quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A literatura e suas famílias


por Moacyr Scliar
Os arranjos familiares, especialmente os infelizes, estão no centro de grandes romances dos séculos XIX e XX, como Irmãos Karamazov e Vinhas da Ira.

Relações familiares são tema constante na literatura. Mais que isso, famílias freqüentemente representam um microcosmo que reflete uma época. Grandes épicos nasceram assim, sobretudo no século XIX e início do século XX, quando o romance chegou a seu apogeu: as pessoas liam as obras de ficcionistas famosos para aprender sobre o mundo.

Romancistas não eram apenas literatos; eles voltaram-se para sociologia, antropologia e psicologia quando essas ciências estavam apenas engatinhando. Seus textos eram caudalosos; romances em três ou quatro volumes eram muito comuns. E as famílias que retratavam nem sempre representavam o modelo feliz que a gente encontra na publicidade da TV.

Na verdade isto servia aos propósitos da literatura. Como disse Leon Tolstoi em Ana Karenina, todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Da infelicidade brotava pois a melhor, a mais original ficção.

Das muitas famílias que a literatura tornou famosas, quatro são particularmente interessantes. Em primeiro lugar, Os irmãos Karamazov (1879), do russo Fiodor Dostoievski, que Freud considerava "a maior obra da história da literatura". No romance, somos apresentados ao velho Karamazov, um homem amoral, corrupto, que domina sua jovem amante, Grushenka, e disputa-a com o filho mais velho, Dmitri. Um filho ilegítimo do velho, Smerdiakov, mata-o. Cada um dos irmãos representa um tipo humano; Ivan, por exemplo, é o mais instruído, o mais viajado, mas é também um niilista, adepto do "tudo é permitido" - ele influenciará Smerdiakov a cometer o crime, o parricídio que Freud analisará em seu Dostoievski e o parricídio.

Depois temos Os Buddenbrooks (1900), o primeiro romance de Thomas Mann, a história de uma rica família ao longo de quatro gerações, do esplendor à decadência, desde o patriarca, Johann, que vive no início do século XIX, até o jovem Hanno, um talentoso músico que, morrendo de tifo, encerra o ciclo familiar.

Segue-se Os Thibault, que é na verdade um conjunto de oito narrativas publicadas entre 1920 e 1937, um "romance-rio" que valeu a Roger Martin du Gard o Nobel de literatura. Os personagens principais são Jacques e Antoine, filhos de Oscar Thibault, um rico e intransigente católico.

Jacques, idealista e pacifista, vive um drama pessoal durante a Primeira Guerra. Antoine, mais velho, é um humanitário médico; também participa do conflito bélico e fica gravemente doente, vítima do venenoso gás de mostarda. Os dois irmãos formam um retrato da burguesia parisiense. A posição política do escritor, de esquerda, fica evidente na sua visão crítica da tumultuada época.

Crítico é também John Steinbeck em As vinhas da ira, de 1939, que nos fala dos Estados Unidos na época da depressão. A família é a dos Joads, pequenos proprietários rurais, que, como milhares de outros, deixam Oklahoma e partem rumo à Califórnia, a então "terra prometida". Eram, portanto, os equivalentes aos retirantes nordestinos (ainda que não vivendo tão mal). Os Joads são ignorantes, sofridos, não raro violentos - mas profundamente humanos, e é este o grande mérito do autor: mostrar que as pessoas mantêm sua humanidade mesmo em condições difíceis. As vinhas da ira é um exemplo da literatura engajada dos anos 30 que, no Brasil, teve em Jorge Amado seu expoente. Os grandes escritores, aliás, também formam famílias. Famílias a que nos unimos pela afinidade e, sobretudo, pela paixão que em muitos de nós mobiliza a grande literatura, representada por obras como as quatro que citamos.

Moacyr Scliar é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras

Revista Mente e Cérebro

Beleza de boneca

Como uma bem-sucedida boneca pode nos ajudar a compreender como se estabelecem os padrões de beleza na sociedade
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Em 1997, o psicólogo Albert Magro, pesquisador da Faculdade Estadual de Fairmont, Virgínia do Oeste, conseguiu esclarecer o mistério. Ele mostrou a 495 indivíduos ilustrações e retratos de pessoas com diversas características e formatos do rosto e corpo. Os participantes deviam indicar quais aspectos consideravam mais atraentes.

Foi constatado que as pessoas detestam coxas curtas, pernas curvadas, dentes caninos grandes (sobretudo os pontiagudos), gengivas proeminentes, mãos longas, dedos curvados, polegares e pescoço curtos e maxilares excessivamente projetados. Entre as características mais apreciadas estão: pernas longas, pescoço comprido, lábios rosados e carnudos, olhos grandes, ombros eretos, dentes regulares, dedos afunilados, pele lisa e sem pêlos, ventre plano, arco da sola do pé acentuado, isto é, as mesmas características da Barbie. O estudo foi publicado na revista Perceptual and Motor Skills. Faltava, porém, explicar por que esses aspectos são tão atraentes.

Albert Magro recorda que, ao longo da evolução da espécie, os traços hoje considerados atraentes desenvolveram-se quando as pessoas começaram a caminhar eretas, o que coincidiu com o aumento da inteligência, das habilidades manuais e com a dieta onívora. A adoção da marcha bípede, por exemplo, trouxe o alongamento das pernas e do pescoço e posicionou os ombros mais para trás. A alimentação variada modificou a forma do maxilar e da dentição. O desenvolvimento do córtex cerebral levou ao aumento do volume do crânio, ao passo que a inteligência ampliou a habilidade de usar utensílios, o que acarretou a modificação do formato das mãos. Quanto aos lábios, somos a única espécie cujas mucosas labiais são voltadas para fora, traço observado também em macacos, mas apenas no estágio fetal.

A evolução de Vênus

Magro constatou também que os aspectos que menos agradavam os participantes da pesquisa correspondiam às características de nossos antepassados mais primitivos e de alguns macacos modernos. Quando se olha para uma Barbie, nota-se que, não por acaso, a boneca é um condensado de traços evolutivos (corpo e rosto), sem nenhum traço primitivo. Seria este o segredo de sua popularidade?

Nossa percepção de beleza desenvolveu-se de forma simultânea à evolução de nossos traços físicos. De fato, se “novas” características são mais freqüentes hoje, é porque os seres humanos escolheram companheiros dotados delas. E elas foram, portanto, conservadas na evolução graças a um método de reprodução de tipo “seletivo”.

As fêmeas que possuem estas qualidades tinham maiores chances de se reproduzir e de gerar uma prole com suas próprias características; as outras simplesmente desapareciam. Podemos supor que os machos humanos se reproduziam (e talvez se reproduzam ainda) tendo uma Barbie como modelo inconsciente na escolha de sua parceira.

Apesar dos problemas que esta boneca pode suscitar por causa dos tipos de papéis femininos que encarna, ela ilustra o modo pelo qual se desenvolveu a percepção da beleza humana: Barbie tem todos os elementos físicos que julgamos “bonitos”.

Alguns psicólogos evolucionistas acreditam que, enquanto os padrões para avaliar o rosto variam ligeiramente de acordo com a época e a cultura, para o corpo existiria uma norma universal de beleza. Segundo a hipótese darwiniana, de fato a beleza serviria para identificar os indivíduos com “bons genes”. Seria um indicador de boa saúde, e nós preferimos pessoas bonitas para aumentar as chances de unir nossos genes aos delas. Se os cabelos forem bonitos, o corpo esbelto e musculoso, a pele, lisa e firme, o rosto, simétrico, significa que o patrimônio genético assegura boas possibilidades de sobrevivência e de reprodução; e de modo especial um bom sistema imunológico.

Quadris darwinianos

Apesar da cintura fina, as ancas da Barbie são amplas. Um psicólogo da Universidade do Texas demonstrou que os homens são sensíveis a uma relação cintura-quadril inferior a 0,7 (por exemplo, 60 cm de cintura e 90 cm de quadril), o que seria indício da capacidade da mulher de enfrentar o parto sem grandes dificuldades.

Além disso, a aparência da boneca é jovem, e a juventude representa também um critério de beleza, já que a idade é um indicador de fertilidade. Os olhos grandes são apreciados justamente porque sinalizam juventude. Segundo estudo realizado em 1996, apenas os adolescentes preferiam mulheres cinco anos mais velhas. Homens adultos têm optado, ao longo dos séculos, pelas mais novas. Finalmente, que dizer da cor dos cabelos da Barbie? Será verdade que os homens preferem as loiras?

Uma coisa é certa: gostamos das pessoas portadoras de genes distantes dos nossos porque a mistura genética aumenta a capacidade de sobrevivência. Por esta razão, em muitos países em que predominam os morenos, os loiros são mais procurados justamente por serem raros. Unir-se a eles permite manter a diversidade genética e reforçar o sistema imunológico da prole, fato que favoreceria a conservação da espécie.

Até os bebês são sensíveis à beleza. O psicólogo Alan Slater, da Universidade de Exeter, Reino Unido, mostrou para 100 meninos recém-nascidos entre as cinco horas e dois dias de vida, duas fotografias diferentes, colocadas uma ao lado da outra, ambas a cerca de 30 cm do rosto do bebê. Uma das fotos mostrava uma mulher muito bonita e a outra, uma mulher comum. O olhar dos bebês voltou-se quatro vezes mais para o rosto que os adultos julgariam atraente.

Isto demonstra que a identificação de feições “agradáveis” parece ativa desde o nascimento. Segundo Slater, uma aparência bonita representaria de alguma forma o protótipo de um rosto humano; aliás, se fundíssemos centenas de rostos com a ajuda de computadores, obteríamos uma média estatística de características faciais particularmente atraentes. Na mente de um recém-nascido, os rostos bonitos representariam, portanto, um modelo que talvez pudesse servir de referência, permitindo a ele comparar este protótipo com os rostos que estão próximos.

Homens ou mulheres, independentemente de nossas características, somos todos sensíveis à beleza. Estamos “biologicamente programados” para reconhecê-la e apreciá-la. E quem é que assume todas as características da beleza feminina? Ela mesma: a Barbie.

Tradução de Neury Carvalho Lima
Revista Mente e Cérebro

Aposta na consciência

Jogos podem proporcionar maneiras criativas de testar a percepção e a intuição
por Christof Koch e Kerstin Preuschoff
© Paul Pantazescu/Istockphoto

Muitas de nossas ações se passam fora do alcance da consciência: se ajustamos nossa postura corporal ou se decidimos casar, com freqüência não temos idéia por que ou como fazemos certas coisas. A noção freudiana de que a maior parte de nossa vida mental é inconsciente é difícil de ser estabelecida de maneira rigorosa. Embora pareça fácil responder à pergunta “você (conscientemente) viu a luz acender?”, mais de um século de pesquisa mostrou que não é bem assim. O problema-chave é definir a consciência de tal forma que seja possível medi-la de maneira independente do estado interno do cérebro do indivíduo, ao mesmo tempo que se “capta” seu caráter subjetivo.

