quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

É tempo de brincar lá fora... Aproveite!

É tempo de brincar lá fora... Aproveite!
Em um espaço externo bem organizado, os pequenos trabalham a colaboração, aprimoram a capacidade motora e exploram a natureza
Bianca Bibiano (
bianca.bibiano@abril.com.br)

NO JARDIM A horta no parque é uma boa opção para ampliar o contato com a natureza Foto: Marcelo AlmeidaO verão chegou! Que tal aproveitar os dias ensolarados para ampliar o espaço das turmas de creche? As vantagens são muitas. Primeiro, porque as atividades fora de sala fazem bem para a saúde: o contato com o Sol ajuda na produção da vitamina D, necessária para a absorção do cálcio, que forma ossos e dentes. Segundo, porque no ambiente externo é possível proporcionar experiências ricas tanto para o conhecimento de mundo como para a formação pessoal e social – os dois pilares da Educação Infantil, segundo os Referenciais Curriculares Nacionais. Correndo, pulando, pintando, plantando, brincando com água e alimentando animais, os pequenos trabalham a socialização, aprimoram a capacidade motora e entram em contato com a natureza. Para isso, a área externa deve ser cheia de oportunidades.

Apesar de todo esse potencial, muitos docentes ainda encaram a hora do pátio como um momento de descanso, em que a criançada fica solta sem nenhuma orientação. Não é a melhor saída. “Para apresentar o máximo de propostas de aprendizagem, é preciso planejar”, explica Karina Rizek Lopes, formadora de professores e selecionadora do Prêmio Victor Civita – Educador Nota 10.

Atividades para realizar fora da sala
Deve-se considerar, por exemplo, que todas as turmas são heterogêneas. Com isso em mente, uma boa iniciativa é realizar um mapeamento das práticas dos pequenos, investigando como eles interagem com o ambiente externo no dia-a-dia. Em seguida, pode-se fazer um exercício de imaginação, estabelecendo antecipações sobre como as crianças se relacionariam com as propostas que se pretende introduzir. Depois, ao conferir como elas se comportam de fato, o professor ajusta suas previsões à realidade. Manter um registro de como cada uma lida com o ambiente externo e com os colegas é o caminho para pensar nos passos seguintes. Tudo sem perder de vista algo essencial: é necessário incluir as atividades externas como parte da rotina da turma. Afinal de contas, é só por meio do contato intensivo que cada criança se familiariza com as novidades e faz descobertas por conta própria. Para garantir que todos avancem, o ideal é criar um espaço externo desafiador, com diversos ambientes e diferentes estímulos ao desenvolvimento sensóriomotor. A seguir, apresentamos sugestões de baixo custo para chegar lá.

Na areia

■ TANQUE O uso desse espaço pode ser incrementado com cavalinhos, bonecos e caixotes, estimulando ainda mais o faz-de-conta. Nos dias de calor, vale apostar na água, colocada em bacias para que as crianças percebam a diferença de consistência entre a areia seca e a molhada.

Cuidados Cobrir o tanque com lona à noite para protegê-lo da chuva e de animais, evitar a mistura de pedrinhas (que podem ser ingeridas) e limpar a areia com frequência – existem produtos específicos para isso.

Adaptação É possível propor as mesmas atividades no chão de terra ou usando caixas com areia.

No pátio

■ SALA DO LADO DE FORA Retirar objetos do espaço interno e transportá- los para o pátio transforma a relação com o espaço, criando brincadeiras, dando novo significado aos objetos e mudando seu uso convencional.

Cuidado Limpar todos os utensílios antes de retorná-los às salas.

Adaptação Se houver poucos brinquedos, pode-se levar livros e organizar rodas de leitura ao ar livre.

■ CUIDAR DE ANIMAIS A ideia é observar e alimentar os bichos. Durante essa atividade, pode-se detalhar características dos animais: tempo de vida, hábitos, se vivem em grupo etc.

Cuidados Todos os bichos devem ser acompanhados por um veterinário. Também é importante destacar alguém da equipe da creche para cuidar deles nos fins de semana e feriados.

Adaptação Caso não haja espaço para criações, pode-se optar por animais pequenos, como tartarugas de aquário, peixes e porquinhos-da-índia.

■ PINTURA EM AZULEJOS Em ladrilhos, é possível pintar, lavar e pintar de novo. O uso de rolinhos, esponjas, pincéis de diferentes espessuras, tintas de cores variadas ou produzidas com as crianças (com beterraba ou urucum, por exemplo) exercita a capacidade de expressão e coloca a turma em contato com a linguagem artística.

Cuidado Utilizar somente tintas atóxicas e pincéis de boa qualidade, que não soltem as cerdas com facilidade.

Adaptação Algumas peças de ladrilho ou mesmo uma placa de vidro podem ser colocadas num canto próximo a uma torneira, facilitando a limpeza.

No jardim

■ HORTA Cultivar diferentes vegetais é uma das estratégias para descobrir quais mudanças cada um deles apresenta ao longo do ano, que insetos mais atrai e que frutos e f lores dá. Também desenvolve a cooperação para realizar uma tarefa. Se um dos pequenos topar com minhocas, o professor pode colocá-las em um aquário de vidro para a turma examinálas melhor. Outra opção é distribuir lentes de aumento de plástico para que cada todos possam vê-las em detalhes.

Cuidado Prevenir o contato com insetos perigosos – especialmente lagartas, que podem gerar ferimentos. Da mesma maneira, o ideal é evitar espécies de plantas que causem alergias ou tenham muitos espinhos.

Adaptação Se não houver horta, plantase em vasos, f loreiras e até pneus. Outra opção é cultivar trepadeiras junto a muros e cercas, substituindo as árvores.

■ PIQUENIQUE Proporcionando interação entre as crianças e estimulando a autonomia para se alimentar, o piquenique serve também para ajudar a conhecer alimentos diferentes. Fazer salada de frutas ou gelatina com a turma é um ótimo incentivo para provar coisas novas.

Cuidado Atenção a formigas e insetos atraídos pela comida. E, para evitar problemas de saúde dos pequenos, é necessário investigar previamente possíveis alergias a alimentos.

Adaptação Na falta de gramado, podese estender uma toalha em qualquer espaço com sombra.

Na água

■ PISCININHA É interessante integrar outros utensílios à água, criando lavatórios de brinquedos ou laguinhos para minibarcos, por exemplo. Outros usos incluem fazer pequenas represas e canais escavados na terra. Produzir arco-íris, com a dispersão de gotas de água na luz solar, instiga a curiosidade e abre caminho para apreciar esse fenômeno da natureza.

Cuidado Secar as crianças para evitar resfriados. Isso pode ser feito também aproveitando o ambiente externo – em esteiras, enquanto o professor lê histórias para a turma.

Adaptação Uma alternativa é usar baldes, mangueiras e acessórios de borrifar, vendidos em lojas de jardinagem.

Revista Nova Escola

Crônicas do cotidiano - Rubem Alves


Crônicas do cotidiano
Mariana Branco*


Educador, poeta, filósofo, psicanalista, cronista, ensaísta, teólogo, acadêmico e contador de estórias (e não “histórias”, como ele prefere dizer). Rubem Alves é tudo isso e muito mais. Por trás de seus textos, ele encanta adultos, crianças, alunos e professores e, por onde passa, é recebido com carinho e olhares de admiração. Foi o que vimos recentemente durante a Bienal do Livro de Curitiba, na capital paranaense, quando o intelectual recebeu a Profissão Mestre no estande da editora Nossa Cultura. Nesta entrevista, ele aborda o ensino superior, a relação entre docente e aluno, entre outros assuntos. Dentre suas revelações, ele afirma: “Eu tenho um ideal, meio medieval, renascentista, da relação do professor e do aluno.”

Profissão Mestre - Apenas 21 entre as 2 mil instituições de ensino superior avaliadas em 2008 pelo MEC (Ministério da Educação) obtiveram nota máxima no IGC (Índice Geral de Cursos da Instituição), conforme divulgado este ano. Como o senhor observa as instituições de ensino superior do Brasil?

Rubem Alves - Quando a gente fala de qualidade de ensino, o que estamos procurando? Estamos querendo formar profissionais? O que é um profissional? Ele é alguém que tem capacidade para executar determinadas tarefas. Ele é uma ferramenta. O médico, por exemplo, é uma ferramenta de mexer com o corpo. O advogado, de mexer com as leis. Então, há um sentido que eu diria, quase que para mim pejorativo, de você pensar qualidade na qualidade das ferramentas e isso não quer dizer nada na qualidade do ser humano. Ou seja, o curso superior tem alguma coisa a ver com o ser humano? Uma pergunta muito simples, que é a primeira que se faz, é a seguinte: será que os nossos cursos superiores ensinam nas pessoas o gosto pela leitura? Isso faz parte da qualidade humana, o interesse pelo mundo. Ou simplesmente o profissional é aquele especialista que sabe cada vez mais de cada vez menos? Nesse sentido, eu diria que os nossos cursos superiores são pobrezinhos, já que é muito difícil avaliar a qualidade de gente, não a qualidade de profissional que as nossas instituições estão produzindo.

PM – Mais de 97 mil professores se inscreveram para concorrer a uma das 57 mil vagas oferecidas pelo MEC para qualificar docentes de escolas públicas em exercício que não têm curso superior ou atuam em área diferente da qual se formaram. Essa medida é válida?

RA - Você sabe, ser professor pode ser muito chato. Aquele professor antigo, que dava a matéria todo ano repetindo a mesma coisa, foi dando um tédio, um emburrecimento. Há de se fazer alguma coisa que desperte nos professores novos horizontes. Eu uso várias imagens para me referir aos educadores e agora estou trabalhando com a do professor de espantos. Uma de suas tarefas é mostrar o mundo para os alunos se espantarem, para eles aprenderem a ter “olhos diferentes", problematizarem-se para o mundo, para que a vida fique interessante. E esses cursos, essas tentativas de melhorar o desempenho do professor por meio de cursos com mais informação ... Os docentes não serão melhores professores com mais informação. Eles podem ter mais conhecimento, mas isso não altera a qualidade deles mesmos como professores. Então, para alterar a qualidade dos professores e, portanto, da educação, a gente precisa lidar com a literatura. Eu gostaria, inclusive, que cada professor começasse a sua aula citando apenas um verso de um poeta, de uma poesia.

PM – Como cada docente pode trabalhar a literatura em sala de aula? Esta proposta é complicada de se implementar?

RA - Não vou dizer que seja complicado, mas é alguma coisa que foge do hábito. O docente normalmente vai dizer “isso não é minha matéria, isso é matéria do professor de português”. Ele não compreende que a literatura vai torná-lo uma pessoa mais interessante. É preciso ter olhos diferentes e, para isso, você não deve se limitar exclusivamente. É aquela ideia de transdisciplinaridade que significa que o meu objeto não é apenas uma área pequena de saber, mas abrange o mundo todo. Nesse sentido, a função do professor pode ser extremamente desafiadora. Eu brinco que o educador é um cozinheiro e tem de apresentar aos alunos o gosto bom da comida que faz. Ele apresenta para que o aluno se deleite e chegue a um ponto em que o estudante nem vai mais precisar de professor, porque ele (o aluno) está seduzido pelo gosto bom. Você não precisa de argumentos para seduzir as crianças a chuparem sorvete, sorvete é bom. Essa seria a mesma relação com aquilo que chamamos de disciplina.

PM - Como o professor de física, por exemplo, pode trabalhar esse deleite? É preciso muita criatividade?

RA - O professor tem de brincar com a sua matéria. Ela é um brinquedo e ele vai ensiná-lo para os seus alunos. Na verdade, quando você está pensando criativamente, o pensamento não segue ordem unida; ele dança, vai pra lá, vai pra cá. Vou te dar um exemplo da questão de literatura. Kepler descobriu as três leis dos movimentos dos planetas, que podem ser aprendidas em 15 minutos. Então, em minutos, você fica sabendo a fórmula das leis de Kepler, mas o professor que dá essas leis não conta a história que levou 18 anos para que Kepler chegasse a elas. A coisa mais importante para o desenvolvimento da inteligência não é você saber o resultado, mas o caminho. Você vai contar uma história. Quando eu era jovem, eu me lembro que no curso de admissão eu me fascinava lendo a história dos cientistas, daquele homem que trabalhou, que lutou e teve intuições. Aquilo lá mexia muito comigo. Isso está eliminado dos nossos currículos, que dizer, afinal de contas, quem foi esse cara Albert Einstein? Quantas pessoas sabem que ele teve uma filha que foi rejeitada? Como é esse homem? Como é que as pessoas descobrem as coisas? Eu gosto de chegar para os meninos, os adolescentes, e dizer a eles que escrevam uma história hipotética de um determinado objeto qualquer. Por exemplo: escrevam a história do pau de fósforos. O que tem a ver com ciência? Tem tudo a ver, porque você vai usar imaginação. É sobre isso que Karl Marx chamava de práxis. Ele dizia que, para conhecermos uma coisa, precisávamos saber a práxis, que é o processo pelo qual os seres humanos produziram aquele objeto.

PM – É preciso, então, estimular a curiosidade dos alunos?

RA - As crianças normalmente são muito curiosas e elas perdem a curiosidade na escola porque a instituição de ensino não atende aos questionamentos que elas estão fazendo, que são perguntas absolutamente fantásticas. A curiosidade acontece onde? Eu não a tenho por coisas abstratas que não têm a ver com a minha vida. Já o entorno me dá os problemas, as questões que têm a ver inclusive com a minha sobrevivência, porque o pensamento, a ciência, surgiu na luta do homem para sobreviver. O entorno é que vai dar o programa (pedagógico) que eu tenho de dar.

PM - Em suas crônicas, o senhor aborda a alegria do estudante aprender e que, muitas vezes, o aluno está infeliz, sofrendo. Como o educador pode mudar essa realidade, mesmo com muitos alunos em sala?

RA - Com 60 alunos em sala, eu acho difícil. Esse docente tem que não se transformar naquele professor espetáculo o tempo todo, mantendo a “bola no alto”, engraçado. Não é por aí, porque a curiosidade às vezes é muito discreta. Não é no meio da confusão, é no meio de uma meditação, é pensando em silêncio. E uma coisa que é essencial para os professores é não darem as respostas, é serem provocadores da inteligência dos alunos, fazerem pensar, porque é para isso que existe a escola, para ensinar as pessoas a pensarem. Você pode ter um profissional que aprendeu tudo que pode ser aprendido na sua profissão. Isso não significa que ele seja uma pessoa inteligente, mas que tem boa memória e dominou as técnicas. Você precisa ter um desafio. Eu sempre falei sobre o brinquedo, que eu queria que a escola fosse como uma briquedoteca, e uma pessoa me acusou dizendo “Rubem Alves quer que tudo seja fácil, que tudo seja brinquedo”. Essa pessoa foi um idiota, porque ela não sabe que brinquedo, para ter graça, precisa ser difícil. Não tenho o menor interesse em armar um quebra-cabeça de 50 peças, mas se me derem um de mil peças, aí ele me desafia. Sempre tem de ter um desafio.

PM – O senhor usou a expressão “professor espetáculo”. Como definir a relação ideal do mestre com o aluno?

RA - Eu acho que ela seria uma relação que desenvolve relações pessoais, mas essa situação está ficando cada vez mais difícil de acontecer, porque, com uma turma de 40 alunos, como é que você pode estar atento às limitações, às perguntas de cada um? Eu vejo uma dificuldade muito grande. Eu tenho um ideal, meio medieval, renascentista, da relação do professor e do aluno. Aqueles artesãos ... você pode imaginar um Leonardo da Vinci. Como é que eles ensinavam? Eles tinham oficinas e vários alunos lá, cada um fazendo a sua coisa. Ele não dava preleções, ele chegava para um, dizia assim, tá bom, você pode fazer isso, fazer aquilo, você vai andando por ali, vai indicando as coisas para serem feitas. Então, é uma relação em que o professor está intimamente ligado ao aluno, mas isso é uma utopia do mundo de hoje, pois nós temos que lidar com milhares de pessoas.

PM – E qual é o resultado dessa dificuldade do educador em lidar com um número muito grande de alunos?

RA - Se eu fizer o vestibular, eu não passo. Se os reitores e professores das universidades fizerem o vestibular, eles não passarão. Se os professores dos cursinhos fizerem o vestibular, eles não passarão. Por que esqueceram? Por que têm memória fraca? Não, porque têm memória inteligente, aquela que sabe esquecer aquilo que não faz sentido. Então, tudo aquilo que é supostamente ensinado durante anos, passado o vestibular, é imediatamente esquecido.

*Entrevista publicada na revista Profissão Mestre de novembro/09.


*Editora-chefe das revistas Profissão Mestre e Gestão Educacional

Revista Profissão Mestre

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Assim não dá! Usar a TV na Educação Infantil sem propósito


Assim não dá! Usar a TV na Educação Infantil sem propósito
Beatriz Santomauro (bsantomauro@abril.com.br). Com reportagem de Rita Trevisan


Exibir os programas comerciais, que poderiam ser vistos pelos pequenos em casa e sozinhos, não é papel das instituições de Educação Infantil. Sua função é, antes de mais nada, propor atividades que acrescentem informações variadas às crianças. Por isso, a TV deve servir para passar filmes e seriados que não estejam ao alcance da maioria e ser uma ferramenta de aprendizagem.

Para aproveitar o instrumento como parceiro na creche ou na pré-escola, o educador precisa garantir que aquela programação faça parte da proposta pedagógica. Para orientar se a escolha vale ser feita, alguns pontos podem ser levados em conta: o filme exibido às crianças é de qualidade? Qual mediação será feita para que os pontos de interesse sejam bem explorados? O tempo de exibição para atingir os resultados esperados está apropriado ou exagerado? Qual o efeito educativo daquela atividade? E seu objetivo?

Tendo essas preocupações em mente, e articulando esse material a outras linguagens, como contação de histórias, artes visuais, teatro e música, a TV entra como um dos possíveis elementos de apoio - e não o único a ser usado.

Passar o mesmo filme dezenas de vezes para agradar as crianças, que gostam de repetições, pode ser uma armadilha. Se o professor não colabora para o aumento de repertório de conhecimentos da turma, acrescentar a TV na rotina passa a ser uma perda de tempo.


Consultoria Ana Paula Soares da Silva, pesquisadora do Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil (Cindedi) da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, SP.

