quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Para onde caminha a humanidade

O futuro que estamos construindo será o resultado de tudo isso que plasmamos tecnologicamente em torno de nós, em interação diametral com as novas sensibilidades e capacitações sociais e humanas que formos capazes de obter, absorver e consolidar
Alexandre Quaresma *






Para onde caminha a humanidade? Esta pergunta, estrutural do ponto de vista antropossociológico, nos remets imediatamente a uma imensa gama de atividades tecnológicas notadamente humanas que, de certa forma, caracterizam nossa história atual e também pregressa no próprio planeta, e que vão se acumulando em termos de saberes, conhecimentos e aplicações.

Para sermos o que somos hoje – afirmamos – apoiamo-nos em nossas criações tecnológicas. O domínio do fogo e o lascar da pedra no fim do Período Neolítico, nesse contexto, são eventos que trazem um empoderamento muito significativo para esta espécie que nascia naqueles dias de extrema competitividade biológica. Com o passar dos tempos, e em especial em nossa história mais recente, criamos e implementamos outras invenções e inovações tecnológicas importantes – como a escrita, a matemática, a roda, a vela, a bússola e a pólvora, para citar apenas algumas – que foram se somando e se cristalizando nas culturas como um todo, paulatinamente, o que veio garantir(à espéci) sobrevivência e permanência filogenética através das eras e milênios que iriam se suceder a partir de então. Foram estasmediações técnicas que garantiram e viabilizaram a nossa constituição antropossocial e cultural, mas foram elas também que nos transformaram através dos tempos, pois deixaram em nós e em nossas culturas as marcas indeléveis das técnicas que, por si, geram – como Heidegger afirma, e nós concordamos – uma dependência social da técnica pela própria técnica.

Teoria da Complexidade » Trata-se de uma visão interdisciplinar que abrange áreas distintas do conhecimento humano, como a Filosofia, a Epistemologia, a Linguística, a Química, a Física, a Física Quântica, a Meteorologia, a Estatística, a Biologia, a Sociologia, a Cosmologia, entre muitas outras. Esta disciplina se propõe a estudar os sistemas complexos adaptativos, os comportamentos emergentes, os sistemas de complexidade das redes, o equilíbrio termodinâmico e a auto-organização. Edgar Morin, Henri Atlan, Ilya Prigogine, Isabelle Stengers e Anthony Wilden são autores referência do pensamento complexo.


Mas não se tratou de um progresso linear, cumulativo e sempre crescente, como poderíamos acreditar, e, sim, de uma história extensa e enviesada, complexa e rebuscada, de um desenvolvimento lento da própria espécie que se estruturava dentro de seu dinâmico e multifacetado habitat, e de seres e mais seres que instintivamente lançaram os alicerces do que seria a nossa humanidade. Complexidade e complexificação cultural que vieram junto com a expansão cognitiva e sensorial corpórea destes primeiros hominídeos, que emergiu, por sua vez, devido ao progressivo desenvolvimento biológico de nossos cérebros, em especial de nosso neocórtex, originando, assim, uma trajetória épica cheia de pontuais avanços e recuos, bonanças e crises, longuíssimos períodos de frio extremo ou calor calcinante, colapsos e extinções, todos estes efeitos e frutos do clima impiedoso das eras glaciais primitivas a se suceder, da extrema competitividade entre espécies e também do ambiente inóspito e até certo ponto hostil destes tempos primevos, ora longínquos.

Fato é que foram acontecimentos ímpares que, na prática, serviram como imposições adaptativas necessárias para que esta espécie arguta e sagaz que se autodenomina Homo sapiens (homem sábio) pudesse advir, evoluir e se consolidar. Essa interface sempre tecnológica com o mundo ao nosso redor faz parte de nossa própria forma de concebê-lo e interagir com ele. Somos seres tecnológicos – se é que é lícito dizê-lo – por natureza. Para confirmar tal teoria, basta ver a infinidade de objetos técnicos que existem atualmente à nossa volta, e a importância considerável que damos a eles enquanto objetos estruturantes de nossa cultura, tornando-os úteis e até necessários ao fluir e refluir de nosso próprio dia-dia técno-informático-computacional. Gostaria de atacar etse assunto por duas frentes críticas distintas: A primeira é a do empoderamento. E a segunda é a do desencanto.

