicas que orientem as políticas e as práticas das educadoras.

Questões de gênero perpassaram as análises da Educação Infantil informadas pelas questões relativas, de um lado, à igualdade de oportunidades para homens e mulheres – na medida em que os cuidados com os filhos restringem, nas nossas sociedades, as possibilidades de vida pública das mulheres – e, de outro, à maciça presença de mulheres entre as educadoras infantis e seus significados relativos às identidades profissionais na área (Silva, 2001; 2008). Nesse sentido, as relações de gênero estão presentes pela via das questões relativas ao feminino e aos sujeitos adultos (Rosemberg, 2001).

São poucos os estudos no Brasil que apresentam análises sobre as experiências das crianças na Educação Infantil tendo como perspectiva teórica – e política – a questão das diferenças e, em especial, a construção de masculinidades e feminilidades. Rocha (1999) constatou que nas pesquisas sobre educação da criança de 0 a 6 anos apresentadas em congressos até os anos 1990 não existiam estudos que analisassem as relações de gênero. Rosemberg (2001) destaca que somente 3% das pesquisas apresentadas nas reuniões da Associação Nacional de Pós-Graduação Pesquisa em Educação – ANPED tratavam dessa temática (Faria, 2006) e, dentre elas, o destaque para as experiências dos meninos é ainda menor. Um silêncio que revela a prevalência dos estudos sobre as mulheres e sobre o feminino nos estudos que tomam o gênero como categoria de análise (Carvalho, 2001). Apesar desse panorama, mais recentemente encontram-se estudos que se debruçam sobre as relações entre a Educação Infantil e as questões de gênero sob novos olhares, privilegiando as análises que tenham como referência as próprias crianças ou as masculinidades adultas (Vianna e Finco, 2009; Finco, 2007; Sayão, 2007; Gomes, 2006; Gobbi, 1997).

Esse interesse é fundamental para aprimorar as práticas pedagógicas na Educação Infantil e para contribuir com a construção de experiências mais democráticas e respeitosas no que diz respeito às questões relativas ao gênero e à sexualidade de profissionais e crianças. Louro (2008:8) afirma que:

a construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúmeras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais.

Assim, as reflexões sobre o modo como as instituições de Educação Infantil colaboram na construção das relações de gênero e de sexualidade das crianças merecem ser incluídas entre as dimensões estruturantes das propostas pedagógicas. Entretanto, para que essa visão se fortaleça, é preciso conceber o processo de desenvolvimento infantil como algo marcado pelas experiências sociais e culturais vivenciadas pelas crianças (Vygostky, 1984; Wallon, 1971). A adoção dessa perspectiva para a compreensão do desenvolvimento humano, ao lado dos estudos feministas e de gênero, reforça a crítica à biologização da sexualidade e a conseqüente naturalização dos modos de ser feminino e masculino. Conforme Louro (2007), lidar com o conceito de gênero significa opor-se a essa naturalização.

Problematizar a noção de que a construção social se faz sobre um corpo significa colocar em questão a existência de um corpo a priori, quer dizer, um corpo que existiria antes ou fora da cultura. A identificação ou a nomeação de um corpo (feita no momento do nascimento, ou mesmo antes, através de técnicas prospectivas) dá-se, certamente, no contexto de uma cultura, por meio das linguagens que essa cultura dispõe e, deve-se supor, é atravessada pelos valores que tal cultura adota. Nesse sentido, seria possível entender, como fazem algumas vertentes feministas, que a nomeação do gênero não é, simplesmente, a descrição de um corpo, mas aquilo que efetivamente faz existir esse corpo – em outras palavras, o corpo só se tornaria inteligível no âmbito da cultura e da linguagem. (Louro, 2007:209)

Para muitas crianças, a instituição escolar é o primeiro lugar público que freqüentam com regularidade, tendo aí a possibilidade de vivenciar experiências culturais distintas das ofertadas pelo ambiente familiar. A centralidade dessa experiência no conjunto das vivências e relações das quais meninos e meninas participam nos primeiros anos de vida torna relevante a investigação e análise desse contexto educativo também por meio da perspectiva que considera o gênero uma dimensão estruturante das relações sociais. Nessa direção, o presente trabalho visa conhecer o que pensam educadoras infantis sobre sua prática com os meninos e as meninas, destacando os primeiros.