Uma avaliação experimental comum da consciência – da sensação percebida ou do pensamento – é baseada na “confiança”. Por exemplo: um voluntário tem de julgar se uma nuvem de pontos numa tela de computador se move para a esquerda ou para a direita. Ele então relata quão confiante se sente assinalando um número – por exemplo, 1 para indicar puro palpite, 2 para alguma hesitação e 3 para certeza completa. Esse procedimento mostra que quando o participante tem pouca percepção da direção do movimento dos pontos sua confiança é baixa, enquanto quando ele “vê” claramente o movimento sua confiança é alta.

QUESTÃO DO DINHEIRO

Um relatório apresentado recentemente pelos pesquisadores Navindra Persaud, da Universidade de Toronto, Peter McLeod e Alan Cowey, ambos da Universidade de Oxford, apresenta uma forma mais objetiva para mensurar a consciência, valendo-se do desejo das pessoas de ganhar dinheiro. Esse método foi adaptado da economia, em que é usado para avaliar a crença da pessoa a respeito do resultado provável de um evento. Aqueles que sabem que têm as informações adequadas estão dispostos a apostar nisso. Isto é, aceitam pagar para ver. Pense no investimento em fundos mútuos. Quanto mais certo você estiver de que a alta tecnologia irá render bem no ano seguinte, mais dinheiro irá alocar para um fundo desse setor de alta tecnologia.

Persaud e seus colegas usam esse tipo de aposta para revelar a consciência – ou a falta dela. Em seus experimentos, os participantes não declaram confiança na percepção de maneira direita. Em vez disso, primeiro tomam uma decisão com base naquilo que perceberam e então apostam uma quantia tendo por base o grau de confiança na própria decisão. Se a escolha se mostra correta, o voluntário ganha o dinheiro; caso contrário, perde. A estratégia ideal é apostar sempre que se sinta seguro. As experiências aplicam essa técnica de apostas para três exemplos do processamento não-consciente.

O primeiro envolve o paciente G. Y. Devido a um acidente de carro que danificou áreas no seu cérebro envolvidas no processamento visual, tem o que se costuma chamar de “visão cega”. Essa condição o deixa com a capacidade não-consciente de localizar uma luz ou relatar a direção na qual uma barra colocada numa tela de computador está se movendo, embora ele negue ter a experiência visual e insista que está apenas chutando.

Porém, ele falha em converter seu bom desempenho superior em dinheiro quando aposta; coloca quantias altas em apenas cerca da metade (48%) de suas escolhas corretas. Quando consciente do estímulo, G. Y. aposta alto – exatamente o que qualquer pessoa faria. Suas apostas parecem espelhar a percepção consciente que tem do estímulo (isto é, a crença de que ele o viu) em vez de sua detecção real (inconsciente) do estímulo. Isso sugere que as apostas podem servir como meio de medir a consciência.

O segundo experimento envolve uma tarefa de uma gramática artificial, na qual participantes aprendem um pequeno número de seqüências de poucas letras. É dito a eles que as seqüências obedecem a uma única regra (por exemplo: todo “x” é seguido por um “a”). Mas não lhes é dito qual é a regra. Quando vêem uma nova seqüência, os participantes podem com freqüência determinar de maneira correta se esta segue a regra desconhecida. Ainda assim, os voluntários apenas raramente a expressam porque ficam em dúvida se a seqüência obedece ou não a regra. A taxa geral de classificação correta (81%) é bem melhor do que o acaso. Ainda assim os participantes não convertem esse desempenho em dinheiro. Apostas altas são seguidas por uma escolha correta em 45% do tempo e uma opção equivocada em 32% dos casos. Em resumo, os participantes do estudo normalmente estão certos de que a seqüência segue a regra, mas não têm confiança suficiente para apostar nisso.

MÃOS VENCEDORAS

No experimento final, chamado “a tarefa de aposta de Iowa”, são usados quatro baralhos. As pessoas pegam a primeira carta de um deles. Cada lâmina faz com que o voluntário ganhe ou perca certo valor em dinheiro. Sem que os participantes saibam, dois dos quatro montes têm um “rendimento líquido” positivo e dois, negativo. Os jogadores precisam realizar uma aposta na carta escolhida antes que ela seja revelada – e perder ou ganhar de acordo com isso. No teste, os participantes desviravam um grande número de cartas, uma por uma, descobrindo a cada vez se iam ganhar ou perder. Eles quase sempre descobriam quais baralhos eram ganhadores e começavam a puxar cartas na maior parte das vezes – mas normalmente desviravam ao menos 30 cartas nesses baralhos antes de ganhar a confiança para apostar de forma agressiva nos resultados. Isto é, as pessoas só começavam a ganhar dinheiro muito depois do momento em que seu próprio comportamento deveria ter revelado que sabiam quais baralhos eram vencedores.

Para explorar essa hesitação, Persaud e seus colegas usaram uma variação desse experimento na qual interrogavam os participantes a cada décimo teste em relação a tudo que estes sabiam sobre o jogo e os baralhos. Quando os participantes examinavam assim seu conhecimento do jogo, o intervalo entre o início da escolha do baralho positivo e as apostas vantajosas desaparecia, sugerindo que o ato de introspecção altera a percepção dos participantes. Examinar o próprio conhecimento os tornou mais conscientes do que eles sabiam. Essa descoberta indica que apostas feitas com base em conhecimentos a respeito dos quais ainda não se está consciente podem ter melhores resultados, uma demonstração da utilidade da máxima “conhece-te a ti mesmo” da filosofia ocidental.

As técnicas de apostas usadas por Persaud, McLeod e Cowey dependem da capacidade intuitiva de as pessoas fazerem boas escolhas – e, nesse caso específico, obter lucros. Em comparação com a tática de forçar participantes a se tornar cientes de sua própria consciência – e nesse processo perturbar o próprio fenômeno que se deseja medir –, as apostas representam uma forma mais sutil de avaliar a percepção, mostrando-se uma nova maneira mais lúdica – e reveladora – de estudar a percepção e a consciência. Desses passos, aparentemente pequenos, surgem possibilidades para responder à antiga questão: como a consciência surge a partir da experiência?

Christof Koch e Kerstin Preuschoff Ele é professor de biologia e engenharia do Instituto de Tecnologia da Califórnia e consultor científico da Scientific American-Mind. Ela é pesquisadora, pós-doutorada em teoria da decisão e neurociências.

Revista Mente e Cérebro

A incurável “doença” da escrita

Impulso que leva uma pessoa a escrever parece originar-se no sistema límbico – conjunto de células cerebrais associadas à emoção – e nem sempre gera talentos
por Moacyr Scliar
GALERIA NACIONAL DA IRLANDA, DUBLIN



Nos últimos anos a tecnologia possibilitou identificar no cérebro as regiões responsáveis por muitas funções intelectuais. Mas será possível aperfeiçoar esse conhecimento? Será possível identificar, por exemplo, uma área responsável pelo impulso que leva uma pessoa a escrever?

Esta foi a pergunta que se fez a neurologista americana Alice Weaver Flaherty, da Universidade Harvard, e que procurou responder no livro The midnight disease: the drive to write, writer’s block, and the creative brain (A doença da meia-noite: o impulso para escrever, o bloqueio do escritor, o cérebro criativo). Sua motivação era, antes de mais nada, pessoal. Pouco tempo depois de dar à luz gêmeos prematuros que em seguida faleceram, ela sentiu um desejo irresistível de escrever, e sobre qualquer coisa. Um ano depois, novo parto; de novo gêmeos, que desta vez sobreviveram, mas de novo o incontrolável impulso da escrita.

Hipergrafia é o termo médico para descrever essa situação, conhecida há muito tempo: o poeta romano Juvenal falava, no primeiro século d.C. da “incurável doença da escrita”. Recentemente constatou-se que a hipergrafia é freqüentemente desencadeada pela epilepsia do lobo temporal, e que às vezes está associada à doença bipolar, na qual a mania se alterna com a depressão, sendo que os antidepressivos conseguem “estancar” o fluxo verbal. O impulso para escrever parece originar-se no sistema límbico – conjunto de células cerebrais associadas à emoção – e transformado em idéias “editadas” pelos lobos temporais. Alguns portadores de hipergrafia tornaram-se famosos. O pastor americano Robert -Shields manteve, de 1972 a 1997, diários que retratavam sua vida minuto a minuto e que encheram 94 caixas de papelão num total de 75 mil páginas, o suficiente para dar uns 4 mil livros de porte razoável. Virginia Ridley, da Geórgia, escreveu menos, 10 mil páginas, mas o seu texto foi mais útil: quando ela morreu de forma misteriosa, serviu para absolver o viúvo, acusado de assassinato (problema deve ter tido a polícia para ler tantas páginas).

E também existem escritores prolíficos, aqueles que escrevem muito. O que não é necessariamente um sinal de talento. A lista dos autores mais produtivos do mundo inclui nomes absolutamente desconhecidos para a maioria dos leitores, como o da sul-africana Mary Faulkner, que, diferente daquele outro Faulkner – o William – não ganhou o Nobel mas está em primeiro lugar na lista de recordes do Guiness, como autora de 904 livros; Lauran Paine, autor de 850 publicações; e Prentiss Ingraham que publicou 600 obras, das quais 200 sobre o cowboy Buffalo Bill. Mas na lista também estão os reputados Georges Simenon, criador do Inspetor Maigret (mais de 500 livros) e John Creasey, autor de conhecidos thrillers. Prolíficos foram também Charles Dickens, Honoré de Balzac e Victor Hugo. Segundo Shakespeare, autor razoavelmente fecundo, há mais coisas entre o céu e a terra do que alcança a nossa vã filosofia. O mesmo se pode dizer do processo criativo.

Moacyr Scliar é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras

Revista Mente e Cérebro

Quando o remédio é escrever - BLOG

Efeitos terapêuticos de manter blogs atraem atenção de pesquisadores 
por Jessica Wapner
© VR Photos/Shutterstock


A busca por uma vida mais saudável pode ser um dos motivos do enorme aumento do número de blogs. Estima-se que sejam cerca de 3 milhões por todo o planeta. Cientistas e escritores há anos conhecem os benefícios terapêuticos de escrever sobre experiências pessoais, pensamentos e sentimentos. Mas, além de servir como um mecanismo para aliviar o stress, expressar-se por meio da escrita traz muitos benefícios fisiológicos. Pesquisas mostram que com a prática da escrita é possível aprimorar a memória e o sono, estimular a atividade dos leucócitos e reduzir a carga viral de pacientes com aids e até mesmo acelerar a cicatrização após uma cirurgia. Um estudo publicado na revista científica Oncologist mostra que pessoas com câncer que escreviam para relatar seus sentimentos logo depois, se sentiam muito melhor, tanto mental quanto fisicamente, em comparação a pacientes que não se deram a esse trabalho.