O EMPODERAMENTO
O empoderamento é um tanto quanto óbvio: Com as lascas de pedra, ossos e madeira, construímos nossas primeiras armas. Com a pele dos animais subjugados que nos serviram de alimento, vestimo-nos. Com o fogo espantamos os animais ferozes e mais ameaçadores, com ele nos aquecemos, cozinhamos os alimentos indigestos crus, nos adaptamos aos ambientes mais hostis, iluminamos as noites sem lua, desbravamos ambientes sombrios de cavernas e grutas, mais adiante fundimos os metais para construir os mais diversos objetos, enfim, forjamos instrumentos, constituímos ferramentas, concebemos novas tecnologias, demos formas intencionais aos materiais, e assim por diante.

Geoengenharia » Ciência relativamente recente que estuda as possibilidades técnicas de interferência humana no clima e no próprio sistema organizacional do planeta em escala biosférica. Como pretende abranger sistemicamente áreas muito grandes e até globais, faz-se igualmente necessário – de preferência antes de implementar as prospecções – o estudo acerca dos possíveis desdobramentos negativos ou mesmo degradantes destas técnicas de interferência e controle, pois os efeitos colaterais podem superar as promessas de melhora das condições terrestres.


Nos últimos cem anos há uma aceleração deste processo de complexificação tecnológica e atualmente implementamos aeronaves, telescópios, armas de destruição em massa, computadores, tablets, telefones e uma gigantesca rede informacional para conectá-los simultaneamente, gerando uma sensibilidade cibernética planetária. São todas próteses técnicas de diversas naturezas, alinhadas e convergentes, que estendem e mediam a nossa relação com o mundo, e esse mundo tecnicista que construímos é composto por satélites, sondas, robôs, supercomputadores, nanotecnologias, algoritmos evolucionários, redes neurais, bioengenheiramento, clonagem, bioimpressão, geoengenharia, e a lista – nesta virada de milênio – parece não ter fim. Toda etsa infraestrutura técnica de extrema complexidade e sofisticação que construímos – oriunda destes mesmos conhecimentos e saberes técnicos que se constituem, e que perfaz todas as sociedades industrializadas – certamente traz um empoderamento para os grupos humanos perante o planeta e as demais espécies; todavia, etse movimento já superou há muito tempo a esfera da sobrevivência como razão, e nossa proliferação desordenada e caótica tem posto em risco o meio ambiente que nos contém e, por conseguinte, a nossa própria sustentabilidade filogenética.

Para sermos o que somos hoje, nos apoiam em nossas criações tecnológicas. O domínio do fogo e o lascar da pedra no fim do Período Neolítico, nesse contexto, são eventos que trazem um empoderamento muito signi ficativo para esta espécie

Linguagem algorítmica » Algoritmos são fórmulas matemáticas hipercomplexas concebidas a partir de bits (zeros e uns), que servem para traduzir qualquer tipo de informação digital, além de operarem como forças motrizes de nossos hardwares e programas, garantindo que os protocolos e procedimentos técnicos intrínsecos aos sistemas operem e cooperem de forma harmoniosa e uida, propiciando o que nós conhecemos como computação e conectividade.


Tratamos de um empoderamento que propicia uma série de interferências, transformações e controles no mundo e em nós mesmos, alterando nossas relações com o ambiente, com nossos semelhantes e até com as forças criadoras do próprio universo que nos circunscreve; enfim, tais eventos implicam uma complexa reestruturação de nossa humanidade e civilização. Pois agora a nossa capacidade técnica de subjugar e explorar a Natureza vai do infinitesimal das nanotecnologias – o N da Convergência Tecnológica NBIC – passando pelo B de bio, que engloba todas as novas ciências biológicas – inclsídas aí a clonagem, o bioengenheiramento, a manipulação genética, a transgenia, a neoeugenia, isso para citar apenas algumas –, convergindo sinergeticamente também com o I de informação, informática e informatização – que de certa forma perfaz todas as demais subseções da mencionada sigla, até porque as linguagens algorítmicas e computacionais encontram-se presentes e fortemente enraigadas em todas as outras relações e mediações técnicas de nossas sociedades. E isso, diga-se, vale para todos os objetos de nossa cultura cibernética, ou cibercultural como alguns preferem dizer; dos mais simples aos mais complexos, culminando finalmente com o C de cognição, que seria a última fronteira biológica e até então impenetrável e incompreensível do corpo humano sendo rompida, emulada e, de certa maneira, violada, desmistificada e reificada tecnicamente através das neurociências de prospecção.