A pesquisa foi realizada em uma instituição de Educação Infantil pública de Belo Horizonte1 e teve como objetivo analisar a questão do compartilhamento entre família e escola, dos cuidados e da educação das crianças de 0 a 3 anos. Nas entrevistas, as visões das educadoras sobre seu papel no processo de construção das identidades e das subjetividades das crianças eram um elemento no conjunto das questões relativas ao compartilhamento. O fato das entrevistas não terem como objetivo direto a investigação sobre as questões de gênero revelou-se importante, porque permitiu que identificássemos a presença de concepções contraditórias com as práticas, assim como que as próprias entrevistadas tomassem consciência dessas contradições. Ou seja, na descrição das práticas com as crianças, os sentidos das diferenças de experiências vividas por meninos e meninas emergiam em resposta a questões mais gerais do cotidiano do trabalho na instituição.2

Assim, buscamos captar, numa perspectiva fenomenológica, os sentidos3 e significados que as educadoras atribuem às diferenças entre meninos e meninas.

A análise das manifestações das educadoras acerca das diferenças por elas observadas nos comportamentos dos meninos e das meninas permitiu identificar elementos de uma concepção de masculino (e de feminino) que orienta suas práticas e intervenções no cotidiano das relações com as crianças.

Abordaremos uma das dimensões desse problema: a que discute a experiência dos meninos na Educação Infantil a partir das finalidades expressas para essa etapa da Educação Básica, tendo como eixo a noção de cuidado. Discutiremos, então, os olhares das educadoras sobre as experiências das crianças na escola (e fora dela), procurando apreender/explicitar as concepções subjacentes a eles e suas relações com as condições de formação inicial e continuada das educadoras, bem como com o conjunto das experiências sociais desses sujeitos.



Gênero e Educação Infantil: educadoras, meninos e meninas no ambiente institucional

Ao analisar as experiências de educadoras, de meninos e de meninas em uma instituição de Educação Infantil, Neves (2008) entende as relações entre gênero e identidade na infância como um

momento essencial de apropriação e reconhecimento da fala do outro, ou seja, momento de apropriação da cultura, ou de um mundo para o qual a linguagem se dirige.(...) Assim, as relações de gênero não são apropriadas pelas crianças em si mesmas, mas em um horizonte para o qual essas relações apontam, sendo suas identidades forjadas nesse processo (Neves, 2008:149-150).

O ambiente da instituição de Educação Infantil é concebido e organizado por mulheres cujas concepções informam o conjunto das relações que ali se estabelecem. As representações de feminino e de masculino com as quais as crianças se relacionam são, em grande medida, as representações de suas educadoras (Debortoli, 2008; Neves, 2008). Entendemos, no entanto, que as crianças não apenas reproduzem as representações e práticas dos adultos, mas interagem, negociam e, em muitos casos, transgridem regras impostas. Vianna e Finco (2009) evidenciam a necessidade de refletir sobre as crianças que transgridem os modelos padronizados de masculinidade e feminilidade já que seus comportamentos sinalizam novas possibilidades de construção das relações de gênero.

Diferentes estudos (Vianna e Finco, 2009; Neves, 2008; Finco, 2007; Gomes, 2006) evidenciam que as educadoras proporcionam aos meninos e às meninas experiências distintas ancoradas nos modelos de masculinidade e feminilidade padronizados em função de uma questionável naturalização do que é "mais adequado" para cada sexo e repreendendo o que consideram inadequado.