Pesquisadores empenham-se agora em explorar as bases neurológicas em jogo, especialmente levando em conta a explosão dos blogs. De acordo com a neurocientista Alice Flaherty, da Universidade Harvard e do Hospital Geral de Massachusetts, a teoria do placebo para o sofrimento pode ser aplicada a esse caso. Como criaturas sociais, recorremos a uma variedade de comportamentos relacionados à dor. A reclamação, por exemplo, funciona como um “placebo para conseguir satisfação”, afirma Flaherty. Usar o blog para “botar a boca no mundo”, expressar insatisfações e partilhar experiências estressantes pode funcionar da mesma forma.

Flaherty, que estuda casos como a hipergrafia (desejo incontrolável de escrever) e também o bloqueio criativo, analisa modelos de doenças que explicam a motivação por trás dessa forma de comunicação. Por exemplo, as pessoas em estado de mania (pólo oposto à depressão, característico do transtorno bipolar) geralmente falam demais. “Acreditamos que algo no sistema límbico do cérebro fomente a necessidade de a pessoa se comunicar”, explica Flaherty. Localizada principalmente no centro do cérebro, essa área controla motivações e impulsos relacionados a comida, sexo, desejo e iniciativa para resolução de problemas. “Sabemos que há impulsos envolvidos na criação de blogs, pois muitas pessoas agem de forma compulsiva em relação a eles. Além disso, o hábito de mantê-los atualizados pode desencadear a liberação de dopamina, os estímulos são similares aos que temos quando escutamos música, corremos ou apreciamos uma obra de arte”, diz Flaherty.

Os lóbulos frontal e temporal, que controlam a fala (centro dedicado à escrita está diretamente conectado ao cérebro), talvez tenham, também, um papel importante nesse processo. Lesões na área de Wernicke, localizada no lóbulo temporal esquerdo, por exemplo, resultam em fala excessiva e perda da compreensão da linguagem. Pessoas com afasia de Wernicke apresentam linguagem inarticulada e é comum escreverem constantemente. Tendo em vista essas características, Flaherty especula que alguma atividade nessa área poderia estimular o desejo de criar blogs.

Cientistas reconhecem, porém, que a neurobiologia da escrita terapêutica ainda apresenta muitos pontos obscuros. As tentativas de retratar o cérebro antes e depois de escrever renderam poucas informações, pois as regiões ativas estão localizadas em áreas muito profundas do sistema cerebral. “Estudos recentes com ressonância magnética funcional demonstraram que o cérebro trabalha de forma diferente antes, durante e depois de escrever”, observa o psicólogo James Pennebaker, da Universidade do Texas, em Austin. Mas o pesquisador e vários de seus colegas ainda são céticos quanto ao valor dessas imagens, pois são difíceis de reproduzir e quantificar.

O que se sabe é que a escrita ativa um conjunto de vias neurológicas – e vários estudiosos estão comprometidos em descobri-las. Na Universidade do Arizona, o psicólogo e neurocientista Richard Lane usa técnicas de imagem cerebral para estudar a neuroanatomia das emoções e a forma como elas são expressas. Nancy Morgan, principal autora do estudo publicado na Oncologist, pretende realizar novos estudos baseados na comunidade e ensaios clínicos sobre a escrita expressiva. Pennebaker continua a investigar a ligação entre a escrita expressiva e alterações biológicas, como uma melhor noite de sono, que são essenciais à saúde. “Acredito que o foco no sono é um dos mais promissores”, diz. Sejam lá quais forem as causas subjacentes, as pessoas diagnosticadas com câncer e com outras doenças graves estão buscando (e encontrando) cada vez mais conforto na blogosfera. “Sem dúvida criar blogs traz benefícios. E, diferentemente de um diário de cabeceira, os blogs oferecem o benefício adicional de atrair leitores receptivos, que viveram situações similares”, considera Morgan, que planeja incorporar programas de redação ao programa preventivo para pacientes de câncer.

Mais informações sobre o uso da escrita em processos terapêuticos em Escrita para Curar (M&C 184)..

Jessica Wapner é jornalista.

Revista Mente e Cérebro

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Paulo Freire, em memória e verbetes


Publicação simultânea de biografia escrita pela viúva e glossário que traz conceitos explorados pelo educador revelam pensamento do intelectual pernambucano.
por Helenice C. R. Fester
Ana Maria Araújo Freire dá a público seu mais recente livro, Paulo Freire: uma história de vida, biografia que eu diria recifense, pernambucana e, portanto, profundamente universal, como afirma o biografado a respeito dele mesmo.

Recifense porque sem pressa, prolixa e freiriana, porque comunica-se com o leitor por meio da linguagem, em sua maior parte coloquial, que se quer horizontal para assim criar a igualdade, porque tudo é vida e tudo deve ser alegria fruto da afetividade.
Pernambucanos ambos, biógrafa e biografado; ela, doutora em educação, pela PUC-SP, onde também lecionou. Mais um título dela, o oitavo livro, salvo erro, após a morte de Paulo Freire (1921-1997) e sobre ele ou sobre seus escritos ou idéias. Pois Ana Maria ou Nita é também sua viúva, foram casados nos dez últimos anos da vida de Freire. Escreve porque a saudade de Paulo "permanece em mim como um sentimento que dá sentido à minha vida, porque a saudade do outro nada mais é do que uma forma diferente de sua presença mesma".

Nita harmoniza-se, portanto, enquanto autora, como intelectual que é e como segunda mulher e viúva do homenageado. Isto porque o livro é uma bela homenagem, objetiva na medida do possível, uma fonte expressiva, entre os muitos livros dedicados a Paulo Freire, em especial o organizado por Moacir Gadotti (Paulo Freire - Uma biobibliografia, 1996).

O livro contém farto e rico material documental, entre os quais a transcrição do Inquérito Policial Militar da 2a Companhia de Guardas do Recife, presidido pelo tenente-coronel Hélio Ibiapina, a quem Paulo Freire respondeu, preso, em 1964. Documento denso e representativo do descaminho que foi a ditadura militar.
A transcrição de um texto de Frei Betto também me chamou a atenção: "Graças às suas obras, professor, descobriu-se que os pobres têm uma pedagogia própria. Eles não produzem discursos abstratos, mas plásticos, ricos em metáforas. Não moldam conceitos, contam fatos. Foi o senhor que nos fez entender que ninguém é mais culto do que outro por ter freqüentado a universidade ou apreciar as pinturas de Van Gogh e a música de Bach. O que existe são culturas paralelas, distintas, e socialmente complementares. O que sei eu dos circuitos eletrônicos deste computador no qual escrevo? O que sabia Einstein sobre o preparo de um bom feijão tropeiro? No entanto, a cozinheira pode passar a vida sem nenhuma noção das leis da relatividade. Mas Einstein jamais pôde prescindir dos conhecimentos culinários de quem lhe preparava a comida".

E, parágrafos depois, continua o frade dominicano: "O senhor nos ensinou que ninguém ajuda ninguém, mas ajuda o outro a aprender. Graças ao seu fórceps pedagógico, extraiu a pedagogia do oprimido e sistematizou-a em suas obras. Pois o arrancou da percepção da vida como mero fenômeno biológico para a percepção da vida como processo biográfico. Os pobres fazem história, como demonstram os quarenta anos de atuação dos movimentos sociais que levaram Lula à presidência. Foi a sua pedagogia de conscientização (na verdade, a dos pobres que, repito, o senhor sistematizou) e que possibilitou a organização e a mobilização dos excluídos. Deu consistência dinâmica às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), aos movimentos populares, às oposições sindicais, aos sindicatos combativos, às ONGs, aos partidos progressistas".

Nita transcreve entrevistas do próprio Paulo, entre elas uma em que diz: "Pra mim, o \\'eu sou, logo existo\\', há muito tempo sumiu. \\'Nós somos, logo existimos\\'. Aí, esta é que é a formulação, \\'nós existimos, fazemos coisas, por isso somos, entende?"
Acompanha o lançamento do livro um bem feito glossário dos Conceitos de educação em Paulo Freire, da editora Vozes, e de autoria de Maria Lúcia Marcondes Carvalho Vasconcelos e Regina Helena Pires de Brito, com diversos colaboradores. No verbete Cidadania, por exemplo, encontramos em seu livro Pedagogia dos sonhos possíveis, póstumo e também organizado por Nita Freire, que remete a essa idéia de solidariedade e do fazer coletivo da construção histórica tão bem analisados por Boff e frei Betto, esta fala de Paulo Freire: "A história não é feita de indivíduos, ela é socialmente feita por nós todos e a cidadania é o máximo de uma presença crítica no mundo da história por ela narrada".

Ambos os livros me alegram por me fazerem perceber na minha própria prática de ensino a presença de Paulo Freire. A profissionalização do professor, uma das minhas principais preocupações, deverá estar inserida numa prática reflexiva e na participação crítica, fios condutores da formação docente, ancorados no desenvolvimento de competências disciplinares, transversais e profissionais, libertando os profissionais do trabalho rotineiro e levando-os a construir suas próprias iniciativas. Competência aqui entendida como a capacidade de mobilizar conhecimentos em situações complexas, nas quais é preciso tomar decisões e resolver problemas, com rapidez e segurança. Este o dilema atual: recriar soluções mobilizadoras de forças sociais capazes de reverter o processo de exclusão social e escolar. Ao educador cabe um papel fundamental: suscitar o inconformismo dos que teimam em fazer da política um instrumento a serviço da maioria, e reencontrar a solidariedade, semente invisível que alimenta a prática cotidiana.

Para isso, todo o pensamento de Paulo Freire sobre a educação, presente no Glossário mas, especialmente e com minúcias, nessa bela biografia com que Ana Maria Araújo Freire nos presenteia, é estímulo indispensável e fundamental. E também as advertências dele, uma das quais: "Um dos riscos que a gente pode cometer é cair no preto-branco, e reduzir a realidade toda a uma coisa ou a outra, quando ela não é. A realidade é arco-íris, isso seria um dado. Claro que a gente tem que ter uma certa opção dentro deste arco-íris...".