Revista Nova Escola

A criança é um ser de cultura

A criança é um ser de cultura
A favor de um trabalho integrado na educação infantil, Elvira Souza Lima diz que a criança está empobrecida e defende um pacto entre adultos pela nova geração

Juliana Holanda


Elvira: A neurociência revelou a importância do papel do adulto. (Foto: Gustavo Morita)

Difícil definir a linha teórica de Elvira Souza Lima. Antropóloga, psicóloga, com formação em música, especialista em neurociências, a pesquisadora em desenvolvimento humano tem se dedicado à pesquisa aplicada nas áreas de educação, mídia e cultura. A intersecção de conhecimentos resulta em uma leitura do universo infantil que integra o desenvolvimento biológico com a cultura. Elvira admite que, para ela mesma, foi uma revolução entender que a criança é um ser de cultura. Preocupada em criar instrumentos para o professor trabalhar com as crianças, ela lançou uma coleção de DVDs para trazer "uma experiência mais humana" na formação docente (http://livros107.blogspot.com). Eles foram desenvolvidos a partir de cada uma das 17 áreas mobilizadas pelo cérebro para a leitura: ritmo, rima, semântica, sintaxe, memória auditiva... a ideia é incentivar práticas culturais que levem a desenvolver essas áreas na criança da educação infantil. "Que é o que eles não fazem, já põem a criança para começar a escrever", diz Elvira nesta entrevista concedida à Educação Infantil, série especial da revista Educação.

A senhora é uma estudiosa do processamento da imagem no cérebro humano. Como isso pode ser trabalhado na educação infantil?
A criança da educação infantil está cada vez mais empobrecida. Ela não brinca por causa da condição urbana; não desenvolve música, e sabemos da importância disso do ponto de vista da neurociência. Entender a criança como ser de cultura é a coisa mais difícil para um adulto hoje. A criança ficou muito marcada pela psicologia, por essa psicologização da educação infantil. Então, a ideia é trabalhar numa perspectiva integrada, da cultura e do biológico, do desenvolvimento que é da espécie, aproveitando esse avanço enorme que a neurociência tem trazido em relação ao conhecimento dos processos internos e também sobre o papel do adulto. Quanto mais avança a neurociência, mais fica claro que nessa infância o papel do adulto é muito grande.

Diante dessa importância do adulto, qual a posição do professor? O professor tem de ter um repertório teórico, mas ao mesmo tempo entender em que fase de desenvolvimento a criança está?
Entender o desenvolvimento da criança não está tão disponibilizado para o professor. São dois lados: um é o conhecimento do desenvolvimento infantil, que esse realmente nós temos. Mas a riqueza, a diversidade, ou a importância desse período de desenvolvimento, e por outro lado a importância do adulto, essa visão da criança como um ser de cultura, é o que está faltando hoje. Porque ficou muito voltado para desenvolver a criança naquela ideia de que quanto mais antecipar os conhecimentos, mais inteligente ela fica.

Quer dizer, não é preciso hiperestimular a criança. O importante é o professor perceber se ela está bem desenvolvida para a fase em que se encontra?
Exatamente. Você pode até fazer contextos ricos, mas ela tem de desenvolver a imaginação, desenvolver acervos de memória. E ficou muito cognitivo, ler e escrever o nome virou uma marca de inteligência e isso sacrifica o próprio desenvolvimento simbólico da criança. Para esse desenvolvimento infantil, é preciso o desenvolvimento cultural do próprio professor. O repertório do adulto não tem de ser só "o que eu vou fazer com a criança". Tem de ser o de uma pessoa que cuide da própria sensibilidade. A própria criança tem comportamentos de imitação, os neurônios-espelhos. Ela tira dos contextos em que está uma série de coisas que vão para a memória dela, então os acervos de memória são fundamentais.

O que são os neurônios-espelho?
São neurônios descobertos recentemente pela neurociência. Por exemplo, você está fazendo esse movimento e para isso você está mexendo alguns neurônios na sua cabeça. Enquanto te observo, eu não estou mexendo com o córtex visual, mas estou movimentando na minha cabeça os neurônios motores que fazem esse movimento. Por isso, temos cada vez mais a noção da importância desse adulto que interage com a criança. O papel do adulto hoje não é um papel só de adulto educador. Do ponto de vista antropológico estamos falando da "geração de adultos" que é responsável por formar as novas gerações.

Então estamos falando também da importância da família.
Estamos falando de comunidade, o que é uma questão fundamental. Porque você não secciona a criança que está na escola e a que está na comunidade. Essa parceria entre adultos nós não temos. Não estou nem falando da parceria escola e família, estou falando de adultos numa comunidade, que às vezes a gente vê em grupos indígenas, em que todos são responsáveis por aquele grupo de crianças. A escola é isso: um lugar especial para socializar para as novas gerações um conhecimento que não passa no cotidiano, porque, se passasse no cotidiano, não precisava da escola.

E qual o papel da escola nesse contexto? Que peso ela tem diante da formação da criança frente ao que está em volta?
É a questão simbólica, principalmente qualitativa. A idade que ela entra faz diferença, não é nem melhor nem pior, mas vai fazer diferença. Uma criança na creche no primeiro ano de vida, por exemplo, já se constitui como ser de cultura incluindo a escola. Se ela chega num terceiro ou quarto ano de vida é outra coisa, vem com certos padrões de comportamento formados e certo padrão de identidade cultural, mas isso não impede que ela os amplie. Tem muito a ver com a qualidade do que se faz em relação aos processos de desenvolvimento, porque esses não mudam, indo para a escola ou não. Na escola aprendemos coisas, mas o desenvolvimento humano tem parâmetros que são da própria espécie. Por exemplo: não precisa ir para a escola para aprender a desenhar, a criança vai fazer as figuras geométricas, indo ou não à escola. Então, o desenvolvimento da espécie é um referencial fundamental para a educação, porque a educação tem de se adequar a esse desenvolvimento, não forçar a criança no que achamos que ela tem de fazer.

Diante desse conhecimento quanto ao desenvolvimento da criança, quais são os períodos que o professor pode ter como referencial?
Existem marcas que são biológicas da espécie, marcas nos processos de atenção. O primeiro período é o do cérebro entrar em funcionamento. A criança nasce, algumas áreas estão funcionando e pouco a pouco vão entrando as outras. No terceiro ano de vida, ela vai ter todas as áreas funcionando como do adulto. Também nesse momento a criança tem o dobro da glicose circulando no cérebro, o dobro da sinapse em relação ao adulto, então ela tem uma energia enorme. Aí ela começa outro período no qual o grande eixo é a função simbólica. É o momento de construir essa base que caracteriza a espécie humana, trabalhar com símbolos, com representações que têm uma sintaxe, uma organização. Uma das mais importantes é a sintaxe visual, as imagens, percepção do corpo dela no espaço, da brincadeira de faz de conta, do desenvolvimento de narrativas que vão estar no desenho, na música. A criança tem essa capacidade de construir ou de desenvolver várias formas de comportamento e se adequar, mas ela precisa realizá-los. E um dos problemas hoje é que cada vez mais a criança pequena realiza menos: ela assiste a muita televisão, fica na internet, usa pouco o corpo, se movimenta pouco.

A construção da função simbólica se dá em qual faixa etária?
Mais ou menos dos 3 aos 6 anos seria um eixo fundamental para trabalhar os sentidos de várias formas. Essa é uma grande contribuição recente da neurociência. Pensávamos que as imagens mentais eram construídas a partir de coisas que você vê, mas construímos a partir de todos os sentidos. Por isso, faz toda a diferença a relação dela com o meio.

Qual o efeito, então, para a criança que fica diante da televisão e do videogame durante boa parte do dia?
Nesse caso, não é uma imagem tridimensional, geralmente é uma imagem bidimensional, em que ela desenvolve um padrão de atenção específico. Por isso, precisamos ter um currículo que diga que nós não vamos ficar fazendo apenas desenho geométrico. Aos 2 anos, é possível trabalhar com diferentes tamanhos de papel, texturas, ter essa diversidade para promover esse desenvolvimento.

Qual a importância do desenho nessa fase?
O desenho é um produto cultural da criança. A visão psicológica diria que a criança está se representando, mas na verdade não é a alma que se mostra no desenho, mas o mundo simbólico que está à sua volta. Então, vem a grande importância da educação infantil hoje. Olhar o desenho como um produto cultural é uma revolução.

E a imaginação, por que ela deve ser trabalhada na escola?
Hoje sabemos que, se você mentalizar, está desenvolvendo as redes neuronais. Então, a imaginação toma uma dimensão completamente outra. Entender o que é imaginação e trabalhar com o desenvolvimento da imaginação da criança seriam um eixo quase curricular.

Mas tem-se a ideia de que a imaginação da criança é algo quase natural.
Não, a imaginação tem de ser estimulada. Você cria acervos de memória e possibilidades. A imaginação é a possibilidade de trabalhar com acervos que você tem fazendo outras relações. Um dos grandes problemas é que as crianças não são educadas para isso. Crianças que trabalham a imaginação têm um acervo para lidar, uma educação dos sentidos.

E quando ela não tem a educação dos sentidos e tem um desenvolvimento simbólico pobre?
Se for fragmentado, vai ter problemas lá na frente.

De que tipo?
Problemas de aprendizagem de conhecimentos escolares, na apropriação da escrita. Estamos vivendo isso hoje no Brasil. Outras coisas que deixa de aprender, como o processo de tomada de decisão, que é aprendido nas brincadeiras. Se estamos trazendo a brincadeira para a escola porque não tem mais brincadeira de rua, os adultos têm de ter uma grande parceria. Mas é uma parceria entre a geração de adultos para criar bem a geração da infância. E hoje nós não temos isso. A criança precisa desse referencial do mundo dos adultos que a família extensa tinha. Nós temos que estabelecer de novo uma solidariedade, eu diria, um pacto pela infância.

Como isso se dá no momento da alfabetização?
A alfabetização está muito marcada pelo esperar ser ou "fazer isso para ser aquilo". Quando trabalhei na educação infantil na França, o currículo tinha uma carga de alfabetização para a criança de 4 anos. Hoje, são horas de poesia, música, movimento. A França é um país que realmente mexeu muito a partir dessas descobertas. Sabemos hoje que o sistema emocional modula as memórias, então a participação da emoção é o que dá possibilidade do desenvolvimento simbólico e da utilização desses símbolos de várias maneiras. Esse movimento da criança, esse fazer, é a matéria-prima que ela tem para se constituir como sujeito.

Ao mesmo tempo vemos a ansiedade pela alfabetização.
No Brasil está fortíssima.

Como a escola pode lidar com essa pressão?
É uma questão hoje do diálogo dos adultos. Tenho falado muito para os pais. Precisamos todos ser educados com relação à criança, é algo que não diminui ninguém, porque não tínhamos a amplitude de conhecimento que temos hoje sobre a criança pequena, tudo é muito recente. Esse é o momento para aprender a ser adulto na sociedade também.

E como fazer a transição entre essa fase e a escrita?
Nós identificamos escrita com o ato de escrever. Só que a alfabetização acontece internamente, é preciso o desenvolvimento da função simbólica para formar acervos de memória. Isso não se forma escrevendo no papel, mas trabalhando com narrativas, dramatização, desenho. O domínio da parte gráfica da escrita acontece a partir do sexto ano de vida, então antecipar o processo muitas vezes cria sentimentos de fracasso. Ou seja, a questão do desenvolvimento e da perícia do movimento tem de ser respeitada.

Esse sentimento de fracasso também pode vir pela comparação de desempenho das crianças. Como lidar com isso?
As pessoas também criam memórias do tipo "fulano nessa época fazia não sei o que" e isso é péssimo. O conhecimento tem de ser um trabalho coletivo, mas tem uma dimensão individual. É um cérebro que aprende. Nós estamos falando muito no Brasil da função social da escrita, mas a escrita tem um papel de desenvolvimento pessoal. Tem toda uma estrutura simbólica que é da pessoa e a escrita, nessa função individual, é fundamental, de comunicação consigo mesma, de esclarecimento do pensamento.

O desenvolvimento infantil é respeitado hoje?
Não, muito pouco. Mas não porque as pessoas são "do mal", mas porque há um desconhecimento enorme e porque estamos num momento de predomínio muito grande da psicologia na educação. Parece que a psicologia é pedagogia. Psicologia não é pedagogia. Temos uma desvalorização muito grande da docência e da escola, porque fica muito fácil ficar falando mal da escola, só que a escola é uma conquista cultural da humanidade, ela tem cinco mil anos e é bem-sucedida, até hoje conseguiu garantir a continuidade do conhecimento formal, que é um direito de todos. Agora, ensinar a todos é um desafio, nós não sabemos ensinar a todos. Tem fronteiras que não conhecemos e as possibilidades estão na espécie. Essa criança hoje é uma desconhecida.

E o que pode ser feito na prática para embasar a formação dos professores?
Pessoalmente, acho que as áreas de conhecimento que trabalham com o ser humano são fundamentais para o professor: neurociência, no sentido da memória, da percepção, do que é essa função simbólica, que ele trabalha o tempo todo e não sabe nada, nem da dele nem da infantil. Mas o que falta realmente é planejamento de método. E o professor que trabalha com infância tem de se alimentar na sua própria imaginação o tempo todo.

Revista Educação

Os sentidos da sensibilidade e sua fruição no fenômeno do educar


Miguel Almir Lima de Araújo

Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor da Universidade Federal do Estado da Bahia (UNEB) e da Universidade Estadual de Feira de Santana (UFES). E-mail: malmir@uol.com.br


1. UMA COMPREENSÃO POLIFÔNICA DA SENSIBILIDADE

No bojo da tradição de nossa cultura ocidental, o modelo de pensamento que traduz a ideia de Ratio foi sedimentado com intensidade, instituindo processos civilizatórios modulados, de modo predominante, nos auspícios do saber racional. Esse paradigma que se constitui como emblema de verdade foi estatuído por uma Razão pretensamente suficiente e pura, tendo como implicação o descuido, a denegação da esfera do Sensus, da expressão do sensível, do senso de compreensão, da intuição, das afecções humanas - da Sensibilidade.

Na cultura e no existir humanos, a pertinência e a relevância da presença constitutiva da Razão (Ratio, Logos) é imprescindível como senso que potencializa a criticidade do pensamento, sua expressão como capacidade de discernimento e de indagação radical, como possibilidade de uma Razão que dialoga e que cria Sentidos. Porém, ao ser plasmada de forma isolada e desvinculada do Sensus, como se fosse o único modo de expressão do conhecimento verdadeiro, a Razão incide em processos reducionistas que desqualificam a complexidade intensiva do humano.

Essa supremacia da Ratio que a considera antagônica e superior ao Sensus desemboca em posturas caracterizadas por modos de expressão abstratos e mecânicos que privilegiam as esferas do cálculo e da técnica, da precisão e da uniformidade. Assim, prevalecem as lógicas calculistas em detrimento das expressões que revelam a plasticidade dinâmica do existir, dos fluxos sinuosos do vivido/vivente; da indeterminação e da imponderabilidade - estados ontologicamente constitutivos da complexidade da condição humana.

Os imperativos da racionalidade técnica e instrumental privi-legiaram a lógica do cálculo - a Razão calculista -, que tende a reduzir o humano à funcionalidade do metron, da medida, aos parâmetros da forma mecânica. Essa hegemonia forja lógicas monossêmicas que reduzem a complexidade do existir e da cultura apenas à esfera da retilineidade e da mensurabilidade. Ao operar essa redução, essa postura recalca as dimensões pregnantes do ser-sendo, do existir.

A tradição mítica do pensamento simbólico, mitopoético, que constituiu a Grécia arcaica, se estruturou mediante uma compreensão intuitiva, um Logos, uma Razão existencial que foi sendo gradativamente descartada com a ascensão e a hegemonia do Logos abstrato. Esse Logos privilegia "la esencia frente a la existencia (...) el ser estático frente al devenir dinámico" (ORTIZ-OSÉS, 2003, p. 88), caracterizando, assim, uma Razão incorpórea, imbuída de apatia. Para Ortiz-Osés (2003, p. 88-89), ocorre a passagem de "una filosofia dialógica como la socrática a una filosofia lógica como la platónica-aristotélica-clásica". De um Logos exis-tencial, spermatikós, que supõe pregnância e dialogia, para a universalidade desse Logos abstrato, que supõe monologia e verticalidade.

O Logos primordial, em sua acepção heracliteana, pode ser concebido como busca do Sentido anímico das coisas, do existir, no auscultar os enigmas que constituem os desvãos e paradoxos do humano (JAEGER, 1989; LEÃO, 1991; COLLI, 1996a; HEIDEGGER, 2001). Assim, um Lógos ontológico que projeta vivacidade e admiração, que, em sua condição polilógica, indaga com abertura e radicalidade e penetra com intensidade no claro enigma do humano.

Na órbita dos paradigmas que se tornaram predominantes em nossa cultura, o pathos passa a ser desqualificado e patologizado. Passa a ser tratado como zona sombria que desbota o espírito, o conhecimento verdadeiro. Essa patologização do pathos (paixão) se traduz na repulsão às intensidades das afecções, dos sentires, do mundo sensível que, como força que comove, desconserta e inquieta, deve ser controlada e enclausurada por meio do ascetismo que incide em recalcamento e purificação.

O Sensus, como sentimento e como significação, se estrutura, originariamente, a partir do húmus, do orgânico, da pregnância das humidades do ser-sendo. Projeta-se na nervura da carne, no senciente da corporeidade, no fremir das vivências humanas, a partir da plasticidade sinestésica da expressão originária dos feixes dos cinco sentidos - do pentassensorial - e dos perceptos que emergem de nossas camadas sensíveis mais sutis e vastas - o multissensorial (ZUKAV, 1992). Na proporção em que cuidamos das potencialidades do multissensorial, tecendo a relação de coexistência e de interdependência existente entre os diversos perceptos, dos tons de suas singularidades, descortinamos a vastidão dos vãos de nosso universo sensível, urdimos o espectro da Sensibilidade em suas dimensões seminal e anímica. Assim, o Sensus emerge dos horizontes do sensório, dos perceptos sensíveis, do senso intuitivo, em suas expressões pregnantes, se expande e se prolonga nos sensos do imaginário, da consciência compreensiva, da Razão-Sentido.

Para Abbagnano (1962, p. 840), o sensível "é o que pode ser percebido pelos sentidos" e a Sensibilidade está na "esfera das operações sensíveis do homem", revela a "capacidade de receber sensações e de reagir aos estímulos (...), de participar das emoções alheias ou de simpatizar". Barbier (2001, p. 136) concebe Sensibilidade como estado "que dá sentido a todos os sentidos", compreendendo "sentido como universo de significados existencialmente encarnado e não susceptível a uma explicação, mas somente a uma compreensão multirreferencial e transdisciplinar a partir de uma implicação pessoal" (BARBIER, 2001, p. 136-137). Assim, Sensibilidade como amálgama que agrega os sensos perceptivos na tecelagem dos Sentidos pregnantes e anímicos do existir.

A dis-posição do estado sensível nos possibilita o estar-sendo-no-mundo-com-os-outros, de modo encarnado e radical, mediante os processos de percepção e de compreensão em que podemos tocar, cheirar, escutar, saborear e olhar o mundo, bem como, conjuntamente, pensar, meditar por meio de nossa relação direta e originária com ele. Essa dis-posição desemboca em formas de saber - sapere - imbuídas do elã do vivido-vivente que traduzem um "enraizamento dinâmico".