Neves (2008) constatou a exclusão dos meninos de determinadas situações. Em suas observações, percebeu que momentos de rica interação entre as educadoras e as meninas, como a organização dos ambientes, em geral, não são compartilhados com os meninos. Nesse caso, as concepções de masculino e feminino que orientavam as educadoras observadas remetem a papéis padronizados do homem e da mulher na nossa cultura. Em geral, tais situações são analisadas do ponto de vista do reforço do lugar subordinado da mulher – o que é também verdade – mas, considerando as possibilidades de interação e experiências, os meninos encontram-se na condição de excluídos.

Neves oferece ainda outro elemento, relativo aos cuidados com as crianças, no qual os meninos são excluídos de situações que evidenciam relações afetivas, de prazer da educadora em cuidar do corpo da criança – no caso das meninas – bem como marcadas pela possibilidade de construção de uma imagem positiva de si e de aprendizagem do auto-cuidado.

Os meninos são, da mesma maneira, excluídos de um momento de cuidado que ocupa um lugar de destaque na rotina institucional: pentear o cabelo. Nas entrevistas com as educadoras, evidencia-se o orgulho com o cuidado com o cabelo das crianças, ou melhor, das meninas. Observando algumas educadoras pentearem as meninas, fica impossível não pensar em uma criança brincando com sua boneca, escolhendo penteados, fazendo trancinhas... (Neves, 2008:158).

A autora destaca que, mesmo em relação às meninas, o sentido dessas experiências precisa ser problematizado, pois, em geral, não se pergunta a elas qual penteado desejam, por exemplo. Embora identifique que essa prática, presente na rotina diária, reveste-se de um significado pessoal para o adulto, um "momento isolado da educadora consigo mesma", por outro lado, elas mostram-se amorosas e cuidadosas. E é dessa experiência amorosa e de cuidado que os meninos não participavam. Entrevistando as meninas que vivenciam essa experiência, a autora identificou que, para elas, "não é o penteado em si que é o mais importante, mas, sim, ser cuidada e tocada pela educadora, havendo uma comunicação corporal em jogo da qual as crianças se apropriam" (Neve, 2008:159). Quanto aos meninos, a autora complementa:

Não estamos falando aqui de necessidades que devem ser atendidas com o cabelo sendo penteado exclusivamente por uma questão de higiene e obrigação. Estamos, assim, no campo do desejo e do envolvimento, do toque corporal e afetivo, do cuidado e da vaidade. Ou seja, o cabelo curto não precisa ser penteado, mas esse fato não constitui um obstáculo para que os meninos não sejam tocados por suas educadoras (Neves, 2008:159).

Parece-nos especialmente importante analisar esta questão do ponto de vista das necessidades, dimensão fortemente associada às práticas de cuidados em geral, particularmente com crianças pequenas. Pela análise acima referida, percebe-se que as visões de feminino e de masculino orientam as educadoras na identificação das necessidades dos meninos e das meninas, em que a dimensão afetiva e do toque corporal, no cuidado com os cabelos, não é apreendida como necessidade para além das características de tamanho de cabelos que precisam ou não ser arrumados. As diferentes formas e sentidos do ato de cuidar dependem da capacidade de interação com o outro e de identificar as suas necessidades. Essa capacidade, social e culturalmente construída, supõe aprendizagens de conceitos e habilidades oriundos de diferentes campos do conhecimento (Maranhão, 2000).