Sobre livro
Paulo Freire: uma história de vida(VILLA DAS LETRAS; 655 PÁGS.; R$69)Conceitos de educação em paulo freire -glossário (VOZES; 200 PÁGS.; R$25 )

Helenice C. R. Fester é doutora em História Social e professora da PUC-SP.

Revista Historia Viva

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Lições kafkianas

Os seres humanos são farejadores natos da verdade. Mas nem sempre encontram ambiente propício para as buscas decisivas

Gabriel Perissé

Os escritores, sem a pretensão de nos ensinar coisa alguma, transformam suas obras em aulas de humanização. Uma leitura educadora parte desse pressuposto: ler é aprender numa escola feita de palavras com um mestre da linguagem.

As aulas kafkianas são das mais estranhas. Os escritos de Franz Kafka (1883-1924) nos fazem encarar o mundo, a sociedade e a nós mesmos como realidades que ainda não conhecemos o bastante. Levam-nos a pôr em xeque pensamentos prontos e ações rotineiras. Num de seus aforismos, retirado do livro póstumo Considerações sobre o pecado, a dor, a esperança e o caminho verdadeiro (1931), o autor tcheco avisa a si mesmo e a cada um de nós: "És a tua própria lição de casa".

Sou a minha própria lição de casa na medida em que considero o problema da existência a primeira, a mais radical de todas as questões. O autêntico estudante, portanto, estuda a si mesmo e estuda o seu entorno com a disposição de encontrar respostas que lhe satisfaçam mais do que as já estabelecidas. As tarefas escolares são importantes, contanto que não atrapalhem o cumprimento do dever fundamental: perseguir verdades pessoais, por mais inglórios que sejam os esforços para atingi-las.

Essa pesquisa pessoal tem um preço, e por isso não é tão fácil encontrar quem a ela se dedique. O conto Investigações de um cão (1922) retrata a solidão de quem abandona as facilidades de uma vida sem questionamentos. O protagonista (um cão) observa, pergunta, analisa, reflete, tem um comportamento mental que o afasta do convívio dos outros cães.

Mas esse afastamento não se deve a uma falha do animal cientista e filósofo. Ao contrário. Ele sabe que esse é o seu destino, e deveria ser o de todos os seus companheiros:

Não é de se supor que as coisas estejam tão mal para mim. Não estou um fio de cabelo fora da essência canina. Todo cão tem, como eu, o ímpeto de perguntar e, como todo cão, tenho o de silenciar. Todos têm a tendência a perguntar. Os seres humanos são farejadores natos da verdade. Mas nem sempre encontram ambiente propício para as buscas decisivas. Paradoxalmente, a instituição escolar, que deveria ser o lugar da livre reflexão sobre problemas vitais, sobre os problemas que realmente interessam ao ser humano, pode tornar-se o maior dos obstáculos.

A educação que engana
Nos esboços de Investigações de um cão há um trecho, excluído na versão final do conto, no qual o autor, que passara maus bocados na escola, fazia uma avaliação contundente sobre o ato de educar:

Toda educação, provavelmente, possui dois objetivos. Em primeiro lugar, conter o impetuoso assalto das crianças ignorantes para a verdade. Em seguida, iniciar as crianças humilhadas, de modo imperceptível, suave e progressivo, na mentira.

Uma educação que teme a inventividade do estudante, que incentiva a homogeneização, que inibe a capacidade de perguntar, que está mais preocupada em definir limites do que em apresentar horizontes é uma educação humilhante e desumanizante. Por outro lado, fomenta a mentira, o engano. A crítica kafkiana ultrapassa tempo e espaço e vale também para o Brasil dos dias de hoje.

São enganosas, por exemplo, as fichas de leitura que acompanham certos livros. Desde a década de 1970 generalizou-se a prática editorial (com referendo pedagógico...) de incluir entre as páginas de livros infanto-juvenis essas fichas, ou suplementos, ou guias, ou orientações, com o intuito de "facilitar" o trabalho do professor e a interpretação dos alunos. Tornou tudo tão fácil e "seguro" que a leitura perdeu qualquer atrativo. Para que ler e pensar, criar hipóteses e levantar dúvidas novas, se a ficha, camisa-de-força do texto, tem como função tolher o vigor imprevisível da mente, anular as ainda mais imprevisíveis forças da imaginação, a "louca da casa", que o texto queria era mesmo despertar?

É equivocada também a forma como se avalia o mérito intelectual de um jovem candidato ao ensino superior público. Afinal, podemos considerar "superior" um ensino a que o adolescente só terá acesso (com uma ajudinha do destino...), se estudar centenas de questões que o distraem do essencial? Por que deve o vestibulando empregar suas melhores energias na tarefa de decorar, por exemplo, as características geológicas e químicas do granito e do mármore? Por que dedicar seu tempo à lei de Lenz (outro tema típíco de questão do vestibular), segundo a qual o sentido da corrente é o oposto da variação do campo magnético que lhe deu origem?

Se esses e outros conhecimentos (válidos em si mesmos e de fato relevantes quando contextualizados na prática do geólogo ou do físico) passam a ser apenas questões de um exame, elaboradas com o objetivo de restringir o acesso ao ensino gratuito, pois este não oferece o número de vagas suficiente em comparação com a quantidade de pessoas que conclui o ensino médio, para que estudar? Para que estudar, enfim, se há mais vagas e oportunidades em instituições particulares, cujos testes de seleção, infinitamente menos seletivos, não estão nem um pouco preocupados com o mármore e o campo magnético?

Para que serve a escola?
Em 1917, após os primeiros sintomas de tuberculose, Kafka interrompeu sua atividade profissional em Praga e foi passar alguns meses numa cidade mais tranqüila, Zürau, período que lhe permitiu escrever com maior regularidade. Utilizando cadernos escolares, produziu vários textos, publicados somente em 1953, por Max Brod (1884-1968), grande amigo do autor e responsável pela conservação e difusão de sua obra.

Em certo momento desses cadernos, Kafka escreve sobre uma escola noturna destinada a jovens comerciários. O professor pediu-lhes que fizessem um exercício de matemática, acreditando conseguir alguns minutos de sossego para estudar ele próprio. A classe, porém, está no maior alvoroço, e o supervisor de ensino entra na sala para averiguar o motivo da confusão. Segue um diálogo tenso entre supervisor e professor:

Supervisor: [...] Em que tipo de escola nos encontramos?
Professor: Na Escola Noturna para Aprendizes da Área Comercial.
Supervisor: É uma escola superior ou inferior?
Professor: Inferior.
Supervisor: Talvez uma das mais modestas?
Professor: Sim, uma das mais modestas.
Supervisor: Exatamente, uma das mais modestas. É inferior às próprias escolas primárias, já que, afora as matérias que são apenas a mera repetição das que se ministram na escola primária (e, portanto, dignas de respeito), aqui se ensinam apenas os mais básicos rudimentos de ciências. De modo que todos nós (os alunos, o professor e eu, o supervisor) trabalhamos, ou seria melhor dizer... deveríamos trabalhar, como é nosso dever, numa das escolas mais modestas que existem. Isso é porventura algo desonroso?
Professor: Não, aprender jamais é desonroso. Além do mais, a escola é tão-somente um lugar de passagem para esses jovens.
Supervisor: E é também para o senhor um lugar de passagem?
Professor: Na realidade, para mim também.

A escola cumprirá sua função se a entendermos como um passadouro, uma ponte. As atividades e exigências da escola só fazem sentido à luz de algo que esteja para além dela. Seria absurdo pensar na escola como o destino final de nossos esforços. Toda escola é um estágio. Um caminho (entre outros) para a nossa realização como seres humanos.

Gabriel Perissé é doutor em filosofia da educação (USP) e professor do Programa de Mestrado da Universidade Nove de Julho (SP)

Revista Educação

Educação Libertadora: Uma Práxis (Ainda) Possível

Alvaro Sebastião Teixeira Ribeiro
Recriar uma sociedade é um esforço político,
ético e artístico, é um ato de conhecimento.
Paulo Freire