Destarte, o universo do estésico, do sensível - o Sensus -, se entretece, no dinamismo de sua plasticidade, como instância policrômica, como dis-posição de nosso ser senciente e pensante que, desse modo, pode vivenciar e compreender com vigor os fenômenos, a vida. Merleau-Ponty (1984, p. 228) proclama que "O sensível (...) como a vida, é um tesouro sempre cheio de coisas a dizer" na intensidade da membrura, da carnalidade do existir, "na juntura onde se cruzam as múltiplas entradas do mundo" (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 235, grifos do autor), nas dobras de suas encruzilhadas.

Nessa perspectiva, o Sensus se traduz na expressão plástica dos perceptos sensíveis que plasmam as afecções, o imaginário, e que, conjuntamente e de modo implicado, plasma a consciência compreensiva, o senso meditativo, impregnando o existir de mais Sentidos, de Sentidos vivos e originários. Swimme (1991, p. 80) proclama que "o universo é sensível - é um reino de sensibilidade". Assim, quanto mais exercitamos as potencialidades sensíveis, mais e melhor podemos apreender, compreender e vivenciar a dinamicidade dos fluxos do universo, os ritmos sincopados do existir, das coisas; mais podemos cultivar nossas potencialidades ad-mirantes, mirando com despojamento e implicação, com vivacidade e alumbramento.

O cuidado com a Sensibilidade se traduz e se descortina na abertura despojada, na dis-posição de nossas potencialidades humanas, de nossos sensos perceptivos, pela relação coexistencial entre a corporeidade e a espiritualidade e se desdobram em processos compreensivos e vivenciais. Processos que vislumbram a inteireza in-tensiva da condição humana. Dis-posição para a percepção, a compreensão dos fenômenos, da complexidade e da inteireza do existir.

O estado de dis-posição do espectro da Sensibilidade nos implica com os enigmas do ser, do existir e do coexistir; nos cumpliciza com as coisas que nos afetam, de modo acolhedor, em que nos simpatizamos e nos empatizamos coimplicativamente. O estado de solicitude da Sensibilidade incide numa atitude de não-resistência aos desafios do devir, de superação das posturas defensivas. Incide em abertura para os influxos dos fenômenos, para os fluxos tensoriais do existir. Esse estado nos con-voca por inteiro, de modo penetrante, para processos in-tensivos de buscas que incidem em desafios altaneiros; para a percepção e a ad-miração das silhuetas do existir mediante o mirar vasto e espirituoso da alma e do coração. Dessa forma, a abertura sensível faz emergir o pasmo do estado nascente que leva a processos ad-mirantes de encantação.

A esfera do sentir/sensível, não é nem apenas estimulante nem apenas coadjuvante, mas, sobretudo, estruturante nos processos de sedimentação do saber/conhecer, dos Sentidos, conjuntamente com a esfera do racional. O sentir e o inteligir são dois modos e níveis diferenciados de um mesmo processo de percepção, de apreensão e de compreensão. Existe uma codeterminação/coimplicação originária entre sensível e inteligível. Pensamos sentindo e sentimos inteligindo, simultânea e alternadamente. A inteligência é um compósito híbrido de senciente e de pensante. O sentir é inerente ao próprio inteligir.

Essa abertura, essa dis-posição de nossa condição de ser sensível, de nossa Sensibilidade, nos proporciona uma percepção penetrante da porosidade, dos ritmos, das ranhuras, das texturas, das espessuras, das dobras, da pulsação, das expressões viscerais do que é vivo, dos recurvamentos e das ambiguidades dos fenômenos, do existir, em seus estados de vibração e de movência. Os perceptos dis-postos nos levam a farejar, a apreender os fenômenos, as coisas, em sua pregnância originária. O olhar, o escutar, o tocar, o sorver, o cheirar, que perfazem a percepção atenta e sensível, nos dis-põem a perceber e a apreender com proximidade, desde dentro, as vicissitudes da heterogeneidade do vivido/vivente, em seus flancos ponderáveis e imponderáveis. Assim, podemos compreendê-los melhor, em seus limites e possibilidades, com expansividade, rigor e vigor.

A substância sensível - o homo/húmus, o mundus sensibilis - impulsiona o pathos que impele o estado de perplexidade e de admiração. Provoca o espanto originário que arrepia e co-move, que instala momentos inaugurais na composição dos processos de compreensão e de invenção do existir, dos agenciamentos de Sentidos encharcados com o elã do anímico. Heidegger (2001, p. 25) fala do "espantar-se com o porvir do princípio", do estado nascente e admirável das coisas. Afirma que "é preciso espantar-se diante do simples, e assumir esse espanto como morada" (HEIDEGGER, 2001, p. 229), como a morada extraordinária da singeleza do humano. Espanto que enreda perplexidade e que aponta para a radicalidade in-tensiva das buscas e dos desafios extraordinários.

Para Heidegger (1989, p. 21), o pathos - paskhein - conota "deixar-se con-vocar por". Traduz o dispor-se, o abrir-se aos apelos que a relação de espantamento para com os fenômenos nos provoca. A plasticidade do sensível, da estesia, nos co-move, nos aproxima e nos adentra nas sinuosidades, nas reentrâncias e nos feixes pregnantes do vivido/vivente, nas curvaturas que cingem as trajetórias humanas; nos compele a ultrapassar os estados de anestesiamento que comprimem o humano e nos enredam nas in-tensidades do ser-sendo.

Muitas vezes, na trama das relações cotidianas, pelos influxos das experiências vividas, sobretudo no mundo contemporâneo, a esfera do sensível é veiculada e canalizada por práticas instituídas que tangenciam o corpo, as emoções, os sentimentos - a dimensão afeccional - com propósitos de anestesiamento, de massificação e de controle. Numa sociedade que privilegia a lógica do mercado - a mercado-lógica -, a supremacia do utilitário, da esfera do ter, com a onda avassaladora do consumismo que leva à consumação do próprio existir humano, as expressões originárias da Sensibilidade passam, em grandes porporções, a ser aplastadas e homogeneizadas de modo grotesco.

1.1 A Sensibilidade como estado de dis-posição pregnante e anímico

Uma compreensão ontológico-policrômica da Sensibilidade a concebe como expressão originária e matricial (matriz geradora) do Sensus que implica e coimplica o senso noético, o horizonte dos Sentidos, a consciência compreensiva e o senso afeccional, a textura da corporeidade, o elã do pathos. Sensibilidade como estado pregnante e anímico que emerge desde dentro, das nascentes do existir, que se traduz na radicalidade e na amplitude da dis-posição e da abertura existenciais para as transitudes do ser-sendo. Dis-posição que proporciona a compreensão e a vivência da inteireza do ser-sendo no dinamismo de suas in-tensidades e incompletudes. Esse estado de despojamento nos con-voca para os processos de coimplicação para com os fenômenos, para com os influxos do jogo do existir, do coexistir; para o cuidado e o desvelo com a heterogênese do entramado da condição humana.

Nesse horizonte compreensivo, a Sensibilidade é concebida como estado de dis-posição do corpo e do espírito, como constitutivos ontológicos da inteireza híbrida do ser-sendo, que, de modo coexistencial, nos conduzem à fruição do sentimento do mundo na expressão de sua vastidão incomensurável. Desse modo, com o farejar dessa abertura empática da Sensibilidade, podemos perceber, sentir e fruir o estado de entrelaçamento que nos interliga com todos os seres do universo/ pluriverso, mediante o elã da sinergia que nos interpenetra e que nos implica com a anima mundi (alma do mundo). Assim, podemos com-partilhar a sutileza dos sentimentos que nos sinergizam com todos os seres do universo; podemos nos enredar na simpatia do todo.

A Sensibilidade se configura no estado de abertura estésica que implica inerência e aderência ao coração da experiência vivida/vivente e incide na expressão do pasmo que espanta e se desborda na ad-miração. Ad-miração que nos co-move diante das in-tensidades e da plasticidade dos fenômenos, do existir. Estado que nos con-voca e nos implica por inteiro para processos de coexistência; que leva a perceber e a compreender as reentrâncias do emaranhado que perfaz a teia mestiça dos fenômenos do existir; que se descortina numa abertura aurorescente para a crepuscularidade do ser-sendo, em sua radicalidade originária, em seu fundo sem fundo. Abertura para a trama de seus cruzamentos e hibridações, paradoxos e enigmas, para os fluxos tensoriais do existir.

Os feixes que plasmam a aragem da Sensibilidade nos arremessam nos flancos do aberto, desse fundo sem fundo que revela vastidão incontornável. Propiciam o estado de abertura originária e indeterminada para o suceder dos acontecimentos, das coisas sendo, dos fluxos das contingências. Os estados de despojamento e de dis-ponibilidade do espírito e do coração nos lançam nas curvaturas das travessias e das itinerrâncias do ser-sendo; nos levam a per-correr os riscos dos desafios que co-movem e implicam posturas audaciosas na transitude movediça do existir. Assim, o cuidado com a Sensibilidade nos conduz à percepção e à compreensão do arco de nossos limites e possibilidades existenciais, de nossas fragilidades e forças, de nossas incompletudes; leva-nos a identificar nossas próprias insensibilidades. Torna-nos não-indiferentes diante das contingências, das dores do mundo.

Sensibilidade como estado com-preensivo que nos precipita no transitar pelos caminhos do deserto, sob o regime do solar, com suas trajetórias mais contornadas e, conjunta e implicadamente, no transitar pelas veredas da floresta, sob a penumbra do lunar, com suas trajetórias mais incontornáveis. Assim, o espectro da Sensibilidade nos incursiona pelas encruzilhadas de Sentidos existenciais constituídos por desertos e por florestas, pela aragem do lusco-fusco, do solunar.

Esse cuidado com o dinamismo do espectro da Sensibilidade implica o cultivo de um senso fino e acurado de percepção e de compreensão que nos conduz ao esprit de finesse (espírito de fineza) como estado de fruição da fineza do ser-sendo. Estado que, assim, aguça o senso perspicaz de discernimento e de compreensão da constituição híbrida dos fenômenos e do existir; fomenta o senso espirituoso e afetual que, ao com-preender, se implica e se coimplica com o existir e com as coisas, com os fenômenos e os seres, com cordialidade e simpatia, com desprendimento e generosidade; que proporciona o cultivo do sentimento do mundo.

Na mitologia grega, Hermes representa a ponte, a encruzilhada, o deus estradeiro que interliga e entrecruza, o condutor de almas. É o mediador entre os deuses e os humanos. Íris traduz o arco-íris como expressão exuberante que, em sua policromia inefável, estampa os tons mestiços que trançam e interpenetram as dimensões diversas do existir e da cultura humanas em sua unitas multiplex (unidade na multiplicidade). Íris representa o arco de união entre o céu e a terra, entre deuses e humanos. "A Íris é a flor primaveril" que estampa a cromaticidade de seus matizes entrelaçados (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994, p. 507).

Nesse prisma de compreensão, a Sensibilidade é hermesiana e arco-írica ao se configurar como espectro de uma ponte, de uma encruzilhada que entrelaça e interpenetra as policromias e polifonias dos Sentidos humanos mediante processos pregnantes e anímicos de percepção, de compreensão e de vivenciação do existir, do coexistir. A Sensibilidade traduz a in-tensidade da coexistência originária entre a abertura dos sentidos e da intelecção, entre Intuição e Razão, entre anima e animus, entre luzes e sombras. Daí sua condição e sua estrutura êntrica, sua pertinência como metáfora da androginia.

Dessa forma, o cuidado com a Sensibilidade se configura como a busca de um perceber e de um compreender arco-írico e hermesiano que desborda as ressonâncias da policromia de seus feixes. Feixes que traduzem as interpenetrações das silhuetas dos matizes que estampam o existir e o coexistir. Uma compreensão hermesiana e arco-írica que re-vela a plasticidade dos fenômenos humanos nos fluxos tensoriais que se plasmam na composição de sua harmonia conflitual. Compreensão que, assim, afirma a inteireza in-tensiva das encruzilhadas mestiças do existir e do coexistir, na hibridação iridescente que amalgama o pregnante, a terra - o ctônico - e o anímico, o céu - o urânico.

Assim, Sensibilidade como mirada e morada constelada de policromias e de polifonias que descortinam o estado pregnante e anímico de dis-posição de nossos sensos afeccionais (emoções, sentimentos) e noéticos (pensamento). Dis-posição para uma com-preensão e uma vivência vasta e funda nas in-tensidades da teia do ser-sendo-com-os-outros pela fruição de Sentidos con-sentidos em nosso copertencimento planetário - uma ecosensibilidade.



2. O FENÔMENO DO EDUCAR COMO UM RITO DE INICIAÇÃO AO ADVENTO DA SENSIBILIDADE

Compreendo o educar como ação que se descortina nas mais diversas instâncias de nosso estar-sendo-no-mundo-com-os-outros, desde as esferas mais institucionais e formais às esferas mais aleatórias e informais nos influxos do coexistir cotidiano. Portanto, as meditações aqui plasmadas se norteiam nessa compreensão pluralista de educar e pontuam, sobretudo, a especificidade da ação educativa nas práticas das instituições escolares/acadêmicas. Porém, analogicamente, essas meditações também atravessam as demais instâncias educativas, considerando as similaridades que existem entre estas, apesar de suas diferenças, no transcurso de nosso processo civilizatório.

Há duas vertentes etimológicas que apresentam conotações distintas para o vocábulo Educação/educar que são as expressões latinas educare e educere (DEBESSE; MIALARET, 1974; FULLAT, 1995). Educare significa ação de formar, nutrir, guiar e instruir. Educere conota tirar para fora de, conduzir, levar e criar. Educare apresenta características mais externas que configuram uma ação de cunho instrucional, de transmissão de saber que se processa de modo assimilativo. Refere-se mais à formação técnica e implica posturas mais funcionais, que concebem o educar como processo de transmissão, de reprodução de saberes de modo relativamente estático e mecânico.

Educere incide em processos educacionais que emergem desde dentro e, com seu dinamismo e in-tensidade, fomentam o espírito de criticidade e de inventividade, o senso intuitivo e a imaginação criante dos indivíduos. Processos que também implicam a transmissão e a assimilação dos saberes e dos valores instituídos, mas, sobretudo, implicam sua expansão, criação e recriação, nas in-tensidades dos fluxos moventes da cultura, pela renovação e pela instituição de novos saberes e sentires. Desse modo, a ação de educar incide no cuidado com a iniciação aos Sentidos humanos, de modo teórico e vivencial. Descortina processos que fomentam as potencialidades criantes de cada indivíduo imerso em seus contextos culturais, no ethos vivo, redivivo.

O eixo semântico de educere traduz processos de condução, ou seja, partindo do lugar existencial em que estamos circunscritos no mundo, na contextura dos entre-lugares, somos impulsionados às aventuras das buscas e descobertas, dos processos de renovação e de criação de valores e de Sentidos que afirmam e robustecem a condição humana. Assim, educar traduz uma aventura inaugural, alterativa, no horizonte aberto dos Sentidos. Nesses fluxos, mobilizamos nossas potencialidades criantes proporcionando a afirmação e a construção dos Sentidos do existir, da saga de nossa destinação no mundo.

Con-duzir conota caminhar com, coparticipar dos processos, dos deslocamentos, das travessias, de modo co-laborativo. Portanto, não significa uma postura de passividade e de apatia em que alguém, de modo vertical, impõe saberes sobre os outros, monológica e autocraticamente. Educar supõe a química do aprendizado das relações, da relacionalidade, de modo horizontal e coimplicado, em que os en-volvidos na ação co-operam e co-participam dialogicamente, mediante os matizes das singularidades e as inter-relações das diferenças nas in-tensidades dos processos de co-aprendência. Assim, muito mais que ensinança, educar conota aprendência, co-aprendência. Toda aprendência, em seu sentido mais vasto, traduz co-aprendência nos interfluxos da coexistência.

Educação como rito de iniciação implica uma compreensão desta como ação viva, tecida de modo teórico e vivencial, nos processos de afirmação e de renovação dos Sentidos humanos. Ou seja, pela articulação de saberes/conteúdos (repertórios culturais), de processos de meditação e de ruminação teórica e, conjuntamente, de forma simultânea e alternada, por meio de experiências vivenciais em que os saberes são mediados por momentos e processos de fruição em que o corpo e o espírito copulam com in-tensidade.

Assim, podemos tecer saberes (sapere) que incidem em buscas de sabedorias que podem ser sorvidas na pregnância das vivências cotidianas. Aprendemos e compreendemos de forma mais intensa aquilo que atravessamos e que nos atravessa por inteiro, na nervura das experiências vividas/viventes. Aprendência como apropriação e reapropriação de Sentidos provados pelos sensos perceptivos.

As ações de educar que se configuram como ritos de iniciação são realizadas de modo teórico-vivencial e proporcionam aprendências que nos marcam por inteiro, pelas mais diversas formas de vivenciação destes, em que corpo e espírito se enredam de modo coexistencial. Essas iniciações mobilizam de forma ampla nossos sensos perceptivos e compreensivos, bem como a imaginação e o espírito criantes para as in-tensidades dos desafios, para a criação de Sentidos anímicos.

O que nos atravessa desde dentro, mobilizando a corporeidade, a pregnância dos sentires e, de modo implicado, a consciência compreensiva, a espiritualidade, inspira e infunde o elã do anímico, a polifonia dos Sentidos do existir. Ao ritualizar, re-atualizamos, elaboramos internamente, de modo pregnante e anímico, operando a fruição das aprendências, da afirmação, da criação dos Sentidos. Assim, os sensos perceptivos e compreensivos, a consciência e o imaginário ruminam e decantam, projetando saberes e sentires encarnados, impregnados de elã vital. Saber eivado de sapere, encharcado de húmus, com o gosto do viver e que implica a busca espirituosa de sabedoria.

2.1 A predominância das práticas educativas instrucionais

As práticas educativas instituídas em nossa sociedade se configuram, de modo predominante, como práticas instrucionais, na proporção em que privilegiam a pragmaticidade e a funcionalidade, vislumbrando a (in)formação técnica dos indivíduos para o exercício de suas funções profissionais, de seus papeis sociais. Dessa forma, as práticas instrucionais se caracterizam como processos mecanizados de trans-missão dos saberes tecnocientíficos instituídos por meio de procedi-mentos de natureza técnica e instrumental em que as demandas do ter são superestimadas em detrimento dos valores do ser, incidindo em processos sistemáticos de desumanização. Investe-se em processos instrucionais de caráter informativo que funcionalmente instruem os indivíduos para o cumprimento de seus papeis sociais. Papeis que, em si mesmos, se configuram como representações externas, como máscaras que projetam os modelos empadronados pelas instituições.