Em nossa pesquisa, tais elementos se evidenciaram, mostrando como as concepções, oriundas das experiências sociais mais amplas, nas quais as educadoras constroem suas concepções de masculino e de feminino, se fazem presentes nos cuidados prestados aos meninos e às meninas, bem como se sobrepõem a conhecimentos adquiridos em processos de formação realizados no âmbito das próprias instituições de educação infantil. O caso de um menino e uma menina que são irmãos e freqüentam uma das instituições pesquisadas é ilustrativo dessa questão. Mariana e Marcos4 são irmãos e, na época da observação do cotidiano da instituição de Educação Infantil, estavam com 2 e 3 anos, respectivamente. Nas entrevistas com as educadoras, mesmo com as que não haviam sido educadoras dessas crianças, o caso delas era mencionado espontaneamente diante de questões relativas às dificuldades enfrentadas no trabalho, especialmente no que se referia às relações com as famílias das crianças. De acordo com depoimentos das educadoras, essas crianças são filhas de uma mãe jovem, usuária de drogas, cujo estilo de vida caracterizava-se por negligência com a própria saúde e com a dos filhos, bem como com os demais cuidados com as crianças. Diversas situações de negligência foram relatadas pelas educadoras entrevistadas, mas os exemplos e a indignação expressos por elas em relação aos comportamentos dessa mãe foram todos referidos à menina. De forma distinta, as manifestações sobre as conseqüências dessa situação para o menino necessitavam de estímulo. O silêncio em relação ao menino pode ser interpretado de diferentes maneiras. Talvez as situações que se manifestaram na instituição em relação à menina, um pouco mais nova, tenham sido mais chocantes – como o caso de ausência dela durante vários dias e, quando voltou, por determinação do Conselho Tutelar, apresentava assaduras em estágio avançado, evidenciando negligência com os cuidados básicos no ambiente familiar.

Mas outros elementos de preocupação das educadoras com relação à proteção dessas crianças também foram mencionados, sempre privilegiando a menina como exemplo a ser descrito. As educadoras informaram (por exemplo) terem conhecimento de que a mãe se envolvia com homens diferentes a cada dia e, para manter o vício, encontrava-se em um perigoso universo de relações. Nesse caso, sempre manifestavam sua preocupação, em primeiro lugar, com a menina, que estaria exposta a essas situações enquanto esteve sob a guarda da mãe. Todas manifestaram alívio quando Mariana foi assumida informalmente por uma tia da mãe das crianças, o que não ocorreu com Marcos. Esse fato não apareceu como objeto de preocupação das educadoras. A mesma situação se verificou em entrevista com a atual responsável por Mariana, que declarou seu apego à menina e sua enorme preocupação com os riscos a que estava exposta na companhia da mãe, justamente por ser menina.

Essa experiência de cuidado, proporcionado ou desejado pelas educadoras em relação às meninas e não com a mesma intensidade em relação aos meninos, parece evidenciar que, em relação ao menino, relativizam as conseqüências da negligência familiar. Da mesma forma, conforme identificado por Neves (2008), as necessidades de afeto dos meninos não pareciam entrar nas referências das educadoras. Percebemos, também neste caso, uma imagem de masculino e de constituição do sujeito masculino desprovida da necessidade de cuidados básicos, ou, pelo menos, suavizada, se comparada com o pretendido para as meninas.

As situações de brincadeira configuram-se como importantes momentos de interação entre as crianças, de cuidados (entendidos de forma ampla) e de educação (também em uma compreensão ampliada) por parte das educadoras, o que inclui a constituição das identidades, a construção das imagens de si e dos outros como meninos e meninas. Gomes (2006:40), ao investigar a construção do masculino e do feminino no processo de cuidar de crianças na Educação Infantil, constatou que, mesmo durante as brincadeiras, as educadoras mantêm a vigilância de modo a garantir o cumprimento das normas sociais que dizem respeito à conduta desejável para cada sexo. Os riscos, inovações e exposições exageradas são permitidos aos meninos, enquanto as meninas, tidas como frágeis e delicadas, devem se comportar de modo mais contido e dentro das regras estabelecidas para a brincadeira. Essa atitude revela as estratégias utilizadas para imprimir nos corpos das crianças os significados de gênero desde muito cedo, pondo em curso um processo de masculinização e de feminilização responsável por torná-las "moleques" ou "mocinhas" (Finco, 2007).