Problemas financeiros. Pobreza. Alunos “desestruturados”. Famílias apresentando aparente falta de responsabilidade para com seus filhos. Relacionamentos inconstantes e supérfluos. Somado a tudo isto o professor precisa enfrentar na sala de aula temas como sexualidade, meio ambiente, pluralidade cultural, ética, educação para a paz, educação para o trânsito, ufa! Antes
eram os objetivos a serem alcançados, hoje são as habilidades e competências a serem adquiridos. Quanta novidade. Quanto conteúdo, quantos temas e quanto acréscimo de trabalho para o pobre do professor. Qual professor já não se deparou com esta problemática? Como dar conta desta problemática?
Tanto trabalho e pouca solução. Continuamos a vivenciar um aumento da violência, da
desestrutura familiar, da pobreza, da falta de condições de vida. Na sala de aula continuamos a receber alunos com problemas de toda ordem: financeiros, sociais, afetivos, etc. Muitos apresentam as mesmas dificuldades de aprendizagem e a maioria não se importa com o que está estudando. O desinteresse pelos conteúdos continua acontecendo. Por outro lado, muitos pais continuam a pensar que a educação é um problema somente da escola.
Frente a estes e outros problemas encontramos um educador tentando dar respostas à
sociedade, que cobra dele, mas nem sempre o apóia, embora, a mesma sociedade afirme que a educação é importante. Os educadores se perguntam: Por que estamos vivendo esta situação?
Quais são as causas de nossos problemas? Por que precisamos de uma nova escola, de uma outra educação mais pragmática, que garanta resultados? Este tipo de educação será um “ avanço” em direção a uma educação que prepare nossos educandos para disputar, com qualidade, uma vaga no concorrido mercado de trabalho? Com quem pode o educador contar? O que queremos e o que fazer?
Pensemos um pouco no conceito que temos de educação. O que vem a ser educação? Qual seu significado? Qual sua função ou funções? Qual sua importância? Frente a estas perguntas poderíamos cair na tentação de responder que só existe uma educação, conseqüentemente com os mesmo objetivos, as mesmas funções e a mesma importância. Isto é verdadeiro se entendemos educação por uma ação que qualifique nossas crianças e jovens para adaptarem-se as necessidades criadas pela sociedade, ou seja, se entendemos educação como espaço de adaptação social.
Para mantermos a ordem necessitamos de uma educação que ensine as crianças a respeitarem os papéis sociais já estabelecidos, o papel do homem e da mulher, do trabalhador e do empresário, do pobre e do rico, do político e do eleitor, etc.... Para que tenhamos uma sociedade repetitiva e ordeira é necessário que a educação tenha, entre outras, as seguintes características: os programas devem ser obedecidos à risca com enfoque no livro didático, para que se possa unificar o conhecimento; a relação professor-aluno seja a de instrutor-aprendiz, ou seja, o professor ensina
e o aluno aprende; os conteúdos são apenas atualizados e não mutáveis, já estão dados na natureza ou na cultura e não precisam de interpretação; a avaliação deve ser verificadora e medidora, devendo ser desenvolvida através de provas e exames, para melhor classificar os alunos.
Podemos optar por uma educação do tipo acima citada, mas temos que ter consciência de que este modelo educacional pressupõe um determinado tipo de homem/mulher. Nesta concepção todos os seres humanos são iguais, com tendências já pré-estabelecidas. A criança nasce selvagem e com a educação ela irá se autocorrigir e, conseqüentemente, se adequar à sociedade em que ela vive. Para isso necessita aprender as regras de convivência e os conteúdos básicos para reconhecimento do mundo. Educados e conhecedores do mundo que os cerca homens e mulheres desenvolverão suas habilidades e serão aquilo que já está pré-determinado neles. Com o conhecimento comum a todos, as habilidades se definirão e todos reconhecerão seus dons, que serão aflorados. Ninguém é sujeito de seu processo histórico, a sociedade e as funções já estão dadas e o progresso vai oferecer as condições ideais de vida. Portanto, basta apenas que cada um ocupe seu lugar. É este o principal objetivo da educação.
Simples, não? Convido-os/as a refletir um pouco mais. A humanidade alcançou o estágio atual por que tinha que ser assim? O desenvolvimento humano levaria necessariamente ao que temos hoje? É natural que tenhamos este tipo de sociedade, pois o progresso nos levou a isto?
Tentemos, rapidamente, viajar pela história da humanidade. Os chamados pré-históricos lutaram com a natureza para construir sua cultura. A escassez de alimentos vegetais, pelo aumento da população ou por problemas climáticos, fez com que os/as homens/mulheres procurassem outras terras e outros alimentos, transformando-se em nômades e carnívoros. A necessidade de locomoção e de lutar com outros animais para poder comer, oportunizou ao ser humano a construção de instrumentos, de transporte e de caça. Estes instrumentos foram utilizados, mais tarde, nas lutas entre os próprios seres humanos, para defesa ou conquista. E, assim foi ao longo dos tempos, as necessidades foram aparecendo e soluções foram buscadas. Mas, estas necessidades foram sempre ditadas pela natureza?
Na relação com a natureza o ser humano começa a construir culturas. Estas culturas são construídas pela ação do/a homem/mulher sobre a natureza ao longo dos tempos até nossos dias. Elas são frutos de nossas necessidades e desejos. Será que eles são sempre nossos, de todos?
Vamos a história, novamente. Vejamos o caso da Grécia. Existia na Grécia antiga uma democracia, apesar de ser uma democracia da minoria, pois apenas os homens livres podiam decidir, era uma democracia. Por que não se aperfeiçoou esta democracia, com a inclusão de outros segmentos da sociedade? Afinal de contas era uma boa idéia, e pelo que se tem conhecimento, uma prática que trazia benefícios ao povo grego. Poderíamos enumerar vários motivos para que isto não tenha acontecido, mas vamos ficar em apenas dois, talvez os mais importantes. Primeiro, a própria aristocracia grega exigia maior poder de decisão e depois, os macedônios e os romanos, que não tinham espírito tão democrático, invadem a Grécia e, pela força, submetem seu povo a seus governos. Podemos perceber que se travaram conflitos entre os sujeitos sociais. Primeiramente entre a aristocracia ateniense e os demais cidadãos e, posteriormente, entre outros povos, com práticas conquistadoras e o povo grego. Houve luta ideológica e luta militar, o vencedor impõe seus ideais e suas práticas ao perdedor.
O que temos hoje é fruto de quê? Da natureza das coisas, dos conflitos entre ser humano e natureza, dos conflitos entre atores sociais ou da luta do bem contra o mal? O contexto histórico que nos situamos apresenta uma hegemonia de um modelo econômico-político neoliberal. Trata-se de um aprofundamento das idéias liberais implementadas na economia e com fortes marcas políticas, em séculos anteriores. Este modelo impõe valores relacionados a um individualismo exacerbado em vista à constituição de um consumidor voraz fiel às leis do mercado mundial, manipulado por poucos conglomerados comerciais e financeiros.
O projeto neoliberal reinante identifica o mercado como o grande responsável pela justiça social que se deseja, mas a participação no poder continua sendo privilégio de poucos. A grande massa da população continua excluída dos bens produzidos pelo capitalismo e, em nome de um estado mínimo, os serviços públicos vêm sendo, cada vez mais, oferecidos em menor escala.
O modelo liberal hegemônico, chamado hoje de neoliberal, é fruto de conflitos ideológicos,políticos e militares, que se estabeleceram, pelo menos, nos últimos trezentos anos. As forças que defendem o neoliberalismo procuram ao longo do tempo construir instituições que favoreçam a implementação de seus ideais, gerando um mundo em que a participação de poucos vem em detrimento de muitos, criando uma condição de exclusão intensa.
As estatísticas demonstram que um por cento da população mundial detém recursos iguais aqueles que são divididos entre os cinqüenta por cento mais pobres, com tendência a uma concentração ainda maior. Como você se posiciona frente ao quadro sócio-político que ora enfrentamos? Com indiferença? Com otimismo? Concorda com os rumos da economia? Não vê relação entre as dificuldades sociais enfrentadas pela maioria da população e a economia mundial? Acha que este é um problema para políticos e não para você? Acredita que os problemas sociais são apenas políticos e não econômicos? É complexo? Pois bem, nossa postura pedagógica vai depender, em grande parte, de nossa visão de mundo. Se acreditarmos que tudo está bem, necessitando alguns ajustes, teremos uma forma de ver nossos alunos. Se, por outro lado, verificarmos que as estruturas sociais construídas nos últimos tempos refletem a hegemonia capitalista liberal e, por isso, não atendem a maioria da população, criando cidadãos de primeira e segunda classe, nossa postura frente aos alunos e a educação poderá ser outra.
É frente à situação de injustiça observada no mundo atual que perguntamos: queremos uma educação que mantenha esta situação? Para os que acham que o mundo é assim mesmo e os maiores devem “ comer” os menores, como acontece em parte da natureza, talvez o ideal deva ser este mesmo. Para os que pensam assim, sugerimos olhar para a própria natureza, a mesma natureza que serve de parâmetro para a sustentação ideológica deste estado de coisas, e verificar que se é verdade que alguns animais maiores se alimentam de animais menores, também é verdadeiro que muitos convivem de forma solidária. Portanto, nos parece possível pensar diferente e tentar a construção de um mundo melhor, mais justo e mais solidário. Um mundo em que os/as homens/mulheres possam construir outras escalas de valores e, conseqüentemente outras formas de organização social. Para isso é necessário construirmos as condições de mudança e, como afirma Paulo Freire, “ a educação não é a chave para a transformação, mas a transformação é por si mesmo educacional” .
Desde os anos sessenta do século passado, educadores e lideranças latino-americanas, têm apresentado uma análise bastante crítica da situação educacional que, para eles, tem vindo carregada de um preconceito pragmático, abstrato e formalista, com orientação fortemente marcada pela manutenção das estruturas injustas. Ao mesmo tempo em que denunciam, anunciam a necessidade de uma educação que trate o educando como sujeito ativo de seu conhecimento.
Revista de Pedagogia
Matéria completa no site www.fe.unb.br/revistadepedagogia

Todas as crianças são inteligentes e dotadas de potenciais únicos


Thomas Armstrong
Todas as crianças são inteligentes e dotadas de potenciais únicos, que devem ser reconhecidos, nutridos e celebrados. Esse conceito tem sido central no trabalho do professor e pesquisador norte-americano Thomas Armstrong, autor dos livros As melhores escolas: a prática educacional orientada pelo desenvolvimento humano e Inteligências múltiplas na sala de aula, best-sellers publicados no Brasil pela Artmed. Polêmico, Armstrong tem defendido que a existência do transtorno do déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) é um mito e tem ampliado o foco de seus estudos sobre a inteligência a partir de um paradigma holístico. Atualmente, dedica-se a escrever um livro sobre neurodiversidade, com base na idéia de que o desenvolvimento neurológico atípico é uma diferença humana normal. Na entrevista a seguir, realizada por e-mail, Armstrong fala sobre o futuro e o presente da educação infantil e sobre como é possível contribuir para que as crianças tenham um desenvolvimento mais pleno e saudável. "Precisamos parar nossas práticas de estreitamento e criar centros onde a imaginação e as idéias dos alunos possam manifestar-se plenamente em palavras, desenhos, música, dança, invenções e outras formas de expressão", afirma.

Os discursos sobre o que é uma educação de qualidade centram-se principalmente nos resultados acadêmicos. O que o senhor pensa sobre as políticas avaliativas e a maneira como elas encaminham as políticas educacionais e as práticas educacionais?

Tem havido uma ênfase excessiva ao que chamo de "discurso do êxito acadêmico" em meu livro As melhores escolas. Os educadores passam tempo demais falando sobre responsabilidade, escores em provas e padrões. Precisamos dedicar mais tempo ao "discurso do desenvolvimento humano", o qual nos envolve na reflexão sobre cada criança e suas necessidades humanas, sobre como podemos ajudá-la a se desenvolver cognitiva, emocional e espiritualmente, e não apenas academicamente.

O governo federal brasileiro, além das avaliações educacionais tradicionais, criou este ano uma prova a ser aplicada às crianças de 6 e 7 anos para verificar seu nível de conhecimento. Qual é a sua opinião sobre a aplicação de provas a crianças pequenas?

Não creio que provas padronizadas sejam uma fonte útil de informações sobre crianças pequenas. Elas criam resultados artificiais que adquirem vida própria. Precisamos dedicar mais tempo à observação das crianças e ao modo como elas aprendem, documentando nossas observações e discutindo de que forma podemos ajudá-las a realizar seu pleno potencial. Resultados em provas constituem um desvio do principal caminho para a aprendizagem.

Em As melhores escolas, o senhor defende a idéia de que cada nível de ensino escolar diferencia-se do outro e tem um objetivo central bastante específico. Qual a centralidade da educação infantil? Em que aspectos ela difere do ensino dos primeiros anos do fundamental?