Desse modo, as práticas instrucionais "preparam" "recursos humanos" como entes competentes para funcionalizarem as máquinas e os modos de produção socioeconômicos, garantindo, assim, a eficácia dos aparatos tecno-burocráticos dos poderes instituídos pela cadência de sua ordem monocórdica, que privilegia os princípios do ter, a posse das coisas. Inclusive a posse dos próprios seres humanos que, nessa esfera, são reduzidos aos formatos de seus papeis profissionais, sendo, assim, expropriados de si mesmos. Profissionais que, com a eficiência no cumprimento de seus papeis, garantem a eficácia da ordem estabelecida na compulsão de processos que uniformizam e coisificam. Desse modo, os seres humanos são convertidos em meros recursos, em coisa, sob os ditames dos poderes que operam a tecnociência, as estruturas socioeconômicas, funcionalizando as instituições com seus sistemas produtivos.

Destarte, as pedagogias instrucionais instituem processos de empadronamento dos indivíduos aos estatutos de suas lógicas homogeneizantes. As diferenças são comprimidas e pretensamente diluídas para que esses indivíduos sejam docilizados e conformados pela uniformidade de suas lógicas. Instala-se, assim, uma "pedagogia de rebanho", que pretende reduzir os indivíduos a seres bem-comportados e controlados pelo aparato de suas leis e normas aprisionantes.

A predominância dessas práticas instrucionais descamba no que podemos chamar de caducação da educação, ou seja, ao denegar e comprimir a dinâmica da plasticidade do educar, como processo in-tensivo e vivo que fomenta a expressão do elã vital, das capacidades criantes dos indivíduos, as práticas instrucionais tendem a desfigurá-lo por meio de suas posturas homogeneizantes; tendem a se desertificar na esterilidade de seus métodos e conteúdos desprovidos de vitalidade.

2.2 O educar como processo de fruição da Sensibilidade

Os espaços em que acontecem as ações do educar são constituídos, geoculturalmente, como entre-lugares em que os indivíduos, em sua condição biocultural, se encontram para com-partilhar e expandir a diversidade de seus saberes e sentires. São encruzilhadas mestiças em que se entrecruzam, com in-tensidade, a pluralidade de valores e de crenças dos indivíduos e grupos humanos e que potencializam fluxos tensoriais de relações dialógicas que podem enriquecer, aproximar e entrelaçar.

Esses entre-lugares fomentam a perspectiva da unidade na diversidade mediante o reconhecimento dos Sentidos humanos atinentes à singularidade de cada indivíduo e de seus grupamentos, bem como a consciência da relevância dos processos de compartilhamentos in-tensivos das diferenças. Isso pode ocorrer pelo cultivo e pelo cuidado para com os elos que nos agregam naquilo que é comum à nossa condição humana, ou seja, mediante as interligações das semelhanças que nos proporcionam a coexistência como seres humanos, no garimpar as pequenezas e as grandezas, os enigmas dos tesouros da alma e do coração.

Essa compreensão do educar, em suas diversas modalidades, considera este como um rito vivo de iniciação que ocorre nesses entre-lugares como encruzilhadas em que se interpenetram os diversos saberes e sentires, as crenças e os valores que constituem os repertórios de seus protagonistas. Esses processos de iniciação podem proporcionar a afirmação das singularidades dos indivíduos e grupos, despertar o senso de interculturalidade, de com-partilhamento e de enriquecimento mútuo.

Desse modo, podemos instalar processos de aprendência e de co-aprendência em que nos aprendemos uns com os outros, uns aos outros. Em que rendamos a estampa da rede in-tensiva da coexistência humana. Assim, aprendemos a ser nós mesmos, na proporção em que urdimos a aprendência do ser-com-os-outros, em que nos aprendemos.

Dessa forma, o educar implica, sobretudo, uma con-vivência com o outro, efetiva e afetivamente. Con-vivência que proporciona processos in-tensivos de autoeducação, heteroeducação e de eco-educação (PINEAU, 1999). Assim, tecemos os fios da autoeducação mediante as aprendências do si mesmo, da autoaprendência; da heteroeducação mediante as aprendências coletivas com os outros seres humanos; da ecoeducação no enredar as coaprendências na teia ecossistêmica mediante nossa relação com todos seres do planeta. Educamo-nos, em todas essas perspectivas, por meio da relação in-tensiva conosco mesmos e com os outros seres humanos, como também com os demais seres com os quais estamos vinculados em planos diversos como seres interdependentes.

Avento uma prática educativa que busca o cuidado primoroso com a corporeidade, em sua constituição orgânica e simbólica, como estofo que traduz a pregnância e a animicidade dos Sentidos humanos. Um cuidado que implica o trato com as afecções e energias humanas, partindo do pentassensorial, dos cinco sentidos primários, pelo cultivo e pela lapidação destes, em que aprendemos a cheirar, a escutar, a degustar, a olhar e a tocar com fineza as expressões do existir.

Ao procurarmos cuidar da corporeidade, das afecções, afirmando suas potências que vivificam e humanizam, podemos potencializar posturas e relações imbuídas de despojamento e de simpatia que implicam tanto os processos de crescimento pessoal quanto interpessoal, e que projetam ambientes, relações e ações educativas estimuladoras e aprazíveis. Podemos instalar entre-lugares educativos em que a simpatia e a empatia nos co-movem mediante a tecelagem de teias abertas que enredam ritos de iniciação às aprendências da afetividade humana. Afetividade humana em suas expressões afirmadoras da cromaticidade e das in-tensidades afeccionais do existir, do coexistir.

Como rito de iniciação ao advento da Sensibilidade, a ação de educar penetra nas in-tensidades do entramado multicor dos símbolos mitopoéticos que plasmam nossos imaginários, garimpando e se nutrindo do vigor de seus mananciais. O dinamismo das imagens, dos símbolos que estruturam o mitopoético, revela estruturas arquetípicas primordiais. Estruturas que se alojam em nossas camadas mais internas e inconscientes, marcadas pela intuição, pelas afecções, pela memória coletiva. Desse modo, o espectro do mitopoético traduz crenças, desejos e sonhos fundos e projeta a polifonia dos Sentidos implicados com o vivido/vivente mediante a potência ligante dos símbolos.

Destarte, o cultivo do imaginário simbólico, do mitopoético na ação de educar, implica o descortinar de ações iniciáticas encharcadas com o elã do imaginal, da força inspiradora e nutridora das metáforas, dos símbolos, dos feixes do mítico e do poético. Esse cultivo incide no fomentar as potencialidades criantes do espírito e da imaginação dos indivíduos na fruição da poeticidade dos fenômenos, do existir, do senso intuitivo e afeccional. Dessa forma, os saberes e sentires são ruminados mediante a expressividade de suas dimensões prosaicas e poéticas em que os Sentidos são sorvidos em sua constituição polifônica e em sua implicação com a pregnância do vivido/vivente. Os feixes do mitopoético infundem ao educar estados de fruição da poeticidade do existir.

A presença da Razão-Sentido na ação de educar se traduz como possibilidade que fomenta a expressão da inquietude do espírito interrogante que desafia e problematiza os fenômenos, o existir, com seu senso vasto de com-preensão dialógica, de ponderação espirituosa, com seu tino de discernimento e seu pensar encarnado.

A Razão-Sentido re-vela a altivez do espírito audacioso. Espírito que transita pelas pedras do caminho como oportunidades estimulantes, como momentos impulsionadores das buscas de Sentidos, em que este pode se descortinar de modo altaneiro. Espírito-águia que se nutre do húmus da terra, do telúrico, das finitudes das contingências do cotidiano, mas que alça seus voos pelos horizontes da infinitude. Que, desde dentro do visível, da imanência, da tangibilidade do existir, penetra pelo invisível, pela transcendência e pela intangibilidade.

Assim, o fulcro da Razão-Sentido projeta o pensamento inter-rogante, que, com seu senso de criticidade, busca problematizar e dis-cernir, compreender com radicalidade as expressões da cultura humana, os fenômenos do existir, a complexidade do educar. Uma Razão-Sentido como Razão compreensiva, que escuta e dialoga, que se implica com os fenômenos, com o existir e o coexistir.

A tecedura da plasticidade da ação do educar como cuidado com a Sensibilidade supõe uma relação de coexistência entre a Ética e a Estética, a interpenetração entre o bem e o belo, a dignidade e a beleza. Uma ação educacional que pretende iniciar os seres humanos no advento de seu ser-sendo pregnante e anímico opera esse entrecruzamento in-tensivo entre a consciência Ética e a fruição Estética. Assim, promove o cuidado com os valores primordiais da solidariedade, da justiça, da paz, da liberdade, do bem, etc. e compreende que estes se fragmentam e se desbotam se prescindem da delicadeza, da elegância, das estampas do belo, da fineza da beleza. Freire (1996, p. 26) realça que a prática educativa deve ser "estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade". A coexistência entre Ética e Estética traduz a busca primorosa do advento da inteireza in-tensiva do humano em seus estados de grandeza e de fineza. Busca que instaura uma morada humana tanto vistosa quanto benfazeja, tanto bonita quanto digna.

Como as aprendências das experiências apontam, essa iniciação aos territórios entrecruzados da Ética e da Estética não pode fecundar apenas na esfera estrita do plano teórico, nas articulações abstratas de saberes. Carece da iniciação teórico-vivencial, da nervura do vivido/ vivente, por meio de ações desafiadoras que mobilizam conjuntamente corpo e espírito. Dessa forma, podemos nos iniciar existencialmente nessas aprendências anímicas. Apenas a esfera do saber teórico pode instruir e in-formar, mas não implica, de modo geral, processos de iniciação ao existir cotidiano, nas buscas de sabedoria. O mero saber se confina apenas às práticas instrucionais, ao âmbito funcional da técnica. Não penetra no horizonte existencial dos Sentidos.

O cuidado com o advento dos valores humanos, da Sensibilidade, mediante os ritos vivos de iniciação, implica um processo pedagógico que se lastreia no pathos do amoroso. Os feixes do amoroso nos abrem e nos dis-põem para vivências in-tensivas conosco mesmos e com os outros, suscitando entrelaces que nos aproximam e que compelem aos abraços que ecofraternizam. A sinergia do amoroso implica a fruição dos sentires que co-movem, que jorram in-tensidade e alumbramento. A vibração do amoroso desborda a simpatia e a empatia dos laços afetivos que nos coimplicam no com-partilhar as diferenças. Assim, podemos celebrar os elos que nos unem e engrandecem, que fazem expandir o sentimento do mundo, a sinergia do ser-sendo-com-os-outros. Naranjo (2005, p. 155) fala de "una educación del sentimiento de humanidad", do sentimento de copertencimento à humanidade.

O amor como princípio educativo, potencializa o desbordar do advento da condição humana, em suas fragilidades e limites, na vastidão de sua magnitude, no cultivo dos valores que enobrecem - da Sensibilidade; acende as flamas da alma e do coração, conduzindo à floração do ser-sendo-com-os-outros no tecer o desafio da ecofraternização, de nosso copertencimento planetário - a Ordo Amoris. Assim, podemos ultrapassar os valores e posturas egocêntricos - o espectro da egocidadania - e nos enredar pelos desafios dos valores e posturas ecocêntricos - no espectro do ecocidadania. Ou seja, podemos fazer a travessia que nos leva do egoísmo, que mutila e encaverna, para a postura compassiva do ecoísmo, que religa e planetariza em nossa condição de seres interdependentes.

Esses processos dialógicos se desdobram a partir dos mananciais de sabedorias da humanidade, na afirmação de posturas que manifestam solidariedade, amorosidade e dignidade. Mas, sobretudo, busca ultrapassar os humanismos que superestimam o ser humano, considerando-o como o centro do universo - o antropocentrismo -, secundarizando e redu-zindo os outros seres à condição de periféricos. Assim, urge instaurar a perspectiva policêntrica do ecohumanismo, que vislumbra a relação de coexistência in-tensiva e interdependente entre os seres humanos e todos os seres do universo/pluriverso, na singularidade irredutível de cada presença, afirmando a diversidade da teia mestiça que nos une ecossistemicamente. Nessa perspectiva policêntrica, inexistem centros exclusivos e deterministas e há, sim, uma teia entrelaçada em que todos os seres, em suas singularidades, se constituem como coexistentes e codeterminantes, portanto, uma cosmovisão ecocêntrica em que o centro se encontra em toda parte e a circunferência em nenhum lugar.

Dessa forma, propugno um educar para a Sensibilidade ecológica/ecossistêmica - uma ecosensibilidade - que compreende a composição do dinamismo dessa rede que entrelaça todos os seres e que, assim, pode nos levar a posturas que afirmam essa cosmovisão. Cuidar da cosmovisão ecohumanista implica a instauração de uma postura ecofraternizante, em que procuramos nos fraternizar com os seres humanos e a diversidade dos seres que povoam o cosmos com os quais somos interdependentes. Implica ultrapassar os ditames do patriarcado, ousando instaurar o fratriarcado, instituindo, assim, modos de relação inter-humana e eco-humana inspirados no sentimento de fraternização. Sentimento que, cordialmente, reconhece e acolhe a todos, na magnitude de suas singularidades, fomentando o com-partilhamento da coexistência que ecofraterniza ao nos implicar e nos coimplicar uns com os outros.

Como processo que pode conduzir aos compassos de re-encantação da vida, do mundo, a ação de educar carece de invenção e de reinvenção constantes, tanto em seus modos e formas quanto nos repertórios de seus conteúdos. Carece de processos que conduzam à admiração, ao espanto, que implicam constante renovação. A alquimia desses processos de renovação supõe espíritos e corações despojados, para que possam estar constantemente se recriando e se reinventando no suceder das contingências educacionais e existenciais.

A presença do senso intuitivo do existir é uma das expressões mais fecundas mediante a articulação da ação de educar como rito de iniciação na dinamização de seus processos de criação. O desvelo e a escuta do senso intuitivo, com as sutilezas de suas tonalidades e texturas internas, fomenta a imaginação criante, nos revela insights que propor-cionam estalos espirituosos. O farejar da intuição implica o auscultar interior que leva a percepções penetrantes e que alargam a consciência compreensiva e engravidam processos inventivos na emergência do surpreendente.

A intuição, o senso intuitivo, leva a cavucar as reentrâncias e as espessuras dos fenômenos do educar, penetrando em suas opacidades e imponderáveis. Permite captar indícios internos que levam a uma compreensão minuciosa das curvaturas das ações educativas. O cuidado atencioso com a intuição possibilita percepções perspicazes e sentires fundos que brotam desde dentro do dinamismo das relações entre educadores e educandos, das texturas e porosidades das interrelações: dos gestos, dos movimentos difusos, dos silêncios, dos humores...

A percepção intuitiva capta meandros das atitudes e dos fenômenos que escapam ao senso lógico-formal tidos como aparentemente insignificantes. Meandros que, pelo primor dessa mirada, pelos estalos de seus insights, se configuram como aspectos e detalhes bastante relevantes para a ação de educar na perspectiva da escuta sensível, do senso com-preensivo, da simpatia e da empatia.

Inspirado nessa compreensão ontológica da Sensibilidade, o educar implica ações de cunho libertário que apontam para processos heterogêneos de conquista das liberdades humanas primordiais, de ações que envidem uma transgressão inteligente dos modelos e estruturas dos poderes instituídos com seus círculos viciosos. Essas formas de poder impregnadas em nossa sociedade, como sabemos, são bastante presentes nas práticas educativas, desde expressões mais difusas às mais visíveis.

Desse modo, muito mais do que mera busca de saber, educar supõe busca de sabedoria na afirmação e na recriação de Sentidos que dão cromaticidade e vivacidade ao existir. As práticas educativas que se limitam ao âmbito da técnica, do saber formal, que se encerram na pragmaticidade do funcional, nos fragmentos da teia do existir e da cultura se confinam, como vimos, a meras práticas instrucionais. A ação de educar, como iniciação e como fruição da Sensibilidade, vislumbra o horizonte de Sentidos, que constitui a dinamicidade das relações da inteireza in-tensiva da teia do humano, do inter-humano.

O fenômeno do educar como rito de iniciação ao advento dos Sentidos humanos, mediante os fulcros estruturantes do Mitopoético, da Razão-Sentido, da Corporeidade, da Afetividade e da Intuição, vislumbra a compreensão e a vivência da inteireza in-tensiva do ser-sendo; instala processos de compreensão e de vivenciação dos Sentidos que implicam a expressão pregnante e anímica de nosso ser andrógino, no enxerto de suas ambiguidades e simbioses; implica o cuidado do ser-sendo como poiesis que se borda e se desborda, com seu pathos criante, nas in-tensidades dos feixes das contingências. Assim, na plasticidade dos fenômenos do existir, podemos incrementar um educar para o espanto e para perplexidade, para a inventividade e para a amorosidade, no urdir das aprendências e coaprendências.

Avento um ato de educar que se configura como educação pática (pathos), que se plasma como processo de sedução - se-ducere -, em que educandos e educadores são con-vocados pela simpatia e pela empatia que os fascina e os entrelaça. Como se-ducere, o educar se associa ao mexer alquímico do tacho que infunde um gosto que enfeitiça, tornando-se, assim, uma ação entusiasmante e humanada que desborda processos de encantação e de re-encantação. Dessa forma, os estados de sedução implicam a qualidade de experiências que podem resvalar na alquimia da fruição dos valores supremados que robustecem os Sentidos do humano; que podem instalar, de forma prazenteira, relações educativas animadas por processos de fruição e de criação encharcados das humidades do existir. Uma educação pática, imbuída de afetividade, que faz desbordar o amoroso, que potencializa a coexistência.

O pathos do entusiasmo decorrente do se-ducere, mediante a interligação do apolíneo e do dionisíaco, da lucidez e da ludicidade, dos pensares e dos sentires, nos co-move e con-voca aos desafios das sendas do extraordinário; faz despontar as in-tensidades dos Sentidos existenciais que infundem encantação e re-encantação ao existir humano e ao coexistir planetário. O elã criante do pathos erotiza o educar, a relação com os saberes e sentires, os processos de aprendência e de co-aprendência, podendo vicejar o humano na transitude de suas travessias mestiças; instala os feixes do estésico que dão graça e contornam o admirável. Freire (1996, p. 160) arremata: "Ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria". Portanto, um educar que fascina e co-move, desbordando admiração e contenteza, converte-se em rito de iniciação que leva à celebração da vida.

Um educar que implica o cuidar do estado de dis-posição de nossos sensos afeccionais e noéticos, da inteireza in-tensiva de nosso ser andrógino para a expressão do pathos criante, do elã vital; que implica a afinação do sentimento do mundo, da fruição da anima mundi, da simpatia do todo, em que podemos aprender a cuidar, com primor, da harmonia conflitual que constitui nosso copertencimento planetário. Um educar que compele ao cuidado esmerado de nossa condição de pontes no dinamismo e na heterogeneidade da teia ecossistêmica; de nossa condição de seres êntricos, interdependentes.