Debortoli (2008:85) chama a atenção para as ambivalências presentes nas ações das educadoras no que tange à compreensão sobre os lugares sociais reservados ou não aos homens (e, conseqüentemente, às mulheres) e como se manifestam no cotidiano das relações com as crianças. Realizando observações em uma creche comunitária, o autor reproduz a fala de uma professora que, para orientar o comportamento das crianças no espaço da instituição diz: "cozinha não é lugar de criança, nem de homem". O autor analisa essa fala na perspectiva de Mauss (1971)5, segundo a qual o processo de instauração de condutas passa pelo ordenamento dos corpos e das relações que vão sendo aprendidas, "demarcando lugares sociais de crianças e adultos, meninas e meninos".

Nesse caso, assim como no exemplo trazido por Neves (2008), verifica-se a exclusão dos meninos de determinadas experiências, ainda que no plano discursivo. O autor revela, no entanto, a percepção de que, no conjunto das experiências das educadoras na instituição de Educação Infantil, há um dinamismo que expressa diferentes concepções em diferentes tempos e espaços institucionais e de relações com as crianças. Ele identifica, por exemplo, situações em que, diante da expressão de estereótipos e preconceitos por parte das crianças, a educadora intervém, indicando que meninos e meninas podem brincar juntos, experimentar diferentes papéis, tocando em questões que envolvem as relações gênero e outras diferenças. No entanto, o autor conclui que, no contexto institucional, os espaços, os tempos e seus signos não oferecem oportunidades de sua ressignificação, não proporcionando oportunidades de intervenções intencionais, complexas, com novos sentidos e maneiras de agir segundo um projeto cultural.

Em nossa pesquisa, as educadoras também manifestaram ambigüidades que expressam os conflitos entre as reflexões eventualmente realizadas em processos de formação continuada, oferecidos pela Secretaria Municipal de Educação, em que essas questões são tocadas em alguma medida, e sua experiência social, aquela em que elas próprias constituíram sua identidade feminina, informada, também, pelas visões sobre o masculino. As descrições que emergiram das respostas das educadoras a questões relativas à organização do trabalho com as crianças evidenciam também as contradições ou ambigüidades encontradas por Debortoli.

Ao falar sobre a prática pedagógica com as crianças de 3 anos, Fabíola enfatiza a disponibilidade de brinquedos e de sucatas, objetos que permitem brincadeiras de faz-de-conta:

[Temos] muito brinquedo, muita sucata. (...) A sucata, ela permite brincar o faz -de -conta (...), e eles [meninos e meninas] adoram brincar que são mamãezinha, eles fazem comida para a gente.

Na seqüência dessa fala, Fabíola se corrige, lembrando que a participação dos meninos é diferente – eles participam da brincadeira sendo servidos pelas meninas:

Tem dois meninos só aqui na sala. Você vê como papéis aqui são diferenciados: eles não brincam de fazer comidinha como as meninas brincam. Geralmente, as meninas fazem a comida e dão para eles comerem (Fabíola, entrevista em 03/12/2007).

Fabíola evidencia uma reflexão a respeito da reprodução de estereótipos, ao mesmo tempo em que parece tomar isso como algo "natural": você vê como os papéis aqui são diferenciados. Indagada sobre como se posiciona diante dessas situações, declarou:

A gente tenta... a gente não... vou falar de mim. Eu tento sempre fazer o seguinte: quando as meninas estão fazendo a comidinha, por exemplo, eu chamo os meninos para ajudar, porque eu não gosto muito de distinguir essas funções não, por exemplo: quando os meninos pedem o velotrol, eu dou o velotrol rosa para os meninos só para ver a reação, e eu fico super feliz quando eles pegam e não estão nem aí se é rosa, azul, verde ou amarelo. Pega e vai brincar numa boa, e eu acho bacana isso, quando as meninas estão fazendo a comidinha, vem aqui olhar, ajudar a fazer o suco de laranja, ela faz o arroz, e você faz o suco de laranja, e ele vai e faz, se a gente chama (Fabíola, entrevista em 03/12/2007).