Acredito que crianças pequenas precisam brincar. Nessa tenra idade, brincar significa aprender. Não deveríamos tentar fazer do brincar algo "educacional", mas sim oferecer às crianças uma ampla gama de materiais para brincar (aparelhos, materiais artísticos, marionetes, blocos, etc.) e criar um espaço seguro para que elas possam explorar sua imaginação sem preocupação. Quando chegam aos 6 ou 7 anos, o que se torna mais importante é entender como o mundo funciona - nessa fase, as crianças estão afastando-se de sua existência protegida com suas famílias em direção ao mundo social mais amplo e querem saber quais são as regras e como tudo funciona. Os educadores devem estar ali para ajudá-las a aprender por que o céu é azul, onde fica a Índia, como funciona um motor e tudo o mais que a curiosidade delas exigir.

Tendo em vista que no Brasil as escolas de educação infantil iniciam o trabalho pedagógico com crianças a partir dos 4 meses, qual seria a centralidade do trabalho com bebês?

Com bebês, é importante criar um ambiente que seja tranqüilo e que envolva o toque, o contato físico, objetos interessantes para olhar e manipular. A questão central é as-segurar que a relação entre mãe e criança seja carinhosa, positiva e aprovativa.

Atualmente, muitas escolas usam o computador com todas as crianças. Qual a sua posição sobre o uso das novas tecnologias da informação e da comunicação na educação de crianças pequenas?

Acredito que há uma excessiva ênfase na tec-nologia. Crianças pequenas deveriam estar ex-plorando o mundo real, não um mundo virtual. Elas deveriam estar interagindo com coisas reais, não com telas de computador. Isso cria uma base sólida para o seu posterior pensamento − e, na verdade, o brincar é mais efetivo como preparação para os desafios do século XXI.

Como o senhor constrói as evidências a partir das quais avalia as escolas que têm boas práticas?

Por meio de documentação - fotografias, vídeos, diários mantidos pelos professores, amostras de trabalhos infantis - de crianças envolvidas em aprendizagem real, e não bobagens em lápis e papel.

O que a escola pode ou deve oferecer para formar crianças que gostem de aprender?

As escolas precisam ser reconceituadas como "instituições de curiosidade" e fazer de sua missão central a necessidade de despertar em cada criança seu inato assombro pelo mundo. As crianças são geneticamente aparelhadas para aprender uma quantidade incrível de coisas, mas nós de fato as deseducamos nas escolas ao estreitarmos os objetivos a testes e tarefas em lápis e papel. Precisamos parar nossas práticas de estreitamento e criar centros onde a imaginação e as idéias dos alunos possam manifestar-se plenamente em palavras, desenhos, música, dança, invenções e outras formas de expressão.

Como a educação do século XXI deve ser diferenciada daquela realizada no século XX?

As coisas são mais complexas e andam mais rápido na atualidade. Precisamos ajudar as crianças a aprender a filtrar o "lixo" que nos bombardeia constantemente nos meios de comunicação de massa e a ser capazes de localizar as informações e inspiração de que precisam para se desenvolver como aprendizes.

Fale um pouco sobre suas áreas de interesse atuais e os projetos em que está envolvido.

Estou escrevendo um livro sobre neurodiversidade. A idéia é que devemos aplicar o mesmo tipo de raciocínio às diferenças cerebrais que aplicamos à biodiversidade ou à diversidade cultural. Não dizemos a respeito de uma pessoa que tem uma cor de pele diferente da nossa que ela têm um "transtorno de déficit de pigmento". Isso seria racismo. Contudo, rotulamos crianças que têm formas diferentes de lidar com o mundo de portadoras do "transtorno do déficit de atenção". Isso está errado. Precisamos apreciar todas as flores no prado!

Revista Patio

Boa escolarização para as crianças de amanhã


Carolyn Pope Edwards
Como o trabalho educacional realizado em Reggio Emilia − e em escolas de outros países em diálogo com a cidade italiana − pode continuar sendo relevante nas próximas décadas

As crianças freqüentam a escola hoje, mas o que aprendem vão usar amanhã. Quando aprendem as habilidades e informações certas hoje, um futuro melhor as aguarda. Entretanto, como vivermos em tempos de rápidas transformações, tornou-se excessivamente difícil prever exatamente que problemas e oportunidades nossas crianças enfrentarão no século XXI. O que elas devem saber que lhes será útil e ajudará o planeta a sobreviver? Que modelo de escola há de servi-las melhor nos anos que estão por vir?

Como alguém que viveu nos Estados Unidos por seis décadas, mas também viajou extensamente, meu primeiro pensamento é que nenhum modelo de escola é o melhor. Na verdade, é bom quando líderes e cidadãos de um país são educados em uma diversidade de modelos, de forma que possam contribuir com diferentes pontos de vista aos debates e discussões de planejamento. Dediquei grande parte de minha vida profissional à descrição e à disseminação das abordagens educacionais pioneiramente instituídas em Reggio Emilia, na Itália. Neste artigo, pretendo explicar como o trabalho educacional realizado em Reggio Emilia - e em escolas de outros países em diálogo com a cidade italiana - pode continuar sendo relevante nas próximas décadas.

Para quem não conhece essa abordagem e o que ela representa, eis um breve histórico (ver também Gandini, 2002; Edwards, Gandini e Forman, 1998; Gandini e Edwards, 2001; Edwards e Rinaldi, 2008). Reggio Emilia é o nome de uma cidade localizada perto de Bolonha, ao norte da Itália, onde um grupo de educadores, pais e alunos voluntários reuniram-se após a Segunda Guerra Mundial para criar um sistema de escolas para crianças pequenas. Depois do sofrimento e da devastação causados pela guerra, eles queriam trazer esperança à sociedade e melhorar a vida tanto das crianças quando de suas famílias. Sob a liderança de seu diretor fundador, Loris Malaguzzi (1920-1994), as pré-escolas evoluíram de um movimento cooperativo de pais para um sistema administrado pela prefeitura. Malaguzzi era um educador carismático - um gênio teórico, mas alguém com senso prático que podia estender a mão a todos - , cuja morte não foi capaz de deter o progresso das iniciativas de educação para crianças pequenas. Hoje, Reggio Emilia ainda exerce um papel de liderança na inovação educacional na Itália, na Europa e, cada vez mais, no mundo todo.

Que problemas educacionais a cidade está enfrentando? Será que as respostas e soluções de Reggio Emilia sugerem que suas escolas continuarão sendo bons modelos para todos nós no século XXI? Reggio Emilia não é, evidentemente, um lugar estático, mas sim uma comunidade que está desenvolvendo-se e transformando-se em dimensões políticas, sociais e culturais. A administração municipal responde com ajustes correspondentes em suas escolas e em outros serviços. Por exemplo, a Itália está constantemente recebendo imigrantes da África e do Leste Europeu. Nos últimos 10 anos, a diversidade nas pré-escolas municipais de Reggio Emilia aumentou, sendo que atualmente 11,5% das famílias minoritárias representam 12 idiomas diferentes, um aumento enorme comparado com períodos anteriores.

Os educadores de Reggio estão conscientes de querer dar mais visibilidade a essas crianças e pais minoritários. Observando-se as recentes publicações e álbuns de fotos de Reggio Emilia, vêem-se hoje muito mais crianças e pais negros do que no passado, o que sugere novas atitudes e consciência. A maior visibilidade das crianças e de famílias minoritárias indica que Reggio Emilia, mesmo com todos os seus bens e recursos, confronta-se igualmente com muitas questões políticas e culturais de outras comunidades do mundo e está buscando formas de responder a elas. Considerando sua habilidade para resolver outros problemas complexos, podem estar mostrando-nos algumas novas estratégias importantes nos próximos anos.

Além disso, os jovens pais da cidade de Reggio Emilia não cresceram nas mesmas condições que os pais que fundaram o afamado sistema educacional pré-escolar; logo, não têm um automático senso de responsabilidade por ele. Os pais de hoje têm novos pontos de vista e desejos, pois cresceram no próspero final do século XX, e não nos tempos de desespero da guerra e no período do pós-guerra. Em resposta, o governo municipal de Reggio Emilia expandiu significativamente a variedade de programas e serviços oferecidos às criança, aos jovens e às famílias, com vistas a ampliar a base de defensoria e apoio público aos serviços como um todo e atrair mais fatias da população.

Por exemplo, a cidade oferece novos programas de meio-turno ou após as aulas, além de eventos culturais, com o intuito de reunir muitas pessoas de idades e ocupações diferentes. Uma vez que a cidade não tem condições de oferecer serviços de creche para todas as crianças (e nem todas as famílias querem esse serviço), outros tipos de programas culturais e educacionais importantes estão sendo fornecidos, como, por exemplo, aqueles relacionados com o ativo centro de reciclagem ReMida. Uma nova entidade dirigente foi criada em 2003 para proporcionar desenvolvimento profissional e apoio familiar para todas as pré-escolas de Reggio Emilia, além de existirem centros cooperativos de pais financiados apenas parcialmente por fundos públicos.

Os novos serviços têm o objetivo de romper barreiras e prevenir ressentimentos divisores entre famílias utilizando diferentes tipos de serviços pré-escolares. As soluções sugerem que os educadores continuam considerando suas escolas não como um caminho isolado, mas como parte de uma rede de serviços na qual o todo é maior do que a soma das partes. O que uma família recebe não pode ser separado do que é oferecido ou fornecido a outras famílias, enquanto as inovações ou facilidades e novos programas oferecem um modelo de comunidade que constrói conscientemente a advocacia de todo o seu sistema como parte de uma visão de construção que os italianos chamam de "cultura da infância".

Uma terceira grande mudança em Reggio Emilia é um esforço concentrado para encontrar modos sustentáveis e poderosos de receber visitantes e manter um diálogo internacional. A REChild, publicação oficial da organização Crianças de Reggio, foi lançada em 1996. Ainda mais significativa foi a inauguração do Centro Internacional Loris Malaguzzi, em fevereiro de 2006. Este já está tornando-se um lugar maravilhoso para a realização de conferências, encontros, oficinas e outros eventos educacionais. Delegações estrangeiras continuam fluindo para Reggio Emilia.

O novo centro está sediando conferências internacionais. Sua equipe planejou e instalou duas exposições: uma sobre a história da educação pré-escolar em Reggio Emilia e a outra sobre crianças e espaços arquitetônicos. Além disso, em seu Centro de Documentação, os educadores preparam uma nova exposição itinerante, denominada The Wonder of Learning: One Hundred Languages of Children [A Maravilha de Aprender: As Cem Linguagens das Crianças], que foi inaugurada em junho de 2008, em Boulder, no Colorado (EUA), durante a quarta conferência anual da North American Reggio Emilia Alliance (NAREA).

A exposição difere das versões anteriores devido à sua utilização expandida de formatos multimídia, tais como segmentos em DVD, que podem ser operados pelos espectadores em praticamente todas as seções da exposição, cobrindo tópicos variados, como alfabetização, música, participação e inclusão de crianças com deficiências. Os educadores de Reggio Emilia continuam desenvolvendo suas teorias e ampliando suas práticas, especialmente por meio de inovações no uso de tecnologia educacional e de uma rede de contatos e intercâmbio em expansão com educadores de muitos países.