Enfim, como processo de fruição da Sensibilidade, o fenômeno do educar, ao nos conduzir à relação de coexistência entre a Ética e a Estética, potencializa a busca de sabedoria que entrelaça a dignidade e a beleza; faz desbordar as in-tensidades da policromia dos feixes arco-íricos que constituem as ambiguidades e as curvaturas, os paradoxos e os enigmas das sagas do existir e do coexistir humanos.



3. POR UMA PEDAGOGIA DO ENCANTAMENTO

Concebo o estado de encantamento, com seus matizes pedagógicos, em sua expressão de entusiasmo e de apaixonamento, de contenteza e de alumbramento, como expressão das in-tensidades existenciais em que jorra o elã do pathos que co-move e con-voca; que, assim, faz despontar o espanto e a admiração impulsionando a imaginação e o espírito criantes. Portanto, não me refiro a um estado de encantamento que se confina apenas na sua expressão de deslum-bramento como mero desbunde extático, como borbulhação espumante que pode anestesiar e cegar, que se dissolve em si mesmo.

Nesse horizonte, compreendo o encantamento como um estado constituído a partir de um "enraizamento dinâmico" e que se enrama em processos in-tensivos de fruição e de criação por meio de ações pedagógicas tocadas com apaixonamento e audácia. Ações que revelam estados de inquietude, de mobilidade e de implicação. Assim, um encantamento que agrega e interpenetra a pregnância da corporeidade, do dionisíaco e a animosidade da espiritualidade, do apolíneo.

Encantamento como expressão do estado de jorrância do impulso vital, do pathos criante, dos feixes da anima mundi, do logos spermatikós; como estado de humor que infunde animação ao existir, nos co-movendo e nos con-vocando para os desafios das ações altaneiras. Estado que emerge das fontes e das nascentes inspiradoras do onírico, do imaginário mitopoético, com a plasticidade de suas potências mobili-zadoras de nossos sentires e desejos; que nos precipita na trans-gressividade.

O dinamismo da plasticidade do estado de encantamento constela as centelhas do entusiasmo que nos inspiram e irradiam. Como foco irradiante, o estado de encantamento nos toca e arrebata, de modo penetrante. Compele o corpo e a alma às aventuras e às travessias de espantamento do extraordinário com seu vigor seminal. Parodiando Espinosa, quanto mais prazer e radiância, mais fruição e criação.

Estado de encantamento que se traduz num estado de êxtase, no extático, com seu dinamismo mobilizante, e não como estado estático que anestesia e imobiliza. Assim, uma Pedagogia do Encantamento que articula o educar como fruição da poiesis, como fazer sensível e criante, imbuído de inventividade e que conduz a novos lugares, entre-lugares e Sentidos. Que faz jorrar o estésico, o admirável, numa relação de coexistência e de coimplicação originária e originante com os fenômenos, com o existir no ser-sendo-com-os-outros; que entrelaça a Ética e a Estética, o bem e o belo.

Avento uma Pedagogia do Encantamento que, como expressão orgânica das in-tensidades da cotidianidade do educar, afirma a conflitividade do viver, que revela os fluxos tensoriais inerentes à ação do educar e que dão vivacidade a esta. Uma Pedagogia errante, itinerrante, e, portanto, aprendente, ao singrar a aventura das sagas recurvadas da transitude do educar. Assim, concebo que é de suas in-tensidades e instabilidades que podem emergir aprendências e coaprendências que tocam fundo com a força motriz/matriz do pathos criante. Pathos que impulsiona ações educativas germinais que renovam os Sentidos humanos, que instituem o extraordinário.

Uma Pedagogia do Encanctamento que, cravada na nervura do vivido/vivente, inspirada nas inquietudes internas, se faz interrogante na radicalidade do pensamento problematizador, do espírito que medita e cria; que, de modo entusiasmante, interpenetra o lúcido e o lúdico, a prosa e a poesia. Que, assim, impulsiona a dis-posição para o aberto, atravessando as ambivalências e ambiguidades do ser-sendo nas in-tensidades da tragicomicidade dos acontecimentos humanos; que entrecruza caos e cosmos, desordem e ordem, operando o dinamismo do jogo que en-volve os processos de criação. Pedagogia do Encantamento que compreende o educar como esse rito vivo de iniciação aos paradoxos, enigmas e ambivalências da condição humana, aos Sentidos humanos.

Nesse horizonte compreensivo, avento uma Pedagogia do Encantamento que compreende o educar como se-ducere, como sedução que fascina e impulsiona o advento do estado da ad-miração e do espanto mobilizadores, de conteneza e de prazerosidade. Estado que constela momentos educativos supremados, em que o espírito e o coração, entrelaçados, podem garimpar a busca da sabedoria, a fruição da beleza. Uma Pedagogia do Encantamento como fruição e como celebração dos Sentidos pregnantes e anímicos do existir, do coexistir, que se descortina arco-írica nas estampas da policromia dos Sentidos.

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Educação em Revista

Facetas da democratização: uma escola exigente1


Fátima Antunes

Doutoranda em Educação, Área de conhecimento de Sociologia da Educação. E-mail: fantunes@iep.uminho.pt


1. UMA ESCOLA EXIGENTE: um esboço em traço cubista1

A Escola Secundária (com 3º ciclo do Ensino Básico) Sarah Afonso (ESSA)2 está situada no norte de Portugal, numa cidade sede de distrito que vive um processo de perda de alunos (e de população) em favor de concelhos limítrofes. É uma escola com várias décadas de existência e instalações já antigas, embora genericamente em bom ou razoável estado de conservação. Em 2002/03 a ESSA tinha matriculados 880 alunos, frequentando 331 o 3º ciclo do ensino básico e 549 o ensino secundário. Quanto às habilitações acadêmicas, trata-se de um público cujo agregado familiar verifica níveis de escolarização claramente superiores aos que se observam para a população adulta portuguesa, já que 55,9% dos pais/mães completaram o ensino secundário ou superior, sendo essa discrepância ainda mais acentuada que aquela evidenciada para uma amostra de estudantes universitários inquiridos, num estudo recentemente publicado e cujos pai e mãe em conjunto dispunham de habilitações de nível secundário ou superior numa percentagem de 45,8% (54,6% para o agregado doméstico) (MACHADO et al., 2003, p. 57).

Outro dado que interessa evocar prende-se com os resultados escolares, designadamente as percentagens de transição/conclusão3: temos dados referentes aos 10º e 11º anos e para os períodos de 1997/98, 1998/99, 1999/00, 2000/01, 2001/02, 2002/03; considerando o número global de alunos que transitaram, face ao universo acerca do qual nos foi fornecida informação, ao longo desse lapso de tempo, verificamos que 68,4% transitaram do 10º e 78,9% transitaram do 11º ano para os anos curriculares seguintes; ficaram retidos (respectivamente) 20,9% e 10,3%; foram transferidos, excluídos por faltas ou anularam a matrícula cerca de 31,2% e 21,1% dos estudantes para os dois anos curriculares e os seis anos letivos considerados.

Para o país, e segundo a informação avançada pelo Instituto Nacional de Estatística, entre os anos de 1994/95 e 1997/98, coincidindo com a introdução de exames nacionais para a conclusão de ciclo, ter-se-ia verificado uma tendência para um abaixamento dramático da taxa de aprovação nos três anos curriculares do ensino secundário, de 71,9%, 90,2% e 71% para 64,4%, 79,7% e 50,8%, nos 10º, 11º e 12º anos, respectivamente, com a concomitante subida da percentagem de repetentes no ensino secundário, que triplicou em três anos, passando de 8,3% para 24,5% no mesmo período (cf. INE, 2003, p. 77). Dessa forma, os resultados escolares observados entre 1997/98 e 2002/03 na ESSA parecem não se afastar significativamente daqueles que se observam a nível nacional, designadamente quanto aos 10º e 11º anos. Em contrapartida, tal como para o conjunto do país, as taxas de conclusão relativas ao 12º ano são notoriamente mais baixas na ESSA do que em anos curriculares anteriores e esboçam uma tendência para descer, de forma bastante acentuada, registando-se pouco mais de um terço de aprovações em 2000/01 (36,9%, segundo dados do GIASE) e 2002/03 (35,3%, segundo os nossos cálculos, com base em dados fornecidos pela escola). Assim, as taxas de conclusão verificadas pela ESSA nos dois anos com informação disponível em que se verifica uma descida acentuada (2000/01, 2002/03), cifrando-se, respectivamente, nos 36,9% (segundo dados do GIASE) e 41,2% (segundo cálculos nossos, mas adotando a orientação desse organismo) estão abaixo da média registada em todas as cerca de trinta sub-regiões portuguesas, com exceção da Beira Interior Norte, com uma taxa de conclusão no 12º ano de 36,8% em 2000/01.

Algumas questões ficam, assim, por responder: por que é que as taxas de aprovação/conclusão no 12º ano na ESSA descem abruptamente face ao 11º ano, com uma discrepância de quase trinta pontos percentuais em média e variações anuais em torno de 20%, 15%, 29%, 55%? Por que se apresentam aquelas taxas tão exíguas, diminuindo ainda assim, em seis anos, de cerca de metade para pouco mais de um terço dos estudantes matriculados nesse ano curricular? Como se explicará que, contrariamente às mais que fundadas expectativas, não parece verificar-se nesta escola, em todos os anos curriculares, mas com particular acuidade para o 12º ano, a conhecida e vincada correlação entre elevados níveis de escolaridade dos pais e elevados índices de sucesso escolar dos jovens? Não teremos respostas, mas poderemos ensaiar olhar de perto os processos que geram estas e outras interrogações.

As entrevistas exploratórias realizadas traçaram-nos um incerto retrato multifacetado: uma Escola exigente, resistente ao que é percepcionado como tendência para o facilitismo e a desculpabilização, cultora do esforço, do rigor, da responsabilidade individual, que se apresenta preocupada com a educação para a cidadania, como forma de orientar comportamentos e valores, de veicular regras de convivência coletiva e contesta a sua singularidade desviante, reivindicando o estatuto de escola pública para todos4.

Num trabalho recente, argumentávamos que é visível a refundação da instituição educativa como uma escola de geometria variável (maximamente abrangente, democratizando a distribuição de diplomas de elevada escolarização, mas insidiosa e insistentemente estratificante do ponto de vista cultural). Apontávamos como momentos e componentes desse processo quer a manutenção dos traços estruturantes mais típicos e emblemáticos dos processos e conteúdos de escolarização (currículos, pedagogia, avaliação, organização da escola), sublinhada pela criação de vias diversificadas para os contingentes recém-chegados ao processo de prolongamento de escolarização, quer a simultânea universalização de frequência de um dado nível e a institucionalização de exames intencionalmente orientados para filtrar os candidatos aos percursos mais prestigiados e prestigiantes (cf. ANTUNES, 2004).

O primeiro movimento que desenharia a escola de geometria variável funda-se numa história já longa de criação de escolas (ou cursos, ou turmas...) diferentes (por exemplo, as Escolas Profissionais, os Currículos Alternativos, os Cursos de Educação e Formação), gerando um modelo institucional que identificamos como de diversificação hierarquizante, para confortar aqueles que, mais tardia e recentemente chegados aos vários níveis e setores da instituição, acabam frequentemente por ser tratados como beneficiários do direito à educação mal-amados ou apenas tolerados; sugerimos que um segundo movimento recente a sublinhar a escola de geometria variável pode passar pela celebração da escola exigente, entendida esta não como uma instituição que, em seu funcionamento, orientações e padrões de atuação, se rege pela defesa ética e profissional dos direitos humanos, sociais e individuais, dos cidadãos a quem se dirige, em particular do direito a aprender e à educação, mas antes exige deles qualidades, características, condições e padrões que frequentemente se exprimem de diferentes modos entre a população que acolhe.

A escola exigente e a escola diferente esboçariam assim também duas modalidades (e constelações de processos) de escolarização siamesas que dariam corpo à escola de geometria variável. Aquelas podem organizar-se tanto dentro quanto fora de uma organização concreta: aqui podemos encontrar espaços em que funciona a escola diferente, enquanto noutros se estabelece a escola exigente; num mesmo local podemos ter uma rede em que, mais ou menos socialmente polarizadas ou miscigenadas, as escolas desenvolvem graus e matizes diversos de exigência e de diferença em torno dos seus públicos. Entre outras características, e de forma fundamental, se bem que frequentemente trivializada, aqueles espaços sociais que se constituem como escolas diferentes e escolas exigentes distinguem-se entre si pelos seus públicos. Corresponderiam a lugares que concentram dispositivos de gestão das desigualdades (cf. SANTOS, 1995, p. 8-22; MAGALHÃES; STOER, 2000) e materializam a topologia do espaço social que aqueles geram; são também imagens que celebram metaforicamente (e às vezes euforicamente) alguns dos sentidos que revestem esse constante (re)fazer das clivagens sociais, numa instituição em incessante mutação.

Neste texto, queremos ainda sugerir que o processo histórico que conhecemos como de democratização da educação5, apresentando os limites, contradições e irregularidades discutidos e estudados desde há décadas, continua desenhando inesperadas facetas e metamorfoses, hoje relacionadas, por exemplo, como veremos, com pressões sociais e políticas dilemáticas em torno de determinadas versões de excelência acadêmica numa escola para todos. Pode ainda perguntar-se se, nos seus próprios termos, as construções institucionais e as práticas que discutimos constituem cristalizações em processo de lutas culturais dos nossos dias em torno da educação.

2. PERFORMATIVIDADE E DIVERSIDADE: facetas da democratização

Num certo sentido, a ESSA, na sua faceta de escola exigente, traduz uma estratégia possível de ser construída no seio de uma escola para lidar, por um lado, com os desafios da democratização associada à expansão da frequência, e, por outro lado, com as condições impostas pela gestão da diversidade dos alunos, agora num contexto sociopolítico de pressão por resultados. É assim que a performatividade e a diversidade podem ser os termos que condensam as realidades de uma equação cuja articulação vem a desembocar numa construção simbólica e organizacional representada como uma escola exigente. Aqueles configuram-se também como temas polarizadores dos testemunhos colhidos nas entrevistas6. Nas diversas dimensões apreendidas, essa construção testemunha ângulos precisos e particulares de facetas manifestadas hoje pelo processo de democratização da instituição escolar vivido ao longo das últimas três décadas em Portugal.

Esta é a interpretação que propomos para as perspectivas, testemunhos e orientações enunciados pelos catorze inquiridos através de entrevista sobre a Escola Secundária Sarah Afonso (oito docentes, cinco estudantes e uma encarregada de educação)7.

2.1. Uma cultura de performatividade competitiva? Fragmentos...

2.1.1. A experiência dilacerada

A ênfase nos resultados e a pressão por resultados, como medida de "qualidade", instala as escolas numa "nova cultura de performatividade competitiva" que, entre outras consequências, coloca, para algumas instituições, em primeiro plano, a "luta pela sobrevivência (...) no mercado educacional" e, para todas, "o pragmatismo e o autointeresse" como valores-guia das práticas quotidianas e das relações com os alunos, entre os professores, com escolas ou outras entidades (BALL, 2002, p. 8). As "novas organizações performativas" criam as condições para que se desenvolvam cisões, que podem ser profundas, entre o que os professores julgam ser "boas práticas pedagógicas" ou "as necessidades dos estudantes" e a prática docente requerida para responder "aos rigores do desempenho" (BALL, 2002, p. 12). Dessa forma, podem organizar um ensino baseado naquilo que são as aprendizagens avaliadas no exame, abandonando a educação e aprendizagem "improdutivas" em termos dos resultados avaliados, por muito relevantes que se apresentem para a formação dos jovens; este ensino orientado para o exame (GEWIRTZ, 2002) é identificado de forma mais ou menos impressiva ou explícita por professores e alunos, tanto mais que as provas de exame, as publicações nelas baseadas e as indicações em torno da suas preparação e exigências abundam e multiplicam-se numa remissão mútua circular cuja interrupção parece inatingível.

Quer os jovens, quer os docentes testemunham o desenvolvimento de orientações e práticas quotidianas referenciáveis àquela cultura de performatividade competitiva e as tensões aí vividas, ainda que de modos distintos e não-lineares. Assim, os docentes evocam dilemas no desenvolvimento das práticas pedagógicas enquanto os estudantes enunciam contradições e sofrimentos experimentados sobretudo na interação, na integração e na coesão grupal e social e na relação com o seu trabalho. São, em qualquer caso, os constrangimentos, orientações e comportamentos induzidos ou requeridos para responder aos "rigores do desempenho"; os resultados perseguidos - os padrões e as escalas que lhes dão significado, os critérios e os dispositivos que os fabricam - tornam-se um poderoso e multiforme complexo de processos que organizam e deixam marcas no quotidiano da escola vivida por esses sujeitos.

Uma prática docente sitiada entre convicções e resultados

A experiência docente surge, desse modo, recortada por tensões identificadas entre:

Concepções educativas e obstinação pelo desempenho;
Orientações pedagógico-didáticas e produção de resultados;
Convicções profissionais e controle externo8.
Assim, há docentes que registram discrepâncias importantes entre o que consideram serem "as necessidades dos estudantes", a sua missão de educadores no desenvolvimento intelectual e global, no crescimento interior, na formação e na estimulação do potencial de fruição cultural dos jovens e os produtos, exigências e padrões impostos pelos resultados a alcançar como condição de sucesso escolar; é o império cego das notas de múltiplas formas, veementemente ou resignadamente, denunciado como pernicioso por alguns docentes.

Uma experiência estudantil dilacerada entre a solidariedade e a danação

Por sua vez, os estudantes dão conta de uma experiência e uma aprendizagem sociais intensas e marcadas por vezes por grande dramatismo emergente das condições de escolarização com que se confrontam. A cultura (e experiência) de performatividade competitiva encontra nos seus testemunhos uma saliência e uma complexidade inapreensíveis de modos mais distanciados. As cisões, contradições, ambiguidades e conflitos surgem sublinhadas a traço grosso, sobretudo entre:

A cooperação e a concorrência entre colegas;
A convivialidade e o isolamento (por vezes, grupal);
O imperativo do sucesso e o fracasso como danação (o sucesso como obsessão e o fracasso como desespero);
A competição universal e a aniquilação do outro;
O controle externo e a alienação da aprendizagem.
Assim, uma jovem conta quer o ambiente concorrencial, quer a cooperação construídos, ao longo de dois anos de percurso conjunto na turma que frequenta8. Outra estudante contrasta com termos fortes a luta de todos contra todos na turma "de Ciências" que conheceu e o laço de um por todos e todos por um que experimenta na turma "de Artes"9.

Por outro lado, a experiência de certa alienação parece inerente a esta múltipla realidade de aprender progressivamente, ser avaliado periodicamente pelo professor e ter um exame externo final. Curiosamente, esses diversos processos e temporalidades aparecem não só fragmentados como cindidos e mesmo conflituais. O estilhaçamento da experiência de aprendizagem emerge da paradoxal separação entre "a aula", "os testes" e "o exame"10.