Sua fala mostra que não se trata de uma reflexão coletiva, presente no projeto institucional de educação das crianças, semelhante à situação identificada por Debortoli ao analisar a ausência de condições institucionais que viabilizem um projeto cultural de transformação das experiências de meninos e meninas. Para Fabíola, o lugar dos meninos é o da ajuda às meninas que, no faz de conta, se encarregam da função mais nobre da cozinha – fazer o arroz – enquanto a eles se solicita fazer o suco de laranja. Ao lado da clara situação de reprodução do lugar feminino nas brincadeiras das crianças, podemos interpretar, do ponto de vista dos meninos, sua condição de subordinação na experiência de brincadeira em questão, na medida em que as ações são tidas como do universo feminino. Mesmo o exemplo do velotrol rosa que, segundo Fabíola, oferece aos meninos para ver sua reação, torna evidente que a inclusão dos meninos em outras possibilidades de ação ocorre em um jogo cujo domínio é exclusivo do adulto. Essa mesma educadora explica a divisão espontânea de tarefas – as meninas fazem comidinha e servem aos meninos – nas brincadeiras de casinha, como algo que vem de casa.

Diante da mesma questão relativa à prática pedagógica e aos recursos existentes, Cristina, outra educadora entrevistada, descreve os brinquedos disponibilizados às crianças de 1 ano com as quais trabalha:

Nós temos brinquedos pedagógicos. No início, é aquele brinquedinho de borracha, para morder... chocalho. Agora, nós já estamos pegando outros brinquedos para começar a fazer encaixe. Temos (...) carrinho, já tem também boneca, que as meninas já estão começando a ninar, já estão aprendendo a ninar as bonecas (Cristina, entrevista em 31/10/2007).

Essa fala é paradigmática da visão sobre as experiências femininas, na medida em que evidencia o processo esperado: já estão aprendendo a ninar bonecas. Perguntada se os meninos não brincam de boneca, ela responde:

Só as meninas, a gente não dá [bonecas aos meninos] não. Nós temos essa... [risos] como que fala... preconceito. Nós não estamos ensinando isso para a criança, mas parece que sim: as meninas já vão nas bonecas e os meninos vão no carrinho, mas a gente deixa, fala assim: vamos brincar junto, famílias, vamos lá, o pai, mas eles vão mais no carrinho, sabe? [risos].

A educadora evidencia certa reflexão a respeito de sua prática, ao afirmar que, embora não tenham a intenção de ensinar os papéis tais como se apresentam nesse relato, reconhece que, de fato, estão ensinando formas estereotipadas de ser menino e menina, na medida em que não intervém de maneira sistemática nessa questão. Os sorrisos durante sua fala (e sua postura corporal, observada durante a entrevista e registrada em diário de campo) parecem ser indícios de certo constrangimento, pois, a pergunta da pesquisadora, pelo simples fato de ter sido enunciada, dá sinais de outras possibilidades de ação educativa que ela compreende, mas que reconhece não conseguir efetivar. Sua fala, na seqüência da mesma entrevista permite essa interpretação:

Pesquisadora: Mas você acha que é porque que eles escolhem assim?
Cristina: Eu não sei, talvez é até nós que possamos... até mudar, começar nova prática, colocar os meninos para brincar de boneca, e as meninas de carrinhos, talvez a gente está desenvolvendo esse lado, mas a gente não está desenvolvendo preconceito. Talvez pode ser em casa (...) começam com aquela [prática] de não vestir rosa, não vestir azul, já começa sem perceber, mas já estão nessa coisa, de que não existe isso mesmo.

Perguntada sobre se ela e as demais educadoras da instituição têm tido oportunidades de refletir a respeito dos significados que as práticas cotidianas na Educação Infantil adquirem na formação dos meninos e das meninas, Cristina indica que tais oportunidades existem e reconhece que a força da cultura na qual está imersa impede as mudanças em sua prática:

Já. Nós já refletimos. A gente já leu sobre essa..., nós já lemos, nós temos formação. A gente já leu sim. Eu não sei se é cultura, a gente, até sem perceber, começa a pegar boneca para as meninas, a gente faz isso também, pega carrinho para os meninos. Mas nós já refletimos, mas essa cultura é difícil.