Apresento a seguir seis princípios centrais da abordagem de Reggio Emilia − e minha crença de que eles ainda são relevantes na discussão sobre educação pré-escolar no século XXI.




A imagem da criança como um aprendiz competente e poderoso. As necessidades e características das crianças nas escolas Reggio estão mudando no século XXI, mas a criança, em sua poderosa capacidade de florescer e desenvolver-se, continua sendo a mensagem central dos educadores.

O professor como facilitador da aprendizagem e como pesquisador das experiências de aprendizagem das crianças. O papel dos professores de Reggio Emilia como nutridores, parceiros e guias na aprendizagem de crianças já foi bem-descrito. Novos papéis de treinador e mentor oferecem idéias sobre como professores mais experientes podem trabalhar como professores menos experientes em seu sistema, assim como prestar consultorias ao redor do mundo.

O ambiente como outro professor, o qual oferece provocações para o aprendizado das crianças. A área de arquitetura, projeto de salas de aula e mobília para crianças é uma dentre as quais Reggio Emilia continua oferecendo modelos de tirar o fôlego, com o uso de iluminação, materiais, cores e organização que são intelectualmente emocionantes para crianças, pais, professores e visitantes.

O currículo oferece provocações para as investigações a longo prazo das crianças em áreas de seu interesse. No passado, os educadores de Reggio Emilia evitaram ser demasiado explícitos sobre as decisões dos professores por recearem que as pessoas tentariam transformar essas descrições em um livro de receitas, mas a nova exposição, The Wonder of Learning, revela mais claramente a seqüência em que se desenrola um projeto de aprendizagem.

As possibilidades oferecidas em apoio à aprendizagem das crianças quando pais, professores, alunos e a comunidade colaboram no processo de aprendizagem. As relações entre as pré-escolas e a cidade evoluíram por conta das mudanças na população, das novas instalações e estruturas administrativas e da liderança da organização denominada Crianças de Reggio (empresa pública e privada mista que administra as iniciativas de intercâmbio pedagógico e cultural). Elas oferecem aulas sobre parceria comunidade-professor na direção das escolas.

O processo de documentação como meio de tornar a aprendizagem visível e aprofundá-la através da reflexão e de perguntas adicionais. As escolas de Reggio Emilia evoluíram para incluir um novo foco na música, no movimento, na dança e na tecnologia - "linguagens" das crianças que antes não eram enfatizadas - e novas estratégias para documentar e comunicar esse aprendizado por meio das novas tecnologias digitais.


Em suma, o que chamamos de "abordagem de Reggio Emilia" não é um modelo educacional no sentido formal, com métodos definidos, padrões de certificação de professores e processos de credenciamento. Em vez disso, os educadores de Reggio Emilia falam de sua "experiência" (o que significa todo o corpo orgânico do que aconteceu em suas escolas e por meio de suas interações em conferências, encontros e comunicações escritas). Os educadores esperam que suas experiências possam ser uma fonte de reflexão para os outros. Eles também enfatizam a importância do "contexto", ou seja, dos educadores de todas as partes formarem uma consciência profunda de si próprios em termos de comunidade, cultura, oportunidades, desafios e recursos. A intenção não é copiar Reggio Emilia, e sim desenvolver interpretações dessa experiência que sejam úteis para o estudo e a discussão de outros educadores que enfrentam suas condições culturais e educacionais.

Carolyn Pope Edwards é professora
na Universidade de Nebraska-Lincoln (EUA).
cedwards1@unl.edu
Revista Patio

É preciso estar atualizado para fazer a diferença

Deborah Deutsch Smith

Oferecer aos novos educadores o conhecimento de que necessitam para proporcionar uma excelente educação aos alunos portadores de deficiências e também para ter paixão por oferecer oportunidades para esses aprendizes e fazer diferença é o que a educadora americana Deborah Deutsch Smith almeja com o seu trabalho. Professora de educação especial e autora de livros como Introdução à educação especial: ensinando na era da oportunidade, que acaba de ser lançado no Brasil pela Artmed, Deborah Smith é também professora na Claremont Graduate University, Califórnia, e diretora do Iris Center for Training Enhancements, centro nacional financiado pelo governo dos Estados Unidos que fornece gratuitamente recursos didáticos sobre práticas eficazes para uma educação inclusiva.

No final da entrevista concedida à Pátio por e-mail, Deborah Smith revelou um desejo: "Talvez algum dia eu possa visitar o Brasil e mostrar todos os recursos disponíveis no site do Iris Center (iris.peabody.vanderbilt.edu). Também desejo compartilhar com vocês de que modo eles estão sendo usados para suplementar livros-texto como o meu e estão sendo utilizados em atividades de desenvolvimento profissional em escolas". Por enquanto, conheça algumas de suas idéias lendo os principais trechos da entrevista.

Quais são os dilemas da educação especial hoje? Como esses dilemas têm-se modificado nas últimas décadas?

Um dilema que continuamos enfrentando nos Estados Unidos é que os professores e diretores das escolas de educação em geral dizem que não se sentem preparados para incluir alunos com deficiências. Eles dizem que carecem das habilidades de gerenciamento do comportamento e de sala de aula necessárias e que não sabem como individualizar ou diferenciar o ensino para aprendizes que têm dificuldades. Esse impasse não mudou desde que a lei de educação especial foi aprovada e continua sendo um desafio. Outro dilema diz respeito a acompanhar o conhecimento sempre crescente sobre práticas eficazes para a educação inclusiva. Sabemos mais sobre o que funciona. A promessa de práticas validadas ou baseadas em pesquisa para a escolaridade urbana é muito boa. Ações em múltiplos níveis para intervir precocemente, evitar muitos anos de fracasso e ajudar aprendizes com dificuldades no nível que necessitam estão produzindo ótimos resultados. Os educadores precisam sentir-se confiantes e utilizar novos métodos. No livro Introdução à educação especial, incluí todas essas novas informações e espero que de alguma forma o conteúdo e os recursos especiais, tais como Dicas para Manejo em Sala de Aula, Dicas de Instrução e Práticas Validadas, sirvam para ajudar os professores a fazer diferença em seu ensino para melhorar os resultados de todos os alunos.

De que forma a diversidade de alunos tem tornado mais complexa a tarefa de ensinar?

Nos Estados Unidos, existem cada vez mais alunos oriundos de países onde não se fala inglês. Em alguns distritos escolares, mais de cem idiomas diferentes são falados pelas famílias desses alunos. A comunicação entre lar e escola é difícil. Ensinar inglês a esses alunos também é um desafio. Muitos deles são mandados para a educação especial. É difícil ensinar alunos de tantas culturas diferentes, que falam idiomas tão diversos, e ao mesmo tempo focalizar altos padrões no domínio de conteúdos. Essa situação pode exigir demais de todo o sistema escolar.

Quais são as dificuldades mais freqüentes entre os professores na inclusão de alunos com necessidades especiais e como enfrentá-las?

Como eu disse, é importante que os professores estejam informados sobre práticas eficazes, saibam como individualizar o ensino e também como monitorar o progresso dos alunos individualmente para assegurar que cada criança esteja recebendo o ensino correto. Os professores precisam trabalhar em colaboração, precisam de tempo para planejar e trabalhar juntos e precisam que seus diretores lhes proporcionem isso. Quando tudo funciona direito, todos os alunos prosperam.

Como a formação dos professores precisa adequar-se para atender às diferentes possibilidades de inclusão?

Todos os dias, pesquisas rigorosas informam-nos sobre como aperfeiçoar o ensino e aumentar a aprendizagem dos alunos. Estamos aprendendo a apoiá-los e auxiliar aqueles que mais precisam a aprender a ler e calcular assim que apresentam sinais de dificuldades. Também estamos aprendendo sobre como oferecer apoio ao comportamento na escola em geral para que o ambiente de aprendizagem seja o mais favorável possível. Manter-se atualizado significa que o corpo docente precisa estar a par dessas novas descobertas e garantir que a próxima geração de professores seja bem-informada e tenha as habilidades necessárias. Mas significa também que os professores devem receber bom treinamento profissional para estar atualizados e atender às necessidades de seus alunos.

Revista Patio

Vermelho como o céu


José Pacheco

Num belo filme, chamado Vermelho como o céu, um menino cego guia uma menina por corredores escuros. E uma metáfora de Saramago diz que o grande crime é não cegar quando todos já são cegos. O filme mostra-nos cegos que conseguem "ver" porque, somente quando alcança a saída da caverna platônica, quem vê reassume a missão de conduzir. Isto é, do Ensaio sobre a cegueira ao Ensaio sobre a lucidez, Saramago não faz outra coisa que não seja lembrar-nos da tragédia edipiana, a qual nos fala daqueles que, tendo olhos, não vêem.

Visitei uma escola que me diziam ser "inclusiva". Numa turma da 4ª série, encontrei um aluno que diziam estar "incluído". Copiava frases escritas no quadro tão lentamente que, no fim da cópia, a folha foi para o lixo - estava empastada de saliva, que escorria sem que ele a conseguisse conter. No fundo da sala, o "incluído" tornara-se invisível. A professora explicou por que razão o "incluído" ali estava: "Que quer que eu faça? Ele continua com o livro da 1ª série. Com mais de 30 alunos, já é difícil ensinar os normais. Agora, colocam-me um deficiente na sala. Eu nunca tive formação para isso. Não dá!".

À impotência e à frustração dos professores soma-se o desespero dos pais: "Na hora de matricular é aquele abraço - "Nós vamos dar conta da sua filha" -, mas depois a minha filha passa o tempo todo passeando pela escola ou no fundo da sala. Tem 13 anos, mas não sabe fazer a tarefa que a professora manda fazer em casa. Ela está na 3ª série, mas tem o livro da 1ª série e passa as aulas fazendo cobrinhas... A professora é muito simpática, mas... Quando ela me disse que não sabia trabalhar com a minha filha, eu lhe respondi que trabalhasse como trabalhava com todos os outros alunos. Mas a professora disse que a Belita não sabe se explicar...".

No decurso de um congresso, alguém afirmou: "A organização em turmas não combina com inclusão. Onde houver série, não pode haver respeito pela diferença, não pode haver inclusão". Essa pessoa viu, claramente visto, o logro de uma "inclusão de fachada". Mas há quem não queira ver. Todas as escolas incorporaram a "inclusão" ao seu discurso. Na prática, são escolas inclusivas "não-praticantes", porque não basta o discurso que apela à integração dos diferentes nas escolas ditas regulares. Não basta assegurar o direito à inclusão; é preciso assegurar a inclusão.