2.1.2. O império da nota e o peso do exame final

O império da nota, como princípio maior na orientação das decisões de certo tipo de estudantes e enquanto simulacro dessa cultura de performatividade que elege o desempenho como alvo primeiro dos indivíduos, conduz à produção de estratégias manipulativas face às instituições que se inserem numa estratégia global orientada para alcançar uma formação performativa e garantir um desempenho facilitador em termos de objetivos futuros. Assim, é recorrente, e quantitativamente não negligenciável, o número de estudantes que se matricula na ESSA em busca do que pensam ser "bases para ir para a faculdade", pedindo transferência, em momentos mais ou menos próximos do final de ciclo e do exame final, para escolas, públicas ou privadas, que, respectivamente, "se cortem" menos "a dar notas" (Filipa, estudante) ou onde "as notas para medicina são dadas, são muito altas, basta esforçar-se um bocado" (Florbela, estudante).

Nesse sentido, encontramos nos testemunhos desses jovens a ilustração dos fenômenos e processos enunciados por Beck em torno da individualização das biografias, compreendendo a assunção da vida como projeto reflexivo, o imperativo da decisão de escolha, o planejamento estratégico das decisões (que escola? até quando? que percurso escolher?) e a manipulação das condições sociais de existência, tomando-se o indivíduo como centro daquele planejamento (frequentar a instituição que dá bases, a que dá notas ou combinar as duas em função das metas individuais) (cf. BECK, 1992; GIDDENS, 1997; ANTUNES, 2004, p. 95-101).

Fragmentos dessa cultura de performatividade competitiva perpassam nos testemunhos e são percepcionados por professores e alunos como marcantes, quer nas práticas dos docentes, quer nas atitudes e nos comportamentos dos estudantes. Uns e outros enunciam interpretações dos respectivos comportamentos e relações que dão conta da impregnação da relação pedagógica e do quotidiano escolar por elementos dessa cultura: o império da nota, a obstinação do desempenho, o imperativo dos resultados, a obsessão da competição, a corrosão ética, a degradação da convivialidade, a adulteração da vida são evocados em múltiplos depoimentos.

Uns e outros dão conta do peso do exame final na orientação da aprendizagem dos alunos, nas práticas pedagógicas e no desenvolvimento curricular, em três áreas:

(i) a socialização cognitiva "colocar os meninos, os alunos a redigirem quer respostas de desenvolvimento, quer respostas de opinião" (Joana, docente);

(ii) a socialização comportamental "os alunos vão (...) adquirir uma estratégia, uma maneira de estar e, sobretudo, diminuir um pouco aquela ansiedade, não é, do exame final, o que é que vai ser" (Dora, docente);

(iii) o enquadramento/delimitação pedagógico-didático e curricular "a formação, a preocupação que o aluno tem, deverá ter uma formação global, acaba por ser adulterada pela importância que tem o exame para eles" (Joana, docente).

A cultura de performatividade competitiva identificada, documentada e evidenciada por autores e estudos encontra múltiplos afloramentos e manifestações desigualmente marcantes no estudo que desenvolvemos na ESSA. Ainda, segundo algumas pesquisas desenvolvidas em outros contextos, os professores podem procurar evitar ser responsabilizados por estudantes pouco performativos, desencorajando ou recusando a sua matrícula na escola, reforçando a seletividade da avaliação ou, de qualquer outra forma, favorecendo a sua retirada, por meio da transferência para outra escola ou da anulação de matrícula; podem, ainda, investir menos do que desejariam na elevação do nível do seu ensino, para, assim, liberarem tempo e energia para as outras atividades e resultados exigidos em outras áreas da profissão (gestão, investigação, promoção de iniciativas...). São, assim, produzidas as condições que criam situações em que a experiência docente se aproxima da "esquizofrenia individual" (BALL, 2002, p. 12) pelo esvaziamento de sentido ético e profissional vivenciado na assunção de uma prática profissional que contraria convicções e compromissos pessoais e se desenvolve obedecendo a imperativos de cuja bondade se suspeita ou que abertamente se nega11. Também, por meio dessas e outras práticas, se luta nas instituições pela manutenção ou pela conquista das vantagens competitivas no mercado educacional, procurando fabricar uma versão da escola favorável à apreciação de "audiências externas" (BALL, 2002, p. 18); nessa medida, a imagem de "escola de excelência" é ciosamente alimentada, reforçada e "abrilhantada", não só acomodando e modelando as práticas pedagógicas e de avaliação às exigências dos resultados, como perseguindo, através das formas possíveis, a atração de um público com as propriedades escolares e sociais necessárias à obtenção de elevada performance e a concomitante repulsão, também pelas formas discretamente aceitáveis, de alunos indesejáveis.

2.2. A gestão da diversidade dos públicos escolares

Ora os resultados, porque medidos de um modo tão sumamente grosseiro quanto as classificações dos alunos em exames, ou, ainda mais falacioso, medidos segundo a classificação final das disciplinas, correlacionam-se estreitamente com, e traduzem de uma forma quase linear, a composição sociocultural do público escolar (fato que, mesmo quando referido, se torna irrelevante face àquilo que realmente conta: quem fica melhor colocado na luta concorrencial pelo ensino superior? Quem obtém mais vantagens? A resposta não pode deixar de ser: aqueles que alcançam as classificações mais altas; e estes concentram-se nas escolas privadas e públicas caracteristicamente frequentadas por jovens de famílias com habilitações e rendimentos bem acima da média da população). Para obter essas altas classificações as escolas precisam de garantir que o seu público, em particular os seus candidatos a exame, exiba essas características num número suficiente de indivíduos e se afaste delas no menor número de casos possível. A escola tem de atuar no campo do recrutamento de alunos.

Sob a pressão de resultados são intensificadas as condições para que se multipliquem os mecanismos de fabricação do público escolar de uma escola, bem como da sua categorização segundo atributos escolarmente valorizantes/estigmatizantes e se desenvolvam os processos de consolidação do tratamento seletivo das diferentes categorias fabricadas (cf. GOMES, 1987).

A aceitação de matrículas, a formação das turmas, a elaboração dos horários, a distribuição dos professores, a gestão dos currículos e programas (o ritmo alucinante que implica apoio extraescola, explicações em regra, para poder ser seguido com aprendizagem...), a avaliação são outros tantos domínios em que tem lugar a gestão da diversidade do público escolar.

Por outro lado, é também nesses domínios que a escola pública pode ser cooptada e, nessa medida, colonizada, em benefício de interesses particulares, assumindo, relativamente a algumas facetas, o caráter de espaço privado. Os pais das franjas mais estáveis das classes trabalhadoras e das classes médias desenvolvem "estratégias de 'colonização'" da escola pública, ampliando o alcance da sua voz, por meio da participação em órgãos de administração e gestão da escola (cf. SILVA, 2003; MARTINS, 2003; SÁ, 2004) e procurando garantir "bons ambientes" para os seus filhos em turmas e escolas tendencialmente homogêneas e segregadas, do ponto de vista social e acadêmico (cf. VAN ZANTEN, 2002, p. 299). Esse é um processo de exclusão de caráter dual (WHITTY, 2001): por um lado, pela constituição de ambientes exclusivos, protegidos e academicamente favorecidos "colonizados" por franjas ativas das classes trabalhadoras e médias, por outro lado, pela concentração da população em situação social e escolar difícil ou menos favorável em grupos ou escolas próprias, facilmente isoláveis e estigmatizáveis.

2.2.1. Verdadeiros estudantes e alunos obrigados: percepções e descrições de públicos escolares

Deste conjunto de questões incidentes no tópico da diversidade e heterogeneidade de públicos escolares hoje (e sobretudo desde há cerca de vinte anos, como é claramente testemunhado por vários dos docentes) acolhidos pela instituição, nos falaram os sujeitos entrevistados enunciando perspectivas e concepções, orientações e práticas, percepções, pessoais, individuais e coletivas, que (co-)habitam, organizam e estruturam o (seu) quotidiano e/ou a (sua) experiência escolar.

Os enunciados evidenciam uma grande simplicidade quanto à descrição dos públicos, mesmo tomando em consideração que não foi pedido, em nenhum momento, um desenvolvimento dessa apresentação: são, geralmente, contrastados dois tipos de públicos, usualmente em torno de um ou dois atributos. Dos oito professores entrevistados e dos cerca de vinte enunciados produzidos em torno desse tópico, todas as referências feitas por seis docentes têm as características aduzidas.

Assim, a descrição dos públicos escolares apresenta uma forma dicotômica em torno de categorias que revelam um pólo positivo e outro negativo, sem geralmente sugerir matizes, combinações, elementos híbridos, graus ou posições intermédios (conferir quadro). A compilação de enunciados revela uma apreensão dos públicos escolares que tende a valorizar públicos desejáveis e identifica públicos problemáticos; os jovens são, no entanto, evocados por meio de qualidades fixas, como se imunes à relação e ação pedagógica; ainda que, por vezes, o sentido do problema da educabilidade esteja presente, o olhar em que são fixados os sujeitos impede a, e demite-se da, ação pedagógica, assumindo a perenidade dos obstáculos e, consequentemente, a derrota antecipada. Por outro lado, e não menos importante, a descrição apreende os indivíduos e os públicos em causa por meio de categorias na base das quais dificilmente pode ser concebida e construída uma relação e ação pedagógicas. Os termos utilizados tendem a revelar-se pouco úteis e relevantes, senão mesmo desmobilizadores e incapacitantes para a ação pedagógica. A percepção dos públicos escolares nos termos que nos foram comunicados tende a desvanecer a sua dimensão de sujeitos de aprendizagem, em aprendizagem e em desenvolvimento, dimensão que nos parece matricial quando o contexto de referência e de ação é a escola e os autores do retrato atuam na qualidade de professores. Quando um(a) docente, quando a escola olham para os alunos, em que consiste esse olhar primeiro, básico e essencial em que irão entroncar todos os outros? São as dimensões, as características envolvidas com a aprendizagem que são procuradas? Ou são outras vagas e diversas qualidades?

Os testemunhos recolhidos sublinham o desempenho, o grau de identificação cultural, qualidades morais, comportamentos, características de natureza social (conferir quadro); o campo de ação da pedagogia surge relativamente minimizado, sobretudo no que toca às categorias olhadas como mais problemáticas do ponto de vista escolar. Para a pedagogia, parece restar um duplo papel de confirmação das qualidades e valor escolar dos públicos e, consequentemente, de relativa impotência face àqueles que se revelam em dificuldades do ponto de vista escolar.

O quadro traçado sobre os alunos suscita perplexidade em dois sentidos: por um lado, reduz de forma acentuada e incompreensível a diversidade social, cultural e humana da população que hoje a escola acolhe, desenhando um universo irreconhecível de alunos que querem ser engenheiros e alunos que querem ser cabeleireiros, verdadeiros estudantes e alunos obrigados; por outro lado, exclui e oculta, no discurso que comunica e reflete, a complexidade da realidade da escola e da prática profissional e pedagógica dos docentes, já que estas estão bem longe de se organizar e construir em sintonia com uma realidade constituída por aquelas estranhas dicotomias, assumindo antes formas, modalidades e cambiantes complexas e incertas face à heterogeneidade que modela a interação pedagógica. Da constituição das situações referidas não estarão ausentes os processos vivenciais, formativos e sociais que conduzem à mobilização de relações e práticas pedagógicas e profissionais envolvidas com o daltonismo cultural e o perfil de professor monocultural (STOER; CORTESÃO, 1999). A questão que fica é: o que significa a aparente dificuldade desses docentes em perceber e falar da diversidade dos seus alunos (e das suas práticas pedagógicas) e, sobretudo, de apreender e traduzir a primeira por meio de categorias úteis e pertinentes para a ação e relação pedagógicas e profissionais?

Perrenoud, um dos autores que tem estudado longa e aprofundadamente os processos sociais envolvidos na relação do sistema educativo com as diferenças entre a população discente, afirma que

Em cada classe, existe uma parcela significativa de diferenciação selvagem, da qual os professores têm uma vaga consciência e a qual não dominam. Ela nasce da pressão da situação, da urgência, das solicitações, das personalidades e das culturas em jogo, do fato de que, em nenhuma interacção social, pode-se tratar os interlocutores exactamente da mesma maneira. (...) A diferenciação involuntária pode ter todo o tipo de efeitos em relação ao fracasso escolar. Por vezes, espontânea e intuitivamente, o professor interessa-se pelos alunos que mais precisam dele, mesmo que não solicitem a sua ajuda. Outras vezes, a diferenciação selvagem tende a aumentar as variações. (PERRENOUD, 2000, p. 26, grifos no original)

A sugestão que é feita é que, sendo as interações e práticas pedagógicas diferenciadas, esta diferenciação é geralmente espontânea, impensada, incontrolada e não-refletida, o mesmo sucedendo com a percepção e a categorização dos públicos escolares e das características (e metamorfoses) que oferecem e fundam aquelas. Talvez esta constitua uma explicação plausível, ainda que parcial, das inesperadas vagueza e simplicidade das percepções e descrições dos públicos escolares apresentadas nos testemunhos recolhidos junto dos docentes entrevistados na ESSA.

Evocando outro ponto de vista e numa tentativa para levar mais longe a compreensão das possíveis fundamentos e implicações da percepção da diversidade dos públicos escolares pelos docentes, é igualmente estimulante confrontar o quadro obtido nos testemunhos recolhidos com análises que lançam ângulos de luz inesperados sobre o modo como conhecemos a realidade. Dessa forma,

As operações de classificação que, nesse ponto do cursus escolar, são operações de cooptação, investidas de uma função análoga àquela que incumbe às estratégias de sucessão em outros universos, são, sem dúvida, o lugar privilegiado onde se revelam os princípios organizadores do sistema de ensino no seu conjunto, quer dizer, não somente os procedimentos de selecção dos quais as propriedades do corpo professoral são, entre outras coisas, o produto, mas também a hierarquia verdadeira das propriedades a reproduzir; portanto, as "escolhas" fundamentais do sistema reproduzido. (...) as formas escolares de classificação (...) são transmitidas, em essência, na e pela prática, fora de toda a intenção propriamente pedagógica. (BOURDIEU; SAINT-MARTIN, 1998, p. 188)

A esta luz, é possível encarar as categorias produzidas e enunciadas pelos docentes em relação aos públicos escolares como detendo um significado que não se esgota nessa descuidada espontaneidade e aparente quase-negligência em relação a um conhecimento mais fino e aprofundado dos mesmos, mas antes como resultado de (quase?) sistemas práticos de classificação que teriam como efeito exatamente realçar, de modo mais ou menos explícito ou eufemizado, certas características e os seus portadores, desconhecendo aquelas face às quais o sistema de ensino tende a cultivar uma cegueira obstinada. Por exemplo, o que significa ser disponível ou ser fechado, não saber estar na escola, uma turma amorfa: exprimem tais categorias "'escolhas' fundamentais" do ensino secundário? Se sim, em que sentidos?

2.2.2. Os que vêm juntos devem ficar juntos?

A diversidade dos públicos escolares exprime-se de múltiplas formas nas interações e na vida quotidianas das salas de aula e das escolas: marca, irrompe, é ignorada, reconhecida, tratada e organizada explícita ou obscuramente, constituindo aí uma incontornável presença. Os testemunhos recolhidos junto de professores e estudantes da Escola Secundária Sarah Afonso dão-nos conta de algumas das formas pelas quais esses processos são desenvolvidos, com particular saliência no que toca a formação das turmas; esta parece ser uma área decisiva no processo de gestão da diversidade dos públicos no contexto da escola, já que se trata de constituir o agrupamento-base do processo de aprendizagem, da relação pedagógica e da vida quotidiana de alunos e professores; na atual organização do processo de escolarização, a turma constitui um grupo tendencialmente fixo ao longo de um ano curricular e a unidade na base da qual são organizados (isto é, distribuídos) outros recursos: humanos (professores), físicos (tempos-horários e espaços), simbólicos e culturais (conhecimentos, sob a forma de disciplinas, projetos...). A formação de turmas parece, assim, obedecer a um conjunto de critérios/princípios e orientações (cf. MATEUS, 2002) cuja diversidade não diminui a prevalência da lógica que anima boa parte desses parâmetros: a criação de grupos e ambientes de aprendizagem tão homogêneos quanto possível, juntando o que é semelhante ou próximo e separando o que é diferente. Essa lógica exprime-se ou desenvolve-se por meio de processos diferenciados e com resultados também distintos: assim, no ensino secundário, as turmas são formadas com base nas opções dos estudantes pelos vários agrupamentos, cursos e disciplinas específicas, produzindo grupos com perfis sociais e acadêmicos mais ou menos próximos ou heterogêneos (intra e interturmas) conforme a natureza da opção, o número de turmas formado com o mesmo plano curricular (a homogeneidade interna das turmas tende a elevar-se em função do número de turmas), a relação vagas/candidatos, etc.; se a margem de ação da escola se inscreve neste quadro curricular, há opções aí tomadas, mais visíveis nos agrupamentos mais numerosos.

É, ao que parece, ao nível do ensino básico que mais vincadamente as escolhas feitas pelas escolas e a lógica enunciada (juntar os semelhantes e separar os diferentes) se consolidam por meio de dois princípios: o equilíbrio e a continuidade dos grupos de aprendizagem13.

Se, indiscutivelmente, um e outro critérios baseiam orientações defensáveis e legítimas, menos fundado parece ser que sejam por regra tomados como absolutos e incontornáveis em lugar de serem combinados com outros, capazes de esbater e contrariar as consequências reconhecida e intensamente discriminatórias que resultam da sua aplicação em exclusividade. Na verdade, é já prática em algumas poucas escolas a formação de turmas combinando grupos com origens (institucionais, geográficas, sociais...) diferentes, salvaguardando a permanência de um conjunto de relações estáveis já existentes entre os alunos, sem favorecer as tendências homogeneizantes e segregadoras atualmente dominantes. De igual modo - ainda que se admita que, no contexto das atuais formas de organização da escolarização, distâncias etárias muito vincadas possam ser vividas de modos negativos e ter efeitos a evitar para as crianças e jovens envolvidos -, será muito discutível o abandono dessa orientação, dentro de limites etários mais ou menos próximos, optando pelo procedimento alternativo que consiste em concentrar os alunos mais velhos em algumas turmas, excluindo-os absolutamente de outras geralmente escolhidas. Essa é a questão, aliás colocada por docentes quando referem o caso dos repetentes como uma situação em que a opção mais frequente quanto à organização dos grupos na escola não dá resposta à situação e cria muitos outros problemas; na verdade, o caso dos repetentes pode ser visto como um analisador crítico elucidativo da complexidade das situações e das escolhas mais frequentes e dos seus resultados, que, desta vez, falham gritantemente, tornando claras as lógicas e as consequências de opções que, em outras situações, permanecem mais discretas. É exatamente esse excesso de visibilidade e amplitude de consequências que é identificado e salientado pela docente sob a forma do dilema enunciado ("Isto é um pau de dois bicos, não é?" Ana, docente). Daí que se verifique a oscilação e o ensaio de cursos de ação segundo princípios e lógicas divergentes: a combinação ou a separação de situações e características em grupos de aprendizagem plurais versus homogêneos14.