Saber para onde estamos caminhando nos remets, imediatamente, a uma imensa gama de atividades tecnológicas que criamos em nossas sociedades

Quanto a este tópico (o empoderamento), vale lembrar que as tecnologias de fato abrem várias portas, mas também as fecham. Pois a maioria dos problemas socioambientais mais graves que temos que enfrentar na atualidade é fruto destasmesmas técnicas e tecnologias que tanto nos ajudaram e ainda ajudam. Dito isto, retenhamos o seguinte: o empoderamento traz benefícios, mas também traz danos.

O DESENCANTAMENTO
A outra frente que gostaria de atacar com alguma brevidade é a dodesencantamento. Referimo-nos a todo este poder tecnológico acumulado e à disposição da espécie humana, potencialização técnica que gera uma situação no mínimo inquietante para nós mesmos, pois (1) vem desalojar e substituir as forças e potências criadoras da Natureza e de Deus em todos os sentidos pensáveis, instrumentando- nos tecnologicamente para estarmos aptos a realizar e engendrar a própria vida, (2) na medida em que expulsa o mistério, o simbolismo natural e o divino, desde os átomos até as esferas mais complexas da Natureza e da sociedade, passa concomitantemente a ocupar seus locus de poder, e assim (3) vai passando também a controlar e reger contextos profundos detsa mesma Natureza e de nossa própria existência singular. A criação, o milagre da vida, os enigmas da Natureza, as forças do clima, o movimento dos astros e a própria ordem da evolução biológica repousam – pasmem – sob as mãos inábeis dos seres humanos da Pós-modernidade. Ou seja, o empoderamento traz também desencantamento, pois tudo pode ser calculado, quantificado, matematizado, controlado, explorado, replicado, comercializado e, principalmente, resignificado tecnologicamente. Nossas sociedades, ironicamente, à medida que moldam seus ambientes, constituindo redes tecnológicas cada vez mais complexas, vão igualmente sendo moldadas por estas forças poderosíssimas que elas mesmas puseram em ação.

Agora, a nossa capacidade técnica de subjugar e explorar a Natureza vai do infinitesimal das nanotecnologias – o N da Convergência Tecnológica NBIC –, passando pelo B de bio, que engloba todas as novas ciências biológicas

A maioria dos problemas socioambientais mais graves que temos que enfrentar na atualidade é fruto de tecnologias que tanto nos ajudaram


Bioprospecções » Como está em Trigueiro (200:, p. 116): “Prospecção da biodiversidade ‘bioprospectin’) foi de nido originalmente por Reid (1993) como a exploração da biodiversidade para obtenção de recursos genéticos e bioquímicos para efeito de futura comercialização”.


CONCLUSÃO
Em resposta à nossa pergunta inicial, podemos afirmar que caminhamos rumo a um futuro de tecnicização e controle progressivos, onde a Natureza e o próprio ser humano são os objetos centrais das bioprospecções, e onde o natural e biológico de certo modo declinam, dando lugar a uma cultura cibernética e digital da eficiência, do controle e da informação. O problema se evidencia justamente quando percebemos que tais contextos parecem operar e evoluir alheios ao controle social, seguindo por caminhos tortuosos e difusos, na opacidade dos interesses numerários e geopolíticos de empresas e nações, alijando a coletividade das tomadas de decisão mais importantes e significativas acerca de seu futuro. Por outro lado, e retornando ao empoderamento que as tecnologias nos trazem, a própria internet e a cultura digital têm se mostrado excelente ferramental para a criação de novas sensibilidades sociais e articulações políticas, e de certa maneira também estão transformando a face do mundo. Conclusivamente – afirmamos – o futuro que estamos construindo será o resultado de tudo isso que plasmamos tecnologicamente em torno de nós, em interação diametral com as novas sensibilidades e capacitações sociais e humanas que conseguirmos obter, absorver e consolidar nesta fricção ferbulhante das estruturações sociotécnicas a se constituir.

* Alexandre Quaresma é escritor, ensaísta, pesquisador de tecnologias e consequências socioambientais. Autor dos livros Nanocaos e a responsabilidade global, Humano-Pós-Humano – Bioética, dilemas e con itos da Pós-modernidade e Nanotecnologias: Zênite ou nadir? É membro ativista da Renanosoma (Rede de Pesquisa em Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente) e vinculado à FDB (Fundação Amazônica de Defesa da Biosfera). a-quaresma@hotmail.com

REFERÊNCIAS
TRIGUEIRO, Michelangelo (2009). Sociologia da tecnologia – Bioprospecção e legitimação. São Paulo: Centauro, 2009.

Revista Sociologia 

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