Cristina e Fabíola expressam contatos com reflexões a respeito das diferenças e dos estereótipos sexuais, inclusive porque os questionamentos às concepções dominantes de masculino e de feminino são, também, parte da cultura contemporânea da qual elas participam. Mas, no que tange às visões a respeito do masculino, Cristina revela quanto é mais difícil desfazer práticas arraigadas, tanto nas experiências familiares, quanto na prática profissional. Referindo-se à sua condição de mãe de um menino e de uma menina (10 e 15 anos respectivamente), declara: "Eu não sei. Eu como mãe, eu não sei, queria começar a brincar, menina de carrinho até vai, mas menino de boneca..." (Cristina, entrevista em 31/10/2007).

Provavelmente, a imagem construída a respeito da pesquisadora a tenha impedido de concluir a frase, mas as reticências captadas na entonação conferida à sua fala indicam, claramente, que o esforço de mudança com relação aos meninos teria que ser bem maior. A apreensão de sua experiência como mãe permite identificar com maior clareza a força do projeto cultural no qual essa educadora constrói suas concepções e práticas educativas:

Pesquisadora: Então, com as suas crianças, você acha que foi criado mais nesses padrões, nesse estereótipo de papel de homem, papel de mulher?
Cristina: Eu acho que ainda está sendo criado assim. Eles estão com 15 e 10 anos, então você vê que a minha menina com 10 anos, eu estou olhando essa outra cultura e depois, também, vejo a cultura dos meus pais. Eu tenho 11 irmãos, olha só de quantos, nossa! Pai não deixava nem ficar junto com um menino, como que eu vou mudar essa cultura? Eu tenho que mudar, agora que eu sou educadora, eu leio, eu pesquiso, eu sei que eu tenho que mudar. Mas assim, olhando pela parte das famílias, me colocando como mãe, eu acho que para elas, é meio difícil. Para elas que ainda não têm uma leitura assim do mundo atual, não acompanham...

Sua reflexão indica o reconhecimento de que ela é produto de uma cultura, das relações sociais nas quais se socializou e nas quais aprendeu/construiu referências sobre feminino e masculino, sobre o permitido e o não permitido a meninos e a meninas. Ela parece oscilar entre a profissional e a mãe, como duas identidades que entram em conflito no que concerne às práticas educativas com meninos e meninas. E é a existência desse conflito que parece torná-la solidária com as famílias das crianças e com suas concepções e práticas educativas com os filhos e filhas. Além disso, Cristina reconhece que a criança não nasce com determinados comportamentos quando ela se indaga: como é que uma criança vai saber isso?

A gente costuma falar que é a criança que traz, mas são os adultos que colocam. Como que uma criança vai saber isso, não é? Esse preconceito é depois. Hoje a cultura está completamente... O homem está ficando em casa e a mulher saindo para trabalhar, o homem está colocando as crianças para dormir, está dando banho. A gente também tem que fazer esse papel de inverter mesmo, essa inversão de mudar.[referindo-se ao seu marido, ela diz]: até para mudar com a minha família eu acho difícil.

Inserindo as concepções e práticas expressas por essas educadoras no quadro de uma compreensão sobre as ações sociais que concebe a ação individual como social, portanto partilhada por outros que, em relações sociais, constituem os sentidos das ações, parece-nos particularmente importante o significado das contradições expressas por essas educadoras em relação aos meninos. Ou seja, as experiências sociais dos meninos e das meninas estão, cada vez mais, marcadas pela experiência escolar de longas jornadas. Nessa direção, o significado das relações e experiências vividas pelas crianças no contexto escolar na construção de suas identidades de meninos e de meninas torna-se ainda mais importante. Ressalta-se que Carvalho (2001), ao investigar o processo de avaliação de meninos e de meninas no Ensino Fundamental constatou que os comportamentos e atitudes dos alunos eram bastante valorizados no momento da avaliação, ficando os meninos, em geral, mais prejudicados por se distanciarem de um modelo exemplar de aluno preconizado pela instituição. A autora verificou que, apesar da avaliação levar intensamente em consideração o padrão de comportamento, não havia na instituição momentos de reflexão e avaliação sobre essa postura e mesmo sobre a influência das relações de gênero no processo avaliativo. Nesse sentido, a ausência da perspectiva de gênero no conjunto das reflexões de educadores e educadoras de diferentes níveis de ensino é um elemento de reforço de outras desigualdades, dentre as quais as escolares, com as conseqüências individuais e sociais a elas relacionadas.