A organização e a gestão das turmas e da integração dos indivíduos e dos coletivos são objeto de cuidados, reflexões, debates e decisões em que os docentes procuram interpretar, compatibilizar e combinar interesses, perspectivas, princípios e lógicas, emanando de condições, orientações e finalidades distintas e/ou perfilhadas por membros de instituições ou culturas diversas15.

O interesse de um coletivo, a vontade ou a indicação de um pai, o desejo ou a procura do bem-estar de um jovem constituem uma miríade de situações singulares, objeto de procedimentos formais e informais em que se procura ajustar e efetuar acertos, frequentemente mobilizando o conhecimento, o cuidado, a experiência e a atenção inerentes ao exercício de um trabalho (quase artesanal) cujos saberes e competências dificilmente acedem à enunciação e à transmissão verbais ou à formalização conceptual. Assim, se os princípios e orientações produzidos e convocados para gerir a diversidade dos públicos na área da formação das turmas parecem ativar uma lógica prevalecente de homogeneidade intragrupos/discrepância ou distância intergrupos, sugerindo como palavras-chave pureza e fronteira entre grupos, fica também claro que aquela lógica se consubstancia num contexto em que são mobilizados múltiplos critérios e orientações que atuam com intensidades diversas em situações também elas diferenciadas.

2.2.3. Tensões e ambiguidades

De resto, o tópico relativo à distribuição de recursos fundamentais (docentes, tempos e espaços) no interior da escola proporciona testemunhos em que novamente nos encontramos com a miscelânea, a combinação, a complexidade e a incerteza dos princípios e das orientações adotados que sustentam, de modos contraditórios, a coexistência de diversas lógicas, com prevalência ou não de uma ou algumas delas.

Nessa área, é evocado um amplo leque de princípios e orientações cuja mobilização depende das situações, das conjunturas, dos atores e suas relações, evidenciando a multiplicidade e a conflitualidade de lógicas, interesses e valores inscritos nos contextos, a complexidade dos conhecimentos e das exigências requeridas. Segundo os entrevistados, aqueles critérios envolvidos na gestão de recursos humanos na ESSA incluem: a rotatividade ou a especialização (entre básico e secundário), a continuidade pedagógica (de docência à turma ao longo de um ciclo) ou a especialização (dos docentes em determinados anos curriculares, programas, áreas), a posição hierárquica ou o perfil profissional16.

Nesse contexto, parece delinear-se uma compatibilização ou combinação tensas conforme as situações entre uma lógica de reconhecimento e dominância da hierarquia profissional que prevalece na adoção do princípio da escolha e preferência individuais dos docentes como base para a distribuição das turmas ou dos níveis (básico/ secundário) e uma outra lógica, de natureza pedagógica, que assume a continuidade da docência ao longo de um ciclo como princípio primeiro ou o perfil pessoal e profissional dos docentes como fundamento para a atribuição de responsabilidades.

Do mesmo modo, os testemunhos dão conta da coexistência de situações de contornos distintos em que se assiste à compatibilização ou à combinação de uma lógica de continuidade pedagógica ao longo do ciclo com uma outra que favorece a especialização dos docentes em determinados programas ou áreas ou ainda à prevalência desta segunda. Se a continuidade da docência às mesmas turmas ao longo do ciclo pode prevalecer no ensino básico, a potenciação da competência técnico-científica decorrente da especialização afigura-se como obtendo importância acrescida, senão dominante, no ensino secundário; a combinação ou compromissos diversos entre as duas lógicas podem também ter lugar. A distribuição de recursos face à diversidade dos públicos pode, assim, assumir, nesta escola, equações e configurações diversas. De entre estas, não se encontra excluída, face à informação recolhida, a possibilidade de ocorrência das conhecidas situações de favorecimento dos mais favorecidos (BOURDIEU, 1998) resultantes da escolha pelos professores situados em posições hierárquicas superiores, tendencialmente aqueles já estabilizados na escola, os mais experientes, os mais reconhecidos pelos estudantes, das turmas constituídas por estudantes com desempenho acadêmico mais elevado e perfil sociocultural mais promissor ao nível da gratificação profissional e realização intelectual dos docentes; são também reportadas pelos docentes entrevistados orientações que vão no sentido de garantir que situações mais desafiantes e complexas para professores e estudantes, como aquelas inerentes à implementação de alterações curriculares em curso há alguns anos, são assumidas pelos "docentes da casa", potenciando os benefícios decorrentes da estabilidade, da experiência, da competência profissionais, bem como da formação de equipes docentes tendencialmente mais sólidas com base em laços de interconhecimento, interajuda, cooperação, apoio e trabalho coletivos. Desse modo, se não dispomos de dados sustentavelmente conclusivos quanto à definição precisa do quadro de princípios, práticas e lógicas dominantes, de forma a identificar a tipologia de situações assim geradas, quanto à gestão de recursos fundamentais na ESSA face à diversidade dos públicos, julgamos, no entanto, poder afirmar que o traço mais marcante neste domínio é a existência de tensões e compromissos, e também ambiguidades, frequentes entre princípios e lógicas que ordenam os cursos de ação; nesse contexto, os desafios colocados pela diversidade dos públicos escolares constituem um tópico face ao qual não nos foi reportada qualquer política de gestão de recursos humanos explícita.

3. RETRATOS COMPÓSITOS: UMA ESCOLA EXIGENTE DIVIDIDA FACE À EXCELÊNCIA

Face ao atual ambiente de escrutínio, publicitação e espetacularização compulsivos em relação às escolas (NÓVOA, 2005) - numa perversa versão proporcionada pela busca de legitimação do sistema educativo e dos governos que o tutelam, pelos poderes políticos -, as escolas devem, agora, também canalizar recursos para cultivar a sua imagem exterior; nesse sentido, também a imagem que do seu interior constroem os seus membros tende a ser reordenada. Os nossos entrevistados produziram depoimentos em que uma narrativa e um retrato da ESSA são, a múltiplos e vagos traços, percorridos. Os tópicos escola exigente e escola de excelência são glosados de forma discordante e surgem desfiados em variados tons e sentidos. Se algumas convergências podem ser descortinadas entre as versões dos sujeitos, temos diante de nós variações assíncronas sobre temas e objetos, em suma, o que poderíamos hipoteticamente considerar como um tópico identitário17 variável em torno de um modelo compósito: uma escola exigente dividida quanto à sua excelência.

3.1. Um guião identitário: uma escola exigente

O tópico escola exigente surgiu, como antes se anotou, associado à ESSA pela voz de um dos seus porta-vozes oficiais, a Presidente do Conselho Executivo; apareceu ainda espontaneamente reiterado pelos primeiros estudantes inquiridos. Convidados a discorrer perante essa imagem, outros dos entrevistados acentuam distintos aspectos que, do seu ponto de vista, fundam a justiça e a justeza da identificação da ESSA com o atributo exigente. Encontramos quatro principais sentidos para esse guião identitário; em três desses significados é vincada a ideia de uma instituição em que vigoram elevados padrões de referência destinados a ordenar: (i) a avaliação do desempenho dos estudantes; (ii) os modelos e normas disciplinares e de regulação da vida coletiva; (iii) o contributo da instituição para a vida social; uma outra interpretação para essa visão da escola considera-a infundada, fictícia e baseada em aspirações e obsessões equivocadas e irrealistas, por parte de alguns alunos e encarregados de educação, em torno dos padrões e classificações escolares.

3.1.1. A avaliação do desempenho dos estudantes

Um conjunto de sujeitos associa o epíteto escola exigente, assumindo a sua justeza ou trivializando tal consideração, a certa raridade e dificuldade de atribuição de classificações elevadas por parte dos professores. Há estudantes que afirmam então a sua perplexidade e incompreensão e docentes que frisam o caráter controverso, interessado, vago e relativo de tais apreciações18.

A identificação da ESSA como escola exigente, não sendo unânime, é, no entanto, frequente e facilmente reconhecida por docentes e estudantes entrevistados. Os sentidos dessa atribuição passam pela definição interna do que são considerados elevados padrões de referência, no que toca ao perfil acadêmico e ao desempenho dos estudantes, eventualmente inacessíveis a alguns dos seus membros ou aspirantes a tal19.

Reencontramos nesses testemunhos a ideia de que de múltiplas formas a escola pode contornar a responsabilização pelos estudantes pouco performativos (face a padrões interna e/ou externamente estabelecidos): estes acabam por abandonar a ESSA ou ser reprovados, elevando assim os níveis conhecidos de desempenho dos alunos da escola, quando medidos pelos resultados em exames nacionais. Nesse sentido, ser uma escola exigente pode significar a tendência para uma certa exclusividade quanto ao perfil acadêmico necessário para corresponder aos requisitos que garantem um posicionamento como estudante bem-sucedido, sobretudo nos escalões das classificações mais elevadas, isto é, a percepção e/ou a ocorrência de que tal colocação será inacessível para muitos daqueles que frequentam ou desejariam frequentar a escola; terá, portanto, o sentido de uma seleção apurada e restritiva dos méritos e desempenhos acadêmicos dos alunos.

3.1.2. A educação para a cidadania e a construção da ordem interna

Uma outra vertente da identificação da ESSA como uma escola exigente é aquela que remete para o domínio da construção da ordem interna; alguns entrevistados referem o fato de se tratar de uma instituição caracterizada pela estabilidade, disciplina e sentido de autoridade. São sublinhados, sobretudo, os fatos de as regras, normas e modelos de comportamento serem claras e efetivas, quer para os docentes no exercício da profissão, quer para os estudantes, na convivência institucional quotidiana. A estabilidade, a clareza e a segurança proporcionadas por uma ordem interna assim definida são ainda reforçadas e simbolicamente ampliadas pela assunção da educação cívica como uma missão primordial da escola e dos seus profissionais. Os testemunhos de docentes frisam a convicção de que esse domínio de ação, designado também como educação para a cidadania, e que se prende com a socialização para as normas e padrões de comportamento adequados em diversas situações e contextos da vida coletiva, se constitui como uma componente importante da percepção interna e externa da ESSA como uma escola exigente; encontramos, assim, interpretações e realizações locais da dimensão socializadora da instituição como parte da sua identidade20.

3.1.3. A guardiã do princípio meritocrático

Há, ainda, por parte de algumas docentes, a convicção de que a ESSA é exigente para corresponder àquilo que a sociedade espera dela na formação de elites (intelectuais, profissionais), isto é, a produção e a certificação da excelência, averiguando rigorosamente se aqueles que aspiram ascender às mais elevadas posições sociais dão provas da excelência que justifica e legitima tal privilégio ("É preciso mostrar que se é alguém. Verdadeiramente."). Ser exigente detém agora o sentido de assunção convicta, por parte da instituição, e, segundo os docentes entrevistados, da função avalizadora (e, portanto, legitimatória) das elites meritocráticas; isto é, na perspectiva desses inquiridos, a escola revê-se como guardiã do princípio (e da ideologia, pode acrescentar-se) meritocrático suscetível de legitimar as elites numa sociedade constituída e organizada de acordo com as regras e os valores da democracia representativa 21.

Por outro lado, é o dissenso relativamente às normas e hierarquias de excelência que encontramos vincadamente presente entre os professores entrevistados, quando se trata de práticas educativas desenvolvidas na escola22. Entre os docentes que consideram inadequado, porque irrelevante, falar da ESSA como escola de excelência, uns afirmam que um tal julgamento releva de um mito, outros de uma coincidência. Alguns, no entanto, identificam-se fortemente com a ideia de que a ESSA é uma escola de excelência, ainda que em sentidos distintos: com base na qualidade superlativa das práticas que aí se desenvolvem ou, num peculiar sentido, a excelência é a competitividade, revelando-se no superior posicionamento alcançado face ao exterior.

4. FACETAS DE DEMOCRATIZAÇÃO: uma escola exigente

4.1. Uma escola exigente: performatividade e diversidade em equação

Relendo, agora, os testemunhos dos inquiridos à luz da tipologia de culturas de ensino-aprendizagem (cf. MAGALHÃES; STOER, 2002, p. 47-62), voltamos a encontrar um quadro bifacetado: (i) por um lado, a cultura de performatividade competitiva (BALL, 2002, p. 8) parece percorrer e encontrar-se bem estabelecida na ordenação do quotidiano escolar; (ii) por outro lado, a atenção a necessidades de estudantes; a prossecução de objetivos de formação e desenvolvimento intelectuais, morais e cívicos dos jovens; o envolvimento persistente na criação de laços de apoio e afeto emocional e de solidariedade e convívio, por parte dos jovens e dos professores; a resistência, ou a dúvida prudente, face a modelos impostos de normas de excelência e das hierarquias inerentes sugerem que a abordagem à pedagogia centrada no sujeito (MAGALHÃES; STOER, 2002) deixa também a sua marca nos cotidianos e nas relações pedagógicas vividos nesta escola.

Sugerimos, assim, que a leitura dos testemunhos recolhidos permite delinear facetas do processo e da obra de democratização do sistema educativo e da instituição escolar em Portugal, designadamente ao longo dos últimos trinta anos. Nesse sentido, propomos que o tópico escola exigente pode ser interpretado como um guião identitário, isto é, como uma construção simbólica e organizacional que resulta da negociação daquele processo de democratização no contexto das condições confrontadas por esta escola específica (os públicos que a procuram e frequentam; os docentes que atrai e nela se fixam; a oferta curricular que constrói e logra fixar; a pressão social e política por resultados...). Nessa medida, aquela construção identitária pode ainda ser vista como uma resposta situada, concreta e particular à equação colocada pelos desafios simultâneos da prossecução da excelência acadêmica numa escola para todos.

Os testemunhos dos inquiridos revelam orientações, práticas, experiências e interpretações dificilmente unificáveis. Secundando a narrativa solar, clara e linear de uma escola exigente, desenrola-se ainda um novelo de estórias inacabadas. A identificação da ESSA como uma escola exigente sublinha estritos padrões de referência destinados a ordenar: (i) a avaliação do desempenho dos estudantes; (ii) os modelos e normas disciplinares e de regulação da vida coletiva; (iii) o contributo da instituição para a vida social. Nesse contexto, sobressaem: (i) a menção a uma certa exclusividade e à seleção apurada dos méritos e desempenhos acadêmicos dos alunos; (ii) a ênfase numa ordem interna baseada na disciplina, no sentido de autoridade e na dimensão socializadora da instituição entendida como educação cívica reguladora da convivência coletiva; e (iii) a assunção de uma missão de guardiã dos princípios meritocráticos fundadores da constituição de elites assim legitimadas.

Por outro lado, o atual contexto político-educativo, que alguns autores consideram caracterizado por uma cultura de performatividade competitiva, traduz-se em experiências de docentes e estudantes em que avultam dilemas e tensões, acompanhados de perplexidades, paradoxos e ambiguidades; os relatos sobre as orientações e práticas face à diversidade dos públicos que a ESSA acolhe sugere-o de modo igualmente vivo. Dessa forma, o quadro traçado a partir desse ângulo de visão fica já distante da clareza com que o perfil de escola exigente se apresenta.

Assim, este guião identitário de escola exigente está associado a uma gestão da diversidade dos públicos escolares que apreendemos segundo dois filamentos:

(i) por um lado, a mútua exterioridade entre a percepção dos alunos e a relação pedagógica, ou o divórcio entre o quadro da ação pedagógica e a descrição, por parte dos docentes, dos públicos que a escola acolhe; isto é, os alunos são percebidos e descritos por categorias que aparecem como seus atributos e que se revelam escassamente relevantes quando encarados do ponto de vista da ação e da relação pedagógicas, que constituem o quadro em que ocorre o encontro entre os jovens e os docentes23;

(ii) por outro lado, a ausência de uma política explícita face à diversidade dos públicos escolares sustenta lógicas e princípios de organização interna, no que toca ao agrupamento dos alunos e à distribuição de recursos humanos, que enunciam a procura da homogeneidade possível intraturmas, associada geralmente à distância ou discrepância interturmas, num contexto em que podem ser mobilizados múltiplos critérios e orientações.

Assim, o modo como é olhada, lida, categorizada e organizada a diversidade de públicos acolhidos nessa escola deixa-nos antever uma faceta complementar da adesão ao guião da escola exigente: face a uma diferenciação pedagógica predominantemente espontânea e não planejada, as "escolhas" fundamentais do ensino secundário podem alinhar-se, num contexto em que, na população escolar, são dominantes as classes médias, pelo cultivo de altos padrões de desempenho e de disciplina e ordem interna, resguardando ainda a missão de guardiã dos princípios meritocráticos por meio de uma exigência seletiva que, de múltiplas formas (reprovação, transferência, anulação de matrícula, desencorajamento da matrícula), afasta e tende a desresponsabilizar a escola por estudantes que se revelem pouco performativos nos termos e segundo os padrões estabelecidos. Nesse contexto e conjuntura, o tópico escola exigente enuncia então "escolhas" fundamentais para o ensino secundário, compagináveis com a exigência seletiva que distingue o sucesso dos mais performativos, silenciando o sacrifício dos estudantes academicamente mais frágeis. Que parte da explicação para os modestos resultados, traduzidos nas medianas taxas de transição nos 10º e 11º anos e nos elevados níveis de reprovação verificados no 12º ano nesta escola (sobretudo se pensarmos no contraste entre a composição do seu público e a população portuguesa), radicará nestas "escolhas"?

A questão que desponta é: o guião de escola exigente é um mosaico que combina práticas e orientações de organização e funcionamento e abordagens à pedagogia congruentes com: (i) opções, profissionais e pedagógicas, coletivas e individuais dos docentes face à educação dos seus alunos e (ii) escolhas das famílias das classes médias para a educação dos seus filhos? Nesse sentido, aquele guião expressa, nos seus termos próprios, lutas e disputas sobre a educação no Portugal de hoje?

NOTAS

1 Este texto apresenta uma parte da discussão realizada num capítulo relativo ao estudo que desenvolvi integrado num projeto de pesquisa, Excelência Académica e Escola Para Todos? EXACET?, coordenado pelos Professores Luiza Cortesão e Steve Stoer e financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, entre 2003 e 2006, e que é apresentado no relatório agora em publicação em Portugal. Quero manifestar o meu reconhecimento pela cooperação de todos na ESSA, com destaque para a professora Clementina Silva, sem a qual este estudo não teria sido possível. Agradeço ainda a oportunidade rara de beneficiar da relevante discussão e dos pertinentes comentários e sugestões dos dois avaliadores anônimos da Educação em Revista.