Há mais de um século, em O Brasil e as colônias portuguesas, Oliveira Martins (1879/1978) referia-se à transferência da família real para o Rio de Janeiro como a origem dos males que afetam o Brasil. Talvez, mas eximir-me-ei de fazer afirmações peremptórias para não embotar de maus augúrios o ambiente festivo das comemorações dos 200 anos da chegada da família real. Limitar-me-ei a fatos que a história, inclemente, faz questão de recuperar do baú das velharias. No século XIX, Oliveira Martins zurzia as medidas de política educativa de então, que em nada diferem das medidas de política educativa de hoje: "Tudo isto é uma miséria, tudo isto está pedindo uma reverendíssima reforma. A organização atual dos nossos estudos está abaixo da crítica. Encasquetar na memória rosários de abstrações incompreendidas é o acume da insensatez. Embrutecemos [os alunos] com um ensino que é uma hipótese apenas, no fundo da qual está uma grande ignorância de mãos dadas com bastante especulação".

Surpreende a atualidade desta prosa... de 1888. Cento e vinte anos depois, as estatísticas produzidas no lugar de onde Cabral partiu dão conta de déficits acentuados na alfabetização, de elevadíssimas taxas de abandono escolar e de índices muito baixos de cidadãos que conseguiram completar o ensino médio. Nas terras que Cabral achou, os jornais espalham a notícia de alunos analfabetos na 8ª série, de abandono precoce e maciço dos estudos após a 4ª série, do descalabro do ensino médio. Insistimos em "dar aulas", apesar da evidência dos estudos e dos rankings que, periodicamente, reafirmam que os professores ensinam, mas os alunos não aprendem.

Desperdiçamos o nosso precioso tempo em debates bizantinos: qual a melhor idade para aprender a ler? Organização em série ou em ciclo? Escola de oito séries ou de nove anos? Sempre as mesmas inúteis discussões. Quando nos referimos à palavra "aluno", de qual aluno concreto estamos falando? Do João? Da Maria? De nenhum! Se a melhor idade é a idade de cada um, por que se insiste na discussão de abstrações?

Entretanto, o modelo "tradicional" reproduz-se como uma praga: turmas, aulas, horários uniformes, currículos segmentados em anos e ciclos. Mais data show, menos giz: em pleno século XXI, a escola mantém-se tributária de necessidades sociais do século XIX. Os jesuítas eram mestres competentes, pois sabiam o que faziam. Nada consegue abalar a estrutura que deles herdamos. Exaurimos recursos na sujeição a uma racionalidade caduca; reproduzimos um modelo que demonstrou eficácia, mas que se tornou obsoleto e condena ao insucesso sucessivas gerações de alunos e professores.

Um professor quis saber por que razão não havia séries na minha escola. Expliquei-lhe. Pessoa inteligente - como qualquer professor -, ele entendeu as razões que levaram a Ponte a abandonar a segmentação em séries. "E por que há séries na tua?", perguntei. Ele respondeu com o silêncio e um sorriso maroto. Sosseguei-o: "Não te preocupes. Já fiz essa pergunta a muita gente. Ninguém soube dar a resposta. E, se a procurares nos livros, não encontrarás uma única razão, nenhum fundamento a que possamos chamar 'científico' para haver séries".

Retomou o discurso do senso comum pedagógico: "Mesmo que os teóricos falem de ensino diversificado, com 30 ou mais alunos em cada turma, nunca poderemos fazer esse ensino. E não se pode pedir a um aluno da 7ª série o que se pode exigir de um que está na 8ª. Não se pode voltar atrás, porque temos de cumprir o currículo...". Interrompi: "Explica de modo que eu entenda!". Explicou: "Por exemplo, na minha escola havia alunos que estavam na 3ª série e ainda não sabiam ler nem escrever. Pusemos tudo de lado e aproveitamos bem o tempo. Trabalhamos só a língua portuguesa. Também aplicamos planos de recuperação em alunos para que recuperassem o atraso e tivessem um desempenho aceitável".

O professor não se deu ao trabalho de definir conceitos como o de "aluno mais fraco" ou de "desempenho aceitável", ou se foi solicitada à escola a explicação do "atraso". Inspiradas na lógica fabril, com os seus cronogramas de produção e relacionamentos de trabalho hierárquicos, muitas escolas agem como freios ao desenvolvimento, mantêm-se cativas de abstrações como "turma", "carga horária", "ano", "aluno médio", "aluno fraco", "aluno atrasado", entre outras. Não reconfigurando as suas práticas, de modo a dar resposta à diversidade, adotam "planos de recuperação", "aulas de reforço" e outros remendos inúteis.

É urgente reconfigurar o espaço e o tempo escolar à medida de cada criança. É preciso reafirmar que cada cada deve poder ser cada qual. Cada ser humano é único e irrepetível. É indispensável respeitar o ritmo de cada criança, considerar o estilo de inteligência de cada criança, a cultura de origem de cada criança, o repertório de linguagens de cada criança.

Há mais de meio século, Élise Freinet colocava a seguinte questão: "como será uma aula onde os alunos não farão, todos ao mesmo tempo, o mesmo?". Élise Freinet tinha consciência da obsolescência da organização do trabalho escolar centrada em aulas dadas para um (inexistente) "aluno médio" em tempos iguais para todos. Preocupava-se com a imposição de ritmo único a alunos que denotavam diferentes ritmos. Decorrido um século, deparei-me com um artigo assinado por um professor, do qual extraí estes excertos: "misturar na mesma turma alunos com capacidades, conhecimentos e objetivos muito diferentes é prejudicar todos e não beneficiar ninguém. (...) Turmas de nível dão resposta a todos os alunos: aos excelentes, aos medianos e aos menos bons, devendo a turma de nível inferior ser vocacionada, obviamente, para o ensino profissional". O artigo é omisso relativamente ao modo como um professor, dando aula a "turmas de nível", poderá contemplar "o ritmo de aprendizagem e as necessidades de cada aluno em concreto".

Afinando pelo mesmo diapasão, uma secretaria estadual anunciou que criará classes apenas para alunos repetentes, "turmas especiais aos alunos que repetiram a 4ª série do ensino fundamental". A crer na notícia publicada na Folha de São Paulo, a secretária terá dito: "o aluno com dificuldades é aquele que não conseguiu aprender nas salas regulares. Não adianta imaginar que ele conseguirá aprender com o mesmo material didático e o mesmo professor na mesma sala". Segundo a secretária, "a recuperação intensiva ajudará a reverter os maus resultados da rede em exames de aprendizagem".

Para os adeptos das "turmas de nível" e das "turmas de repetentes", existe um só modo de fazer escola: "os alunos ficarão em classes de recuperação, separadas das turmas regulares. As turmas de recuperação da 4ª série serão formadas pelos alunos que repetiram". Atente-se à terminologia utilizada: "turmas especiais", "salas regulares", "classes de recuperação" - nada se enxerga para além do modelo transmissivo, do ensinar a todos como se fossem um só.

Professores e articulistas de pensamento único lamentam o fato de haver "alunos que aprendem demasiado rápido e alunos que são demasiado lentos". No seu léxico, tão vasto quanto ridículo, há "quem não consiga acompanhar o ritmo da aula". Na aula dirigida aos "medianos", os "excelentes" sentam-se no fundão da sala, com MP3 e i-Pod por companhia. Os "menos bons" são remetidos para "classes de recuperação"...

Dizem-me que as aulas que dão já não são como antigamente e que agora as preparam cuidadosamente. Falam-me de aulas "interessantes", mas não consigo entender como pode ser interessante escutar respostas a perguntas que não se faz. Eu sei que há professores que preparam bem as suas aulas, que definem criteriosamente os objetivos, elaboram rigorosamente um plano e elaboram materiais auxiliares de ensino. Não duvido de que sejam profundos conhecedores do assunto que vão lecionar, mas terão pensado bem para quem vão "dar a aula"? Se todos os alunos estão aptos a recebê-la? Se todos aprenderão no mesmo tempo, do mesmo modo, no mesmo ritmo?

Dizem-me que as aulas de hoje são diferentes e melhores que as dadas antigamente. Mas "aula" não é coisa digna de ser melhorada, é coisa para ser questionada, porque não existe um só modo de fazer escola. Por que um tempo de 50 minutos para estudar matemática e outro tempo de 50 minutos para estudar ciências? São 50, 60, 90 minutos para qual aluno? Quando um aluno da Ponte perguntou-me por que razão as aulas em outras escolas duravam 50 minutos, eu respondi que não havia razão alguma, que eu havia feito essa pergunta a muitos professores que dão aulas de 50 minutos e que eles não souberam responder. É porque é, e... pronto!

Há muitos anos, o Ministério da Educação de Portugal reconheceu a "inexistência de estratégias específicas para potenciar a aprendizagem dos alunos com ritmos mais lentos". Concluiu o ministerial estudo que as práticas de ensino vigentes beneficiam "alunos que acompanham, sem grandes dificuldades, ritmos intensos de lecionação" e que a preocupação maior é a de preparar os alunos para fazer exames" (sic). Já era assim há muitos anos. E hoje? Quem se preocupa com a impunidade dos que, ano após ano, "colocam de lado" os alunos que "não acompanham"? Quando acabará o drama de um país que tem os professores certos trabalhando de modo errado?

Somos todos seres únicos e irrepetíveis, mas o modo como muitas escolas estão organizadas não permite dar resposta efetiva aos diferentes. E nos diferentes eu incluo os que, não tendo sinais exteriores de "deficiência", completam a escolaridade básica sem aproveitamento e vão engrossar as fileiras dos desqualificados. É indispensável alterar o modo de organização de muitas escolas e interrogar práticas educativas hegemônicas. Será preciso reconfigurar as escolas para que se concretize uma efetiva diversificação das aprendizagens, que tenha por referência uma política de direitos humanos, que garanta oportunidades educacionais e de realização pessoal para todos.

Convivemos com o "insucesso educativo" como se a expressão não fosse, em si mesma, paradoxal (como pode a palavra "educativo" ser adjetivo da palavra insucesso?), tratando os "desiguais" como se fossem iguais. Felizmente para os "desiguais", nem todas as escolas são "iguais". Eu creio na remissão das escolas, porque creio no potencial transformador de seus professores. E acredito que a escola há de resgatar o seu papel de "berço de oportunidades". Acredito que, algum dia, os professores hão de compreender por que razão, para certos modos de ver, o céu pode ser vermelho.

José Pacheco é mestre em Educação.
jfpacheco@mail.telepac.pt

Revista Patio

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