Considerações Finais

As características da Educação Infantil, que incluem a convivência, na instituição educativa, entre educadoras e crianças durante longas jornadas nos primeiros anos de vida conferem a essa experiência um lugar central nos processos identitários dos meninos e das meninas.

O olhar sobre a organização das experiências dos meninos, sob o ponto de vista das possibilidades de participação em diferentes situações e relações no ambiente escolar, revelou que há uma dimensão de exclusão que envolve tanto práticas culturais como algumas possibilidades de trocas afetivas, marcadas por concepções do masculino presentes entre as educadoras.

Essa exclusão dos meninos se evidencia na privação de muitas situações de interação afetiva e corporal que as educadoras propiciam às meninas, como as ações de cuidado com os cabelos. Os meninos parecem ser vistos desde muito cedo como menos afetados por situações de risco e abandono, necessitando, portanto, de menor proteção. Isso se expressa, por exemplo, na permissão e mesmo no incentivo a comportamentos mais ousados e arriscados nas brincadeiras, como a literatura tem evidenciado, como se eles fossem mais resistentes aos perigos e pudessem, com menor ajuda dos adultos, constituírem-se em sujeitos no mundo. A necessidade de reforçar essa imagem de resistência e força alinha-se às interdições a brincadeiras ligadas ao cuidado com filhos (brincar de bonecas) e ao trabalho doméstico (cozinha, arrumação dos ambientes), evidenciando uma maior resistência em incluir os meninos em espaços e atividades tidas como femininas do que o inverso. Verifica-se, ainda, que a permanência dessas concepções e práticas entre as educadoras das instituições de Educação Infantil reveste-se de certa ambigüidade tanto no cotidiano de suas ações educativas, quanto em situações em que são levadas a refletir a respeito dessas questões. O mesmo ambiente cultural que reforça papéis padronizados permite, também, o exercício da crítica. No entanto, como prática individual, essa crítica não encontra um ambiente institucional que a fortaleça e que favoreça situações intencionais de construção de novos signos em um projeto coletivo de reflexão sobre o papel da instituição de Educação Infantil na constituição das subjetividades masculinas e femininas.

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* Agradecemos a disponibilidade das educadoras da Educação Infantil que nos concederam entrevistas.
1 A realização da pesquisa contou com a autorização da Secretaria Municipal de Educação e da direção da Unidade Municipal de Educação Infantil pesquisada. Foi entregue uma cópia do projeto nessas duas instâncias e feitos os esclarecimentos acerca dos objetivos e da metodologia da pesquisa. As educadoras foram consultadas previamente e esclarecidas sobre o uso dos dados obtidos por meio das entrevistas e das observações, assinando o Termo de Consentimento.
2 Os elementos analisados neste texto foram obtidos por meio de entrevistas com educadoras e coordenadora de um dos turnos.
3 Entendemos por "sentido" o olhar que "tem por objeto a própria coisa", no nosso caso, as relações de gênero. E por significado, o "olhar que visa o sinal da coisa", ou seja, o que está para além das relações de gênero (Jovilet, 1975).
4 Os nomes citados neste artigo são fictícios.
5 MAUSS, Marcel. Sociologia y antropologia. Madrid, Tecnos, 1971.

Cadernos Pagu - UNICAMP

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