2 O ensino não-superior em Portugal inclui os seguintes níveis e subsetores: Educação Pré-Escolar (abrange crianças dos 3 a 5/6 anos); Ensino Básico, obrigatório, com duração de nove anos (1º ciclo de quatro anos, tendo como referência a faixa etária dos 5 aos 9/10 anos; 2º ciclo, 5º e 6º anos, abrange o intervalo dos 9 aos 11/12 anos; 3º ciclo, 7º, 8º e 9º anos, destinado à classe etária dos 11 aos 14/15 anos), Ensino Secundário (ciclo de 3 anos, 10º, 11º, 12º, tendo como referência a faixa etária dos 15 aos 18 anos). A chamada rede escolar passou por múltiplas alterações desde os anos 1970, com particular intensidade para os anos noventa, em que foi institucionalizada a escolaridade básica e obrigatória de nove anos e se difundiu a tipologia de Escolas Básicas com 2º e 3º ciclos, EB 2,3, a par de Escolas Secundárias (10º, 11º e 12º anos de escolaridade) e Escolas Secundárias com 3º ciclo; hoje, a tipologia de escolas e a rede escolar continuam a sofrer mudanças assinaláveis. Embora a ESSA seja uma escola secundária com 3º ciclo, acolhendo, portanto, jovens que frequentam desde o 7º ao 12º anos de escolaridade do sistema de ensino português, este estudo incide sobre o ensino secundário (10º, 11º e 12º anos curriculares), pelo que, se nada for dito em contrário, os dados e análises avançados terão por referência aquele ciclo de ensino.

3 Este valor refere a percentagem de alunos que transitaram/concluíram determinado ano curricular em relação ao número de alunos inscritos no mesmo; este valor é diferente daquele que, sob a designação de taxa de conclusão/transição, é calculado pelo GIASE (Gabinete de Informação e Avaliação do Sistema Educativo), considerando os inscritos no final do ano e, portanto, excluindo os alunos transferidos, que anularam a matrícula e foram excluídos por faltas. Neste trabalho, como se pode observar, as percentagens de transição/conclusão são por nós calculadas com base no total de alunos inscritos no início do ano. Quando usamos os valores do GIASE, utilizamos também a terminologia adotada por esse organismo.

4 Para uma discussão mais detalhada destes dados, consultar o capítulo em que apresentamos este estudo no já referido relatório de investigação em publicação em Portugal (CORTESÃO et al., 2006).

5 Assume-se aqui, sem discutir mais, um conteúdo elementar para o conceito de democratização enquanto incorporação de novas categorias sociais à instituição escolar por ação de políticas (sociais) igualitárias que, de alguma forma, afirmaram o direito à educação como direito humano e social básico. Temos consciência de que este debate tem profundidades e meandros muito mais vastos que não aproximamos sequer neste trabalho.

6 A pesquisa empírica realizou-se entre 2003 e 2005 e assentou na recolha de informação através das seguintes fontes e técnicas:
A. Informação estatística recolhida pela escola e dados estatísticos publicados pelo Ministério da Educação.
B. Um conjunto de dezessete (3+14) entrevistas semiestruturadas a docentes, estudantes e uma encarregada de educação. Não se pretendeu construir qualquer amostra, nem basear o estudo na representatividade estatística dos inquiridos, mas antes aceder a informantes que, na sua diversidade, conjugassem atributos importantes dos atores da escola, em termos de: duração do vínculo àquela escola específica; disciplinas e áreas de docência; fileiras e cursos lecionados; gênero, para os docentes; fileiras, cursos, anos curriculares frequentados e gênero, para os estudantes.
C. Análise documental de: Projecto Educativo de Escola, Plano de Actividades 2002/2003 e 2003/2004; Regulamento Interno da Escola.
Foram ainda observadas, de forma não-participada e objeto de notas de trabalho de campo, seis reuniões de diversos órgãos da escola. As entrevistas foram integralmente transcritas, constituindo um corpus de mais de 250 páginas, percorrendo os procedimentos necessários ao tratamento de dados segundo a técnica de análise de conteúdo.

7 Assim, na análise do conteúdo das entrevistas, o tema da performatividade agrega os enunciados cujo sentido se organiza em torno da noção de desempenho (performance); o tema da (percepção, valorização, gestão da...) diversidade agrega os enunciados que tomam como referência organizadora de sentido a heterogeneidade (as diferenças individuais e grupais/coletivas entre categorias) dos públicos.

8 "Porque, como eu já lhe disse, eu...os exames têm sempre um papel um bocadinho dúbio, não é, eles ...hum...alteram um pouquinho, bastante até o sentido que deve ter o ensino secundário a formação, a preocupação que o aluno tem, deverá ter de uma formação global, acaba por ser adulterada pela importância que tem o exame p'ra eles, portanto a importância que tem aquela nota para entrar na faculdade (...) portanto esse espírito do trabalho de investigação, de.. de desenvolvimento intelectual não da tal memorização mas sim de uma ... dos desafios que o aluno se coloca a ele próprio e para os quais precisa de tempo. Isso irá ficar relegado para segundo plano (...) Portanto, realmente (...) com determinados alunos nota-se muito muita resistência relativamente a...desenvolver competências que não são testadas em exame, que é isso que nós estamos a falar. Alguns dizem: "olhe, eu só quero saber o que vou precisar para o exame". E eu tenho que lhes dar muito mais do que isso porque p'ra mim a aprendizagem de uma língua ou o ensino de uma língua, na minha perspectiva, é muito mais do que prepará-los para fazer um exame" (Joana, docente). "É uma pergunta que eu aliás me ponho a mim mesma, porque cada vez mais isso é verdade: 'porque é que eu me vou estar a preocupar com a oralidade, sobretudo neste ano, se não consigo em dois anos que eles aprendessem (...) e se continuam a fazer erros na oralidade...se eles vão ser avaliados apenas pela escrita?' Se eu vou estar de alguma forma a prejudicá-los, apesar do peso grande, que eu acho que devia ser o peso principal, não é? A oralidade...Eles dizem: a língua deve ser ensinada numa perspectiva comunicacional?. Ora a comunicação é...predominantemente oral, não é? Pelo menos, quantos daqueles alunos que não forem para a área (...) vão precisar de escrever (...) alguma vez na vida? Bom, portanto, devo dizer que eu me questiono...(...) E eu penso que, pronto, no 12º ano, em línguas, é capaz de ser fatal (...) ...pois eles vão ser avaliados pela escrita! Quem sou eu, não sou mais papista que o Papa" (Elena, docente).

9 "há muita competição a nível de notas, querem sempre tirar mais e melhores, não ajudam, não há ajuda mútua (...) Mas na minha turma até nem é, das que conheço, que seja muito assim. Por acaso é uma turma que se ajuda muito. (...) Tenho uma impressão do 12º que para entrar na faculdade e alguns que vão para a [universidade] privada porque não têm notas para entrar na [universidade] pública e outros que querem tirar melhores notas para conseguir entrar" (Diana, estudante).

10 "[Em Ciências] Juntavam-se todos dentro de um grupo, tiravam 18, 19 dentro de um grupo pondo-nos de parte, como estavam todos juntos começou-se a formar outro grupo, juntaram-se todos e começavam a estudar e formou-se esse grupo. Os outros diziam mal deles porque tiravam más notas, depois eram as dúvidas das aulas, um fazia uma pergunta o outro começava a mandar vir a dizer que o professor já explicou e que ele já está farto de ouvir a mesma coisa... (...) Por exemplo quando aqueles, mas é incrível, quando aqueles alunos que tiram más notas e os que são bons tiram por exemplo, imagine que tiram 18 no teste e depois vai tirar um 14 ou um 13, eles ficam todos contentes porque... e às vezes até tiram melhor nota e chegam com o teste: 'olha, estás a ver, tirei melhor nota do que tu não te armes em esperto' (...) nós [em Artes] somos todos um grupo e defendemos todos uns aos outros por isso é que estamos sempre a falar, se um manda vir, o outro também manda vir e defendemo-nos todos uns aos outros, é por isso que os professores começam a complicar" (Florbela, estudante). A mesma jovem, Florbela, num testemunho que outros relatos corroboram, pinta em cores vivas o modo como os jovens vivem a obsessão pelo sucesso de topo da escala das classificações e o desespero que invade aqueles que se veem derrotados nesse campeonato implacável. O imperativo do sucesso individual nos termos definidos para a competição vive-se como uma norma absoluta e essencial em face da qual a salvação e a danação estão reservadas aos escolhidos e merecedores. Por isso, a assunção de uma e outra condição são tão profundas e definitivas. Vencedores e vencidos são o nome e o destino dos que, pelas notas, se salvam ou condenam. Por isso também a humilhação pública do outro e a arrogância do vencedor completam a celebração extremada dessa liturgia de competição e vitória. Florbela assume sem disfarces as agruras deste mundo que herdou, mas resiste e quer, assim mesmo, construir um modo de viver com os outros que suporte laços de afeto e cooperação e coloque a convivialidade bem no centro da sua vida. Ela parece resistir a render-se à teologia da competição.

11 "E os professores, às vezes até têm mais a paranóia do que nós, dos exames. Nós não, nós não ligamos muito a isso, sabemos que vamos ter, preocupamo-nos mas dizemos: 'um ano de cada vez, primeiro isto depois os exames', eles não, eles às vezes parecem que têm a nossa idade, ficam mais preocupados do que nós e dizem: 'isto exame, exame, estudem que isto sai no exame' e nós ficamos: 'e no teste o que é que sai?"' 'isto é no exame', e nós: 'está bem pronto, e no teste?"' Eles ficam problemáticos mesmo, querem que a gente tire boas notas e querem dar tudo por tudo para nós entrarmos na faculdade (...) Não sabem distinguir muito bem, dão a aula, mas há aqueles momentos que falam sobre o exame e nós aprendemos a aula e aprendemos o que sai no exame, temos já aquela noção de exame. Há perguntas que nós sabemos já que vai sair, ainda estamos no 11º ano mas já sabemos que tipo de pergunta sai e que resposta é que temos que dar. Sabemos as aulas, sabemos, ao mesmo tempo estamos a aprender duas coisas diferentes" (Florbela, estudante).

12 Poder-se-ia defender que se assiste, no seio das instituições, a um recuo dos valores e práticas vinculados à igualdade de oportunidades, à promoção, justiça e democratização sociais, que perderam terreno e força ideológica e anímica mobilizadora de vontades face à onda avassaladora de imperativos de afirmação pública, atracção de públicos, evidência de resultados e de elevados desempenhos. A educação, o ensino e a aprendizagem parecem ter-se tornado termos demasiado obscuros e modestos para significar as atividades dos professores e dos alunos nas escolas que necessitam ser vertidas em todo um vocabulário aparentemente rejuvenescido segundo os cânones da época que vibra com palavras vestidas de sentido de novidade, imediatamente reconhecível e rapidamente utilizável: projetos, relatórios, candidaturas, intercâmbios, concursos, redes, selos de qualidade, mostras, eventos são outros tantos nós (cegos) que testemunham esta necessidade de estar, ser notada, aparecer, sublinhar o marginal, o extracurricular, o não-letivo, o não-rotineiro.

13 "No básico em que é fácil entender: as primeiras turmas à partida são sempre as turmas em que se tenta encontrar um equilíbrio do nível etário e o aproveitamento também que o aluno faz, muitas vezes ou até o espaço sociocultural donde é oriundo" (Dora, docente). "Isso aí já obedece normalmente à lei e a lei diz que os meninos devem vir... aqueles que vêem juntos e que pedem para ficar juntos devem ficar juntos, e portanto aí já se obedece a isso e, normalmente, aí não há grande capacidade de gerir as coisas (...) e no 7º não há grandes regras a alterar em relação àquilo que está na lei" (Ilda, docente).

14 "Portanto, há por exemplo, o caso dos repetentes. Já se fez de várias formas cá na escola. Já se tentou numa altura em que havia muitos repetentes...que havia poucas turmas e muitos repetentes, o que é que aconteceu? Pensou-se de uma maneira: "Então nós vamos, vamos ter turmas com um número elevadíssimo de repetentes. Vamos fazer uma experiência. Vamos fazer uma turma só de repetentes". Não resultou. Isto foram experiências que foram feitas. Fomos adaptando (...) portanto há esses critérios para tentar...Mas isso também faz parte de melhorar o trabalho, não é? E isso é fundamental na escola!" (Ilda, docente).

15 "Sei, por exemplo, que nós depois no final dos 7ºs anos, naquelas reuniões finais de ano, normalmente deixamos sempre indicações de como é que devem ser feitas as turmas no 8º e do 8º para o 9º e por aí fora. Principalmente quando há alunos que nós achamos que estão muito desajustados e que temos conhecimento das turmas todas (...) quer dizer, nós temos conhecimento quase todos das turmas: "Olha se calhar este aluno está um bocado desajustado, no 8º ano vai ficar nesta turma assim, assim porque vai-se integrar melhor". Portanto, normalmente nós deixamos sempre essas indicações" (Eliana, docente).

16 "Nós, no nosso grupo temos uma prática que é, como somos todos efectivos (...), não usamos a hierarquia para ficar só com (...) rodamos entre nós básico e secundário, portanto no ano passado, por exemplo, eu tive só básico e este ano tenho secundário (...) então nós, entre nós, consideramos que nós nos devíamos especializar mais em determinados programas em determinadas áreas. (...) Não deve, quer dizer, é um erro estar a atribuir a um professor uma disciplina para que ele não está ou bem preparado ou que tem (..) e portanto aí há recomendações que são feitas muito delicadamente. E nós todos acabamos por ver como é que cada um funciona. Depois também é evidente que nos grupos há a hierarquia de grupo, não é? (...) portanto o que é que acontece? Todas as pessoas que estão na escola secundária desejam veementemente terem turmas do secundário. Que é onde nós muitas vezes nos realizamos intelectualmente. Não quer dizer que o contacto com os miúdos a nível do básico dá outras, digamos, dá outras compensações, mas em termos intelectuais nós somos muito mais puxados numa turma secundária. (...) Muito mais" (Ilda, docente).

17 Não pretenderíamos aqui discorrer em torno das complexas problemáticas envoltas com identidades (ABRANTES, 2003), culturas (TORRES, 2004) ou ethos (STOER; ARAÚJO, 1992) de escola, que dispõem já de um acervo de estudos cuja dimensão se encontra bem para além da ambição desta seção do presente estudo. Queremos apenas assinalar que o tópico escola exigente constitui um atributo e um recurso simbólico pelo qual diversos dos docentes e estudantes da Escola Secundária Sarah Afonso que entrevistamos identificam esta escola e a distinguem de outras; nesse sentido, sugerimos estar em presença de processos identitários em torno deste tópico, sem avançarmos para a sua descrição, definição, dinâmicas, atores, delimitação e articulações.

18 "Pronto, mas esta escola sempre me disseram que tinha fama de se cortar a dar notas. É verdade! É verdade! (...) Porque eu tenho plena consciência que eu era capaz de ter notas muito melhores, só que aqui... pronto, não sei, não percebo. (...) Vou mostrar noutra escola que sei. (...) Por exemplo numa disciplina eu, às vezes, acho que escrevo bem e que disse as coisas certas, só que depois dão aquela desculpa: "ah, não está completamente bem, não está tudo completo". Mas o que é que é estar tudo completo?" (Filipa, estudante). "Nós éramos confrontados com os pais sempre a reclamar que nós não dávamos as notas necessárias aos meninos, que éramos muito agarrados nas notas. Olhe eu não sei há quanto tempo estive no Conselho Directivo, daqui a pouco faz 15, 16 ou 17, eu recordo-me que uma das primeiras reuniões que eu tive com pais, fomos confrontados com os pais a dizer...Imagine!! Já lá vão (...) que nós que éramos muito agarrados". (Ilda, docente). "Quanto a mim carece de uma definição mais clara. Exigente... Como? Porquê? (...) pronto....somos mais unhas-de-fome a dar classificações? (...) Os pais gostavam realmente que todos tivessem 20" (Nuno, docente da ESSA).

19 Como nos foi referido, "esta escola é muito exigente aliás, como eu disse, é uma escola que trabalha, é uma escola que agarra em projectos, uma escola interveniente. Ora, pessoas com estas características estão à espera de um determinado nível de exigência no trabalho, não é? (...) Pois, eu estou a dizer que eles de facto estudem determinados conteúdos, que os saibam e que saibam tratar deles, que saibam expor...." (Joana, docente). "A escola quer que os alunos que saiam dali sejam os melhores, que tenham notas para entrar nas faculdades directamente e há alunos que chegam ao 11º e que já sabem as dificuldades que vão ter no 12º, os professores aí puxam imenso por os alunos tirarem óptimas notas, todos os professores querem dezoito, dezanove que é para entrarem nas faculdades logo de seguida e alguns alunos têm medo e então mudam de escola" (Florbela, estudante).

20 "Era uma escola onde os professores, e ainda é, é uma escola onde os professores faltavam muito pouco. Faltava-se pouco, cumpria-se...havia....houve sempre uma certa disciplina. (...) o Executivo neste caso, ela [a Presidente] tem tido um papel muito importante naquilo que eu acho que é fundamental na escola, que é a educação cívica dos alunos, acho que independentemente da discussão e do problema da preparação para os exames eu acho que aquilo que é...que tem marcado esta escola e que talvez...que talvez tenha levado à degradação de outras escolas foi, em certa medida, a manutenção do sentido de autoridade dentro da escola. Que não tem a ver com autoritarismo mas tem a ver com regras que têm de ser cumpridas" (Ilda, docente da ESSA).

21 "os miúdos desta escola, muitos deles têm expectativas de vida que não passam por exercer na sociedade ofícios menores se me permite a expressão. Não tem nenhuma carga negativa; portanto, nas perspectivas de vida deles está ser aquilo que eles acham ser algm não é só ter mordomias. É preciso mostrar que se é alguém. Verdadeiramente. E isso passa por educação, passa por instrução a sério, passa por competências, ou então nós não vamos ser alguém. Claro que eu não posso, eu não posso, nomeadamente a nível do básico exigir determinado tipo de excelência. Não posso! Porque não têm competências para isso, as capacidades às vezes não são tantas, a perspectiva de vida deles é diferente. Agora, quando um aluno de facto quer ter um percurso não se pode deixar de ser exigente com essa pessoa" (Ilda, docente).

22 Para uma discussão aprofundada sobre a fabricação da excelência (escolar), processos em que assenta, normas e hierarquias, consultar Perrenoud (1984, p. 35-40).

23 Esta exterioridade ocorre em dois sentidos: por um lado, as categorias que organizam a percepção e descrevem esses públicos não resultam do contexto da ação e relação pedagógicas; por outro lado, essas mesmas categorias não podem ser mobilizadas e revelam-se pouco capazes para inspirar e fundar a ação pedagógica.

Contato:
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Universidade do Minho
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CEP 4710-057

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